Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | WILLIAM THEMUDO GILMAN | ||
Descritores: | DIREITO À IMAGEM CONVERSA TELEFÓNICA GRAVAÇÃO DE PROVA CÂMARA DE VIGILÂNCIA VIDEOVIGILÂNCIA DIREITO À PROVA CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA BEM JURÍDICO PROTEGIDO RELAÇÃO DE PROXIMIDADE EXISTENCIAL TIPO INCRIMINADOR | ||
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Nº do Documento: | RP20250319412/20.3KRMTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/19/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Conjugando o disposto nos artigos 167º, n.º 1 do CPP e 199º do CP, a gravação das palavras de outrem que não constitua crime é admissível como prova. II- Para além do consentimento da pessoa filmada ou gravada, pode justificar o facto qualquer das dirimentes gerais da ilicitude, sem esquecer a dirimente específica da prossecução de interesses legítimos. III- A gravação feita pelo hoje arguido das palavras da assistente quando esta o apelidava de «cobarde, ladrão, palhaço, porco, bandido e filho da puta», tendo sido a gravação posteriormente entregue no processo, feita a ponderação entre o direito da assistente à palavra e à proteção da “personalidade na sua comunicação inocente com os outros membros da sociedade” e o direito à imagem, e entre o direito do arguido à tutela jurisdicional e à prova, deve considerar-se lícita. IV- Com efeito, colocando num prato da balança da justiça o direito à não gravação/filmagem sem consentimento da palavra criminosa e no outro o direito da vítima dessa mesma palavra criminosa à tutela jurisdicional e à prova, gravando a palavra criminosa contra si dirigida, o fiel da balança aponta decisivamente na direção deste último prato, dado o peso da proteção da palavra gravada/filmada, por ser criminosa, ter sido muito aliviado por comparação ao peso da proteção da vítima dessa palavra injuriosa e da realização da justiça que se manteve intacto na sua cobertura constitucional, pelo que tal gravação não é ilícita e vale como meio de prova. V- Com a incriminação da violência doméstica protege-se um bem jurídico plural e complexo - saúde e integridade pessoal em relação de proximidade existencial. VI – O tipo incriminador do artigo 152º do Código Penal não exige a verificação de uma especial intensidade dos maus tratos, a repetição dos mesmos, a verificação de uma situação de domínio do agressor sobre a vítima ou a ausência de reciprocidade de tratamento maltratante. VII -Sempre que nas condições de proximidade existencial do artigo 152º do Código Penal se mostre preenchido um tipo incriminador do Código Penal relacionado com a saúde e integridade pessoal, nomeadamente as ofensas à integridade física, injúrias, sequestro ou ameaças, forçosamente preenchido estará também o tipo de ilícito da violência doméstica. (Sumário da responsabilidade do Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 412/20.3KRMTS.P1 Relator: William Themudo Gilman 1º Adjunto: Maria dos Prazeres Silva 2º Adjunto: José António Rodrigues da Cunha * Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:* 1-RELATÓRIONo Processo Comum (Tribunal Singular) nº 412/20.3KRMTS.P1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Santo Tirso - Juiz 1, após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “De harmonia com o expendido, decide-se: A. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, als. a) e c), 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão. B. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. d), 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. C. EM CÚMULO JURÍDICO, CONDENAR o arguido AA na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a regime de prova, que deverá ser orientado para a interiorização pelo arguido do desvalor da sua conduta, a prevenção da reincidência, e a aquisição de competências pessoais e sociais, em particular no contexto relacional, que lhe permitam adotar um padrão comportamental de reação ajustada, bem como à regra de conduta de frequência de um programa dirigido a agressores de violência doméstica, pela prática dos crimes referidos em A. e B. D. NÃO APLICAR nenhuma das penas acessórias previstas nos n.ºs 4 e 6 do art. 152.º do CP. E. JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido de indemnização civil formulado por BB e CC e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA ao pagamento à primeira da quantia de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros), e ao segundo da quantia de 2.000,00€ (dois mil euros), acrescidas de juros moratórios à taxa civil legal a contar desde a prolação da presente decisão, absolvendo-o do demais peticionado. F. NÃO ARBITRAR qualquer quantia a título de reparação oficiosa às vítimas. G. CONDENAR o arguido AA no pagamento de custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cinco unidades de conta). H. CONDENAR os demandantes BB e CC e o arguido/demandado AA ao pagamento de custas cíveis, na proporção de 78% e 22% para cada um, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem. * (…)” * Não se conformando com esta decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):«CONCLUSÕES 1. A decisão proferida nos autos causa a maior perplexidade. 2. Há um absoluto desfasamento entre a sentença e aquilo que consta dos autos, assim como há um absoluto desfasamento entre a sentença e a prova (não) produzida em julgamento. 3. Só o preconceito, por um lado, e a ingenuidade, por outro, tudo caldeado por uma patente falta de experiência (de vida e de judicatura), parecem poder explicar o que aconteceu. 4. O juízo condenatório assenta numa adesão acrítica à narrativa da Assistente, com expressão nas declarações para memória futura prestadas por esta. 5. A Assistente instrumentalizou o filho CC, radicando aí as declarações para memória futura prestadas por este. 6. As publicações de Facebook feitas pela Assistente, durante anos, patenteiam um quadro totalmente incompatível com as imputações feitas ao Arguido. 7. Na génese de todas as atribulações em que o Arguido se viu envolvido, aí se incluindo a participação criminal que originou estes autos, está a circunstância de o Arguido ter tido notícia de que a Assistente teria um relacionamento extraconjugal com um funcionário de um ginásio detido por uma sociedade comercial cujo capital pertencia a ambos. 8. Em face disso, de modo a desfocar a questão, a Assistente gizou uma estratégia destinada a assegurar a sua vitimização, por um lado, e o constrangimento do Arguido, por outro. 9. O episódio ocorrido em 27/5/2024 foi usado pela Assistente como catapulta para essa estratégia. 10. Nestes autos, o maior ou menor crédito a atribuir à Assistente, no confronto com a tese da defesa, implicaria verificar ou perceber se a suspeita sobre a relação extraconjugal da Assistente tinha algum sustento, isto é, se era fundada. 11. Foi feita prova bastante para permitir o entendimento de que essa suspeita era fundada, havendo inúmeras circunstâncias, acima tratadas, que apontam nesse sentido – circunstâncias que foram obliteradas pela sentença. 12. Embora isso não estivesse sob julgamento, o porte da Assistente, enquanto mulher casada, não é nada indiferente para o maior ou menor crédito a atribuir à sua narrativa, no confronto com a tese da defesa. 13. O teor da al. a) dos factos não provados – expressando circunstância que, no caso, poderia justificar e espoletar atitudes típicas de violência doméstica –torna incompreensível que, do mesmo passo, sejam dadas como provadas condutas carecidas de motivação específica. 14. A decisão de ilicitude relativamente às gravações indicadas como prova na contestação afronta o despacho judicial de 18/1/2024, despacho que admitiu a contestação e aquele meio de prova, não tendo sofrido qualquer tipo de reacção em tempo, o que implica a vinculação do Tribunal à sua própria decisão. 15. Consequentemente, tais gravações podiam e deviam ter sido consideradas na sentença. 16. Tais gravações são absolutamente demolidoras para a Assistente e para angélica imagem que a mesma intenta passar, sendo certo que a sua visualização e audição leva a concluir que só no domínio do absurdo a Assistente quadra com a figura da “vítima de violência doméstica”. 17. Tais gravações mostram a “verdadeira” Assistente, com uma atitude, uma postura, uma grosseria e uma agressividade que são incompatíveis com a vitimização alardeada nos autos. 18. O palavreado usado pela Assistente, mais a mais aos gritos, corresponde à chamada linguagem de carroceiro (carroceira, in casu), tal é o tom, tal é a grosseria. 19. Se considerarmos que esta actuação da Assistente ocorre na presença dos filhos e dos seus próprios pais, a máscara da Assistente cai em definitivo. 20. Se dúvidas houvesse sobre a natureza e o carácter da Assistente, a sua postura ao longas das sessões de julgamento poria fim às mesmas: por indecente e má figura, em 6 sessões, a Assistente foi advertida 5 vezes e foi expulsa da sala de audiências 3 vezes. 21. E se dúvidas ainda houvesse, bastaria atentar no teor da al. g) dos factos não provados, em que foi dado como não provado o seguinte: BB é uma pessoa bem formada, bem-educada, respeitadora das regras sociais e legais, incutindo os mesmos valores aos filhos menores, mormente ao CC. 22. O elenco dos factos provados confirma o clamoroso erro que marca a sentença. 23. Com a ressalva do que acima ficou dito quanto à matéria contida nos nºs 7 e 8 e nos nºs 15 e 16 dos factos provados, não há qualquer suporte para aquilo que foi dado como provado na sentença. 24. A sentença ancora-se em exclusivo na versão da Assistente. 25. Visto que a credibilidade da versão da Assistente se mostra totalmente abalada, daí resulta a total falta de sustento para o julgamento da matéria de facto. 26. No mais, em termos de fundamentação de facto, a sentença limita-se a fazer um resumo do que terão dito as testemunhas e a dizer que as mesmas confirmam a narrativa da Assistente. 27. Apesar de tal circunstância até ter expressão no texto da sentença, não são tiradas consequências do facto de a fonte de informação das testemunhas ter sido aquilo que a própria Assistente lhes relatou. 28. Na verdade, não há nenhum concreto facto relativamente ao qual a sentença indique um concreto meio de prova, além da narrativa da Assistente. 29. Isto equivale a dizer que o julgamento da matéria de facto funcionou em circuito fechado: dando crédito à versão da Assistente; dizendo que as testemunhas confirmaram a versão da Assistente; desconsiderando que as testemunhas reproduziram aquilo que lhes foi relatado pela própria Assistente. 30. Relativamente à matéria do nº 4 dos factos provados, se o Tribunal tinha dúvidas acerca do revelado pelo documento junto à contestação sob o nº 24, poderia e deveria ordenar diligências para dissipar tais dúvidas, na certeza de que as dúvidas nunca poderiam jogar contra o Arguido. 31. A matéria dos nºs 27 e 28 não constava do despacho de pronúncia, pelo que não poderia ser considerada, sem mais, na sentença, isto é, sem assegurar o contraditório, pelo que deve ser dado como não escrito o aí vertido. 32. Não é possível afirmar que o Arguido cometeu os crimes pelos quais vinha pronunciado, assim como não é possível afirmar que o Arguido agiu em termos de se tornar responsável civil. 33. Mostra-se violado o disposto nos arts. 340º, 358º, 374º, nº 2, do CPP, no art. 152º, nº 1, als. a), c) e d), e nº 2, al. a) do CP, e nos arts. 70º, 483º e seguintes, e 562º do CC, impondo-se a revogação da sentença recorrida.» * O Ministério Público nas suas alegações de resposta aderiu integralmente à motivação de recurso, concluindo no mesmo sentido, no de não ser de afirmar que o arguido, ora recorrente, tenha cometido os crimes pelos quais foi pronunciado, mostrando-se, com a referida sentença, violado o disposto nos arts. 340º, 358º, 374º, nº 2, do CPP, no art.152º, nº 1, als. a), c) e d), e nº 2, al. a) do CP, e nos arts. 70º, 483º e seguintes, e 562º do CC, impondo-se a revogação da sentença recorrida. Concluiu as alegações no sentido de o recurso ser totalmente provido, fazendo-se a costumada Justiça.* Nesta instância o Ministério Público apôs o seu Visto. * Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPPColhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir. * 2-FUNDAMENTAÇÃO2.1-QUESTÕES A DECIDIR Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir: 1-Nulidade da sentença, 379º, n.º 1, al. a) e b), 358º e 374º n.º 2 do CPP. 2-Valoração de prova. Da ilicitude das gravações indicadas na contestação. 3-Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento. 4-Preenchimento do tipo de ilícito e pretensão de absolvição. 2.2- A DECISÃO RECORRIDA: Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar a fundamentação na parte relativa à fundamentação de facto, incluindo a questão (‘prévia’) da ilicitude das gravações indicadas na contestação, que é a seguinte (transcrição): « * Da ilicitude das gravações indicadas na contestação A assistente invocou a ilicitude das gravações indicadas na contestação, ou seja, aquelas juntas em suporte físico (pen) em 30/03/2022 (a fls. 602) e cujo teor se mostra transcrito a fls. 734-735, a fls. 736-737 e a fls. 743-744. Diz o art. 167.º, n.º 1, do CPP: «As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal». Diz o art. 199.º do Código Penal, com a epígrafe «Gravações e fotografias ilícitas»: «1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos». Vasta tem sido a jurisprudência produzida na matéria de gravações ilícitas, percecionadas no contexto do disposto no art. 167.º do CPP, isto é, da valia probatória das reproduções mecânicas constituídas na ausência do consentimento do visado. Na qual se acolhe, amplamente, o entendimento da admissibilidade daquele meio de prova, apelando a vários critérios e argumentos de construção doutrinária e jurisprudencial, nem sempre coincidentes, quer afirmando a exclusão da tipicidade, segundo o entendimento de redução teleológica do tipo de sentido vitimo-dogmático ou a dogmática dos limites imanentes dos direitos fundamentais, quer afirmando a exclusão da ilicitude, com verificação do estado de necessidade ou preenchimento dos n.ºs 1 e 2, al. b), do art. 31.º do Código Penal. Aqueles que defendem o primeiro entendimento, partem do princípio de que o comportamento ilícito por parte do visado, isto é, do titular do direito à palavra e imagem, determina a carência da dignidade penal do comportamento daquele que regista aquele comportamento. Sob outro enfoque, há quem afirme a tipicidade do mesmo comportamento, como se afigura mais correto – nada legitima que se renuncie à proteção concedida pelo legislador penal, aliás sustentada na garantia de cariz constitucional conferida, ao titular dos direitos à imagem e palavra, com base no comportamento da vítima –, negando a sua ilicitude por apelo a umas das cláusulas de exclusão de ilicitude já referidas. Contudo, a jurisprudência tem vindo a ser chamada a pronunciar-se, sobretudo, sobre as situações em que o visado é o suspeito/arguido e o autor dos registos fotográficos, fonográficos ou cinematográficos é o ofendido/assistente. É nestas situações, por excelência, que as gravações se consideram livremente valoráveis, porquanto legais, após ponderação casuística dos interesses e bens jurídicos em jogo. E assim o é porquanto nestas situações, a ilicitude da captação tanto se poderá excluir pelo facto de a captação ser considerada legítima ao abrigo de outra norma do direito, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 79.º do Código Civil, nos termos do art. 31.º, n.º 1, do Código Penal, como ser conseguida mediante o exercício de um direito preponderante (cfr. art. 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal). Como facilmente se intui, muitas das vezes a captação da palavra ou imagem do agente do crime é determinante, em termos práticos, para a prova do crime, surgindo como o único meio adequado ou suficiente a fazer valer a proteção da vítima (e do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva) e os interesses públicos na descoberta da verdade material, na repressão do crime e na reafirmação do bem jurídico violado. Por outro lado, se o direito civil entende como legítima a captação não consentida da imagem de terceiro quando assim o justifiquem exigências de polícia ou de justiça, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, então a ordem jurídica no seu todo consente esta conduta quando ela se destina a provar a prática de factos criminosos ou quando ela não bula com o núcleo duro da intimidade e reserva da vida privada do visado. No caso vertente, mostram-se juntos aos autos três registos de vídeo e um registo de áudio, por iniciativa do arguido, que captam, aqueles três primeiros, três momentos ocorridos na casa de morada de família do arguido, assistente e seus filhos, onde são audíveis o que aparentam ser as vozes da assistente, do demandante, da filha do casal e dos pais da assistente, e, no registo de áudio, uma conversa telefónica travada entre o arguido e a assistente. Em dois desses registos de vídeo são observáveis as pessoas da assistente, dos seus pais, e da filha do (ex)casal, no interior do seu domicílio. Registos esses captados sem o consentimento da assistente o que não só se intuiria pelo visionamento daqueles, como foi pela própria afirmado em sede de declarações para memória futura. E, naturalmente, sem consentimento e vontade dos demais visados, o que se intui não só pelo conflito que decorria entre parte dos visados e o arguido num dos registos, que faz presumir que os mesmos inexistiam, como pelo facto de terem sido feitos, notoriamente, sub-repticiamente, à revelia daqueles, sendo evidente o choque da assistente quando descobre, num desses registos, que se encontrava a ser gravada pelo arguido. O direito pleno à defesa que assiste ao arguido não pode, sem mais, legitimar a conduta do arguido que capta momentos da intimidade da sua família – como também não o legitima, nesses exatos moldes, o direito à tutela jurisdicional efetiva e demais interesses já referidos e associados à prossecução da ação penal – pois que se assim fosse sempre estaria justificada a violação do direito à imagem e palavra de todos os cidadãos, desde que se dirigisse a uma função probatória, numa ótica utilitarista incomportável perante os ditames do Processo Penal. Aqui tem de entrar um juízo ponderativo à luz do caso concreto, isto é, entre a importância que as reproduções mecânicas adquirem numa determinada situação, em face do que é a sua aptidão e adequação para a indiciação ou prova tanto do imputado, como da inocência do arguido; a sua proporcionalidade em termos de estabelecer um grau comparativo entre a danosidade da violação/compressão dos direitos à imagem e palavra ou intimidade e reserva da vida privada versus a sua utilidade probatória em concreto; e a sua necessidade, em face da eventual escassez ou suficiência do acervo probatório reunido. Conforme escreve Tiago Caiado Milheiro, em Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, págs. 553 e 554: «Quer permitindo à vítima a prova do crime (enquadrado juridicamente como direito de acesso ao direito e aos tribunais - art.º 20.º CRP), ou no polo oposto o arguido provar a sua inocência (no âmbito do exercício do direito constitucional de defesa - art.º 32.ºCRP). Em ambas as situações o direito à prova pode contender com o direito à imagem/palavra. Deverá recorrer-se a critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade [um pouco à semelhança da jurisprudência constitucional a propósito dos diários íntimos; v. ac. TC 607/2003; neste juízo casuístico deverão considerar-se diversos interesses, valores e bens jurídicos; […] Contudo o conceito de «exigibilidade» convoca os critérios de adequação/necessidade/proporcionalidade nos termos do art. 18.º/2 CRP. A reprodução mecânica deve ser adequada para salvaguardar o interesse constitucional na descoberta do crime e punição do agente; necessária, porque não existem outras provas ou são insuficientes para um cabal esclarecimento dos factos; proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes, como por exemplo o interesse público e da vítima na descoberta do crime, eficiência penal, segurança, pacificação social, justiça, garantias de defesa do arguido […]». No caso vertente, tem-se que os registos videográficos e fonográficos juntos aos autos pelo arguido demonstram atitudes da assistente que, a poderem ser apreciadas pelo Tribunal, o que não sucede, poderiam, em abstrato e num plano mais alargado daquele que naturalmente é o escopo do objeto deste processo, ter relevo para a descoberta da verdade material. Tais elementos probatórios estão intimamente conexionados com eventos naturalísticos que foram já apreciados em fase de inquérito e objeto de despacho de arquivamento, pelo que a sua apreciação, a ocorrer, sempre se cingiria a uma análise puramente probatória dirigida tão-somente aos factos que constituem objeto do processo, tal e qual este é balizado pelo despacho de pronúncia e pela inteireza do pedaço de vida que nele se descreve. As reproduções apresentadas, além de colhidas num ambiente privado e familiar sem o consentimento e contra a vontade dos vários visados que atinge, não são, de acordo com as regras de experimentação comum, aptas a pôr em crise a versão fáctica descrita no despacho de pronúncia já que o facto de a assistente ter empreendido um comportamento menos próprio ou até integrador, em abstrato, de normais penais destinadas à proteção da honra, não é impeditivo, logicamente, da ocorrência de todos os atos que são imputados ao arguido e vem descritos no libelo acusatório. Pelo que se conclui, por carência de adequação da prova apresentada à efetivação do direito de defesa do arguido, pela ilicitude dos registos videográficos e fonográficos por si juntos, o que determina que não serão valoráveis nesta sede. * Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.* II. Fundamentação de factoCom relevância para a causa resultam os seguintes: Factos provados Constantes do despacho de pronúncia: 1. O arguido e BB casaram entre si a 22/06/2002 e viveram conjuntamente desde então na Rua ..., .... 2. Ambos são sócios da A... – Lda., empresa proprietária de um ginásio sito em Santo Tirso. 3. Deste casamento nasceram CC, a ../../2005, e DD, a ../../2011. 4. Em 2015, aquando de uma ida do casal a Itália, depois de terem jantado com várias pessoas com quem a A... tinha relações comerciais, o arguido, já no hotel onde ficaram alojados, teve uma crise de ciúmes e, irado, acusou a ofendida de se estar a insinuar a um indivíduo com quem tinham falado durante o jantar, tendo partido vários objetos dentro do quarto. 5. Pelo menos desde o ano de 2018, quase diariamente, o arguido passou a vasculhar o telemóvel da ofendida BB e a controlar-lhe os contactos e as rotinas diárias. 6. Também, com a mesma frequência, a acordava a meio da noite para lhe exigir explicações sobre as pessoas com quem falou. 7. Em abril de 2020, no interior da residência do casal, o arguido irritou-se por aquele seu filho não querer tomar a injeção que devia tomar regularmente e ter começado a chorar. 8. Irado, o arguido desferiu várias bofetadas no rosto do menor, provocando-lhe hemorragia nasal e dores. 9. Em data não concretamente apurada, mas no primeiro trimestre de 2020, o arguido, continuando a alimentar a suspeita de que a ofendida o traia, resolveu arranjar forma de a fazer revelar a traição e, para tal, enviou à mesma um ramo de flores, sem identificação do remetente. 10. A ofendida recebeu as flores no seu local de trabalho e o arguido, sem assumir ter sido ele a enviar o ramo, exigiu que a ofendida lhe dissesse de quem as tinha recebido. 11. E chamou-a de «puta», «vadia», disse-lhe que ela não valia nada, acrescentando que qualquer homem só a podia querer com uma intenção. 12. A ofendida sentiu-se humilhada e desesperada e tentou apurar junto da florista quem lhe tinha enviado as flores, logrando confirmar ter sido o arguido. 13. Em abril de 2020, BB apercebeu-se, quando viu uma luz a piscar dentro de uma jarra com musgo, que existia uma câmara no quarto que partilhava com o arguido. 14. Atónita, a ofendida confrontou o arguido com a sua descoberta e este admitiu ter colocado uma câmara para a filmar. 15. No dia 27 de maio de 2020, no interior do ginásio pertença de ambos, a ofendida, convencida de que o arguido estava mais uma vez a instalar câmaras de vigilância à sua revelia, pediu-lhe explicações, tendo ido ambos conversar no gabinete que partilhavam. 16. Nesse local, na sequência da discussão que se gerou, o arguido atirou à ofendida a mala onde estava o seu computador portátil, atingindo-a na face, com tal violência que a ofendida caiu ao chão, tendo-lhe o arguido desferido número não apurado de pontapés nas pernas e braços. 17. Na sequência deste comportamento do arguido, a ofendida sofreu escoriação do lábio superior e dores nas áreas atingidas. 18. Ao proceder conforme o acima descrito, dirigindo as expressões acima referidas à ofendida, agiu o arguido com o intuito de a molestar psicologicamente, causando-lhe medo, desassossego, angústia e humilhação, afetando-a na sua integridade moral e no seu bem-estar, bem sabendo que a ofendida era sua esposa e que, por isso, lhe devia especial respeito. 19. O arguido quis, ainda, causar a BB dor e lesão corporal, como efetivamente causou, molestando-a, também fisicamente. 20. O arguido quis ainda causar dor e lesão física a seu filho menor CC, bem sabendo que o mesmo, mercê da idade e do elo familiar e emocional que os unia era especialmente vulnerável e incapaz de se defender. 21. O arguido sabia ainda que tinha para com tal menor especiais deveres de respeito, consideração e educação e que a sua atuação violava com censura acrescida tais deveres. 22. Ao atuar no interior da residência de ambos os ofendidos, o arguido agiu perfeitamente ciente de que ampliava o sentimento de receio dos mesmos já que tal espaço deveria ser de conforto e segurança. 23. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as condutas por si adotadas eram proibidas e criminalmente punidas. Do pedido de indemnização civil: 24. Em consequência do comportamento, a demandante sentiu-se humilhada, vexada, temerosa e aterrorizada. 25. Ainda hoje, a demandante se sente fragilizada e triste com o sucedido. 26. Os comportamentos do arguido supra descritos afetaram o saudável desenvolvimento psíquico e formativo do demandante. Mais se apurou: 27. Em data não concretamente apurada, mas no natal ocorrido entre os anos 2012 e 2013, na casa dos pais da assistente, o arguido desferiu um número não concretamente apurado de bofetadas no rosto do filho, provocando-lhe hemorragia nasal e dores. 28. O pânico do menor ofendido foi tal que se urinou enquanto o pai lhe batia. 29. O casamento referido em 1. foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 18/12/2020, transitada em julgado a 01/02/2021. 30. Não se mostram averbados antecedentes criminais relativos à pessoa do arguido. 31. O arguido manifestou consentir que uma eventual pena de prisão a aplicar fosse executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. Das condições socioeconómicas do arguido: 32. O arguido é sócio-gerente da sociedade referida em 2., explorando a tempo inteiro tal ginásio, e auferindo salário médio mensal na ordem dos 1.500,00€. 33. Atualmente, o arguido reside com a companheira em apartamento arrendado sito na Rua ..., ..., 2.º trás, fração G, ..., Guimarães. 34. O arguido tem como despesas fixas a renda no valor de 725,00€ e a pensão de alimentos dos filhos no valor global de 500,00€. * Factos não provadosEntre outros que não se concatenem com os supra elencados, não resultaram provados os seguintes factos: Constantes do despacho de pronúncia: a) O arguido sempre se mostrou muito ciumento e possessivo, mas tal atitude agravou-se aquando de uma ida do casal a Itália, em 2015. b) O arguido dizia à ofendida, com frequência diária, que ele «era melhor do que ela em tudo». c) Às situações descritas em 6. e 7. assistiram, em muitas ocasiões, DD e CC. d) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 10. e 11., o arguido disse à ofendida que ela só tinha duas qualidades: «era boa na cozinha e na cama». e) Em resposta ao confronto referido em 15., o arguido explicou tratar-se de um «impulso», uma «necessidade» e que ela era «uma inspiração». f) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 17., o arguido empurrou a ofendida. Do pedido de indemnização civil: g) BB é uma pessoa bem formada, bem-educada, respeitadora das regras sociais e legais, incutindo os mesmos valores aos seus filhos menores, mormente ao CC. h) Ainda hoje, o demandante se sente fragilizado, assustado e triste com o sucedido, com receio. i) Ainda hoje, a demandante se sente assustada com o sucedido e com receio. * Foram desconsiderados os factos irrelevantes ou desconexos com o objeto da causa, tal como ele é balizado pelo despacho de pronúncia, e as imputações conclusivas (tais como «mostrou-se sempre severo e intransigente, optando, por vezes, pela punição física»), sobre os quais o Tribunal não se pronuncia.* Motivação de factoCumpre afirmar que toda a prova valorada é aquela validamente produzida em audiência de julgamento, tendo a mesma sido analisada criticamente à luz das máximas da experimentação, de acordo o livre e prudente arbítrio do Tribunal, conforme decorre do artigo 127.º do Código de Processo Penal (doravante CPP). A convicção do Tribunal formou-se pela análise minuciosa e conjugada dos documentos constantes dos autos, nomeadamente, certidões de fls. 198-200; fotografia de fls. 90; auto de interrogatório de arguido, de fls. 207-209 (lido em audiência); contrato-promessa de fls. 231-219; mensagens de fls. 352-357 e de fls. 359-373; publicações de Facebook de fls. 387-409 (docs. 1-23 da contestação); email junto como doc. 24 da contestação; registos fonográficos juntos em suporte pen drive com requerimento de 01/02/2023 (a fls. 765); mensagens de fls. 766; mensagens de fls. 772-790; fotografias e vídeo juntos com requerimento de 15/07/2024; relatório social junto a 06/05/2024; certificado de registo criminal junto a 03/05/2024. Bem como as declarações de arguido prestadas perante juiz de instrução criminal em sede de instrução em 12/07/2023, reproduzidas em audiência de julgamento, declarações para memória futura de assistente e demandante (prestadas a 14/01/2022 e 10/02/2022 e transcritas a fls. 504-548 e 549-588, respetivamente), e declarações da assistente prestadas em sede de audiência de julgamento. Concatenadas que foram com os depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, e SS. A tese plasmada na acusação surgiu amplamente sustentada nos meios de prova produzidos e supra indicados pelas razões que adiante se exporá. Com efeito, as declarações para memória futura prestadas pelos ofendidos foram de molde a convencer o Tribunal, não só pelo modo circunstanciado, concretizado, espontâneo com que discursaram, mas pela corroboração que obtiveram na restante prova produzida, o que não aconteceu com a versão aduzida pelo arguido. O arguido, pese embora tenha negado a vasta maioria da factualidade que lhe foi imputada, logrou identificar de forma clara e esclarecida dois eventos relatados na acusação (aqueles que descrevem agressões físicas para com ambos os ofendidos, ou seja, pontos 10. a 12. e 20. a 22.), contextualizando-os, ainda que lhes tenha dado diferente roupagem daquela que lhe é imputada. Quanto ao episódio de agressão ao filho CC, o arguido explicou como nesse dia, que não sabia precisar a data mas seria em 2019/2020, após convencer o filho a receber a injeção hormonal num sítio diferente da perna, este se arrependera da decisão, o que motivara o arguido a espalmar-lhe a mão no rabo e atravessar o braço direito sobre as pernas daquele para evitar que esperneasse e que o líquido (da injeção) se perdesse. Já quanto ao episódio referente a uma agressão física da ex-mulher, o arguido confirmou que se gerou uma discussão entre ambos no gabinete no ginásio, num dia em que estariam a ser instaladas câmaras de filmar naquele espaço, e admitiu a possibilidade (mais do que admitir a possibilidade manifestou o seu entendimento do que terá acontecido) de os atilhos da sua mochila terem atingido a ofendida de modo a provocar a lesão que a mesma apresentava no lábio no momento em que se dirigiu à porta para se ausentar, e enquanto a ofendida bloqueava a passagem. A explicação aventada para o arguido para este último episódio não é crível por ser manifestamente improvável às regras da experimentação comum, sendo antes muito mais consentânea com a normalidade do acontecer o relato que é feito do sucedido pela assistente. Não se vislumbra que razões teria a assistente para efabular toda a sua narrativa, hipótese aliás que se arredou não só por ser manifesto o seu sofrimento emocional e estado de revolta, evidenciado no discurso por si empregue e na linguagem corporal, não só enquanto foi inquirida, como enquanto permaneceu na assistência, mas também pelo elevado grau de circunstanciação dos episódios relatados, circunstanciação essa que não se afigurou mecânica/ensaiada, mas antes fluía naturalmente e se densificava através dos pedidos de esclarecimento que lhe foram sendo dirigidos. A tese de que a assistente teria efabulado todo o narrado na acusação com o propósito de dissimular uma eventual relação extraconjugal não só é desarrazoada à luz das mais elementares regras da experiência comum, como não encontrou respaldo na prova produzida. Além de testemunha alguma ter demonstrado deter conhecimento acerca de qualquer relação amorosa que a assistente tivesse estabelecido com HH, como se quis fazer crer pela defesa, ou com qualquer outra pessoa, e o próprio visado da suspeita o ter negado perentoriamente, não constam dos autos quaisquer elementos que o permitam concluir. Assim, os registos fotográficos e videográfico juntos com requerimento de 15/07/2024 não tem a virtualidade de o sequer sugerir, quanto mais comprovar. Na sociedade hodierna, deixaram de ser expectados certos comportamentos da Mulher, a qual agora detém, ou espera-se que detenha, total controlo e liberdade para controlar o seu destino e projeto de vida, no que se inclui estabelecer relações interpessoais com outras pessoas do seu círculo social, sem que para tal necessite de aprovação ou supervisão de terceiros. Advém, manifestamente, do exposto de que nenhum relevo reveste, dispensando ulteriores considerações, o facto de a assistente manter contactos ou amizade com os colaboradores da sua empresa. Na verdade, aquele registo que se capta, de modo oculto a partir do interior de um automóvel, e segue um episódio banal da vida da assistente corrobora toda a narrativa da assistente, robustecendo-a, ao evidenciar o controlo que o arguido fazia do seu dia-a-dia. Das publicações efetuadas pela assistente no Facebook não se extrai qualquer conflitualidade ou incompatibilidade daquelas com a narrativa da assistente e ofendido. Para tanto basta compreender que a violência doméstica, enquanto fenómeno sociológico complexo, nada mais sendo do que a violência em espaços de intimidade relacional, no seio de relações existencialmente muito próximas, tem associados padrões de comportamento muito próprios e variáveis, nos quais se insere a desculpabilização do agressor a par e passo com a internalização da culpa pela vítima. Especialmente em situações como a dos autos, de escalonamento de violência, em que a violência manifestada é, sobretudo, psíquica, é típico que a vítima não se consciencialize até muito tarde da gravidade do comportamento do outro, e tenda a concentrar os seus esforços e energias a tentar fazer parar a violência ou a mudar o agressor. O que, aliás, resulta cristalino das declarações prestadas pela assistente em declarações para memória futura: o ciclo de violência psíquica, a incompreensão do comportamento do arguido e a intervenção desesperada para o alterar. De referir que não tendo nem a assistente, nem o arguido, nem qualquer uma outra das pessoas ouvidas logrado identificar o hotel onde ocorreu o primeiro episódio descrito na acusação, quanto mais a localidade onde se situava aquele, não é possível estabelecer qualquer associação entre o email junto aos autos já em fase de inquérito, mas também na contestação (doc. 24) e aquele episódio de modo a extrair qualquer conclusão da informação nele prestada que viesse a abalar a narrativa da assistente nesse sentido. Por outro lado, também na prova produzida não se encontram indícios de que o ofendido, filho do arguido e assistente, tenha sido instrumentalizado por esta para o mesmo efeito. O seu relato igualmente bastante circunstanciado, com normais e compreensíveis falhas mnésicas, e espontâneo, não sendo revelador de indicadores de interferência externa, nem de exacerbada necessidade de favorecer uma ideia da mãe em detrimento do conceito do pai, do que é exemplo ter referido espontaneamente que o casal se insultava mutuamente. Acresce que no momento em que fora ouvido para declarações para memória futura tratava-se já de um adolescente de 16 anos, isto é, alguém já dotado de uma estrutura psíquica que o permite autonomizar e desenvolver o seu pensamento e analisar criticamente situações da vida, mesmo quando essas situações envolvam da forma que se descreve supra pessoas da sua mais alta referência afetiva. Ambos os relatos (assistente e ofendido) encontraram amplo suporte nos depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH, II, JJ, RR, e SS. Iniciando pela testemunha II, amiga próxima e confidente da assistente, madrinha do ofendido, a mesma narrou vários episódios que vão de encontro ao descrito na acusação e relatado pela assistente, alguns com maior nível de concretização, outros naturalmente sacrificados pelo decurso do tempo e pela condição em que os conhecia: logicamente, não é de esperar que alguém saiba concretizar situações que não vivenciou ou presenciou mas que lhe advieram em desabafo ao longo dos anos (seria, contrariamente, de estranhar, e possível sinal de elucubração, se se recordasse excessivamente de detalhes e pormenores que não seria de esperar recordar-se). Pese embora a ligação próxima que mantém com a assistente, II recontou, de modo desprendido e cândido, o que lhe fora sendo confidenciado ao longo dos anos pela assistente, desde o controlo obsessivo que o arguido fazia de todos os passos da assistente, controlando-a pelos dados de localização conservados no seu automóvel, quer pelas câmaras instaladas no ginásio, os ciúmes também eles obsessivos do arguido, e as frequentes discussões geradas a esse propósito, o episódio da entrega das flores, da viagem a Itália e destruição do quarto de hotel, e da situação de agressão física à assistente e os episódios de agressão ao seu afilhado e ofendido. As testemunhas FF e GG, pais da assistente, apesar da emotividade esperada e revelada no discurso atenta a sua especial relação de pais da vítima, ainda assim não demonstraram vontade exacerbada em prejudicar o arguido, o que foi patente pelo facto de não demonstrarem nenhuma dificuldade em negarem terem presenciado realidades que claramente desfavoreceriam o arguido, demonstrando conhecimento reduzido, como seria expectável, do sucedido entre portas do casal. Dos seus depoimentos, conjugadamente com o testemunho de JJ, prima da assistente e madrinha da filha do (ex)casal, apurou-se um outro episódio de agressão física dirigido à pessoa de CC, desta feita quando este teria 7/8 anos, no período do natal, na casa dos pais da assistente. Descreveram como não assistiram ao pai a agredir o filho, mas já ao rescaldo do sucedido, tendo os avós assistido ao choro e ao sangue que a criança exibia na zona do nariz, e a prima, JJ, recém chegada àquela casa, assistido à criança que chorava e berrava na casa de banho, onde se mostrava agarrado à mãe, também chorosa, não permitindo a entrada da prima, nem de ninguém naquele espaço. Por sua vez o ofendido relatou o sucedido, e o ímpeto violento com que o arguido o abordara e atirara para o sofá, onde lhe veio a desferir um número que não logrou concretizar (naturalmente) de bofetadas até sangrar do nariz e se urinar. Foi esse o episódio em que o ofendido se urinou, e não como consta na acusação, naqueloutro episódio de confronto físico ocorrido em abril de 2020 e não 2019, circunstâncias temporais essas apuradas do cotejo das declarações da assistente (logrou identificar o mês e ano), e do ofendido (referiu ter sido um ou dois meses antes do pai abandonar a residência, o que se sabe ter ocorrido por volta do verão de 2020, conforme o próprio ofendido referenciou e o arguido afirmou). Esse outro episódio, por se ter passado já na residência da família, não foi presenciado por nenhuma das testemunhas ouvidas, além do seu rescaldo, ou seja, o choro e sangue do ofendido que terá sido presenciado logo após a agressão pela assistente, conforme ambos relatam de modo congruente. O ofendido apresentou uma versão muito diferente do arguido, que admitiu apenas ter espalmado a sua mão no rabo daquele, descrevendo como, em palavras suas, fora «espancado» pelo pai quando chorou e pediu ao pai para lhe administrar a injeção hormonal num outro local da perna que não fosse tão doloroso, ao ponto de ter sangrado do nariz. Também EE, ex-colaboradora do ginásio B... (de 2012 a 2020), com assumida relação de amizade com a assistente, ainda que com proximidade mais reduzida – sendo que não era visita de casa – logrou recordar-se do episódio que localizou entre 25/27 de maio, em que ouviu vozes mais exaltadas a provir do gabinete da gerência, vozes essas que corporizavam insultos mútuos, e, nessa sequência, visto a assistente a chorar sofregamente diante de si «com o lábio superior ligeiramente aberto», tendo-lhe admitido, após expressamente questionada e ainda que custosamente, que teria sido agredida pelo arguido. Congruentemente com o avançado pela assistente, de que as crises de ciúmes e controlo constante dos seus movimentos teriam coincidido especialmente com os últimos dois anos do relacionamento, a testemunha também logrou situar no tempo o escalar da frequência das discussões audíveis entre o casal nos anos 2018/2019. Esta testemunha apresentou, igualmente, relato circunstanciado e pormenorizado, aparentemente livre de influências externas, com falhas mnésicas normais. Outrossim, HH e NN, ex-colaboradores do B... (2018-2020) presenciaram a exaltação de vozes provindas do gabinete da gerência, tendo HH visto, em dia que não soube precisar, mas não no mesmo dia em que ouvira o aludido, uma alteração – que descreveu como pisadura – na parte superior do lábio da assistente e questionado a assistente se tinha sido agredida pelo arguido. Também estas testemunhas narraram de forma que se teve por desprendida, pois que o estado de desconforto/incompreensão deixado transparecer por HH quanto aos motivos do seu despedimento e que se dirigiam ao arguido não se traduziu, ao que se pode percecionar, num discurso polarizado ou apaixonado, não revelando dificuldade em negar conhecimento sobre realidades que seriam desfavoráveis ao arguido. Também RR e SS demonstraram ter conhecimento genérico sobre episódios que coincidem, na essencialidade, com aqueles descritos na acusação e relatados quer pela assistente, quer pelo ofendido, especialmente SS, ex-companheiro da assistente. Esta última testemunha revelou que também lhe foi recontado pela assistente que era alvo de perseguições, de monitorização do telemóvel e da sua localização através do painel de controlo do seu automóvel e de uma situação no clube em que tinha sido agredida. Revelou igualmente que lhe foram transmitidas, de forma emotiva, pelo próprio ofendido CC, muitas situações desagradáveis que este terá tido com o pai, inclusivamente, uma altura que o terá agredido quando tinha 8/9 anos. Todos esses depoimentos foram congruentes entre si e fluíram num só sentido, no da confirmação do relato da assistente e ofendido. A única testemunha cujo depoimento produzido destoou das demais, pela sua incompatibilidade com os demais relatos e prova produzida, foi LL, irmão do arguido. Se, por um lado, as relações de proximidade existencial que entre aquela testemunha e o arguido intercedem são de fazer suspeitar da veracidade do seu relato, tornou-se evidente que a testemunha tentou ocultar a verdade do que conhecia de modo a proteger o irmão. Começou por negar perentoriamente ter-lhe sido transmitido pela cunhada, assistente, que o arguido a maltratava, o que se sabe ter acontecido já que as mensagens trocadas entre a assistente e o próprio (de fls.772-790) – conforme veio depois a admitir no decurso da sua inquirição quando confrontado com aquelas – assim o evidenciam. Acresce que, pese embora se discutir da existência de um comportamento reiterado de violência dentro de portas, o que significa que, a ser verdade, muito dificilmente seria testemunha ocular do que se terá passado, tal não impediu a testemunha de transmitir a sua convicção segura na inveridicidade do imputado ao arguido, o que demonstra uma vontade exacerbada, própria da emoção, e contrária à razão (porque não sustentada em factos concretos e palpáveis) em crer (ou dar a entender que cria) na inocência do arguido. Ademais há que referir que a perspetiva que a esmagadora maioria das testemunhas ouvidas teria do estado de harmonia do casamento do arguido e assistente é irrelevante para efeitos de infirmação da versão aduzida no libelo acusatório, sendo, além do mais, absolutamente natural que a imagem perpassada para os colaboradores e, no geral, a imagem social do casamento fosse uma de coesão familiar, não sendo de todo incomum (antes se diria, de acordo com a normalidade do acontecer, a regra) que os problemas de violência intrafamiliar permaneçam ocultos dos olhos de terceiros alheios àquele núcleo, além daqueles em quem as vítimas, em certos casos, confiam para o revelar. O relato da assistente encontra, ainda, suporte nos registos fonográficos por si juntos, nos quais é audível a voz do arguido a apelidá-la de «puta», dizendo para ela se preparar, «vais ter que abrir a cona para ele», «metes-me nojo», «tu vais ter o troco, tu vais pagar» «tás fodida, BB», «dar o pito a ele que a mim tu não mo dás», enquanto a assistente muito percetivelmente emite barulhos condizentes com o choro. Mencione-se que foi possível perceber qual o exato ano em que ocorreu a viagem a Itália, já que a assistente a tal faz referência nas suas declarações para memória futura que e coincide com um dos anos em que o arguido admite terem viajado àquele local. Quanto às relações de parentesco estabelecidas entre o arguido, a assistente, o ofendido e DD, e a dissolução do casamento, estas resultam das certidões juntas a fls. 198-200. No que tange à vontade e conhecimento da prática dos factos, cumpre dizer que a demonstração da realidade dos factos objetivos que vinham imputados ao arguido permitiu, sob a ótica das regras de experimentação comum, e manifestamente, inferir a matéria de facto atinente aos elementos subjetivos da conduta. A factualidade articulada no pedido de indemnização civil e que se deixou provada resulta das próprias declarações da assistente em sede de audiência de julgamento nesse sentido, logrando transmitir os estados de alma no decurso e no rescaldo dos comportamentos do arguido, o que não só tem pleno acolhimento à luz das mais elementares regras da experiência comum, como sucede do testemunho de II, que logrou descrever como nas alturas em que consigo desabafava se encontrava esgotada emocionalmente, devastada e desesperada. As consequências da conduta do arguido no desenvolvimento da personalidade e saúde psíquica do demandante são obviamente decorrentes do que sabem ser as consequências desse tipo de comportamentos em crianças/adolescentes da idade do demandante. A factualidade que se deixou não provada deriva da ausência de prova produzida nesse sentido. O consentimento referido em 31. foi verbalizado pelo arguido em audiência e registado em ata. Os factos relativos às condições socioeconómicas do arguido resultaram do confronto com o relatório junto aos autos (a 06/05/2024). Os antecedentes criminais resultam provados por confronto com o CRC junto aos autos (a 03/05/2024). *» 2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO. 2.3.1- Nulidade da sentença: falta de fundamentação e falta de comunicação de alteração de factos – artigos 379º, n.º 1, al. a) e b), 358º e 374º n.º 2 do CPP. 2.3.1.1- Falta de fundamentação. Entende o recorrente que a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação - artigos 379º, n.º 1, al. a) e 374º n.º 2 do CPP – alegando que, em termos de fundamentação do julgamento de facto, a sentença não cumpre as exigências legais, pois que, para além da adesão integral às declarações para memória futura prestadas pela Assistente e pelo ofendido CC, a sentença não contém qualquer justificação concreta e específica para terem sido dados como provados os factos que o foram. Vejamos. Nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º. Como requisitos da sentença, determina o n.º 2 do artigo 374.º, o seguinte: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» Resulta desta norma que o tribunal, para além de indicar as provas que serviram para formar a sua convicção do tribunal, tem também ainda de efetuar o exame crítico daquelas, explicitando o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas. É que, com a leitura da fundamentação da sentença, deve ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, no sentido de considerar provados e não provados os factos objeto do processo. O objetivo dessa fundamentação é o de permitir a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina. Mas como é evidente, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível. O que importa é que o exame crítico das provas, explicitado na sentença, permita avaliar racionalmente o fundamento da decisão e o processo lógico seguido. Descendo ao caso dos autos, verificamos que o Tribunal recorrido, após enumerar os factos provados e não provados, passou a expor a motivação da decisão de facto, elencando e conjugando criticamente as provas que serviram para formar a respetiva convicção. Com efeito, na decisão recorrida fez-se referência e elencou-se a prova produzida (documental, declarações do arguido perante juiz de instrução criminal, declarações para memória futura de assistente e demandante e declarações da assistente em sede de audiência, os depoimentos das testemunhas) e fez-se a conjugação de umas provas com as outras, designadamente, explicando-se o modo e por que razão foram importantes para a convicção do tribunal as declarações para memória futura dos ofendidos, o modo como foram apreciadas as declarações do arguido, bem como se considerou desarrazoada à luz das mais elementares regras da experiência comum a tese de que a assistente teria efabulado todo o narrado na acusação com o propósito de dissimular uma eventual relação extraconjugal e de que não se encontram indícios de o filho do arguido e assistente ter sido instrumentalizado por esta. O que importa é que se compreende da leitura da motivação por que razão o tribunal deu como provados (e não provados) os factos constantes da sentença. O Tribunal recorrido conjugou a prova pessoal com a prova documental e pericial, apreciando-a à luz das regras da experiência comum e formou a sua convicção. Percebe-se, conjugando os factos com a motivação da sentença, o raciocínio do Tribunal. Poder-se-ia questionar se, face à prova produzida, o Tribunal decidiu da melhor maneira quanto à matéria de facto, mas essa não é a questão colocada neste momento, mas tão-só a da insuficiente fundamentação. Concluindo, entendemos não haver falta de fundamentação da sentença, pelo que não se verifica a nulidade prevista nos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do CPP, nem violação do disposto nos artigos 32º, nºs 1 e 5 e 205º da CRP e artigo 97, nº 4, do CPP. 2.3.1.2- Falta de comunicação de alteração de factos. Invoca o recorrente que a matéria provada dos pontos nºs 27 e 28 não constava do despacho de pronúncia, pelo que não poderia ser considerada, sem mais, na sentença, isto é, sem contraditório, sem cumprimento das formalidades previstas na lei de processo (artigo 358º do CPP), que são garantia do contraditório. Consequentemente, tal matéria deve ser considerada não escrita. Vejamos. Desde logo, não compreendemos como o recorrente vem afirmar que não foi cumprido o contraditório, pois, como consta da ata, na sessão de audiência do dia 02-09-2024 (Referência: 462960333), pela Mma. Juiz de Direito foi comunicada, nos termos do artigo 358.º do Código de Processo Penal, uma alteração não substancial dos factos, a qual se pode ouvir na gravação da plataforma Citius de 12:13:38 a 12:15:53. E ouvimos tal comunicação. E dela consta a enumeração de várias alterações aos factos, incluindo os factos constantes dos pontos nºs 27 e 28 da matéria de facto provada. E como consta da ata, dada a palavra à Ilustre Defensora do Arguido, a mesma nada teve a requerer. Assim, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, no caso dos autos foi efetuada em audiência a comunicação de uma alteração dos factos que se considerou não substancial e a que são correspondentes os pontos 27 e 28 da matéria de facto provada, sendo que a defesa disse nada ter a requerer. Vistos os factos, atentemos no direito. De acordo com o artigo 358º, n.º 1 do CPP, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, o juiz comunica a alteração ao arguido, concedendo-lhe o tempo necessário para a preparação da defesa. Finalmente, dispõe o artigo 379.º n.º 1 alínea b) do CPP que é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstos no artigo 358.º do CPP. A finalidade do instituto processual da alteração dos factos é a de assegurar as garantias de defesa do arguido, com vinculação temática do tribunal de julgamento à acusação (ou pronúncia) não podendo, fora dos casos e condições previstos nos artigos 358º e 359º do CPP e sob pena de nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. b) do CPP, haver condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou pronúncia. Com efeito da conjugação do princípio do acusatório e da tutela do direito de defesa do arguido decorre a vinculação temática do tribunal do julgamento à acusação ou ao despacho de pronúncia, que definem e fixam os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado[1][2]. A este efeito da vinculação temática do tribunal ligam-se o princípio da identidade (o objeto do processo deve manter-se o mesmo desde que é fixado até ao trânsito em julgado da decisão), o princípio da unidade (o objeto do processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade) e o princípio da consunção (mesmo quando não tenha sido conhecido e julgado na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido)[3]. A vinculação temática do tribunal constitui a pedra angular de um efetivo e consistente direito de defesa do arguido que assim fica protegido contra arbitrários alargamentos da atividade cognitiva e decisória do tribunal e dá-lhe a garantia de não ser surpreendido com novos factos na audiência de julgamento, podendo aí exercer o direito de contraditar os factos que lhe são imputados na acusação[4]. Ora, o princípio do contraditório, característico de todo o processo acusatório quando visto da parte do arguido, constitui uma das garantias de defesa que o processo criminal lhe deve assegurar e está constitucionalmente consagrado no artigo 32, n.º 5 da Constituição, parte final (... estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.)[5]. Não obstante a Constituição consagrar expressamente no artigo 32º, n.º 5 que o processo criminal tem estrutura acusatória, a verdade é que o nosso sistema processual penal não segue o modelo puro do sistema acusatório. Com efeito, no nosso sistema processual penal a estrutura acusatória do processo é integrada por um princípio subsidiário de investigação (ou da verdade material) a cargo do juiz, devendo, por força do carater indisponível do processo, da intenção de prosseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, esclarecer e instruir autonomamente o facto sujeito a julgamento criando ele próprio as bases da decisão, limitado embora à validade processual da sua atuação e à garantia dos direitos das pessoas, mas respeitando sempre a proteção dos direitos dos sujeitos e intervenientes processuais[6]. Do princípio da investigação e da descoberta da verdade material resulta que o tribunal pode trazer à audiência, sob determinadas condições, factos novos que surgiram durante a discussão da causa e que alterem os anteriormente descritos na acusação, condições essas estabelecidas no regime dos artigos 358º e 359º do CPP[7]. No nosso processo penal distinguem-se as alterações entre relevantes e irrelevantes para a decisão da causa. Só as primeiras estão sujeitas ao regime dos artigos 358º e 359º do CPP. Sendo as alterações relevantes para a decisão causa, tanto podem ser substanciais como não substanciais. Alteração substancial é, nos termos do n.º 1, al.- f) do CPP «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis». Alteração não substancial é, por contraposição à alteração substancial, aquela que não tiver por efeito a imputação ao arguido dum crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Ora, como os factos comunicados na audiência e que depois foram levados à sentença, embora relevantes, não tiveram por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, tendo-se mantido o ilícito penal imputado o mesmo, a alteração dos factos foi não substancial. A alteração não substancial dos factos foi comunicada. A defesa disse nada ter a requerer. O artigo 358º do CPP mostra-se cumprido. Não se verifica a nulidade do artigo 379.º n.º 1 alínea b) do CPP. 2.3.2-Valoração de prova. Da ilicitude das gravações indicadas na contestação. Na sentença recorrida, como na parte acima transcrita se pode ler, entendeu-se que as gravações indicadas na contestação são ilícitas e não podem ser valoradas. O recorrente, pelo contrário, entende que devem ser valoradas tendo ficado vinculado pelo despacho judicial que em 18.01.2024 admitiu a contestação e o requerimento probatório do qual constava a indicação das referidas gravações, a que acresce o facto de as gravações terem sido reproduzidas logo na primeira sessão de prova, não obstante a oposição da assistente nessa sessão. Acrescenta o recorrente que essas gravações são demolidoras para a imagem de vítima que a assistente tenta passar. Muito em resumo, a argumentação da sentença passa por, face ao disposto nos artigos 167º do CPP e 199º do CP, se considerar que o direito à defesa do arguido não pode, sem mais, legitimar a conduta de captação de momentos da intimidade da sua família, tendo de se fazer um juízo ponderativo à luz do caso concreto, averiguando se entre a importância que as reproduções mecânicas adquirem face à sua aptidão e adequação para a indiciação ou prova tanto do imputado como da inocência do arguido e a sua proporcionalidade em termos de comparação entre a danosidade da violação/compressão dos direitos à imagem e palavra ou intimidade e reserva da vida privada versus a sua utilidade probatória em concreto e a sua necessidade, em face da eventual escassez ou suficiência do acervo probatório reunido. Feito tal juízo de ponderação, entendeu-se na decisão recorrida que as reproduções apresentadas, além de colhidas em família sem o consentimento e contra a vontade dos vários visados que atinge, não são, de acordo com as regras de experimentação comum, aptas a pôr em crise a versão fáctica descrita no despacho de pronúncia já que o facto de a assistente ter empreendido um comportamento menos próprio ou até integrador, em abstrato, de normais penais destinadas à proteção da honra, não é impeditivo, logicamente, da ocorrência de todos os atos que são imputados ao arguido e vêm descritos no libelo acusatório. E a partir daí concluiu-se pela carência de adequação da prova apresentada à efetivação do direito de defesa do arguido e consequente ilicitude dos registos videográficos e fonográficos por si juntos, o que determina a sua não valoração. As reproduções mecânicas juntas aos autos e indicadas na contestação, como se pode ver dos prints e transcrições juntas aos autos de fls. 737 a 744, dizem respeito a três situações diversas em que o arguido filmou a assistente e onde esta, além do mais que diz, o apelida de cobarde (ficheiro 23.07), ladrão, palhaço (ficheiro 24.07), porco, bandido e filho da puta (ficheiro 26.07). É certo que, com se refere na decisão recorrida, tais elementos probatórios estão intimamente conexionados com eventos naturalísticos que foram já apreciados em fase de inquérito e objeto de despacho de arquivamento, mas a verdade é que contrariamente ao que naquela se afirma não são irrelevantes para a defesa do arguido nos presentes autos. Com efeito, desde logo seriam relevantes para a prova ou, melhor dizendo, contraprova de um facto alegado no pedido de indemnização civil (87º- A ofendida BB é uma pessoa bem formada, bem-educada, respeitadora das regras sociais e legais.). Vejamos. Como é comummente aceite[8], o processo penal prossegue três finalidades essenciais: a realização da justiça e a descoberta da verdade material; a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas; e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime[9]. Dada a antinomia existente entre estas finalidades, é necessário operar a concordância prática[10] entre as mesmas, procurando minimizar as perdas para cada uma delas e respeitando o limite da dignidade da pessoa humana, o que se faz conjugando os princípios constitucionais e normas vigentes na ordem jurídica. A atividade probatória que se destina a convencer da existência ou não dos factos penalmente relevantes é regulamentada pelo processo penal. Com efeito e desde logo, de acordo com o artigo 124º do CPP, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis. No artigo 125º do Código de Processo Penal, onde se dispõe que «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei», encontram-se consagrados os princípios da legalidade e liberdade da prova, resultando que são admitidos não só os meios de prova tipificados como também todos os que não forem proibidos, mesmo sendo atípicos[11]. São provas proibidas por lei, nos termos do artigo 32º. n.º 8 da Constituição, todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Quanto aos métodos proibidos de prova, dispõe o artigo 126º, nº1 do CPP, «São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.» No n.º 2 especifica-se que são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; promessa de vantagem legalmente inadmissível. E no n.º 3 deste artigo prevê-se que «3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.» Como se retira das ressalvas constantes dos números 2 e 3 do artigo 126º do CPP, há algum espaço para a harmonização e concordância prática das atrás referidas finalidades do processo penal, fazendo uso do disposto no artigo 18º da CRP, onde se dispõe no seu n.º 2 que «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», e no seu n.º 3 que «As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.» Ora, deste artigo 18º da CRP resulta que os direitos fundamentais e liberdades públicas podem ser comprimidos, desde que se respeite o princípio da legalidade, da intervenção mínima e da proporcionalidade. Resta assinalar nesta parte que por força do disposto nos artigos 32º, n.º 8 da CRP e artigos 126º, n.º 1 e 3 e artigo 118º, n.º 1 do CPP, o desrespeito pelo princípio da legalidade da prova tem como consequência a nulidade das provas obtidas através de métodos proibidos, não podendo as mesmas ser utilizadas, acrescendo a proibição da valoração da prova obtida através de métodos de prova proibidos[12]. Aqui chegados e aproximando-nos do caso dos autos, que dizer da gravação das palavras de outrem efetuada por um particular, na situação de vítima de um crime, sem o consentimento do visado, agente desse crime, e da validade processual penal da prova recolhida por esse meio? Para resolver a questão colocada, a jurisprudência nacional tem recorrido ao disposto no artigo 167º, n.º 1 do CPP que dispõe que o valor de tais documentos «só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal», e por remessa desta norma ao disposto no artigo 199º do Código Penal, que estabelece o ilícito penal das gravações e fotografias ilícitas[13]. A análise de uma proibição, de um tipo de ilícito, não se basta com uma simples análise do bem jurídico protegido - neste caso, o direito à palavra e o direito à imagem-, antes exigindo a consideração dos interesses e bens jurídicos em conflito com o protegido nesse concreto tipo de ilícito: o «tipo vale pelo que incrimina e, nessa medida, protege; como vale outrossim pelo que não incrimina e, nessa medida, igualmente protege»[14]. Com efeito e para além do consentimento da pessoa filmada ou gravada, pode justificar o facto qualquer das dirimentes gerais da ilicitude[15], mas sem esquecer a dirimente específica da prossecução de interesses legítimos. Parece-nos ser esta a forma correta de aproximação para a resolução do conflito, por um lado, entre o constitucionalmente consagrado direito à palavra e à imagem (artigo 26º, n.º 1 da CRP) e, por outro lado, do também constitucionalmente consagrado acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º da CRP), que inclui o direito à prova, que assiste à vítima de um crime. Assim e por princípio, conjugando o disposto nos artigos 167º, n.º 1 do CPP e 199º do CP, a gravação das palavras de outrem que não constitua crime é admissível como prova[16]. Do caso dos autos o que resulta é que o arguido neste processo, na altura a sofrer insultos da hoje assistente, procedeu à gravação das palavras desta quando o apelidava de «cobarde, ladrão, palhaço, porco, bandido e filho da puta» e se, como se refere na decisão recorrida, tal matéria foi arquivada, a verdade é que o arguido apresentou as gravações de tais insultos que sofreu para servirem para sua defesa. Considerando que sendo a gravação feita pela vítima de um ou vários ilícitos criminais, no momento em que estes estavam a ser perpetrados, tendo sido a gravação posteriormente entregue no processo, donde se extrai que a mesma foi feita com a finalidade de facilitar o direito da vítima à tutela jurisdicional e à prova, seja como ofendido ou como arguido, é de concluir que, feita a ponderação entre o direito da assistente à palavra e à proteção da “personalidade na sua comunicação inocente com os outros membros da sociedade[17]” e o direito à imagem, e entre o direito do arguido à tutela jurisdicional e à prova, deve prevalecer o deste último. Com efeito, colocando num prato da balança da justiça o direito à não gravação/filmagem sem consentimento da palavra criminosa e no outro o direito da vítima dessa mesma palavra criminosa à tutela jurisdicional e à prova, gravando a palavra criminosa contra si dirigida, não vemos como não concluir que o fiel da balança aponta decisiva e escancaradamente na direção deste último prato, dado o peso da proteção da palavra gravada/filmada, por ser criminosa, ter sido muito aliviado por comparação ao peso da proteção da vítima dessa palavra injuriosa e da realização da justiça que se manteve intacto na sua cobertura constitucional. Daqui resulta que a conduta do arguido ao gravar/filmar as injúrias de que estava a ser alvo integra o exercício do direito de necessidade previsto no artigo 34º do Código Penal, que justifica a conduta, não sendo esta, por isso, integradora do crime previsto no artigo 199º do Código Penal ou de qualquer outro ilícito penal ou civil. Ora, não constituindo a gravação das palavras da hoje assistente efetuada pela então vítima e hoje arguido um facto ilícito, é admissível a sua valoração como prova, pelo que não se verifica qualquer nulidade ou proibição de prova, nem violação dos artigos 70º do Código Civil, 167º, nº 1, do CPP e 192º, nº 1, a) e 199º, do Cód. Penal, 32º, nº 8, 26º, nº 1 e 2 e 18º da CRP. Assim, as ditas gravações podem ser valoradas nos presentes autos e aferido o seu valor para a prova ou contraprova dos factos objeto deste processo, o que será feito a propósito da apreciação da impugnação da matéria de facto. 2.3.3- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento. Discorda o recorrente da decisão sobre a matéria de facto, entendendo que foram incorretamente julgados os pontos 4 a 28 dos factos provados, da matéria de facto provada os quais deveriam ter sido dados como não provados. Em resumo, argumenta: - Há um absoluto desfasamento entre a sentença e a prova (não) produzida em julgamento. Só o preconceito, por um lado, e a ingenuidade, por outro, tudo caldeado por uma patente falta de experiência (de vida e de judicatura), parecem poder explicar o que aconteceu. - A decisão assenta numa adesão acrítica à narrativa da Assistente. - A Assistente instrumentalizou o filho CC. - As publicações do Facebook da Assistente mostram um quadro totalmente incompatível com as imputações feitas ao Arguido. - A Assistente pretendeu ‘desfocar’ um relacionamento extranconjugal, assegurando a sua vitimização e o constrangimento do arguido. - A Assistente não tem credibilidade: dado o porte da Assistente, enquanto mulher casada, não ser indiferente para o crédito a atribuir à sua narrativa; a que acresce o teor das gravações que mostram a Assistente, na presença dos seus filhos e dos seus pais, com uma atitude, grosseria e uma agressividade incompatíveis com a vitimização; e se soma a sua postura ao nas sessões de julgamento que em 6 sessões, foi advertida 5 vezes e foi expulsa da sala de audiências 3 vezes. Como elementos de prova indica-se para suportar a tese exposta pelo Recorrente no recurso (a tese de que a Assistente com este processo pretendeu ‘desfocar’ um relacionamento extranconjugal, assegurando a sua vitimização e o constrangimento do arguido, servindo-se para tanto do episódio de 27.05.2020 e da instrumentalização do filho do casal, não tendo por isso credibilidade) as publicações no facebook que afastam qualquer conflitualidade, os depoimentos das testemunhas HH, OO, QQ e SS, de que transcreveu partes, o documento junto em 14.7.2024, vídeo e fotografia de um encontro entre a Assistente e HH, as gravações juntas aos autos e indicadas na contestação, as advertências e expulsão da sala de audiências da Assistente – indicando os respetivos minutos. Depois relativamente a cada grupo de factos impugnados o Recorrente indica a seguinte prova: - nº 4 dos factos provados - documento relativo a emails trocados com a gerência do hotel – documento 24 da contestação. - nºs 5 e 6 dos factos provados – as declarações da assistente são contrariadas pelas publicações no facebook. - nºs 7 e 8 dos factos provados - as declarações da Assistente e do ofendido CC são totalmente carecidas de verosimilhança, mostrando-se contrariadas pelas publicações de facebook já referidas. - nºs 9, 10, 11 e 12 dos factos provados - o único suporte é a «narrativa» da Assistente. - nºs 13 e 14 dos factos provados dos factos provados - em sede de declarações para memória futura, e por referência à câmara de filmar que teria encontrado no quarto do casal, a Assistente afirmou que tinha em seu poder o cartão respetivo (isto é, o cartão de memória que contém o que tiver sido gravado), indicando os minutos da gravação (1h16m/1h17m e minuto 14) e a sua transcrição (págs. 47-48). - nºs 15, 16 e 17 dos factos provados - o Arguido já deu as explicações que se impunham, admitindo ter atingido a Assistente na face com a mochila, ainda que involuntariamente. Daí resultou uma pequena lesão no lábio inferior – como se vê pela fotografia de fls. 90. - nºs 18, 19, 20, 21, 22 e 23 dos factos provados – não indica. - nºs 24, 25 e 26 dos factos provados – não indica. - nºs 27 e 28 dos factos provados – publicações no facebook e depoimento das testemunhas FF (mãe da Assistente) e GG (pai da Assistente) de cujos extratos indica os minutos. Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.” Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”. E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso. Assim, deve concluir-se que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente. O nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo. O princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido. Postas estas considerações, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida. Antes de avançarmos, notemos ainda que o facto de um recorrente ter opinião diversa da do Tribunal sobre a credibilidade das testemunhas/declarantes não é decisivo, pois é ao julgador que compete tal tarefa de avaliação, a não ser que haja elementos objetivos que imponham um juízo diferente sobre a credibilidade dos depoimentos, e o que verdadeiramente interessa é saber se dos segmentos apontados no recurso e da mais prova, designadamente dos documentos indicados, se impunha que o resultado probatório fosse outro. Apreciemos. Lendo os factos impugnados pelo recorrente, constatamos que numa descrição da matéria de facto distribuída por 34 pontos está impugnada toda a matéria de facto relativa aos comportamentos ilícitos imputados, ficando de fora os pontos 1, 2 e 3 (casamento, sociedade e filhos), 30 e 31 (ausência de antecedentes e autorização para cumprimento de eventual pena de prisão em RPH), 32, 33 e 34 (condições socioeconómicas do arguido). Em suma, o recorrente impugna toda a matéria de facto relativamente aos comportamentos imputados e seus resultados e fá-lo essencialmente com base na discordância com a análise da prova que o tribunal recorrido levou a cabo, especialmente da credibilidade atribuída ou não atribuída às testemunhas/declarantes, partindo daí para chegar à conclusão de falta de prova suficiente, sendo que a única prova direta (as declarações da ofendida e do ofendido), dada a sua falta de credibilidade não é suficiente para a condenação e, portanto, verifica-se um estado de dúvida sobre os factos. Em primeiro lugar caberá dizer que o tribunal explicou na motivação de modo suficiente por que conferiu credibilidade às declarações/depoimentos da assistente, do ofendido e das testemunhas que a corroboraram, tendo explicado porquê e, por outro lado, também explicou as razões por que retirou credibilidade ao arguido. Por outro lado, no nosso processo penal vigora o princípio da prova livre e da livre apreciação a prova - artigos 125º e 127º do CPP - e não o antigo regime da prova tarifada. O princípio unus testis, nullus testis desapareceu há muito do processo penal das nações civilizadas. Nada impede que o tribunal forme a sua convicção no depoimento de uma única testemunha. O princípio da presunção da inocência e o in dubio pro reo, consagrados no artigo 32º da Constituição não impedem a possibilidade de o tribunal formar a sua convicção no depoimento de uma única testemunha. Como acima já referimos a propósito da questão da falta de fundamentação da sentença, o tribunal recorrido elencou a prova produzida e fez a conjugação das provas, explicando, designadamente como e porquê foram importantes para a sua convicção as declarações para memória futura dos ofendidos, o modo como foram apreciadas as declarações do arguido, bem como se considerou desarrazoada à luz das mais elementares regras da experiência comum a tese de que a assistente teria efabulado todo o narrado na acusação com o propósito de dissimular uma eventual relação extraconjugal e de que não se encontram indícios de o filho do arguido tenha sido instrumentalizado por esta. Por outro lado, da mera leitura do texto da decisão recorrida não se vê que tenha sido dado como provado, ou não provado, algum facto que contrarie a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Nesta sede, ouviram-se os depoimentos/declarações indicados pelo recorrente e tiveram-se em conta os documentos devidamente assinalados por este, sendo de realçar que por força do atrás decidido as reproduções mecânicas juntas aos autos e indicadas na contestação, como se pode ver dos prints e transcrições juntas aos autos de fls. 737 a 744, serão tidas em conta contrariamente ao que sucedeu na decisão recorrida. Comecemos pela tese geral apresentada pelo Recorrente - a tese de que a Assistente não tem credibilidade pois que com este processo pretendeu ‘desfocar’ um relacionamento extraconjugal, assegurando a sua vitimização e o constrangimento do arguido, servindo-se para tanto do episódio de 27.05.2020 e da instrumentalização do filho do casal -, a qual é suscetível de influenciar cada um dos pontos impugnados. Para demonstrar a falta de credibilidade da Assistente, o Recorrente indica, em primeiro lugar, a prova documental apresentada na contestação, nomeadamente as publicações no facebook que apontam, tal como a generalidade das testemunhas, para uma família harmoniosa até ao primeiro semestre de 2020, mas que: “Não obstante, a sentença desconsidera e desvaloriza tudo: «Das publicações efectuadas pela assistente no Facebook não se extrai qualquer conflitualidade ou incompatibilidade daqueles com a narrativa da assistente» (pág. 17, 4º parágrafo). Revelador da falta de fundamento do texto acabado de reproduzir é o facto de a sentença só ter isto – duas linhas – para dizer tença acerca destas publicações da Assistente no Facebook.» Em primeiro, cabe notar que o trecho da sentença citado pelo Recorrente está incompleto, sendo o seu teor o seguinte: «Das publicações efetuadas pela assistente no Facebook não se extrai qualquer conflitualidade ou incompatibilidade daquelas com a narrativa da assistente e ofendido.» Falta-lhe o final do parágrafo: « … e ofendido.». Depois, a afirmação de que a sentença gastou apenas duas linhas para desvalorizar o que estava no facebook não corresponde minimamente à verdade. Com efeito, nos parágrafos seguintes explica-se, de forma lógica e conforme com o normal suceder das coisas da vida no campo da violência doméstica e que os inúmeros estudos sobre o fenómeno sustentam, por que razão não há tal incompatibilidade (transcrição): «Para tanto basta compreender que a violência doméstica, enquanto fenómeno sociológico complexo, nada mais sendo do que a violência em espaços de intimidade relacional, no seio de relações existencialmente muito próximas, tem associados padrões de comportamento muito próprios e variáveis, nos quais se insere a desculpabilização do agressor a par e passo com a internalização da culpa pela vítima. Especialmente em situações como a dos autos, de escalonamento de violência, em que a violência manifestada é, sobretudo, psíquica, é típico que a vítima não se consciencialize até muito tarde da gravidade do comportamento do outro, e tenda a concentrar os seus esforços e energias a tentar fazer parar a violência ou a mudar o agressor. O que, aliás, resulta cristalino das declarações prestadas pela assistente em declarações para memória futura: o ciclo de violência psíquica, a incompreensão do comportamento do arguido e a intervenção desesperada para o alterar.» A descontextualização de um trecho dum texto não passa de uma forma simplista, errada, irrazoável e enganadora de ler um texto, o qual vale sempre pelo seu todo e não por um período, parágrafo ou pequena parte isolada do seu todo. Além do mais, no resto da motivação explicam-se quais as razões por que se deram credibilidade e valor às declarações da Assistente e também do Ofendido, suportando-as com prova testemunhal e documental, como, por exemplo, nos seguintes trechos da motivação: « Não se vislumbra que razões teria a assistente para efabular toda a sua narrativa, hipótese aliás que se arredou não só por ser manifesto o seu sofrimento emocional e estado de revolta, evidenciado no discurso por si empregue e na linguagem corporal, não só enquanto foi inquirida, como enquanto permaneceu na assistência, mas também pelo elevado grau de circunstanciação dos episódios relatados, circunstanciação essa que não se afigurou mecânica/ensaiada, mas antes fluía naturalmente e se densificava através dos pedidos de esclarecimento que lhe foram sendo dirigidos.» (…) «Por outro lado, também na prova produzida não se encontram indícios de que o ofendido, filho do arguido e assistente, tenha sido instrumentalizado por esta para o mesmo efeito. O seu relato igualmente bastante circunstanciado, com normais e compreensíveis falhas mnésicas, e espontâneo, não sendo revelador de indicadores de interferência externa, nem de exacerbada necessidade de favorecer uma ideia da mãe em detrimento do conceito do pai, do que é exemplo ter referido espontaneamente que o casal se insultava mutuamente. Acresce que no momento em que fora ouvido para declarações para memória futura tratava-se já de um adolescente de 16 anos, isto é, alguém já dotado de uma estrutura psíquica que o permite autonomizar e desenvolver o seu pensamento e analisar criticamente situações da vida, mesmo quando essas situações envolvam da forma que se descreve supra pessoas da sua mais alta referência afetiva. Ambos os relatos (assistente e ofendido) encontraram amplo suporte nos depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH, II, JJ, RR, e SS.» (…) «O relato da assistente encontra, ainda, suporte nos registos fonográficos por si juntos, nos quais é audível a voz do arguido a apelidá-la de «puta», dizendo para ela se preparar, «vais ter que abrir a cona para ele», «metes-me nojo», «tu vais ter o troco, tu vais pagar» «tás fodida, BB», «dar o pito a ele que a mim tu não mo dás», enquanto a assistente muito percetivelmente emite barulhos condizentes com o choro.» Diz o Recorrente que o episódio de 27.05.2020 foi aproveitado pela vítima como catapulta de uma estratégia da sua vitimização e constrangimento do arguido, pois que a participação criminal não foi um ato imediatamente subsequente ao referido episódio e não foi apresentada ao balcão de uma entidade policial, sendo que existe uma assinalável dilação entre o episódio e a data de constituição de mandatário e a data em que deu a entrada a participação criminal. Ora, o facto de a Assistente não se ter dirigido logo a um posto policial para apresentar queixa dos factos, tendo consultado um advogado que constituiu seu mandatário cerca de um mês e dez dias após os factos, o qual apresentou a participação criminal menos de dois meses após os factos (cfr. participação – ref. 25100580), não constitui qualquer anormalidade do suceder das coisas da vida que possa indiciar a existência de um estratagema ou de uma premeditação estratégica. Trata-se apenas de um modo normal de atuação, com consulta e acesso a um advogado e apresentação de participação por este ao Tribunal. Diz também o Recorrente que o filho do casal, o ofendido CC foi instrumentalizado pois que as suas declarações apontam para um cenário incompatível com aquilo que a Assistente publicou no facebook. Quanto a este aspeto voltamos ao que atrás dissemos da inexistência de incompatibilidade entre uma coisa e outra, bem como o que atrás transcrevemos da motivação da sentença quanto à idade do ofendido que quando foi ouvido para declarações para memória futura já tinha 16 anos e dotado de uma estrutura psíquica que o permite autonomizar e desenvolver o seu pensamento e analisar criticamente situações da vida. Continuando, vem o Recorrente dizer que o que levou a Assistente a apresentar participação por violência doméstica contra o arguido foi o facto de ter sido confrontada com a suspeita que teria um relacionamento extraconjugal com um funcionário do ginásio, suspeita aliás essa bem fundada. Quanto à motivação da Assistente para apresentar a participação por violência doméstica ser a de ter sido confrontada com suspeitas de um relacionamento extraconjugal e pretender por isso ‘desfocar’ a atenção de tal relacionamento, parece-nos fugir decididamente do normal suceder das coisas da vida. Mesmo que existisse tal relacionamento, não percebemos que papel poderia ter a participação criminal por violência doméstica para desviar as atenções de tal relacionamento extraconjugal. Como na motivação da sentença recorrida se referiu, a tese de que a Assistente teria efabulado todo o narrado na acusação com o propósito de dissimular uma eventual relação extraconjugal não é razoável face às regras da experiência comum. Face à conclusão a que chegámos da irrazoabilidade da tese da ‘participação- nevoeiro para relacionamento extraconjugal’, não tem sentido ou proveito para a decisão do recurso averiguar se existia tal relação ou se a suspeita era ou não bem fundada. Não obstante sempre se dirá que dos depoimentos indicados e nas partes indicadas pelo Recorrente, bem como das filmagens vídeo e fotos (juntos com requerimento de 14.07.2024), não resulta que a Assistente tivesse uma relação extraconjugal com a testemunha HH. Com efeito, em nenhum dos depoimentos transcritos pelo Recorrente a esse respeito e na parte indicada - os depoimentos das testemunhas HH, OO e QQ – se afirma que havia uma relação extraconjugal entre a Assistente e a testemunha HH. Acresce que da visualização do vídeo e das fotos não se pode retirar concludentemente a existência de tal relação. Também não conseguimos perceber qual o interesse para a avaliação da credibilidade da Assistente o facto de esta após a separação ter começado a namorar com a testemunha SS em 28.08.2020, como este referiu na parte indicada do depoimento. Quanto à questão de haver incongruência com o facto não provado « a) O arguido sempre se mostrou muito ciumento e possessivo, mas tal atitude agravou-se aquando de uma ida do casal a Itália, em 2015. » e a motivação da sentença, não cremos que a mesma se verifique pois que nela não se refere que o arguido sempre se mostrou muito possessivo e ciumento e que tal situação se agravou aquando da ida do casal a Itália em 2015. Quanto ao teor das gravações indicadas na contestação (transcritas a fls. 734-744) e ao comportamento da Assistente em audiência, na qual em seis sessões foi advertida cinco vezes e expulsa da sala de audiências 3 vezes, importa saber o que daí se pode retirar. Em termos de matéria de facto temos logo o que o tribunal retirou sem valoração das gravações que foi não ter resultado provado que «g) BB é uma pessoa bem formada, bem-educada, respeitadora das regras sociais e legais, incutindo os mesmos valores aos seus filhos menores, mormente ao CC.» Agora, pretender retirar do facto de a Assistente, nas circunstâncias em que se verificaram as gravações, ter apelidado o hoje Arguido de «cobarde, ladrão, palhaço, porco, bandido e filho da puta» - em comportamentos suscetíveis de preencher um ou mais ilícitos penais – e de ter sido advertida por cinco vezes e expulsa por três vezes da sala de audiências, que aquela não merece credibilidade nos seus relatos é que não se mostra correto. O facto de uma pessoa ser mal-educada, não se saber controlar de forma a se comportar adequadamente numa sala de audiências e apelidar o seu marido ou ex-marido por mais do que uma vez com expressões injuriosas, preenchendo ilícitos penais, não implica que perca a credibilidade como testemunha ou declarante. Tudo considerado, não vemos, face à motivação do Tribunal recorrido, que haja motivos para retirar credibilidade à Assistente, tendo sido explicada a conjugação das provas, a importância das declarações para memória futura dos ofendidos, o modo como foram apreciadas as declarações do arguido, bem como se considerou desarrazoada à luz das mais elementares regras da experiência comum a tese de que a assistente teria efabulado todo o narrado na acusação com o propósito de dissimular uma eventual relação extraconjugal e de que não se encontraram indícios de o filho do arguido tenha sido instrumentalizado por esta. Assim, avançando agora diretamente para os pontos impugnados, vejamos se a prova indicada dos segmentos apontados no recurso e da mais prova, designadamente dos documentos indicados, impunha que o resultado probatório fosse outro. Quanto ao ponto nº 4 dos factos provados – cabe dizer que o documento relativo a emails trocados com um hotel em Itália (documento 24 da contestação) que refere não terem ocorrido danos no quarto ou na estrutura do edifício durante as passadas estadias do arguido, não é suficiente para abalar o que resultou provado (crise de ciúmes, acusando a ofendida de se estar a insinuar um indivíduo e tendo partido vários objetos dentro do quarto), dada a credibilidade conferida à Assistente e o facto de como se refere na sentença não ter sido possível identificar o hotel onde tal episódio ocorreu, sendo que tal documento mesmo em abstrato não é sequer incompatível com a crise de ciúmes e as acusações feitas pelo arguido à Assistente. Assim, a prova apresentada não impõe solução diversa. Quanto aos pontos nºs 5 e 6 dos factos provados – não vemos que as declarações da assistente sejam contrariadas pelas publicações no facebook, remetendo para o que acima escrevemos e transcrevemos a tal propósito, pelo que a decisão recorrida é de manter. Quanto aos pontos nºs 7 e 8 dos factos provados – vem o Recorrente dizer que as declarações da Assistente e do ofendido CC são totalmente carecidas de verosimilhança, mostrando-se contrariadas pelas publicações de facebook já referidas. Mais uma vez põe em causa a credibilidade da Assistente e do Ofendido, argumentando novamente com o facebook. Ora, o Tribunal recorrido deu credibilidade a ambos e explicou porquê, a prova apontada – facebook – como já referimos não impõe que se decida de outro modo, pelo que o decidido é de manter. Quanto aos pontos nºs 9, 10, 11 e 12 dos factos provados – entende o Recorrente que o único suporte é a «narrativa» da Assistente, só que tendo o Tribunal concedido credibilidade a esta, tendo explicado porquê, acrescendo a corroboração da testemunha a quem a Assistente contou, não se vê que se imponha decisão diversa. Quanto aos pontos nºs 13 e 14 dos factos provados dos factos provados – vem de novo o Recorrente com a questão de haver apenas um único meio de prova – a Assistente – a referi-lo, sendo que esta em sede de declarações para memória disse que tinha em seu poder o cartão de memória da câmara de filmar, mas que nunca o entregou no tribunal, vindo a dizer em fase de julgamento que tinha desaparecido. A Assistente referiu a matéria referente às filmagens e câmaras de filmar nas suas declarações para memória futura, quer nos trechos citados pelo Recorrente, a instâncias do Mandatário (páginas 47-48 da transcrição) quer a páginas 17 e seguintes a instâncias do Sr. Juiz. Continua a tratar-se de uma questão de credibilidade, não se vendo por que a decisão recorrida tenha errado ao conferir a credibilidade à Assistente. Quanto aos pontos nºs 15, 16 e 17 dos factos provados – referentes à situação de 27.05.2020, vem o Recorrente dizer que deu as explicações que se impunham, admitindo ter atingido a Assistente na face com a mochila, ainda que involuntariamente e que daí resultou uma pequena lesão no lábio inferior – fotografia de fls. 90. Na decisão recorrida explica-se de forma racional por que se deu credibilidade à versão apresentada pela arguida em detrimento da apresentada pelo Arguido, pelo que a decisão é de se manter. Quanto aos pontos nºs 18, 19, 20, 21, 22 e 23 dos factos provados – entende o Recorrente que se mostra prejudicada face aos factos anteriores que na sua visão não estão provados. Não sendo de alterar tais factos anteriores, também não haverá razão para alterar estes, que se deverão manter. Quanto aos pontos nºs 24, 25 e 26 dos factos provados – passa-se o mesmo que relativamente aos anteriores, pelo que não são de alterar. Quanto aos pontos nºs 27 e 28 dos factos provados – invoca o Recorrente que a fundamentação desta matéria radica nas declarações da Assistente (e do Ofendido que na sua visão não são credíveis), havendo a contrariá-las as publicações no facebook e avança ainda com o depoimento das testemunhas FF (mãe da Assistente) e GG (pai da Assistente) que no seu entendimento é patente que aludiram a este episódio para tentarem cumprir uma narrativa inculcada pela filha. Sendo que como falavam de algo que não aconteceu não se entenderam sequer quanto ao local onde teria ocorrido. Indica extratos dos depoimentos destas testemunhas e respetivos os minutos. É certo que as duas testemunhas situam o local da ocorrência de modo diverso, uma em sua casa, e o outro na casa da filha, mas a verdade é que lendo a motivação vemos que os depoimentos destas duas testemunhas foram conjugados com os da testemunha TT e do Ofendido que relatou o sucedido. E com efeito, tendo em conta a depoimento da Testemunha JJ (cerca dos 9m da gravação) e do Ofendido (cfr. p. 101 e 103 da transcrição da memória futura), compreende-se que ocorreu em casa dos pais da Assistente e não na casa da Assistente e do Arguido. A memória da testemunha FF tê-la-á traído quanto ao local da ocorrência, tendo em conta o tempo desde então decorrido. Assim, não vemos que a prova indicada imponha decisão diversa. Concluindo, percorrida a matéria de facto impugnada, o Tribunal de primeira instância, na fundamentação da matéria de facto explicou, de modo racional e suficiente, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria, a qual corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que não se violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código Penal, sendo a decisão sobre a matéria de facto, por isso, inatacável. Também em relação aos princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo cabe dizer que não se verificou violação destas regras, uma vez que o Tribunal, tal como resulta da decisão recorrida, não ficou na dúvida, nem se vislumbra que devesse ter ficado quanto à ocorrência dos factos que resultaram provados ou que tivesse de decidir de outro modo quanto aos factos não provados. Posto isto, resta ainda assinalar, que lida a sentença, bem como as atas da audiência, ouvidas as provas nos excertos indicados e naqueles que se entenderam também necessário ouvir, quer das testemunhas indicadas no recurso quer da testemunha TT, quer dos momentos referentes às advertências e expulsões da sala de audiências da Assistente, o que concluímos é pela racionalidade e normalidade da motivação e exposição das matérias na sentença e, também, pela condução normal e natural de uma audiência de julgamento em que terá ocorrido a tensão habitual em muitos dos casos desta natureza, mas longe de se notar nos trechos indicados e nos ouvidos qualquer animosidade do Tribunal para com o Recorrente ou o Defensor como aventado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, sendo antes de notar a forma calma, cordial, mas firme como nos momentos mais agitados e tensos, nomeadamente nas advertências e expulsões, como a audiência foi conduzida. Temos muita dificuldade em compreender a razão para as referências que o Recorrente faz repetidamente no seu recurso a respeito da pessoa da Sra. Juiz do processo, apontando-lhe o preconceito, a ingenuidade e a falta de experiência (de vida e de judicatura) como fatores que condicionaram o resultado do processo em primeira instância. Por doze vezes o Recorrente apontou esses três defeitos (págs. 2, 15, 19, 20, 34, 36, 39, 43, 45, 56, 59 e 65 do recurso), como se de um mantra se tratasse. Com o recurso juntou aos autos dois documentos, um com a classificação da Sra. Juiz no Centro de Estudos Judiciários e outro com a sua nomeação pelo Conselho de Superior de Magistratura como Juiz de Direito. Com efeito e resumindo, lendo a sentença e as atas e ouvindo os vários trechos indicados, concluímos pela racionalidade e normalidade da motivação e exposição das matérias na sentença e pela condução natural de uma audiência de julgamento com alguns momentos de tensão, sendo de notar a forma calma, cordial, mas firme como nos momentos mais tensos, nomeadamente nas advertências e expulsões, a audiência foi conduzida. Afinal de contas, a insistência no mantra do preconceito, ingenuidade e falta de experiência da Sra. Juiz mais não é do que a utilização da argumentação ad hominem falaciosa, mas como é por todos sabido não é a repetição insistente e no mínimo deselegante ou grosseira duma afirmação falaciosa, disparatada ou errada que a torna lógica, razoável ou certa. Mantendo-se assente a matéria de facto tal como foi fixada na primeira instância, avencemos para o direito. 2.3.4- Preenchimento do tipo de ilícito e pretensão de absolvição. Considerando a matéria de facto assente na primeira instância, desde já se dirá que a pretensão de absolvição do arguido é improcedente. Senão vejamos. Sob a epígrafe ‘Violência doméstica’, dispõe o artigo 152º, n.º 1 do Código Penal o seguinte: «1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» É este o tipo incriminador da violência doméstica e dele, como de todos os tipos incriminadores, deve ser possível extrair «quem pode ser autor do respetivo tipo de crime; qual a conduta em que este se consubstancia; e, na medida do possível, dar indicação, explícita ou implícita, mas sempre clara, do(s) bem(ns) jurídico(s) tutelado(s)[18]» O bem jurídico no seu núcleo essencial constitui a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso[19]. Lendo o artigo 152º, n.º 1 do Código Penal, com a sua referência a maus tratos físicos ou psíquicos, temos um conceito indeterminado que pode incluir uma multiplicidade de comportamentos agressivos, pois que, para além das óbvias ofensas à integridade física, à honra ou as ameaças, há uma quase infinidade de formas de tratar mal o outro física ou psicologicamente. Por isso, o legislador, depois daquela primeira referência a maus tratos físicos ou psíquicos, vai precisando e estendendo o conceito, indicando de modo exemplificativo com «incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns». O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é plural e complexo, abrangendo a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, a honra, a privacidade, a paz e o sossego, o direito à palavra e à imagem, o acesso ou fruição do património próprio ou comum, em contexto de relação de proximidade existencial presente ou pretérita, ou seja, em contexto de coabitação conjugal ou análoga, ou de namoro e mesmo após cessar aquela coabitação, ou então no caso de pessoa particularmente indefesa que coabite com o agente. O que dá cor ao bem jurídico plural e complexo protegido pela incriminação do artigo 152º, n.º 1 do Código Penal é a relação de proximidade existencial entre o agressor e a vítima. É que constituindo a relação de proximidade existencial sadia o meio ideal para o livre desenvolvimento, proteção e realização digna da pessoa, existe um interesse individual e da comunidade na sua manutenção, sendo juridicamente reconhecida como valiosa e protegida[20]. Em resumo, com a incriminação da violência doméstica protege-se um bem jurídico plural e complexo - saúde e integridade pessoal em relação de proximidade existencial. Assim, as condutas previstas e punidas pelo artigo 152º do Código Penal podem ser de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psicológicos, isto é, humilhações, privações da liberdade, ameaças, insultos, microviolência[21] física ou psíquica como empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços, insultos, críticas e comentários destrutivos ou vexatórios, sujeição a situações de humilhação, ameaças, privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, privações da liberdade, perseguições, esperas inopinadas e não consentidas, telefonemas a desoras, etc. Certo é que sempre que nessas condições de proximidade existencial se mostre preenchido um tipo incriminador do Código Penal relacionado com a saúde e integridade pessoal, nomeadamente as ofensas à integridade física, injúrias, sequestro ou ameaças, forçosamente preenchido estará também o tipo de ilícito da violência doméstica[22]. Não se exige a verificação de uma especial intensidade dos maus tratos, a repetição dos mesmos, a verificação de uma situação de domínio do agressor sobre a vítima ou a ausência de reciprocidade de tratamento maltratante. Com efeito, constituindo sempre os comportamentos integradores desses tipos incriminadores formas de maus tratos físicos ou psicológicos, não vemos onde na letra da lei se encontrem restrições à sua integração no tipo da violência doméstica, desde que verificada a relação de proximidade existencial exigida pelo artigo 152º do Código Penal. Aliás, na letra da lei até se reforça tal ideia quando logo no início da norma se afastam quaisquer dúvidas quanto à não exigência de reiteração do comportamento para o preenchimento do tipo, como também até explica, para que não se coloque a finalidade da norma em causa com reduções injustificadas que nesses maus tratos se incluem privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns. Se atentarmos na história legislativa do tipo incriminador vemos que desde 1982 até agora todas as alterações foram no sentido de autonomização, expansão e reforço da proteção do bem jurídico em causa. Com efeito, desde a versão inicial de 1982 até hoje o campo de aplicação da incriminação foi-se ampliando, passando da família formal reduzida (filhos menores à guarda e cônjuge) para a relação de proximidade existencial de hoje (cônjuge ou ex-cônjuge; progenitor de descendente comum em 1.º grau; relação de namoro ou análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; pessoa particularmente indefesa que coabite com o agente; e na ultima alteração[23], de menor que seja descendente do agente ou de uma das pessoas incluídas na relação de proximidade existencial), ganhando nomen iuris próprio (violência doméstica), afastando os elementos especiais do tipo subjetivo, passando a crime de natureza pública e, finalmente, agravando as molduras penais. E é também de notar que o legislador foi reagindo às correntes interpretativas e de aplicação do tipo incriminador que se foram formando, designadamente quanto à que se formou relativamente à exigência de reiteração para preenchimento do tipo, a qual afastou decididamente, como vimos. A razão para que não seja exigida pela norma a verificação de uma especial intensidade dos maus tratos, a repetição dos mesmos, a verificação de uma situação de domínio do agressor ou a ausência de reciprocidade de tratamento é simples de compreender, bastando para tanto estar atento à realidade social e nesta à enorme dimensão do fenómeno da violência doméstica na nossa sociedade, ao seu potencial destruidor da vítima, à forma muitas vezes subtil e oculta com que se inicia e perdura, à sua frequente progressividade silenciosa desde a microviolência até aos danos psicológicos, privações de liberdade, ofensas graves ou mesmo até ao homicídio. Aliás, não obstante o reforço que o legislador tem vindo a fazer da proteção penal nesta matéria, a verdade é que a gravidade e extensão do fenómeno da violência doméstica se mantêm muito elevadas. Para chegar a tal conclusão basta atentar nos homicídios ocorridos em contexto de violência doméstica no último sexénio, reveladores da gravidade do fenómeno[24]: 2019 – 35 homicídios (26 mulheres, 1 criança, 8 homens); 2020 – 32 homicídios (27 mulheres, 2 crianças, 3 homens); 2021 – 23 homicídios (16, mulheres, 2 crianças, 5 homens); 2022 – 26 homicídios (24, mulheres, 2 crianças, 0 homens); 2023 – 22 homicídios (17, mulheres, 2 crianças, 3 homens); 2024 – 22 homicídios (19, mulheres, 0 crianças, 3 homens). Como elemento subjetivo exige-se o dolo genérico, sob qualquer das formas previstas no artigo 14º do Código Penal. Não são exigíveis quaisquer elementos adicionais[25], nomeadamente o objetivo ou intenção de exercer domínio sobre a vítima, ou de achincalhar, ou de degradar a pessoa ou a sua dignidade, esses sucedâneos disfarçados da antiga malvadez ou egoísmo consagrados no tipo incriminador do artigo 153º do Código Penal de 1982[26], abandonados pelo legislador em 1995 por força de uma nova tomada de consciência da gravidade e extensão do fenómeno da violência doméstica e da necessidade de reforço efetivo da sua prevenção. Uma vez que à data dos factos cometidos sobre o Ofendido não estava em vigor a alínea e) do artigo 152º, n.º 1 (e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;), importa saber, face ao disposto nos artigos 1º e 2 do Código Penal, se o ofendido à data dos últimos factos, ocorridos em abril e 2020, preenchia o conceito de pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite da alínea d) do citado preceito. Ora, à data dos últimos factos cometidos factos o Ofendido, nascido em ../../2005, tinha 14 anos de idade, era filho do arguido, tinha falta de maturidade pois chorava por não querer tomar uma injeção, acrescendo o normal respeito e temor reverencial pelos progenitores, a que se soma nas circunstâncias a irritação do pai, pelo que se tratava naquela situação de pessoa particularmente indefesa, assim preenchendo o conceito da alínea d) do artigo. Assim, preenche por duas vezes os elementos objetivo e subjetivo do tipo de ilícito de violência doméstica quem, como o arguido, sendo casado com a ofendida e pai do ofendido - agindo sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as condutas por si adotadas eram proibidas e criminalmente punidas -, quase diariamente vasculha o telemóvel da ofendida e controla-lhe os contactos e as rotinas diárias, a acordava a meio da noite para lhe exigir explicações sobre as pessoas com quem falou; a apelidou de «puta», «vadia», dizendo-lhe que ela não valia nada, acrescentando que qualquer homem só a podia querer com uma intenção; colocou no quarto que partilhava com a ofendida uma câmara para a filmar; na sequência de uma discussão atirou à ofendida a mala onde estava o seu computador portátil, atingindo-a na face, com tal violência que a ofendida caiu ao chão, tendo-lhe desferido número não apurado de pontapés nas pernas e braços, sofrendo a ofendida escoriação do lábio superior e dores nas áreas atingidas. E que em data não concretamente apurada, mas no natal ocorrido entre os anos 2012 e 2013, na casa dos pais da assistente, desferiu um número não concretamente apurado de bofetadas no rosto do filho, provocando-lhe hemorragia nasal e dores, sendo o pânico do menor ofendido tal que se urinou enquanto o pai lhe batia; e que em abril de 2020, no interior da residência do casal, irritou-se por aquele seu filho não querer tomar a injeção que devia tomar regularmente e ter começado a chorar e, irado, desferiu várias bofetadas no rosto do menor, provocando-lhe hemorragia nasal e dores. Mostra-se também preenchida a qualificativa do n.º 2 do artigo 152º do CP, pois que parte dos factos foram praticados no domicílio das vítimas. Tudo visto, mostra-se improcedente a pretensão de absolvição do Recorrente quer em termos de responsabilidade criminal quer em termos de responsabilidade civil, pois que estão preenchidos também os pressupostos desta previstos no artigo 483º do Código Civil (a prática dum facto humano qualificado como ilícito; imputável a conduta censurável do agente –culpa-; o qual deu origem a um prejuízo ou dano; havendo entre aquele facto e este dano o correspondente nexo de causalidade), não se mostrando violado o disposto nos artigos 358º, 374º, nº 2, do CPP, no art. 152º, nº 1, als. a), c) e d), e nº 2, al. a) do CP, e nos arts. 70º, 483º e seguintes, e 562º do CC. * 3- DECISÃO.Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência: - Declarar lícitas as gravações indicadas na contestação e tendo-as valorado nos termos supra descritos. - No mais manter a decisão recorrida. Sem custas Notifique. * Porto, 19 de março de 2025William Themudo Gilman Maria dos Prazeres Silva José António Rodrigues da Cunha ________________ [1] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 93, 218-224; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 144-145. [2] Cfr. sobre o incidente de comunicação da alteração de factos, o Ac. TRP de 08-11-2023, Proc. n.º 2009/14.8JAPRT.P1 (William Themudo Gilman), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/a7da9143315fead080258a6e0050f127?OpenDocument . [3] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 93-94. [4] Cfr Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 145; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 94; [5] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 95. [6] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 26-27; Jorge de Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos do Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, 1991, p.34; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 72; para a justificação do princípio, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol I, 2017, p. 92. [7] Cfr. sobre esta adução de material de facto, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 196. [8] Cfr. para uma exposição desta matéria: o Ac. TRP de 08.05.2019, proc. 156/16.0JAAVR-B.P1 (William Themudo Gilman), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6f2c4b6a1d4fcab68025841c0036b0e6?OpenDocument; o Ac. TRP de 27.11.2024, proc. 62/17.1PEMTS.P1 (William Themudo Gilman), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/1f5e1d808780f7aa80258bf5005be33e?OpenDocument . [9] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ªed., 2023, p. 18-20. [10] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, O Novo Código de Processo Penal, acessível em Direito Processual Penal, Textos AAFDL, 1992, p. 113-114. [11] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 5ª ed., p. 167-168. [12] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ªed., 2023, p. 198-201. [13] Cfr., entre outros, os Acs: STJ de 28.09.2011 (Santos Cabral), TRP de 27.01.2016 (Maria dos Prazeres Silva), TRP de 06.11.2019 (Horácio Correia Pinto), TRP de 24.09.2020 (Maria Ermelinda Carneiro), TRE de 29.03.2016 (António João Latas), TRE de 29.03.2016 (Carlos Berguete Coelho), todos in dgsi.pt. [14] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1991, p. 23; Helena Moniz, Privacidade e Comunicação Intrafamiliar de Informação Genética, RPCC 14, 2004, p. 225. [15] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, p. 792. [16] Cfr. Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª ed., AAVV, pág.648 e segs. (anotação do Exmo. Juiz Conselheiro Santos Cabral) [17] A expressão é de Manuel da Costa Andrade (Comentário Conimbricense do Código Penal, anotação ao artigo 199º). [18] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra 2007, p. 295. [19] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra 2007, p. 114 e 308. [20] Cfr. sobre o bem jurídico protegido e os elementos do tipo de ilícito da violência doméstica: Ac. TRP de 18-09-2024, proc. 819/22.1GAVCD.P1 (William Themudo Gilman), in, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b2906d8c6c66ae9d80258ba8004bb333?OpenDocument ; Ac. TRP de 11-12-2024, proc 435/21.5GBMTS.P1 (William Themudo Gilman), in, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2999935c676b5e1580258c0a003fd7c1?OpenDocument. [21] Sobre este tipo de comportamentos cfr. Nuno Brandão, A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica, in Julgar, n.º 12, 2010, p. 12-13, https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/009-024-Tutela-especial-VD.pdf . [22] Cfr. sobre esta matéria: Ac. TRP de 18-09-2024, proc. 819/22.1GAVCD.P1 (William Themudo Gilman), in, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b2906d8c6c66ae9d80258ba8004bb333?OpenDocument; Ac. TRP de 11-12-2024, proc 435/21.5GBMTS.P1 (William Themudo Gilman), in, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2999935c676b5e1580258c0a003fd7c1?OpenDocument; Ac. TRP de 19-02-2025, proc. 576/23.4GBPRD.P1 (Liliana de Páris Dias), in, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e35f213741cdd41c80258c45004f23b2?OpenDocument . [23] Acrescento na redação dada pela Lei n.º 44/2018, de 09 de Agosto. [24] https://www.cig.gov.pt/area-portal-da-violencia/portal-violencia-domestica/indicadores-estatisticos/#title9 [25] Cfr. Maria Elisabete Ferreira, Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica, Julgar online, maio de 2017, p. 13, in https://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/05/20170531-ARTIGO-JULGAR-Cr%C3%ADtica-ao-pressuposto-da-intensidade-no-tipo-legal-de-viol%C3%AAncia-dom%C3%A9stica-Maria-Elisabete-Ferreira.pdf ; bem como Alexandre Oliveira, Susana Figueiredo, in AAVV, Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, CEJ e-book p. p.128, https://www.fd.uc.pt/40anoscodigopenal/wp-content/uploads/2022/12/ebook_40anos.pdf . [26] ARTIGO 153.º (Maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges) 1 - O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias quando, devido a malvadez ou egoísmo: a) Lhe infligir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem; ou b) (…) 3 - Da mesma forma será ainda punido quem infligir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo. |