Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1314/24.0T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: AÇÃO ESPECIAL DE FIXAÇÃO DE PRAZO
REEMBOLSO DO SUPRIMENTO
PRAZO PARA O REEMBOLSO
Nº do Documento: RP202510281314/24.0T8STS.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para o pedido de fixação judicial do prazo para o reembolso do suprimento efetuado a uma sociedade comercial, tem legitimidade o cabeça de casal da herança aberta por óbito do autor desse suprimento.
II - Nos negócios jurídicos formais, as declarações negociais nele exaradas, ressalvada a hipótese das mesmas valerem com o sentido correspondente à real vontade das partes, se as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade, deve ser excluído um sentido que não tenha no documento onde tais declarações são registadas um mínimo de correspondência.
III - E, na busca desse sentido, não sendo também caso para dois sentidos interpretativos de igual relevo, a declaração negocial deve ser entendida a partir da posição do real declaratário, com o sentido que um declaratário normal, de qualidades e diligência médias, colocado naquela posição, pudesse deduzir, salvo se não fosse razoável contar com esse sentido.
IV - Estabelecendo-se no pacto social de uma sociedade comercial que qualquer dos sócios poderá fazer suprimentos à sociedade, quando forem necessários, nas condições que se fixarem em assembleia geral, tal não significa que a restituição desses suprimentos, depois de constituídos, também está necessariamente dependente das condições que vierem a ser fixadas por tal órgão social.
V - Para a determinação do que seja o prazo razoável, no âmbito da ação de fixação judicial do prazo, devem ser levadas em consideração todas as circunstâncias do caso concreto, em ordem a salvaguardar o interesse do credor, de modo a que a prestação não se torne inútil para ele, mas também a permitir que o devedor a possa realizar pontual e diligentemente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1314/24.0T8STS.P1

Relator: Des., João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Des., Anabela Andrade Miranda;
Des., João Proença.

Sumário:

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

1- AA, ancorando a sua legitimidade processual na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito da sua mãe, BB, instaurou a presente ação especial de fixação judicial de prazo, contra A..., Ldª, pedindo que se fixe o prazo de 3 anos, fracionado em 36 prestações mensais e sucessivas de 6.388,88€, cada uma, para que esta sociedade proceda ao reembolso do suprimento, no valor de global 230.000,00€, que lhe foi efetuado, no dia 29/06/2015, por aquela ex-sócia da mesma.

2- Contra esta pretensão manifestou-se a Ré, porquanto, em síntese e com interesse para este recurso, o A., enquanto administrador dos bens da herança, na qualidade de cabeça de casal, não tem legitimidade para peticionar em juízo a fixação do referido prazo, uma vez que isso excede, largamente, os seus poderes de administração ordinária da mesma herança.

Por outro lado, entende também que, estando estabelecido no pacto social que é à assembleia de sócios da sociedade que cumpre fixar as condições dos contratos de suprimento, só com violação de tal cláusula se poderá deferir ao tribunal a fixação do prazo para o citado reembolso.

Em qualquer caso, não tem capacidade para iniciar a amortização financeira do indicado crédito.

3- O A. respondeu sobre outros temas que não estão em discussão neste recurso.

4- Realizada a audiência final, foi, depois, proferida sentença na qual se decidiu “fixar em 7 anos e 8 meses, fracionado em 92 prestações mensais, iguais e sucessivas de €2500,00 cada, o prazo para a Ré restituir o valor de 230.000€, que lhe foi emprestado em 29.6.2015, em suprimento acordado com a sua falecida sócia BB”.

5- Inconformado com esta sentença, dela recorre o A. terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. O Autor, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito de BB, intentou a presente ação especial de fixação judicial de prazo contra a Ré A..., LIMITADA.

2. O pedido visava a fixação de um prazo de 3 anos, fracionado em 36 prestações mensais e sucessivas de 6.388,88€, para a Ré proceder ao reembolso do suprimento efetuado pela falecida BB, no valor global de 230.000,00€.

3. A douta sentença recorrida fixou um prazo de 7 anos e 8 meses para a restituição do suprimento, em 92 prestações mensais de 2500,00€ cada.

4. A decisão recorrida incorreu em erro na apreciação/valoração da prova produzida, nomeadamente quanto à situação económico-financeira da Ré.

5. Ficou provado que a Ré possui no seu ativo um imóvel avaliado em 2.800.000,00€, bem como receitas mensais entre 6.000€ e 6.700€ provenientes de arrendamentos.

6. Adicionalmente está em curso um procedimento pré-expropriativo de uma parcela do referido imóvel, pelo qual o Município ... ofereceu 576.180,00 €.

7. Estes elementos demonstram inequivocamente que a Ré tem capacidade financeira para proceder à restituição do suprimento num prazo mais curto, sem que tal coloque em causa a sua situação económica.

8. O Tribunal a quo não valorou adequadamente estes factos, que evidenciam uma robusta situação patrimonial da Ré, ou seja, não valorizou adequadamente o significativo património da Ré, que permitiriam o cumprimento da obrigação num prazo mais razoável.

9. A existência de um ativo de tão elevado valor deveria ter levado o Tribunal a quo a fixar um prazo mais curto, permitindo à Apelada, se necessário, recorrer a esse património para cumprir a sua obrigação de restituição num período mais razoável.

10. O prazo de 7 anos e 8 meses fixado na sentença é manifestamente excessivo, não se coadunando com o princípio da proporcionalidade e com a necessidade de tutela efetiva do direito do Autor.

11. A fixação de injustificadamente um prazo os tão dilatado interesses prejudica da herança e dos herdeiros, privando-os durante um período excessivo de um valor significativo que integra o acervo hereditário.

12. O Tribunal a quo ao não ponderar devidamente o equilíbrio entre os interesses da Ré e os dos herdeiros, violou assim, o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

13. A decisão recorrida faz também uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 777.º, n.º 2 do Código Civil e 245.º dos C.S.C.

14. Estes preceitos legais devem ser interpretados no sentido de que o prazo a fixar pelo Tribunal não deve ser demasiado longo.

15. Nesse sentindo pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 2022-05-10, (Processonº23104/19.1T8LSB.L1-1), ao referir:

“…5- Atento o disposto no artº 245º, nº1, do CSC, não tendo sido estabelecido prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 777.º do Código Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá que ter em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações, não podendo, no entanto, ser fixado um prazo tão longo que, em termos práticos, equivalha à sua não fixação…”

16. Assim, ao fixar um prazo excessivamente longo que, na prática, equivale à não fixação de prazo, contraria o espírito daquelas normas.

17. No caso em apreço, atendendo à situação económica da Ré e ao longo período já decorrido desde a realização do suprimento (desde 2015), impunha-se a fixação de um prazo mais curto.

18. Acresce que o suprimento em causa foi realizado em 2015, pelo que já decorreu um período considerável sem que tenha havido qualquer restituição, facto que o Tribunal a quo não considerou devidamente.

19. Ademais, a decisão recorrida, ao fixar um prazo excessivamente longo, viola também o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

20. Na verdade, esta decisão coloca os herdeiros numa posição de desvantagem injustificada face à Ré, privilegiando os interesses desta em detrimento dos direitos daqueles.

21. Pelo que, face ao supra exposto Vossas Excelências, reapreciando a matéria de facto provada, e subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, no sentido atrás exposto, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que fixe um prazo de reembolso do suprimento significativamente inferior ao determinado na sentença recorrida, designadamente o prazo de 3 anos, fracionado em 36 prestações mensais de €6.388,88, ou outro prazo que Vossas Excelências entendam mais justo e adequado aos interesses da herança e à capacidade da Apelada, sempre sem prejuízo da amortização total do suprimento em caso de concretização da expropriação ou venda do imóvel da apelada”.

6- A Ré respondeu a este recurso pedindo a sua improcedência.

7- Entretanto, a Ré também recorreu, finalizando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. A matéria de facto dada como provada em 11. dos factos provados, onde se refere que “A Ré apresenta no seu ativo um imóvel, com cerca de 14.700m2, avaliado no processo de inventário referido em 1 em €2.800.000,00.”, deverá ser eliminada”,

2. porquanto as provas em que assenta – relatório pericial realizado num outro processo – para além de não terem sido produzidas nos presentes autos, mas sim num outro processo de que a Ré não foi parte -,

3. não se acham ainda suficientemente documentadas nos presentes autos, pela competente certidão judicial.

4. Acresce que tal meio de prova - avaliação pericial - não foi solicitado no presente processo,

5. do que, além do mais, ainda resulta que não foi objecto da audição contraditória da Ré, do que resulta a violação do disposto no artigo 415º-1 do CPC.

6. Acresce ainda que não se extrai dos documentos que sustentam o dado como provado em 11., que o imóvel foi avaliado no inventário e que lhe foi dado o valor de Eur 2.800.000,00,

7. porquanto tal avaliação para que remete a avaliação judicial feita no processo de inventário, não é judicial.

8. Uma vez que o que consta do ponto 7. dos factos provados, não passa de mera asserção conclusiva, deverá o mesmo ser alterado, por forma a que dele passe a constar apenas o seguinte: “DO CONTRATO QUE TITULA O CONTRATO DE SUPRIMENTO – O DOCUMENTO 4 DA P. I. – NÃO CONSTA A FIXAÇÃO DE QUALQUER PRAZO PARA O REEMBOLSO DO SUPRIMENTO.”

9. O Autor não beneficia de legitimidade para formular na presente acção o pedido de fixação de prazo para o cumprimento da obrigação de reembolso do suprimento feito pela falecida sócia da Ré, D. BB, porquanto tal pedido visa unicamente obter a cobrança de tal crédito,

10. cobrança essa por ele extrajudicialmente tentada antes da propositura da presente acção, como se vê do dado como provado em 10. dos factos provados,

11. o que lhe é vedado fazer, nos termos do disposto no artigo 2089º do CC.

12. Aliás, ao apresentar-se em juízo para pedir a fixação de um prazo para o pagamento de uma dívida activa da herança, relativamente à qual, apenas lhe compete zelar pela respectiva conservação, sem providenciar pela respectiva cobrança, a menos que a dívida corra perigo, o cabeça de casal exorbita claramente dos poderes que a Lei lhe confere.

13. A cláusula 5.ª do pacto social, segundo a qual compete à assembleia de sócios fixar as condições dos suprimentos, não podia deixar de ser conhecimento da sócia D. BB, quando cedeu à sociedade o capital mutuado,

14. do que resulta que sabia de antemão que seriam os sócios – entre os quais a própria -, e não apenas ela e a administração da sociedade, quem iria fixar as condições do suprimento.

15. A falecida sócia da Ré, quando confiou à sociedade a quantia de Eur 230.000,00, conhecia todas as regras ao abrigo das quais os sócios poderiam emprestar dinheiro à sociedade, regras essas que estavam longe de ser unilateralmente estabelecidas, porquanto a D. BB era, ela própria, sócia maioritária da Ré, pelo que sempre poderia tomar a iniciativa de provocar a tomada de decisão sobre a fixação das condições do suprimento, e participar na formação de tal decisão.

16. A fixação das condições do suprimento, incluindo as referentes ao seu reembolso, só poderia ocorreria ”anos e anos depois”, como refere a sentença, se os sócios assim o quisessem, pois, a sócia D. BB, como os demais sócios, podiam, como não poderia deixar de suceder, solicitar a qualquer momento a realização da assembleia geral de sócios destinada a aprovar as condições a que ficaria subordinado o suprimento aqui em discussão.

17. Sendo o pacto social, o contrato onde os sócios – que são as únicas pessoas que podem fazer suprimentos à sociedade – livremente estabeleceram as regras que iriam pautar no futuro a concessão, por eles, de suprimentos à sociedade, e a fixação das respectivas condições,

18. parece-nos, salvo o devido respeito, completamente desconforme com os factos, ajuizar que a fixação das condições do suprimento, muito tempo após a sua constituição, constituiria um comportamento abusivo da sociedade, ou que tal fixação pudesse corresponder a uma imposição unilateral da sociedade ou dos seus sócios.

19. Nada de ilegal ou abusivo ocorrerá, se depois de estabelecido o suprimento, vier a assembleia geral da sociedade Ré, nos termos dos respectivos estatutos, fixar as respectivas condições, desde que fosse claro, à face de tais estatutos, que lhe competia a ela fazê-lo, desde o momento em que o suprimento foi constituído.

20. Estando estabelecido no pacto social que é à sociedade que cumpre fixar as condições dos contratos de suprimento, só com violação de tal cláusula e do próprio contrato social se poderá deferir ao tribunal a fixação do prazo para o reembolso do suprimento.

21. Na medida em que, sem estatuir que a solicitação e constituição de suprimentos, ficam dependentes de deliberação da assembleia geral, o pacto social da sociedade Ré, estabelece que a fixação das condições dos suprimentos feitos à sociedade pelos sócios fica dependente do que a assembleia deliberar a propósito das respectivas condições, do que deverá resultar que os sócios que se não conformem com tal regra, se deverão abster de financiar a sociedade.

22. Por tal razão, ou seja, por não ter ainda assembleia geral da sociedade Ré, deliberado quais serão as condições de reembolso do suprimento em questão, este, ao invés de carecer que lhe seja estabelecido um prazo para o respectivo reembolso, está antes sujeito a uma condição que impede lhe seja aplicado o disposto no artigo 777º-2 do CC, até que, tendo sido solicitada a fixação de tal prazo pelos sócios, estes o não façam em tempo devido.

23. Concluir que é ao tribunal que compete fixar o prazo para o reembolso de um suprimento, quando o pacto social estabelece que é à assembleia geral de sócios que compete, em primeira instância, fazê-lo, significa, em nossa modesta opinião, violar o contrato social.

24. O valor mensal da prestação de reembolso do suprimento não deverá ir além dos Eur 1.500,00 mensais, para não colocar em risco a gestão financeira, de si já muito apertada, da Ré.”.

Termina pedindo que se julgue procedente o presente recurso e que se revogue a sentença recorrida, com a sua consequente absolvição do pedido.

8- Não consta que tivesse havido resposta a este recurso.

9- Recebidos ambos os recursos e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Mérito dos recursos

A- Definição do seu objecto

O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º nº 2, “in fine”, 635º, nº 4 e 639º nº1 do Código de Processo Civil (CPC)].

Assim, observando este critério no caso presente, o objeto dos recursos em apreço reconduz-se, essencialmente, a saber se:

1.º - O A., na qualidade que invoca, não dispõe de legitimidade para a propositura desta ação;

2.º- Deve haver lugar à modificação da matéria de facto, requerida pela Ré;

3.º - O prazo para o reembolso do suprimento deve ser estabelecido pela assembleia geral da Ré e não pelo Tribunal;

4.º- O prazo e o montante das prestações estabelecidas na sentença recorrida são ou não os adequados.


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B- Fundamentação

a) Na sentença recorrida julgaram-se os seguintes factos:

1. O ora Autor foi nomeado Cabeça de Casal da herança indivisa aberta por óbito BB, falecida no passado dia 28 de Dezembro de 2020, no estado civil de viúva e com última residência na Rua ..., ... Póvoa do Varzim, por decisão judicial proferida no processo de Inventário com o n.º ... que corre seus termos pelo Juiz 2 - Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim.

2. São herdeiros da falecida AA, CC, solteiro, maior, residente na Av. ..., ..., ..., Vila do Conde, contribuinte ... (concomitantemente sócio gerente da ré), DD, casado, engenheiro civil, residente na Av. ..., ... ... Lisboa, portador do Cartão do Cidadão n.º ..., contribuinte fiscal N.º ..., EE, solteira, maior, residente na Rua ..., ..., ..., ... Porto, Cartão do Cidadão N.º ..., com o contribuinte fiscal n.º ..., e FF, solteiro, maior, residente Rua ..., ..., ..., ... Porto, Cartão do Cidadão N.º ..., com o contribuinte fiscal n.º ....

3. A falecida BB deixou vários bens e créditos que se encontram relacionados na ação de inventário com o n.º ... que corre seus termos pelo Juiz 2 - Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim.

4. Entre eles, encontra-se o seguinte crédito: “suprimentos feitos pela falecida à sociedade A..., Ldª, em 29 de junho de 2015, para pagamento à Autoridade Tributária e Aduaneira - Processo Executivo ... de uma divida ao IFADAP, no valor de 230.000,00 € (duzentos e trinta mil euros)”.

5. A falecida BB, à data sócia da aqui Ré, qualidade que manteve até ao seu falecimento, procedeu, em 29.06.2015 (através de cheque depositado na conta da ré), à entrega à aqui Ré, a título de empréstimo, da quantia de 230.000,00 € (duzentos e trinta mil euros).

6. O referido empréstimo destinou-se ao pagamento da quantia que estava a ser exigida à aqui Ré no processo de execução fiscal n.º ... no valor global de 236.672,48 €, por falta de devolução dos montantes atribuídos pelo IFADAP para investimento na sociedade que nunca chegou a ser realizado.

7. Não foi estipulado o pagamento de quaisquer juros ou prazo para o seu reembolso.

8. Tal empréstimo encontra-se refletido na contabilidade da Ré.

9. O referido suprimento, descrito na verba 93 da relação de bens, encontra-se aceite por todos os interessados, inclusive por CC, concomitantemente interessado na ação de inventário e sócio gerente da Ré.

10. O Autor, na qualidade de cabeça de casal, em 18.11.2021, por carta registada com aviso de receção (Doc. 7), reiterada por e-mail datado 13.12.2022 (Doc. 8), solicitou a restituição da quantia emprestada, o que a Ré, até à data, ainda não se dispôs a fazer.

11. A Ré apresenta no seu ativo um imóvel, com cerca de 14.700m2, avaliado no processo de inventário referido em 1 em €2.800.000,00.

12. A Ré dedica-se, exclusivamente, ao arrendamento de espaços, variando as suas receitas mensais entre cerca de €6000 e cerca de €6700.

13. A Ré apresenta despesas mensais regulares superiores a 4000€.

14. Pelo Município ... foi iniciado um procedimento pré expropriativo de uma parcela de terreno do imóvel referido em 11, com área de 3200m2, tendo oferecido a título de preço o valor de €576.180.

15. Do pacto social da Ré consta a cláusula 5ª, com o seguinte teor: “Qualquer dos sócios poderá fazer suprimentos à sociedade, quando forem necessários, nas condições que se fixarem em assembleia geral”.


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b) Na mesma sentença considerou-se provado que a Ré tem crédito bancário.

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c) Análise dos fundamentos dos recursos

Por razões de precedência lógica, importa começar por determinar se o A., na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito da ex-sócia que financiou a Ré através do suprimento já indicado, tem ou não legitimidade para a propositura desta ação.

Na sentença recorrida, entendeu-se que sim; que o pedido de fixação do prazo para o reembolso do dito suprimento é um ato de administração ordinária, pois apenas prepara a partilha de bens a levar a cabo no processo de inventário onde o A. foi nomeado cabeça de casal e, por conseguinte, enquadra-se no âmbito dos seus poderes gestionários.

A Ré, todavia, discorda deste ponto de vista. E continua a defender que o A., enquanto cabeça de casal, não tem legitimidade para formular o referido pedido, uma vez que este mais não visa do que obter a cobrança do crédito, através do reembolso do suprimento realizado pela autora da herança por aquele administrada (cobrança essa por ele extrajudicialmente tentada antes da propositura da presente ação) e, por conseguinte, não o pode fazer sem estar acompanhado dos demais herdeiros. Até porque não foi invocado qualquer perigo resultante da demora nessa cobrança, como é suposto pelo regime prescrito n artigo 2089.º, do Código Civil, quando atribui ao cabeça de casal o poder de cobrar dívidas ativas da herança.

Desde já adiantamos, porém, que, em nosso entender, a Ré não tem razão.

Em primeiro lugar, não há qualquer motivo para considerar que esta ação corresponde a um procedimento para cobrança de dívidas. O disposto no artigo 1026.º, do CPC, ajuda a dissipar eventuais dúvidas que se colocassem, a esse propósito. Nele se prescreve que: “[q]uando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indica o prazo que repute adequado”.

O objeto desta ação, assim, é constituído pelo pedido de fixação de um prazo e a causa de pedir reconduz-se à inexistência do mesmo nas obrigações com prazo natural, circunstancial ou usual[1]; isto é, nas obrigações em que se torne “necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação”, bem como naquelas em que a determinação do prazo foi deixada ao credor e este não use da faculdade que lhe foi concedida. Portanto, nas obrigações previstas no artigo 777.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil[2].

Não se trata, assim, de uma ação destinada à cobrança de dívidas, mas, antes, de uma ação que visa colmatar “uma cláusula acessória omissa, indispensável para exigir o cumprimento da prestação e, por isso, determinar o início da mora”[3]. A exigência judicial desse cumprimento é que pode ser levada a cabo através de uma ação daquele primeiro tipo.

Quer isto dizer, portanto, que, como se concluiu na sentença recorrida, esta não é uma ação que se destine à cobrança de dívidas, pelo que não se enquadra na previsão do artigo 2089.º, do Código Civil [O cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente]. Ou seja, a legitimidade do A. não pode ser aferida com referência a esse preceito.

Isto não significa, porém, que ao A. não assista essa legitimidade.

Com efeito, embora, por regra, os direitos relativos à herança, só possam “ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros” (artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil), ou seja, é necessária a manifestação de vontade de todos os herdeiros para “a generalidade dos atos e negócios jurídicos de frutificação anormal, de melhoramento do património hereditário e de disposição dos bens hereditários que envolvam a sua alienação ou oneração”[4], o que, no plano processual, se traduz na exigência de litisconsórcio necessário natural nas ações em estejam em causa esses atos ou negócios (artigo 33.º, n.º 2, do CPC), ou, pelo menos, na exigência de que em juízo estejam todos aqueles que neles intervieram como partes ainda que em lados opostos[5], nem sempre é assim.

O cabeça de casal pode, em muitos casos, atuar sozinho em representação da herança. Seja na administração ordinária do património hereditário (artigo 2079.º, do Código Civil), seja no exercício de direitos inerentes a essa administração (artigos 2088.º a 2090.º, do Código Civil), seja no cumprimento de outras obrigações que a lei lhe imponha[6].

O que é importante é que toda a sua atuação seja prudente e zelosa (artigo 2086.º, n.º 1, al. b), do Código Civil). Mas, não só. Essa atuação não pode exceder o perímetro que a lei lhe assinala. Ou seja, em regra e ressalvados os casos previstos na lei, não pode exceder os limites de uma administração ordinária.

Importa notar, todavia, que esta administração não está confinada aos atos de mera conservação. Pode implicar atos de frutificação, ou seja, de rentabilização, desde que seja uma rentabilização normal e não implique para a herança encargos em demasia. Por exemplo, a lei considera que é administração normal e, assim, permitida ao cabeça de casal, a locação de bens por um período até seis meses (artigo 1024.º, n.º 1, do Código Civil)[7]. Além disso, o cabeça de casal deve igualmente continuar com o giro comercial do inventariado, a sua indústria ou exploração agrícola, bem como movimentar os seus depósitos bancários[8]. Sinal, portanto, que lhe compete, nalguma medida, uma postura ativa não só na conservação do acervo hereditário, mas também na sua frutificação normal; isto é, na sua rentabilização pelo modo habitual[9].

E, para se determinar se certos “atos se devem considerar como de administração ordinária, para o efeito de saber se estão compreendidos no âmbito dos poderes de administração da herança por parte do cabeça-de-casal, cumpre saber qual a repercussão que têm no contexto da herança, nomeadamente quanto aos encargos que geram”[10]. Se nenhum encargo gerarem e não alterarem a destinação económica das coisas, por regra, podem ser praticados apenas pelo cabeça de casal.

Ora, no caso, é isso justamente que se passa. A instauração desta ação de fixação judicial do prazo nenhum encargo acarreta para a herança que o A. representa. Pelo contrário, a ser procedente, implica, como vimos, o preenchimento de uma cláusula acessória que torna exigível o cumprimento do crédito de que essa herança é titular.

Se esse cumprimento vai ou não, depois, ser exigido é matéria que escapa ao objeto desta ação. Mas, a inserção daquela cláusula não pode deixar de ser considerada uma valia para esse crédito.

Por conseguinte, entende-se que a instauração de tal ação está contida nos poderes de administração ordinária de que o A. dispõe, pelo que lhe assiste legitimidade para o efeito.

Esclarecida esta questão, verificamos que, de seguida, importa aquilatar (também por razões de precedência lógica) se deve haver lugar à modificação da matéria de facto requerida pela Ré; isto é, se a afirmação contida no ponto 11 dos Factos Provados deve ter o destino probatório oposto ao que lhe foi conferido na sentença recorrida e se a asserção do ponto 7 dos mesmo capítulo deve ser mais restritiva.

Quanto à primeira pretensão, diremos, antes de mais, que não é verdade que a prova documental em que baseou a demonstração da veracidade da afirmação contida no ponto 11 tenha sido obtida sem contraditório prévio. Pelo contrário, a Ré teve oportunidade de exercer esse contraditório e exerceu-o, aliás, como reconhece expressamente neste recurso.

Por conseguinte, esta objeção não colhe.

Tal como não colhe a alegação de que o tribunal (recorrido) não podia julgar demonstrado que o valor do imóvel aí em causa “é o apurado no alegado relatório pericial”.

Efetivamente, no ponto ora em análise não se refere que o valor do imóvel é de 2.800.000,00€. O que se afirma, diversamente, é que “[a] Ré apresenta no seu ativo um imóvel, com cerca de 14.700m2, avaliado no processo de inventário referido em 1 em €2.800.000,00”. Ou seja, só está demonstrada esta avaliação e não propriamente que, neste processo, o valor do imóvel seja o referido.

Daí que não colha também a referida alegação.

Por outro lado, sabendo nós, como a Ré reconhece e consta da fundamentação da sentença recorrida, que foi produzida outra prova a respeito da mesma afirmação (traduzida no testemunho de DD – cujo teor se ignora, por não ter sido invocado nos termos do artigo 640.º, n.ºs 1, al. b) e 2, al. a), do CPC) e que não foi invocada a falsidade do documento em que se baseou a convicção do tribunal recorrido, não se pode concluir que essa mesma convicção tenha incorrido em qualquer erro grosseiro. Até porque, embora se admita que a Ré não tenha sido parte no processo de inventário aí mencionado, já o foram o seu gerente, posto que, como provado, é filho da autora do suprimento.

Em resumo, não se vêm motivos para alterar o destino probatório da indicada afirmação (ponto 11 dos Factos Provados).

E também não se vê motivo para introduzir a restrição que a Ré pretende em relação ao ponto 7 do mesmo capítulo. Isto é, que em vez de se afirmar que “[n]ão foi estipulado o pagamento de quaisquer juros ou prazo para o seu reembolso”, passe a constar apenas que “[d]o contrato que titula o contrato de suprimento – o Documento 4 da p. i. – não consta a fixação de qualquer prazo para o reembolso do suprimento”.

É que até na posição da Ré está implícito o entendimento de que, de facto, não houve a referida estipulação. O que defende, diversamente, é que a mesma deve ser obtida por outra via, que não a judicial.

Daí que também nada se altere, a este respeito. Isto, obviamente, no pressuposto de que a afirmação em causa não é conclusiva, como defende a Ré, mas antes um facto, ainda que de caracter omissivo.

Em resumo: soçobra a alteração da matéria de facto pretendida pela Ré.

Avancemos, agora, para a análise de outra questão, que se traduz em saber se o Tribunal recorrido violou o pacto social da Ré ao ter estabelecido o prazo para o reembolso do suprimento, como lhe foi pedido.

Nesse pacto, a propósito de suprimentos, estabeleceu-se o seguinte:

“Qualquer dos sócios poderá fazer suprimentos à sociedade, quando forem necessários, nas condições que se fixarem em assembleia geral” (clª 5ª).

Com base no teor desta cláusula, defende a Ré que “estando estabelecido no pacto social que é à sociedade que cumpre fixar as condições dos contratos de suprimento, só com violação de tal cláusula e do próprio contrato social se poderá deferir ao tribunal a fixação do prazo para o reembolso do suprimento”. Isto porque, no fundo, o que se extrai de tal cláusula é que o estabelecimento desse prazo é da competência da assembleia geral.

Ora, não é esse o nosso ponto de vista.

Estamos, nitidamente, perante um negócio formal – artigo 7.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

E, quando assim é, nos termos do artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil, “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”. Isto, a não ser que esse sentido corresponda “à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (n.º 2). Mas, não sendo esse o caso (posto que o A., como nos parece ser consensual entre as partes, não teve qualquer intervenção no acordo de suprimento aqui em análise), vale a primeira regra que começámos por enunciar. Ou seja, deve ser excluído um sentido que não tenha no documento onde a declaração é exarada, um mínimo de correspondência[11].

E, na busca desse sentido, devem observar-se as regras enunciadas nos artigos 236.º e 237.º, do Código Civil. Especialmente, a de que, não sendo conhecida a vontade real do declarante e não sendo também caso para dois sentidos interpretativos de igual relevo, “[a] declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”. Ou seja, a declaração negocial deve ser entendida a partir da posição do real declaratário, com o sentido que um declaratário normal, de qualidades e diligência médias, colocado naquela posição, pudesse deduzir, salvo se não fosse razoável contar com esse sentido. “Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante”[12], sendo que nos negócios formais esse sentido deve ter no documento onde a declaração é expressa um mínimo de apoio, ainda que imperfeitamente expresso.

Partindo, pois, destas premissas, o que verificamos, no caso presente, é que a interpretação defendida pela Ré não tem qualquer apoio na letra do pacto social da mesma.

E não o tem, desde logo, porque pressupondo o contrato de suprimento um acordo bilateral nos termos do qual “o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência” (artigo 243.º, n.º 1, do CSC), não faria qualquer sentido para um declaratário normal interpretar a referida cláusula como exigindo, agora, depois de constituído o suprimento, que a Ré, unilateralmente, através da sua Assembleia Geral, fixasse as condições de reembolso do mesmo. É que o contrato de suprimento é celebrado, obviamente, com base nas condições antes negociadas e não depois. Aliás, como decorre do disposto no artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil, os contratos só podem “modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”. Se, pois, faz sentido que uma sociedade comercial imponha a si mesma determinadas condições (inclusive formais e ao nível da formação da vontade societária) para a celebração de um contrato de suprimento, já não faz qualquer sentido, inclusive para um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, impor essas regras depois dessa celebração, sem a anuência da parte contrária. Até porque essas regras lhe seriam inoponíveis.

Com facilidade, pois, se conclui que a dita cláusula não pode ser interpretada no sentido defendido pela Ré e, pelo contrário, o que nela se refere é exigido para o momento anterior à constituição do contrato de suprimento.

Resta a questão da adequação do prazo e montante das prestações estabelecidas na sentença recorrida.

Nela fixou-se “em 7 anos e 8 meses, fracionado em 92 prestações mensais, iguais e sucessivas de €2500,00 cada, o prazo para a Ré restituir o valor de 230.000€, que lhe foi emprestado em 29.6.2015, em suprimento acordado com a sua falecida sócia BB”.

Nenhuma das partes, porém, se conforma com esta solução. O A. porque entende que deve ser estabelecido um prazo de reembolso do suprimento significativamente inferior ao determinado na sentença recorrida, designadamente o prazo de 3 anos, fracionado em 36 prestações mensais de 6.388,88€, ou outro prazo adequado mas inferior ao estabelecido em tal sentença. E a Ré, por sua vez, porque sustenta que o valor de cada prestação mensal não deverá ir além dos 1.500,00€.

Como veremos, no entanto, não há razões para acolher nenhuma destas pretensões.

Como decorre do disposto nos artigos 1026.º e 1027.º, n.º 2, do CPC, a finalidade da presente ação é o estabelecimento de um prazo razoável para o exercício de um direito ou para o cumprimento de uma obrigação.

E essa razoabilidade não pode deixar de levar em consideração as concretas circunstâncias do caso concreto.

De resto, como sucede também na interpelação admonitória que conduz ao incumprimento definitivo, prevista no artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil. Também aí o credor, em determinadas circunstâncias, pode fixar ao devedor um prazo razoável para este realizar a prestação. E essa razoabilidade não pode deixar de atender “à natureza e complexidade da prestação, bem como «ao conhecido circunstancialismo e função do contrato, aos usos correntes e aos ditames da boa fé», de modo a permitir fixar um prazo que permita «ao devedor satisfazer, dentro dele, o seu dever de prestar»”[13].

Como refere Batista Machado[14], “[o] prazo razoável será aquele que o for para o aprestamento da prestação. (…) Mas, se deve ser um prazo suficiente para que o devedor complete o aprestamento da prestação, também não deve ser tal que prejudique ou faça desaparecer o interesse do credor”.

É necessário, portanto, ponderar e valorar todas as circunstâncias do caso concreto, em ordem a salvaguardar o interesse do credor, de modo a que a prestação não se torne inútil para ele, mas, por outro lado, a permitir que o devedor a possa realizar pontual e diligentemente.

Ora, no caso, como já adiantámos, cremos que esses interesses foram salvaguardados na sentença recorrida.

Como nela se refere, tendo em consideração as receitas mensais habituais da Ré e as suas despesas mensais regulares, “não existe disponibilidade financeira para a Ré efetuar a restituição do valor de 230.000€, correspondente ao valor a si emprestado em 29.6.2015, em prestações mensais de €6.388,88 [como o A. defende], quantia que em grande parte dos meses seria mesmo superior à totalidade daquelas receitas.

A tal não obsta, salvo o devido respeito, a existência de um património valioso (cfr. facto provado 11), nem a existência de um procedimento pré expropriativo de uma parcela do imóvel ali referido, pelo qual foi oferecido, pelo menos, o valor de €576.180,00 a título de preço. Trata-se de valor que, só por si e desconhecendo-se todas as demais obrigações da Ré, permitiria restituir, de uma só vez, o valor em causa no contrato de suprimento aqui referido. Contudo, não foi apurado o estado deste procedimento nem, tão pouco, o seu resultado, pelo que igualmente não foi apurado se e quando obterá a Ré a entrega do preço referido, ou de outro, ou se a este procedimento se seguirá um processo de expropriação, quando chegará o mesmo ao seu termo e quando obterá a Ré a indemnização que vier a ser fixada.

Pelo que, não pode contar-se com este valor (ou outro qualquer assente nesta factualidade), para neste momento se fixar o prazo indicado pelo Autor, sabendo-se que a restituição do valor emprestado de 230.000€ se faz com idêntica quantia, ainda que fracionada, e não com imóveis (sem prejuízo de as partes nesta forma de cumprimento poderem acordar, o que aqui não se discute).

Todavia, está aqui em causa uma perspetiva séria de receitas valiosíssima, para a Ré poder cumprir com a obrigação de restituição do valor emprestado de 230.000€ (e só este está aqui em causa, nenhum outro tendo sido alegado e demonstrado, mormente quanto ao prazo de restituição).

Sabendo-se desta receita, que poderá mesmo ser superior, tendo sido até indicado por uma das testemunhas arroladas pela Ré um valor de 800.000€ (embora sem certezas), impõe-se a fixação de um prazo que não deixe na vontade da Ré restituir a quantia mutuada quando quiser e se quiser ou através de um fracionamento tal que prolongue desmesuradamente no tempo aquela restituição, pois para esta é fácil aumentar rapidamente as suas despesas regulares para valores que esgotem completamente as suas receitas, ou nada fazer para que estas aumentem, tudo fazendo, pelo contrário, para que estas se mantenham em níveis que impeçam a assunção de novas obrigações e o cumprimento das anteriormente assumidas, assim se frustrando as legítimas expectativas dos seus credores, de recebimento das quantias que lhe forem devidas.

Impõe-se, assim, a fixação de um prazo que conduza a Ré a tudo fazer para cumprir com as suas obrigações, mormente a de restituição do empréstimo que lhe foi concedido em 29.6.2015, de 230.000€, pela sua falecida sócia BB.

Por tudo o exposto e valorando-se os factos apurados, não estando esta decisão vinculada a critérios de legalidade estrita, devendo adotar-se a solução que se julgue mais conveniente e oportuna (art. 987º do Código de Processo Civil), entende-se dever fixar-se o prazo de 7 anos e 8 meses, fracionado em 92 prestações mensais, iguais e sucessivas de €2500,00 cada, para a Ré restituir o valor de 230.000€, que lhe foi emprestado em 29.6.2015, pela sua falecida sócia BB, sem prejuízo de a mesma poder antecipar a indicada restituição, mormente se obtiver mais cedo as receitas necessárias para o efeito”.

Como já adiantámos, concordamos com esta solução.

E não se diga, como alega o A., que a referida sentença não valorizou adequadamente a capacidade patrimonial da Ré, uma vez que esta possui um imóvel avaliado em 2.800.000,00€.

Efetivamente, como já vimos, essa avaliação reporta-se ao processo de inventário e não a este. Mas, mesmo que se considere esse património, não pode este processo ser transformado num mecanismo destinado a precipitar a insolvência da Ré. Para mais quando é sabido que o contrato de suprimento aqui em causa foi celebrado no dia 29/06/2015 e esta ação apenas foi instaurada no dia 29/04/2024; ou seja, quase nove anos depois. Sinal, portanto, de que, até aí, o A., a herança que representa e a própria autora da mesma não se preocuparam com a alegada desvalorização de tal ativo, que aquele agora invoca.

Por outro lado, ao contrário daquilo que o A. também sustenta, também não há qualquer certeza sobre o alegado aumento das receitas futuras da Ré. A sentença recorrida, de resto, explica-o bem.

E, não havendo essa certeza, nem sendo este processo um modo de bloquear a sobrevivência da Ré, enquanto sociedade comercial, devem-lhe ser dadas condições objetivas para que não entre em incumprimento contratual.

Não entre em incumprimento contratual, mas, ao mesmo tempo, se esforce, diligentemente, por cumprir pontualmente, a restituição do suprimento de que é devedora.

Como se refere na sentença recorrida, “impõe-se a fixação de um prazo que não deixe na vontade da Ré restituir a quantia mutuada quando quiser e se quiser ou através de um fracionamento tal que prolongue desmesuradamente no tempo aquela restituição, pois para esta é fácil aumentar rapidamente as suas despesas regulares para valores que esgotem completamente as suas receitas, ou nada fazer para que estas aumentem, tudo fazendo, pelo contrário, para que estas se mantenham em níveis que impeçam a assunção de novas obrigações e o cumprimento das anteriormente assumidas, assim se frustrando as legítimas expectativas dos seus credores, de recebimento das quantias que lhe forem devidas”.

Ou seja, também não é de acolher a pretensão da Ré de ver aumentado o número de prestações e diminuído o seu montante parcelar.

Em resumo, considera-se que o prazo estabelecido na sentença recorrida para a restituição do dito suprimento é equilibrado, não se reconhecendo, assim, qualquer violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade (consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP), como defendido pelo A., posto que, pelo contrário, o que se visa salvaguardar com o prazo estabelecido é a sua razoabilidade, compatibilizando, na medida do possível, os interesses em presença.

Daí que sejam de julgar improcedentes as pretensões recursivas do A. e da Ré, com a consequente confirmação da sentença recorrida.


*

III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento a ambos os recursos em apreço e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.


*

-Em função deste resultado, as custas de cada um dos recursos serão suportadas pelo respetivo recorrente – artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 28/10/2025
João Diogo Rodrigues;
Anabela Miranda;
João Proença.
________________
[1] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, UCP, pág. 1064.
[2] Neste sentido, Ac. STJ de 05/03/2002, Processo n.º 01A4297, Ac. RC de 22/05/2012, Processo n.º 2784/11.1TBLRA.C1, Ac. RLx de 06/07/2023, Processo n.º 10054/20.8T8LRS.L1-8, Ac. RP de 11/09/2023, Processo n.º 3018/22.9T8STS.P1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 469.
[4] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 1980/82, Coimbra Editora, pág. 80.
[5] Neste sentido, especificamente quanto à ação de fixação judicial de prazo, pronunciou-se Miguel Teixeira de Sousa, no post de 23/11/2021 do Blog do IPPC, consultável em https://blogippc.blogspot.com/2021/11/jurisprudencia-2021-83.html, em anotação ao Ac. da RP de 27/04/2021, na qual o ora relator figurou como adjunto.
Contra, parece pronunciar-se Joana Costa Lopes, in, Fixação Judicial do Prazo, Processos Especiais (coordenação de Rui Pinto e Ana Alves Leal), Volume II, AAFDL, pág. 112.
[6] João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Volume I, 4ª Edição, Livraria Almedina, págs. 322 a 336, dá diversos exemplos, a esse respeito.
[7] Como se refere no Ac. RLx de 25/06/2009, Processo n.º 766/09.2YRLSB-2, consultável em www.dgsi.pt, a realização de um contrato de arrendamento pelo cabeça de casal pode constituir uma forma pertinente de fazer frutificar o imóvel.
[8] João António Lopes Cardoso, ob. cit., loc. cit.
[9] Neste sentido parece inclinar-se Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra 1987, pág. 62.
[10] Sumário do Ac. do STJ de 21/05/2009, Processo n.º 08B2707, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Como se refere no Ac do STJ de 25/10/2011, Processo n.º 2546/07.OTBVLG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, “[s]endo formal o contrato, desde logo o intérprete não pode adoptar, em caso de dúvida, sobre o sentido da declaração negocial, um sentido que não tenha no documento um mínimo de correspondência a menos que estejamos perante circunstâncias que permitam a consideração do princípio “falsa demonstratio non nocet””.
Esta última ocorre, como se refere no mesmo Aresto, citando em Heirinch Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, pág.511, em “...situações em que declarante e declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de este entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues””.
No mesmo sentido parecem expressar-se Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Ldª (1980), págs. 422 e 423, e Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª edição revista e atualizada, UCP, pág. 452 a 454.
[12] Ac. STJ de 07/06/2022, Processo n.º 1517/20.6T8FAR.E1.S1, consultável em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2022:1517.20.6T8FAR.E1.S1.A4/
[13] Maria da GraçaTrigo/Mariana Nunes Martins, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, UCP, pág.1143.
No mesmo sentido, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, págs. 816 e 817.
[14] Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, Vol. I, pág.166.