Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2465/21.8T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: OBJETO DO RECURSO
ATO INÚTIL
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Nº do Documento: RP202401162465/21.8T8VFR.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo o conhecimento da suscitada questão alheia à sorte da demanda recursiva, ie, não interferindo na decisão de fundo da causa, não ocorrendo alteração da matéria de facto, considerando as soluções plausíveis de direito, este Tribunal da Relação não deverá conhecer de tais questões, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil e infrutífera.
II - É um dos requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ter o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos decisão distinta da recorrida.
III - Será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, quando ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 2465/21.8T8VFR.P1
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Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 3

RELAÇÃO N.º 96
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
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I - RELATÓRIO.

AS PARTES
A.: AA
R.: BB
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O[2] Autor instaurou a presente acção declarativa comum, peticionando:
a) Seja reconhecido e declarado que o Autor é o único e exclusivo proprietário do prédio ajuizado, identificado nos art.ºs 14.º a 17.º da p.i., devendo a Ré ser condenada a reconhecer que o Autor é o único e exclusivo proprietário do referido prédio;
b) Seja ordenado que o registo predial do prédio em causa seja alterado em conformidade com a sentença, designando passando ali a constar como único titular/sujeito activo o Autor.
Alega, para o efeito e em síntese, que em 25/06/2010 comprou a fracção autónoma identificada no art.º 14.º da p.i.. Apesar de, à data da aquisição ser casado com a Ré, da qual se veio a divorciar em 20/04/2015, tal aquisição foi efectuada com dinheiro pertencente exclusivamente ao Autor, proveniente da venda de um imóvel que era seu bem próprio, pelo que a aludida fracção autónoma também constitui seu bem próprio.

A Ré veio contestar, por um lado, invocando as excepções da incompetência em razão da matéria e da litispendência e, por outro, impugnando a factualidade alegada, considerando que a aludida fracção é bem comum do ex-casal.
Deduziu, ainda, reconvenção contra o Autor, peticionando: a) Seja o Autor condenado a reconhecer que o prédio objecto da presente acção como bem comum; b) Caso assim não se entenda, seja o Autor condenado a ressarcir e indemnizar a Ré pelo valor actualizado do referido prédio num valor nunca inferior a € 57.500,00 e que o mesmo constitui um enriquecimento sem causa.

O Autor veio replicar, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas e da reconvenção, que considera, aliás, inadmissível.
Invoca, ainda, quanto ao pedido reconvencional formulado sob a alínea b), a prescrição do direito.
A Ré veio responder, pugnando pela admissibilidade da reconvenção e pela improcedência da excepção da prescrição, pugnando, assim, pela procedência da reconvenção nos termos peticionados.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde foram julgadas improcedentes as excepções da incompetência em razão da matéria e da litispendência, foi admitida a reconvenção e foram aferidos genericamente pela positiva os demais pressupostos processuais. Foram, igualmente, proferidos despachos a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.
Tendo havido uma reclamação quanto à matéria dos temas da prova, realizou-se audiência prévia, no decurso do qual foi atendida tal reclamação, aditando-se, em consequência, dois novos temas.
Instruída a causa, procedeu-se à audiência de julgamento com observância do legal formalismo, no decurso da qual cada uma das partes requereu a condenação da outra por litigância de má fé.
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DA/O DESPACHO/DECISÃO RECORRIDO
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA julgando procedente a demanda, nos seguintes termos:
1. Julga-se procedente a presente acção e, em consequência:
1.1. Declara-se que o Autor é o único e exclusivo proprietário da fracção autónoma, tipo T3, letra “Q”, correspondente ao 2.º andar esquerdo, entrada ...19, com uma garagem individual, na cave letra “Q”, atribuída à fracção, do prédio sito na Rua ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Madeira sob o n.º ...49, inscrita matriz predial urbana sob o artigo ...57 da dita freguesia;
1.2. Condena-se a Ré a reconhecer que o Autor é o único e exclusivo proprietário da referida fracção autónoma;
1.3. Determina-se a alteração registral correspondente à decisão acima;
2. Julga-se improcedente a reconvenção e, em consequência, absolve-se o Autor/Reconvindo dos pedidos reconvencionais deduzidos.
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Custas da acção e da reconvenção a cargo da Ré/Reconvinte.“.
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DAS ALEGAÇÕES
A R., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
Termos em que com o muito douto suprimento de Vossas Excelências requer seja julgado procedente o presente recurso e revista a sentença que condena a Apelante, devendo a mesma ser substituída por decisão judicial que a absolva do pedido e lhe dê ganho da causa com o que se fará sã e serena Justiça!“.
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A ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
1-Não se mostra aceitável que a prova dos supra referidos factos se sustente essencialmente no depoimento da testemunha AA que é o único que refere que o dinheiro proveniente das vendas dos bens próprios do Apelado(filho), serviu esse mesmo dinheiro para pagar a aquisição do andar, objecto da acção.
2-A dita testemunha e o Apelado - pai e filho -, guardam uma enorme cumplicidade entre si, tendo sempre vivendo juntos (facto dado como provado), não ser de esperar que um pai com um relacionamento tão chegado a um filho não deixasse de confirmar a pretensão deste ultimo.
3-Mas tomando em conta o tribunal a quo na valorização que presta ao depoimento da testemunha AA (sendo certo que é esse Tribunal – 1ª instancia – que lida directamente com as testemunhas e encontra-se em melhor condições para aferir os respectivos depoimentos), pedia-se, pelo menos, que o tribunal a quo, tivesse mantido uma linha de coerência na apreciação desse depoimento,
4-E continuasse a valorizar, igualmente, as declarações dessa mesma testemunha quando refere que o Apelado, enquanto casado, sempre teve contas bancárias exclusivas sem as compartir com a Apelante.
-Depoimento da testemunha AA ao minuto 47 e 16 segundos:
Adv.Ré: Desde quando tem contas conjuntas com o seu filho?
Test: Desde Sempre
Adv.: O que é desde sempre?
Test: Desde a maioridade dele
Adv.Ré: E ainda hoje tem essas contas?
Test: Tem
5-O Tribunal a quo não podia pois, deixar de relevar o depoimento da testemunha AA quanto a esse facto e nesse conspecto, quando o mesmo declara, sem margens para dúvidas, que o Apelado antes, durante e depois do matrimónio contraído com a Apelante sempre foi titular de contas bancárias onde a ex-cônjuge(no caso, a Apelante) não tinha acesso às mesmas e, assim,
6-Dar como provado o facto alegado pela Apelante na Contestação/Reconvenção, conforme vai transcrito no artigo 81º:
“É que efectivamente, o A. era titular único de várias contas bancárias na data daquela venda, ou era autorizado em contas bancárias tituladas pelo seu pai onde não constava a R. e por essa razão poderia ter depositado o dinheiro nessas contas e não como acabou por fazer ao depositar numa conta titulada em conjunto com a sua mulher, a aqui R..”
E no artigo 82º:
“Também neste conspecto importa aferir quais as contas que o A. era titular único de várias contas bancárias na data daquela venda, ou era autorizado em contas bancárias tituladas pelo seu pai à data dos acontecimentos, e com relevância para a causa, durante o ano de 2009 e até ao mês de Março de 2015, data em que se concretizou o divórcio entre A. e R..”
7-Ora, dando-se como provado que o Apelado possuí contas bancárias suas, exclusivamente tituladas por si ou com o pai, ficava obrigado, na presente acção a dar conta do movimento das mesmas de forma a aferir para onde transitaram, efectivamente, os dinheiros provenientes da venda dos bens próprios,
8-Não bastando vir declarar que num primeiro momento esses dinheiros teriam sido depositados na conta comum do casal.
9-O Apelado nunca juntou nem identificou aos autos todas as contas bancárias de que era titular (lá saberá o próprio porque não o fez…), não conseguindo, assim, fazer prova para onde foram canalizados os dinheiros que recebeu com a venda de bens próprios.
10-É que as referidas vendas e compras ali mencionadas não correspondem a trocas directas!
11-Apesar de alguma coincidência de datas na realização dos ditos negócios, fica por demonstrar que foram, realmente, os dinheiros ganhos pelo Apelado na venda dos bens próprios que foram utilizados na aquisição do referido andar,
Ou,
Se, pelo contrário, os dinheiros ganhos pelo Apelado na venda dos bens próprios foram todos eles transferidos para as contas bancárias, das quais, só o Apelado era exclusivo titular a par com o seu pai, mas sem a Apelante.
12-É que a verificar-se esta ultima situação (caso tenham sido transferidos os dinheiros para as contas sem a intervenção da Apelante), o Apelado continua até hoje a fruir, em exclusivo, dos dinheiros que recebeu pela venda dos bens próprios e,
Cumulativamente,
13-Vem através da presente acção reivindicar para si, em exclusivo (com manifesto prejuízo da Apelante), aquele andar, o qual, como já se deixou atrás referido, pode a final ter sido adquirido com outros dinheiros, ou seja, dinheiros comuns do casal.
14-E tinha sido tão fácil e simples ao Apelado efectuar a prova em como o andar fora adquirido com dinheiros em resultado da venda de bens próprios:
.Bastaria que o Apelado tivesse apresentado e identificado ao processo todas as contas bancárias em que foi e é titular( seja sozinho com o pai ou em conjunto com a Apelante), a par de outras que está autorizado a movimentar, juntado, para o efeito, aos autos os extractos relativos aos movimentos a partir do inicio do ano de 2009 até ao final do mês de Março de 2015(período temporal que medeia a aquisição do imóvel objecto da presente acção).
15-Ao não fazê-lo, ficou o Tribunal desprovido de documentação bancária vital, como forma de garantir efectivamente que os dinheiros provenientes da venda de bens próprios do Apelado foram aplicados na aquisição do referido andar.
16-O Apelado estava obrigado a “abrir o jogo” e dar a conhecer as movimentações dos dinheiros entre as contas bancárias das quais era titular a par com o seu pai e das contas bancárias que era titular com a Apelante e, eventualmente outras a que estava autorizado a movimentar.
17-Existindo um meio de prova documental fidedigno – extractos bancários -, qual a razão de o omitir e procurar fazer prova através do depoimento duma testemunha? No caso em concreto uma testemunha muito específica, o próprio pai da parte processual a quem competia fazer a referida prova.
18-Era, com efeito, ao Apelado que competia ilidir a presunção legal de que o andar não era um bem comum do casal, mas antes um bem próprio, como alega – art. 1724º e al.c) do art. 1723º, todos do Código Civil -.
19-O ónus da prova recai sobre o A., o Apelado!
20-Impunha-se que o Apelado demonstrasse os extractos com os movimentos e saldos de todas as contas de que era titular (fossem contas comuns do casal ou próprias) de forma a permitir saber para onde foram canalizados os dinheiros provenientes das vendas dos bens próprios.
21-Ao não tê-lo feito (omitindo a junção da referida prova documental) fica por saber se os referidos dinheiros provenientes das vendas de bens próprios foram, ou não, utilizados na aquisição daquele andar, ou antes, canalizados para as contas bancárias única e exclusivamente tituladas pelo Apelado e seu pai, que até hoje podem continuar na posse do Apelado.
22- Do depoimento da testemunha AA não pode deixar de ser atendido em razão do que vai declarado por essa mesma testemunha, acerca dos factos alegados pela R., ora Apelante, nos artigos 81º e 82º da Contestação/Reconvenção e
23-acrescentar-se à Matéria dada como provada, o “Ponto 35. O A. era titular único de várias contas bancárias na data daquela venda(leia-se o andar), ou era autorizado em contas bancárias tituladas pelo seu pai onde não constava a R.;”
24-E dar por consequência em face da inexistência de prova documental bancária junta aos autos, como não provado, os pontos 20., 21. e 33. da Matéria dada como Provada, passando os mesmos a constar da Matéria não provada.
25- Seja dada como provada a al.b) da matéria dada como não provada:Já que fica sobejamente comprovado que Apelante e Apelado, ambos, contribuíam com os rendimentos auferidos do seu trabalho, enquanto profissionais, na área da medicina, ele médico ortopedista, ela médica dentista – vide sentença -, os quais, vivendo em comunhão de mesa e habitação desde Novembro/Dezembro de 1999(ponto 26. Matéria dada como provada), até à liquidação daquele empréstimo no ano de 2004(ponto 33. Matéria dada como provada), ou seja, depois de viverem conjugalmente cinco anos, onde a obrigação da prestação mensal do referido empréstimo foi escrupulosamente cumprida.
26-Seja dada como provada a al.c) da matéria dada como não provada: Considerando que se tratou duma restruturação de casa na forma como vai exposta nos pontos 22. e 24. da matéria de facto dada como provada, a qual, por si só, à luz das regras da experiencia comum de vida, é perfeitamente perceptível que se tratam de intervenções de valor avultado.
27- Seja dada por provada a al.f) da matéria dada como não provada, já que fica demonstrada uma vida conjugal entre as partes e de trabalho ao longo de 20 anos numa expressão máxima da prestação mutua do ex-casal para a aquisição daquele andar, tudo isso, tendo em conta que o Apelado não carreou prova documental demonstrativa onde aplicou os dinheiros provenientes da venda de bens próprios.
28- Dar por provado a al.g) da matéria dada como não provada, tanto mais que se tem como provado que o ex-casal passou a viver juntos em comunhão de mesa e cama Novembro Dezembro 1999 – ponto 26. Matéria dada como provada -, pelo que, o mesmo equivale dizer que tudo era repartido entre Apelante e Apelado
29- Dê-se como provado a al.h) da Matéria dada como não provada, já que o A., ora Apelado, não consegue fazer prova (pelos menos dos autos nada resulta em contrário) que em momento algum, antes da propositura da presente acção, tenha feito menção publica que o referido andar era apenas de sua pertença exclusiva. Aliás o Apelado teve oportunidade de o mencionar na escritura de compra e venda tal facto e não fez, conforme resulta da Matéria dada como provada do ponto 13. “Nesse título, não se mencionou a proveniência do dinheiro com que foi pago o preço da compra;”
30- Também a Apelada não pode deixar de denunciar a manifesta disparidade de julgamento que versa sobre as als. m), n) e o) da Matéria dada como não provada, onde estas três alíneas, em conjunto, são bem demonstrativos da invocada incoerência que se assiste na sentença recorrida, a qual, procura julgar que tanto a Apelante como o Apelado não participaram no custo das obras de remodelação, sendo certo, que o referido imóvel foi objecto de obras já durante o tempo em que o ex-casal ali vivia, quando o mesmo, já se encontrava sido adquirido pelo Apelado e este tinha contraído um empréstimo bancário para a sua compra e também para a realização de obras – vide matéria de facto dada como provada-.
31- Ao dar-se como facto novo integrado na Matéria dada como Provada, o “Ponto 35.O A. era titular único de várias contas bancárias na data daquela venda, ou era autorizado em contas bancárias tituladas pelo seu pai onde não constava a R.;”
32- Ao dar-se como não provado o facto provado dos pontos 20., 21. e 33., 33- E alterando os factos não provados constantes das als. b), e), f), g), h), m), n) e o), como factos provados,
34- Deve a sentença recorrida ser substituída por decisão judicial que reconheça o referido imóvel como bem comum do ex-casal,
35- Julgando improcedente a presente acção, designadamente, não reconhecer como bem próprio do Apelado o referido imóvel,
36-E no limite, reconhecer a título de enriquecimento sem causa por parte do Apelado, a indemnização que é devida à Apelante por metade do valor do imóvel em resultado da avaliação judicial,
37- Ao decidir da forma como decidiu o tribunal a quo, violou o disposto nos artigos 1723º e 1724º do C.Civil. “.
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O A. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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II - FUNDAMENTAÇÃO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:
A) Modificabilidade da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 20, 21, e 33 dos factos provados no sentido de os dar como não provados e as alíneas b), c), f), g), h), m), n) e o) dos factos não provados no sentido de os dar como factos provados.
B) Em consequência da alteração dos factos, em sede de direito deverá ser realizada e apreciada a factualidade à luz do instituto do enriquecimento sem causa.
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OS FACTOS
A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.
A.1. Matéria provada
Da instrução e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Autora e Réu contraíram, entre si, casamento civil, sem convenção antenupcial, em 20 de Abril de 2000;
2. Por sentença proferida em 20 de Abril de 2015, transitada em julgado em 25 de Maio de 2015, foi decretado o divórcio entre Autor e Ré;
3. Corre termos, no Cartório Notarial de São João da Madeira, inventário n.º ...24/19, para partilha dos bens comuns do casal, requerido pela aqui Ré e onde o aqui Autor é cabeça-de-casal;
4. Antes do casamento com a ré, o autor era proprietário do prédio misto constituído por uma casa de habitação de cave, rés-do-chão e andar, quintal, pátio e jardim, anexos e terreno de cultura junto, denominado “...”, situado no lugar..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº. ...44, freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº. ...45, e na matriz predial rústica sob o artigo ...17;
5. Já na constância do casamento tal prédio foi vendido;
6. Para o efeito, no dia 22 de Setembro de 2009, foi celebrado contrato promessa de compra e venda com CC e DD;
7. O preço da venda fixado foi de 207.000,00 € (duzentos e sete mil euros), tendo o autor recebido naquela data, a titulo de sinal a quantia de 32.000,00 € (trinta e dois mil euros) em numerário;
8. O título de compra e venda foi celebrado em 10 de Novembro de 2009, na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra, com a intervenção e o consentimento da Ré;
9. Em 12 de Novembro de 2009, mediante documento particular, denominado de contrato promessa de compra e venda, EE e FF, na qualidade de 1.ºs outorgantes e sócios-gerentes e em representação da “A..., Lda.”, na qualidade de promitente vendedora, e AA, no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos e na qualidade de 2.º outorgante e promitente comprador, declararam que:
“1.ª Os promitentes vendedores são donos e legítimos proprietários de um edifício que se encontra em fase de construção na Rua ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de S.João da Madeira sob o nº...49, inscrita matriz predial urbana sob o artigo...57 da dita freguesia e titulada pelo Alvará de Licença de construção nº...4, de 30 de Julho de 2004 emitida pela Câmara (…);
2.ª A promitente vendedora promete vender ao 2.º outorgante, e este, por sua vez promete comprar, a fracção autónoma, tipo T3, letra “Q”, correspondente ao 2º andar esquerdo, entrada ...19, com uma garagem individual, na cave letra “Q”, atribuída à fracção, conforme plantas que se juntam e que fazem parte integrante deste contrato, do prédio descrito na cláusula anterior pelo valor global de € 115000,00 (cento e quinze mil euros);
3.ª Como sinal e princípio de pagamento a promitente vendedora recebe do 2º outorgante a quantia de €28.000,00 (vinte e oito mil euros), de que lhe dão plena quitação;
4.ª 1. A restante quantia em dívida no montante de €87.000,00 (oitenta e sete mil euros) será liquidada na data da escritura pública de compra e venda, a qual será outorgada no prazo de quinze dias após a obtenção de licença de habitabilidade, a qual está prevista a ser outorgada até final do mês de Junho de 2010;
2. (…);
5.ª (…);
(…)”;
10. O preço da venda da fracção identificada em 9. foi de €115.000,00, tendo o Autor pago como sinal a quantia de €28.000,00;
11. O título de compra e venda da referida fracção foi celebrado em 25 de Junho de 2010, na Conservatória do Registo Predial de São João da Madeira;
12. No título de compra e venda referido no ponto anterior, apenas interveio o Autor, como comprador, mas no estado de casado com a Ré, no regime da comunhão de adquiridos;
13. Nesse título, não se mencionou a proveniência do dinheiro com que foi pago o preço da compra;
14. A fracção ficou registada na Conservatória Predial de São João da Madeira, em que o(s) sujeito(s) activo(s) são o Autor casado com a Ré;
15. O prédio referido em 4. foi adquirido pelo Autor, no estado de divorciado, mediante escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada em 22/07/1999, através do qual os seus pais lhe venderam e o mesmo comprou tal prédio pelo preço de Esc.: 11.000.000$00, nos termos da escritura junta com a contestação sob a designação de doc. 6 e aqui dada por reproduzida;
16. Nessa mesma escritura, os vendedores, pais do Autor, declararam já ter recebido o preço e o Autor confessou-se devedor ao Banco 1... da importância de Esc.: 11.000.000$00, por empréstimo que lhe foi por este concedido ao abrigo das normas para o crédito à habitação;
17. De acordo com a escritura, parte do empréstimo, no montante de Esc.: 9.900.000$00 destinou-se à mencionada aquisição e o remanescente no montante de Esc.: 11.000.000$00 a ser aplicado em obras de beneficiação no referido prédio;
18. Tal empréstimo tem o prazo de 15 anos, vencendo-se a primeira prestação trinta dias após a celebração da escritura;
19. Aquando da compra e venda de 10/11/2009, o Autor recebeu a quantia de € 175.000,00;
20. O sinal de €28.000,00 foi realizado em numerário, tendo para o efeito o Autor utilizado o dinheiro que recebera a título de sinal na venda referida em 5. a 7.;
21. O restante preço da fracção, também, foi pago pelo Autor, utilizando, para o efeito, o dinheiro que recebera a título de sinal e a título de preço da venda referida em 5. a 7.;
22. A casa “...” foi objecto de obras de recuperação e beneficiação (substituição da canalização de água e esgotos, reboco de interiores, louças sanitárias, pavimentos e rodapés, instalação eléctrica, pinturas exteriores e interiores), que implicaram gastos que em concreto não foi possível precisar;
23. Para a realização de tais, foi requerida pelo pai do Autor licença de obras junto da Câmara Municipal;
24. Tais obras valorizaram o prédio “...”, em montante que em concreto não é possível precisar;
25. A fracção vale actualmente €139.000,00;
26. Antes de casarem e desde Novembro/Dezembro de 1999, A. e R. já viviam juntos, “em comunhão de cama e mesa”, habitando a casa “...”;
27. Os pais do Autor apenas quiseram receber deste parte do preço da venda (Esc.: 6.100.000$00), dando-lhe o restante (€4.900.000$00);
28. O Autor vivia com os pais na “...” e sempre foi o único filho do casal;
29. Mesmo após a venda do imóvel ao Autor, os pais deste continuaram a viver na “...” com o mesmo;
30. E, mesmo depois do casamento entre A. e R., os pais do A. continuaram a viver aí com eles;
31. Antes de casar com a Ré, o Autor era titular de uma quota na empresa B..., Lda., no valor nominal de Esc.. 2.640.000$00, correspondente a metade do capital social, sendo tal sociedade dona de duas fracções autónomas sitas em ..., ...;
32. No ano de 2003, o Autor procedeu à venda da quota social pelo valor €112.728,33, que recebeu;
33. Com esse dinheiro, pagou o empréstimo ao banco referido em 16., no ano de 2004;
34. Por decisão proferida em 29/03/2022, a Exm.ª Notária suspendeu o incidente de reclamação contra a relação de bens e o próprio processo de inventário até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida na presente acção.
A.2. Matéria não provada:
Com relevo para a decisão, nenhuns outros factos ficaram demonstrados, nomeadamente não ficou provado que:
a) A compra da casa “...” correspondia a um projecto de vida do casal, só não contando com a intervenção directa da Ré porque os pais do Autor impuseram como condição que só aceitavam realizar o referido negócio caso a propriedade do prédio ficasse apenas em nome do filho;
b) O empréstimo referido em 16. foi liquidado em conjunto e em comunhão de esforços do casal;
c) As obras referidas em 22. foram feitas ao longo do tempo, enquanto, em simultâneo, o imóvel ia servindo de residência ao A. e à R.;
d) Tais obras foram pagas e suportadas pelo casal, em partes iguais;
e) Essas obras implicaram gastos de dezenas de milhares de euros;
f) A Ré contribuiu para a aquisição da fracção;
g) Antes de casarem, a. e R. repartiam entre si as despesas e rendimentos auferidos;
h) Só a partir da propositura da presente acção é que a Ré foi confrontada com a posição do Autor, de se arrogar como exclusivo dono da fracção;
i) Já antes de 22 de Junho de 1999 A. e R. viviam juntos, como se de um verdadeiro casal se tratasse;
j) O Autor tinha vivido um divórcio (com a anterior esposa) com problemas de partilha e os seus pais receavam a repetição de idênticos acontecimentos;
k) A Ré prestou idêntica comparticipação de esforço comum para a aquisição da fracção ao longo duma vida de casamento mantido com o Autor;
l) A Ré participou no pagamento da compra da fracção;
m) A Ré participou na compra da “...” e no custo das obras de remodelação nela realizadas;
n) As obras na “...” foram custeadas pelo Autor;
o) A Ré também custeou, em parte, tais obras.“, realçado nosso.
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DE DIREITO.
A)
Modificabilidade da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 20, 21, e 33 dos factos provados no sentido de os dar como não provados e as alíneas b), c), f), g), h), m), n) e o) dos factos não provados no sentido de os dar como factos provados. Mais pede que seja adicionado um novo facto aos factos provados.
i) A recorrente pugna que os pontos 20 e 21 dos factos provados sejam dados como não provados. Para tanto, argumenta que o Tribunal de primeira instância se baseou no depoimento da testemunha AA, e que tal meio de prova não merece a credibilidade que lhe foi atribuída.
ii) Sustenta que deverá ser adicionado novo facto aos factos provados, com a seguinte redacção: “O A. era titular único de várias contas bancárias na data daquela venda (leia-se o andar), ou era autorizado em contas bancárias tituladas pelo seu pai onde não constava a R.”. Que tal factualidade, decorre do depoimento da testemunha AA.
iii) Por fim, argumenta que as alíneas b), c), f), g), h), m), n) e o) dos factos não provados devem ser dados como provados. Em síntese, a recorrente sustenta que a realidade de A. e R. terem vivido uma vida de cerca de 20 anos em conjunto, cada um ter a sua profissão, e valorando as regras da experiência da vida, terá que se dar como provada tal factualidade.
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Como vimos, são as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.
Vejamos.
Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.
A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.
Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.
a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;
b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;
c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;
d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).
Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).
Assim, será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, nos seguintes casos:
a) Ocorrer a falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
b) Ocorrer a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
c) Ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.
d) E por fim, ocorrer a falta de indicação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido por cada segmento da impugnação.
Como refere, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in ob. cit, 5.ª Ed., pág. 169, em anotação ao artigo supratranscrito, a apreciação rigorosa destes requisitos deve ocorrer sempre, pois só assim se dá efectiva validade ao princípio da auto-responsabilidade das partes. Com efeito, são as partes e não o Tribunal que fixam o objecto do recurso através das conclusões. O Tribunal de 2.ª instancia deste modo poderá proceder a um verdadeiro novo julgamento da matéria de facto, tendo como baliza a fixação do tema a decidir, os concretos pontos de facto.

Mais, é de atender ao decidido pelo recente Ac do Supremo Tribunal de Justiça de UJ de 14.11.2023, n.º 12/2023, do qual consta: “Nos termos do art. 640.º/1/c, do CPCivil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões do recurso a decisão alternativa pretendida, desde que essa indicação seja feita nas respetivas alegações “.
Na fundamentação do citado Ac. pode-se ler:
Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.
O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do artigo 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”.
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Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, a recorrente, quanto aos pontos de facto 20.º e 21.º dos factos provados preenche os apontados requisitos – supramencionado sob a alínea i).
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Quanto ao pretendido facto a adicionar aos factos provados (35.º), identificado sob a alínea ii), não será caso do seu conhecimento, pelas seguintes razões.
A invocada factualidade – existência de contas bancárias, tituladas ou não pelo A. e R. e terceira pessoa – é inconsequente. Assim, se nenhuma importância e consequência tem o objecto de tal arguição, o resultado natural e forçoso é a rejeição da sua apreciação.
Tal como foi decidido por este Tribunal da Relação do Porto Ac 1756/20.0T8MAI.P1, de 14.12.2022, relatado por JOÃO RAMOS LOPES, “A Relação deve abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados (8) Assim, ainda que considerando o anterior regime processual civil, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
O recurso da sentença destina-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido no que concerne ao mérito da causa, estando a impugnação da matéria de facto teleológica e funcionalmente ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter, na sua procedência, a alteração da decisão de mérito proferida na sentença recorrida. Propósito funcional da impugnação da decisão da matéria de facto que faz circunscrever a sua justificação às situações em que os factos impugnados possam ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito esteja dependente da modificação que o recorrente pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.
Se a matéria impugnada pelo recorrente não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia e indiferente à sorte da acção, de acordo com o direito aplicável (considerando as várias soluções plausíveis da questão de direito (9) Critério que se reporta às soluções aventadas na doutrina e/ou na jurisprudência, ou que, em todo o caso, o juiz tenha como dignas de ser consideradas (como admissíveis a uma discussão séria) - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 188, nota 1. Devem considerar-se como tais as soluções que a doutrina e a jurisprudência adoptem para a questão (designadamente nos casos em que em torno dela se tenham formado duas ou mais correntes) e também aquelas que sejam compreensivelmente defensáveis, considerando a lei e o direito aplicáveis - A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 417 e 418.), não deverá a Relação conhecer da pretendida alteração, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes, considerando as soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância, como sucederá nas situações em que, mesmo com a substituição pretendida pelo impugnante, a solução e enquadramento jurídico do objecto da lide permaneçam inalterados (10) Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítiowww.dgsi.pt. No mesmo sentido, por mais recentes, os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Batista), no sítio www.dgsi.pt.” .
Com efeito, o “ataque” à sentença, pedindo a alteração da matéria de facto, visa possibilitar que seja proferida nova decisão, distinta, no seu todo ou parcialmente, por parte do Tribunal a quo, e deste Tribunal, e deste modo que seja proferida nova decisão de mérito, certamente no sentido pugnado pela apelante.
Sendo o conhecimento da suscitada questão alheia à sorte da demanda recursiva, ie, não interferindo na decisão de fundo da causa, não ocorrendo alteração da matéria de facto, considerando as soluções plausíveis de direito, este Tribunal da Relação não deverá conhecer de tais questões, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil e infrutífera.
O que verdadeiramente pretende a A. é discutir os meios de prova e não o facto em si. Como se pode constatar da alegação da A., a mesma pretende que dando como provado tal facto (O A. era titular único de várias contas bancárias na data daquela venda (leia-se o andar), ou era autorizado em contas bancárias tituladas pelo seu pai onde não constava a R.), e em consequência “ficava obrigado, na presente acção a dar conta do movimento das mesmas de forma a aferir para onde transitaram, efectivamente, os dinheiros provenientes da venda dos bens próprios. (…). Impunha-se que o Apelado demonstrasse os extractos com os movimentos e saldos de todas as contas de que era titular (fossem contas comuns do casal ou próprias) de forma a permitir saber para onde foram canalizados os dinheiros provenientes das vendas dos bens próprios. Ao não tê-lo feito (omitindo a junção da referida prova documental) fica por saber se os referidos dinheiros provenientes das vendas de bens próprios foram, ou não, utilizados na aquisição daquele andar, ou antes, canalizados para as contas bancárias única e exclusivamente tituladas pelo Apelado e seu pai, que até hoje podem continuar na posse do Apelado.“.
Deste modo se conclui por tal factualidade ser irrelevante para o destino da demanda – aferir se o apartamento é um bem próprio, versão do A, ou um bem comum, versão da R..
Pelo exposto, este Tribunal abstém-se de conhecer da suscitada questão.
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Quanto ao conhecimento da factualidade da alínea iii) – alteração da resposta das alíneas b), c), f), g), h), m), n) e o) dos factos não provados.
Compulsado o requerimento de interposição de recurso, as suas conclusões – supratranscritas e bem como das alegações de recurso, a recorrente não indica qual seja o preciso e concreto meio de prova que no seu entender impõe decisão diversa.
A recorrente não indica qual seja a testemunha, o documento que por si ou conjugado, que os apontados factos sejam dados como provados. Ao longo das conclusões e alegações de recurso, a recorrente não mostra ou menciona qual o meio probatório e sua força probatória, que permita concluir por tal factualidade seja dada como provada.
Pelo que nesta parte, se rejeita o recurso quanto a esta alínea da matéria de facto provada.
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Como se aludiu, quanto ao ponto da alínea i), a recorrente indica claramente o sentido que pugna por ver alterado por este Tribunal da Relação do Porto.
De igual modo, indica, ainda que de modo superficial, qual o meio de prova que sustenta a alteração peticionada dos factos – prova testemunhal – com indicação das passagens gravadas.
Pelo exposto a recorrente, nesta parte, preenche os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.
Passemos então a apreciar a parte admitida da impugnação da decisão da matéria de facto.
Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.
Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.
A primeira instância fundamentou a sua convicção com relevância para os pontos em discussão, do seguinte modo:
A decisão de facto teve por base a globalidade da prova produzida, conjugada com as regras da experiência, designadamente o teor dos documentos juntos aos autos – Juntos com a p.i.: certidão de casamento (doc. 1); elementos relativos ao processo de inventário n.º ...24/19, do Cartório Notarial de São João da Madeira (carta de citação, requerimento inicial – doc. 2); certidão registral do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...44/19910909 (doc. 3); contrato promessa de compra e venda celebrado em 22/09/2009 (doc. 4); título de compra e venda, mútuo com hipoteca outorgado em 10/11/2009 (doc. 5); comprovativo de transferência bancária (doc. 6); identificação de titulares de conta bancária (doc. 7); contrato promessa de compra e venda de 12/11/2009 (doc. 8); título de compra e venda de 25/06/2010 (doc. 9); cópia de cheque no valor de €87.000,00 (doc. 10); certidão registral do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de S.J. Madeira sob o n.º...49/19980617 (doc. 11); - Juntos com a contestação: peças do processo de inventário n.º ...14/19; despacho Notarial; relação de bens no processo de inventário e sua notificação; escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada em 22/07/1999; processo de ligação à rede de saneamento básico; pedido de obras; certidão de requisição de registo; cópia de despacho proferido na acção 2509/19.3T8VFR; certidão matricial do art.º ...78.º; - Juntos com a réplica: proposta de adesão do Banco 1... (doc. 1); certidão do Registo Comercial da “B...” (doc. 2); certidão registral do n.º ...3/20071204 (doc. 3); escritura de cessão de quota e alteração parcial de pacto, de 30/05/2003 (doc. 4); cópias de cheques do Banco 2... (docs. 5 a 7); declaração de GG (doc. 8); - peças do processo de inventário.
Conjugados com todos os documentos juntos, o Tribunal teve, ainda, em consideração o relatório pericial junto, os depoimentos de parte do Autor e da Ré e os depoimentos das testemunhas.
(…)
- Quanto aos pontos 20. e 21.: A informação acerca da titularidade de conta bancária junta como doc. 7, o contrato promessa e o título de compra, mútuo com hipoteca, juntos como docs. 4 e 5 com a p.i., o contrato promessa e o título de compra e venda juntos com a p.i. como docs. 8 e 9, a cópia do cheque junta como doc. 10 e os depoimentos prestados por: - FF, sócio-gerente da sociedade que vendeu a fracção, o qual, confirmando o teor do contrato promessa e do título de compra e venda juntos com a p.i. como docs. 8 e 9, afirmou que o sinal de € 28.000,00 foi satisfeito pelo Autor em dinheiro, tendo o mesmo pago a restante parte do preço mediante o cheque junto como doc. 10 no acto da escritura de compra e venda; - AA, pai do Autor, o qual explicou que este utilizou o dinheiro da venda da “...” (incluindo os €32.000,00 que recebeu de sinal aquando do contrato promessa, a que assistiu), que lhe pertencia em exclusivo, na compra da fracção.
Com efeito, a compra da fracção ocorreu no ano de 2009, quando A. e R. já eram casados há alguns anos, não tendo a Ré qualquer intervenção no negócio definitivo, nem no contrato promessa, apenas subscritos pelo aqui Autor. E, na venda da “...”, a Ré apenas intervém no negócio definitivo a dar o consentimento.
A “...” pertencia exclusivamente ao Autor, por a ter adquirido aos pais em 22/07/2019, quando ainda não era casado com a Ré.
Além de ainda não ser casado com a Ré, também ainda não vivia com a mesma (cfr. resposta ao ponto 26.).
Em 10/11/2009 é vendida a “...” pelo Autor e passados logo dois dias é celebrado o contrato promessa de compra da fracção pelo Autor, cujo contrato definitivo também veio a ser celebrado por este em Junho do ano seguinte (pontos 8. 9. e 11. Da matéria já provada).
Foi o Autor quem entregou o sinal e quem passou o cheque do restante preço de aquisição da fracção (cfr. depoimento de FF, cópia de cheque junta como doc. 10).
Assim e tendo em consideração os aludidos depoimentos, o Tribunal ficou convicto de que a fracção foi comprada com o dinheiro da venda da “...”;
(…)
- Quanto aos pontos 31. a 33: Os documentos juntos com a réplica, tendo a testemunha AA, aquando do seu depoimento, confirmado tal matéria. Acresce referir que, tendo a amortização do empréstimo sido antecipada para 2004 e tendo o Autor recebido aquele montante em 2003, sendo o empréstimo contraído pelo Autor com vista à aquisição da “...” antes de viver junto e estar casado com a Ré, é muito natural que, também, tenha sido só o Autor a suportar tal encargo, suportando integralmente o empréstimo, sendo certo que nenhum outro fluxo monetário aparece no horizonte justificativo para aquela antecipação da amortização. Refira-se, ainda, que a testemunha AA explicou o motivo pelo qual tal empréstimo foi realizado, designadamente para o Autor reparar o telhado, o que nunca chegou a fazer; (…) “.
Sopesando os meios prova produzidos nos autos, ouvida a prova que na audiência de julgamento teve lugar, a convicção deste Tribunal é coincidente com a formada pela primeira instância.
Na realidade quanto aos pontos 20, 21 e 33 dos factos provados, a testemunha AA (pai), apresenta um discurso coerente e escorreito, devidamente circunstanciado quanto a vários momentos da compra da ... e obras que foram levadas a cabo. A recorrente, na realidade, não ataca a credibilidade da testemunha. Afirma que o seu depoimento não é suficiente para que tal factualidade seja dada como provada.
A primeira instância, e bem, fundamentou a sua resposta positiva, quer no depoimento da testemunha, como também em outros meios de prova.
O percurso lógico da motivação de facto do M.mo Juiz é claro e límpido, não constando do mesmo que tenha infringido qualquer regra do direito probatório. Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.
Tudo visto, improcede a pretensão da R. recorrente.
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B)
Em consequência da alteração dos factos, em sede de direito deverá ser realizada e apreciada a factualidade à luz do instituto do enriquecimento sem causa.
Como se verifica da análise das conclusões formuladas pela apelantes, o objecto deste recurso consistia essencialmente na alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto controvertida. Dessa alteração, antes de qualquer outro fundamento, dependia a pretendida alteração da solução decretada na sentença em crise, pois sem isso a tese da ré/apelante continuaria desprovida de substrato factual apto à sua afirmação.
Damos aqui por reproduzidas as considerações teóricas quanto ao regime de bens do casamento, designadamente, quanto ao que seja bem próprio ou bem comum do casal. De igual modo, as considerações, teóricas quanto ao instituto jurídico do enriquecimento sem causa.
E na apreciação do caso concreto, o M.mo Juiz fundamentou do seguinte modo:
Na situação em análise, resultou demonstrado que, na pendência do casamento entre A. e R., em 25/06/2010, o A. comprou a fracção autónoma identificada no ponto 9., pelo preço de €115.000,00 (cfr., ainda, pontos 1., 2., 10. e 11. da matéria provada).
No título de compra não foi mencionada a proveniência do dinheiro com que foi pago o preço da aquisição (ponto 13. da matéria provada).
De todo o modo, ficou provado que o Autor pagou o preço da fracção autónoma através do dinheiro que recebera a título de sinal e a título de preço da venda por si efectuada em 10/11/2009 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o n.º ...44, prédio este que havia sido por si adquirido antes do casamento (cfr. pontos 1., 4., 5., 7., 8., 15., 19., 20. e 21. da matéria provada).
Assim sendo, a fracção autónoma foi adquirida pelo Autor com dinheiro que constituía seu bem próprio, porquanto proveniente da venda de um imóvel que era seu bem próprio.
Deste modo, conclui-se que a fracção autónoma em questão é um bem próprio do Autor (art.ºs 1722.º e 1723.º e Ac. UJ n.º 12/2015 acima citado).
Em consequência, impõe-se julgar procedentes as pretensões deduzidas pelo Autor.
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Já os pedidos reconvencionais devem improceder.
Por um lado, como vimos, a fracção autónoma é um bem próprio do Autor, não integrando a comunhão conjugal, pelo que improcede o pedido de reconhecimento de tal imóvel como bem comum.
Por outro lado, não resultou demonstrado que as obras realizadas no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o n.º ...44 tenham sido suportadas, ainda que em parte, pela Ré. De igual modo, também não ficou provado que a Ré contribuiu para a aquisição da fracção autónoma em questão. Em consequência, não tendo a Ré/Reconvinte logrado demonstrar, como lhe competia, os factos que constituem os pressupostos do enriquecimento sem causa, impõe-se, igualmente, o naufrágio do pedido indemnizatório subsidiário por si deduzido, ficando, assim, prejudicado o conhecimento da invocada prescrição.“.

Em face da aludida fundamentação, não há razões para discordar da mesma. A mesma é conforme as regras do direito, sendo que os institutos jurídicos pertinentes, foram devidamente aplicados.
Por conseguinte, perante a confirmação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nada mais cumpre apreciar. Resta, então, concluir pela integral falência das conclusões recursivas da apelante e, nesta medida, pela improcedência do seu recurso.
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III DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela R., apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
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Porto, 16 de Janeiro de 2024
Alberto Taveira
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.