Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2009/14.8JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
PRODUÇÃO DE PROVA
INDEFERIMENTO
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
CONTRADITÓRIO
PROCESSO EQUITATIVO
Nº do Documento: RP202311082009/14.8JAPRT.P1
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERCALAR INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - No plano dos princípios constitucionais (das garantias de defesa, do acusatório e contraditório do artigo 32º, n.º 1 e 5 da CRP e do direito a um processo justo e equitativo como imposto pelos artigos 20º, n.º 4 da CRP e 6º, n.º 3 da CEDH) a solução da questão colocada pela alteração dos factos da acusação e a garantia do direito de defesa afigura-se de alguma simplicidade: para novos factos nova defesa.
II - O arguido encontra-se perante a comunicação dos novos factos em situação igual ou em tudo semelhante à que se encontra quando se depara com a comunicação da acusação ou pronúncia, pelo que o exercício do seu direito de defesa previsto no artigo 358º do CPP deve, por aplicação analógica nos termos do artigo 4º do CPP, permitida porque in bonam partem, ser regulado pelas disposições relativas à contestação, com a adaptação do «prazo estritamente necessário para preparação da defesa» e quanto ao objeto da defesa – os factos novos.
III - Concluindo, na sequência da comunicação do artigo 358º do CPP o arguido, tal como na contestação e nos limites desta, não tem o ónus de justificar qual a relevância para a decisão da causa da prova testemunhal que veio apresentar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n. 2009/14.8JAPRT.P1

Relator: William Themudo Gilman
1º Adjunto: Elsa Paixão
2º Adjunto: Liliana Páris Dias

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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

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1 - RELATÓRIO
1.1- No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 2009/14.8JAPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 14, o arguido AA foi submetido a julgamento, pronunciado com mais dois arguidos pela prática, na forma consumada, de 19 crimes de escravidão, ps. e ps. pelo art.º 159.º, al. a) do Código Penal (C.P.), em concurso aparente com 19 crimes de sequestro, ps. e ps. pelo art.º 158.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P., 19 crimes de coação, p. e p. pelo art.º 154.º, n.º 1, do C.P. e 19 crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, ps. e ps. pelo art.º 222.º, n.º 1, do C.P.
O Ministério Público requereu que fosse declarado perdido a favor do Estado o telemóvel que alegou estar apreendido à ordem dos presentes autos e que os arguidos fossem condenados a pagar ao Estado quantia não inferior a 368 915 EUR correspondente ao valor da vantagem por eles obtida com a prática dos factos ilícitos típicos nos termos do art.º 110.º, n.ºs 1, al. b), 4 e 6, do C.P., sem prejuízo dos direitos dos lesados.
Foi observado o contraditório nos termos do disposto no art.º 82.º-A, n.º 2, do C.P.P. ex vi art.º 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.
O arguido AA apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos, tendo arrolado testemunhas.
Procedeu-se à audiência de julgamento, no âmbito da qual foi comunicada uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no despacho de pronúncia, passando o arguido AA a incorrer na prática, em coautoria, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 14 crimes de tráfico de pessoas, ps. e ps. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., bem como uma alteração não substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia.
Na sequência da comunicação, o Defensor do arguido requereu prazo para a preparação da defesa, tendo sido proferido despacho pelo Juiz Presidente concedendo o prazo de 8 dias (cfr. art.º 358.º, n.º 1, e n.º 3, do C.P.).
Cumprindo o prazo fixado, o arguido veio por requerimento arrolar oito testemunhas.
1.2- Em 29.03.2023 foi proferido despacho pelo Juiz Presidente, em cumprimento do deliberado pelo tribunal coletivo, ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 1, e n.º 4, als. b) e d), do C.P.P., no qual foi indeferida quer a reinquirição de uma testemunha quer a inquirição das restantes testemunhas arroladas.
1.2.1- Não se conformando com esta decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«1. Perante uma alteração não substancial dos factos, o arguido não tem de justificar, antecipadamente, a prova que indicar para demonstrar a sua perspectiva sobre a mesma.
2. Efectivamente, estamos perante realidade factual nova relativamente à qual o arguido tem o direito de usar todas as garantias de defesa. É que,
3. Não há norma que imponha que a defesa tenha de justificar, antecipadamente, aprova que indica perante realidade factual nova.
4. A decisão recorrida violou, por isso, as normas em que diz sustentar-se.
5. Por mera cautela, vem arguir a inconstitucionalidade da norma extraida da conjugação dos artigos 358º nº 1 e 340º, nº 1 e 4º, alineas b) e d) do CPP, interpretada no sentido de que perante uma alteração não substancial dos factos o arguido tem de justificar, antecipadamente, a prova que indicou para sustentar a sua perspectiva perante a nova realidade, por violação do artigo 32º nº 1 da CRP.»

1.2.2- O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser julgado improcedente ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
1.2.3- Foi proferido despacho a admitir o recurso com subida nos próprios autos, conjuntamente com o recurso que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa e com efeito meramente devolutivo (cfr. arts. 399.º, 400.º, n.º 1, a contrário, 401.º, n.º 1, al. b), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 3, 408.º, a contrario, 411.º, 412.º e 414.º, n.º 1, do C.P.P.).
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1.3- Em 13.04.2023 foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
«ABSOLVE-SE AA de:
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., que teria vitimado BB (cfr. I., K.);
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., que teria vitimado CC (cfr. I., O.); cuja prática lhe havia sido imputada, como coautor, sob a forma consumada e em concurso efetivo.
CONDENA-SE AA, como coautor, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de:
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 29-08-2016, que vitimou DD (cfr. I., B.), na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 21-08-2016, que vitimou EE (cfr. I., C.), na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 29-08-2016, que vitimou FF (cfr. I., D.), na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 29-08-2016, que vitimou GG (cfr. I., E.), na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 11-10-2014, que vitimou HH (cfr. I., F.), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 18-10-2014, que vitimou II (cfr. I., G.), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 28-07-2015, que vitimou JJ (cfr. I., H.), na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 28-07-2015, que vitimou KK (cfr. I., I.), na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 21-08-2016, que vitimou LL (cfr. I., J.), na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 21-08-2016, que vitimou MM (cfr. I., L.), na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 21-08-2016, que vitimou NN (cfr. I., M.), na pena de 4 (quatro) anos de prisão; e
- 1 crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als., b) e d), do C.P., cujo último ato foi praticado em 29-08-2016, que vitimou OO (cfr. I., N.), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses; na pena única de 12 (DOZE) ANOS DE PRISÃO.
NÃO SE DECLARA perdido a favor do Estado qualquer telemóvel uma vez que nenhum foi apreendido.
CONDENA-SE ainda o arguido no pagamento das CUSTAS do processo, fixando em 5 UC o valor da taxa de justiça devida, e nos demais encargos a que a sua atividade deu causa, devendo ser dado pagamento dos mesmos (cfr. arts. 3.º, n.º 1, 8.º, n.º 9, 19.º, 20.º, n.º 2, 24.º do RCP e Tabela III do mesmo, 513.º, n.º 1 e n.º 2 e 514.º, n.º 1, do C.P.P.).
APÓS TRÂNSITO, REMETA boletim (cfr. art.º 6.º, al. a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio).
NÃO SE ARBITRA qualquer quantia a favor de BB (cfr. I., K.) e de CC (cfr. I., O.) a título de reparação dos prejuízos causados.
CONDENA-SE ainda AA a pagar solidariamente as seguintes quantias:
- 14.730,76 EUR (catorze mil, setecentos e trinta euros e setenta e seis cêntimos) a DD (cfr. I., B.);
- 7.224,68 EUR (sete mil, duzentos e vinte e quatro euros e sessenta e oito cêntimos) a EE (cfr. I., C.);
- 8.703,11 (oito mil, setecentos e três euros e onze cêntimos) a FF (cfr. I., D.);
- 10.027,48 EUR (dez mil e vinte e sete euros e quarenta e oito cêntimos) a GG (cfr. I., E.);
- 2.240,29 EUR (dois mil, duzentos e quarenta euros e vinte e nove cêntimos) a HH (cfr. I., F.);
- 2.791,19 EUR (dois mil, setecentos e noventa e um euro e dezanove cêntimos) a II (cfr. I., G.);
- 6.173,51 EUR (seis mil, cento e setenta e três euros e cinquenta e um cêntimo) a JJ (cfr. I., H.); e
- 5.306,07 EUR (cinco mil, trezentos e seis euros e sete cêntimos) a KK (cfr. I., I.);
- 22.520,04 EUR (vinte e dois mil, quinhentos e vinte euros e quatro cêntimos) a LL (cfr. I., J.);
- 5.675,33 EUR (cinco mil, seiscentos e setenta e cinco euros e trinta e três cêntimos) a MM (cfr. I., L.);
- 5.675,33 EUR (cinco mil, seiscentos e setenta e cinco euros e trinta e três cêntimos) a NN (cfr. I., M.); e
- 1.941,61 EUR (mil, novecentos e quarenta e um euros e sessenta e um cêntimo) a OO (cfr. I., N.); a título de reparação pelos prejuízos que lhes foram causados, sendo que cada uma delas será tida em conta em eventual ação que venha a conhecer de pedido de indemnização civil, nos termos do art.º 82.º-A do C.P.P. e 16.º, n.º 1, e n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.
Após trânsito em julgado do presente acórdão, DÊ CONHECIMENTO às referidas vítimas do arbitramento.
CONDENAM-SE AA a pagar solidariamente ao Estado, a título vantagem que obteve com a prática dos crimes por cuja prática foi condenado, o valor de 68.720 EUR (sessenta e oito mil, setecentos e vinte cêntimos).
A dita quantia deverá ser tida em conta na conta a elaborar (cfr. art.º 30.º, n.º 3, al. d), do Regulamento das Custas Processuais).
(…) »
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1.3.1- Não se conformando com o acórdão final, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«1. Estão erradamente julgados os factos em que aparecem como vitimas os cidadãos GG, JJ, NN e OO.
2. Para se concluir tal basta ouvir as gravações das declarações que prestaram em audiência de julgamento, que se dão como reproduzidas.
3. É nula a decisão recorrida por não ter ponderado especificadamente o declarado pelo recorrente em audiência de julgamento, como o tinha indicado na sua contestação.
4. E isto considerando o determinado nos artigos 368º nº 2, 374º nº 2 e 379º nº 1, todos do CPP.
5. Por mera cautela, face ao que viu, vem arguir a inconstitucionalidade da interpretação efectuada na decisão recorrida de tais normativos, interpetrados no sentido de que o tribunal não tem que ponderar, especificamente, as declarações do arguido em audiência, sempre e quando o mesmo ofereceu o merecimento das suas declarações em audiência na sua contestação.
6. O recorrente não tinha consciência da ilicitude das suas práticas, face à tradição familiar das mesmas e ao ter melhorado a vida daqueles a quem deu trabalho.
7. Tem, pois, que ser absolvido de qualquer prática criminosa.
Sem prescindir
8. Deve ser condenado pela prática de oito crimes da previsão do artigo 160º nº 1, alineas b) e d) do CP na pena parcelar de três por cada e na unitária de cinco anos, suspensa na sua execução com sujeição a regime de prova.
8. Por se verificarem os respectivos pressupostos (artigos 53º e 77º do CP)
9. Assim se fará JUSTIÇA!»

1.3.1.1-O recorrente declarou manter interesse no recurso retido.

1.3.1.2- O recorrente requereu se procedesse a audiência onde entende dever ser debatido:
«1. Se está ou não errado o julgamento da matéria de facto impugnada.
2. Se é ou não nula a decisão recorrida por não ter ponderado especificadamente a matéria de facto alegada pelo arguido.
3. Se o recorrente tinha ou não consciência da ilicitude dos factos dados como apurados.
4. Se são correctas as medidas das penas parcelares e unitárias.»

1.3.2- O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser julgado improcedente ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
1.3.3- Não se conformando com o acórdão final, o Ministério Público recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«1. Por douto acórdão proferido nestes autos, foi o arguido condenado, entre o mais, no pagamento ao Estado do valor de 68.720 EUR, corresponde à restante vantagem que obteve com a prática de 12 crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, als., b) e d), do Código Penal.
2. No cálculo de tal montante, o Tribunal subtraiu os valores que atribuiu a título de arbitramento oficioso às vítimas, no montante global de 65.559,40 EUR (valor resultante do somatório dos valores do acórdão, excluindo a compensação por danos não patrimoniais).
3. É desta decisão, violadora do preceituado no artigo 110.º do Código Penal, que discordamos e somos a interpor o presente recurso. Pretendemos, portanto, que se aprecie a questão da articulação prática entre o confisco das vantagens do crime e o regime oficioso de reparação da vítima (art. 82.º-A do Código de Processo Penal), que os lesados beneficiam.
4. Como é pacífico, a perda de vantagens visa repor a situação patrimonial do arguido anterior à data da prática do crime (associado à ideia de que o “crime não compensa”) e não apenas salvaguardar o direito da vítima em ser ressarcida, pois o crime nunca pode ser título legítimo de aquisição. O confisco faz parte do exercício do ius puniendi estadual, não havendo aqui nenhum poder de oportunidade (ou discricionariedade) na sua declaração.
5. Como articular o confisco e o ressarcimento ao lesado? O regime português optou pelo sistema misto em que a obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade de cada indivíduo, mas salvaguarda os seus direitos, conforme concluímos da leitura dos citados artigos 110.º e 130.º, n.º 2 do Código Penal.
6. Considerando o carácter imperativo do confisco, a sua finalidade preventiva e o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal.
7. Assim, nada obsta a que o Tribunal declare o confisco no seu valor global e declare também o ressarcimento dos lesados, sendo aquele direito exercido sem prejuízo deste, em respeito do disposto no art. 110.º do Código Penal.
8. É que, o lesado pode optar por não deduzir pedido de indemnização civil ou não instaurar execução, pode desistir da sua pretensão ou ocorrer alguma causa extintiva da obrigação. Então, ficará o confisco subordinado à opção do lesado / vítima? Parece-nos que não, sob pena de poder falhar a sua finalidade preventiva e o propósito de restauração da ordem patrimonial correspondente ao direito vigente.
9. Claro que o Estado deve dar primazia ao direito das vítimas, no entanto, a articulação entre as formas de reparação deve ser feita a posteriori. Na verdade, nada obsta a que existam dois títulos executivos, sendo claro que não se poderá executar duas vezes a mesma quantia. Todavia, esse controle terá de ser efectuado a posteriori e não pelo Tribunal de condenação.
10. Ao contrário do sentido interpretativo que o Tribunal deu ao artigo 110.º do Código Penal, é nosso entendimento de que a perda das vantagens deverá ser declarada no seu montante global apurado, sem se subtrair qualquer valor atribuído a título de indemnização ao lesado, sob pena de se estar a coartar o direito do confisco do Estado, no caso do lesado /vítima não exercer o seu direito.
11. Assim, merece censura a decisão do Tribunal, na parte em que decidiu deduzir ao valor da perda das vantagens a pagar ao Estado, o valor que atribuiu às vítimas através do regime oficioso de reparação previsto no art. 82.º-A do Código de Processo Penal, pois fez uma errada interpretação do art. 110.º do Código Penal.
12. À luz de todo o nosso raciocínio supra exposto, o Tribunal deveria ter condenado o arguido no pagamento solidário ao Estado da quantia de 68.720 EUR, acrescido dos valores das retribuições que deixou de pagar às vítimas (65.559,40 EUR), ou seja, o montante global de 134.279,40 EUR.
13. É que, não tendo o Estado título executivo válido para executar a vantagem global obtida, e havendo inércia das vítimas (como se prevê haja, atentas as suas particulares características já descritas no douto acórdão), o crime compensará para o arguido! O que não se aceita.
14. Pelo exposto, deverá o acórdão ora colocado em crise ser substituído por outro que condene o arguido AA, a pagar solidariamente ao Estado, a título vantagem que obteve com a prática dos crimes por cuja prática foi condenado, o valor de 134.279,40 EUR, sem prejuízo do exercício dos direitos dos ofendidos /vítimas.
15. Ao decidir como fez, o Tribunal violou o disposto no art. 110.º do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente RECURSO ser julgado PROCEDENTE e, em consequência, condenar-se o arguido AA, a pagar solidariamente ao Estado, a título vantagem que obteve com a prática dos crimes por cuja prática foi condenado, o valor de 134.279,40 EUR, sem prejuízo do exercício dos direitos dos ofendidos /vítimas; só assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!»
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1.4- Nesta instância, o Ministério Público, no seu parecer, pronunciou-se sobre os três recursos interpostos, concluindo:
- Pelo não provimento do recurso interposto pelo arguido do acórdão final.
- Pelo não provimento do recurso interlocutório interposto pelo arguido.
- Pelo provimento do recurso interposto pelo Ministério Público do acórdão final.
1.4.1- Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, veio o arguido recorrente dizer que não respondia ao parecer e requerendo o desentranhamento dos autos do parecer, invocando que uma vez que requereu a realização de audiência e nesse caso não há emissão de parecer (artigo 416º nº 2 do CPP). Foi proferido despacho, no qual se considerou que na parte relativa ao recurso do arguido sobre a decisão final se verificava uma irregularidade processual com a emissão do parecer, a qual ficaria sanada tendo-se por não escrita a parte do parecer nessa parte, já que quanto ao recurso intercalar interposto pelo arguido e ao recurso interposto pelo Ministério Público, nada obstava a que o Ministério Público apresentasse parecer, pois não só são recursos diferentes como nada têm que ver com as questões que o arguido pretende ver debatidas na audiência. Em consequência, decidiu-se ao abrigo do artigo 416º, n.º 2 do CPP que o parecer emitido pelo Ministério Público na parte em que se refere ao recurso interposto da decisão final pelo arguido fosse tido como não escrito.
1.4.2- Determinou-se que os autos fossem aos vistos e ao Juiz Desembargador Presidente da Secção para designar data para a audiência.
1.4.3- Entretanto, o Juiz relator, após preparação e estudo do processo quanto ao recurso intercalar interposto pelo arguido, o qual constitui logicamente uma «questão prévia» aos recursos da decisão final, entendeu que havia a possibilidade de decidir previamente em conferência o recurso intercalar e, dependendo do resultado da conferência, designar ou não data para a audiência, assim se evitando uma eventual prática de atos inúteis.
Em consequência, ainda antes de ter sido designada a audiência, deu-se sem efeito a remessa dos autos ao Juiz Desembargador Presidente da Secção para designar data para a audiência e remeteram-se de novo os autos aos vistos, nos termos do artigo 418º, n.º 1 do CPP, e inscreveu-se o processo em tabela para a conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 - QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada no recurso intercalar, a questão a apreciar e decidir é a de se saber se:
- A apresentação de prova testemunhal pelo arguido na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (artigo 358º, nº 1 do CPP) tem de ser acompanhada da respetiva justificação, para os efeitos do artigo 340 nº 1 e 4 do CP, sob pena de não ser admitida a produção daquele meio de prova.
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2.2 - A DECISÃO RECORRIDA E OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS RELEVANTES:
2.2.1- A decisão recorrida
A decisão recorrida é do seguinte teor (transcrição):
«O incidente previsto no art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P. apenas se refere à alteração verificada e comunicada (cfr. ref.ª 446498662 de 16-03-2023), pelo que o requerimento probatório que o arguido faça, na sequência da mesma, terá que cingir-se a esse limitado objeto.
O dito requerimento probatório terá que ser apreciado nos termos do art.º 340.º do C.P.P., pelo que, para que possa ser devidamente escrutinada a sua admissibilidade, tem de ser acompanhado da respetiva justificação, para os efeitos do art.º 340.º do C.P.P. De outro modo, o juiz ficaria impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade, à luz dos critérios de aferição fixados nos n.ºs 3 e 4 do citado art.º 340.º do C.P.P. (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Livraria Almedina, 2022, pág. 639).
Ora, no presente caso, o arguido limitou-se a arrolar 8 testemunhas (cfr. ref.ª 35182182 de 24-03-2023). Uma dessas testemunhas, precisamente PP, foi até já inquirida em audiência de julgamento (cfr. ref.ª 443291021 de 15-12-2022). Voltar a inquirir a mesma testemunha evidencia a irrelevância da repetição deste meio probatório, sendo certo que não é por este ser repetido que surge mais credibilizado. Acresce que nem o arguido nem qualquer uma das várias testemunhas inquiridas em audiência de julgamento se referiu a qualquer uma das restantes sete testemunhas agora arroladas. Em todo o caso, o arguido limitou-se a arrolar as 8 testemunhas sem apresentar qualquer justificação do seu relevo relativamente à restrita factualidade comunicada, pelo que não se mostra possível afirmar que os seus depoimentos se mostrem necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Acresce que não se impõe qualquer "convite ao aperfeiçoamento", dado que este se trata de “uma regra civilista, sem aplicação no processo penal” (cfr. Código de Processo Penal – Processo Legislativo, Vol. II, T. II, Assembleia da República, 1999, pág. 169).
Pelo exposto, em cumprimento do deliberado pelo tribunal coletivo, ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 1, e n.º 4, als. b) e d), do C.P.P., relativamente à factualidade comunicada (cfr. ref.ª 446498662 de 16-03-2023), indefere-se a reinquirição de PP e a inquirição das restantes testemunhas arroladas (cfr. ref.ª 351182182 de 24-03-2023).»

2.2.2 - OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS RELEVANTES
Como ocorrências processuais relevantes, importa considerar o despacho proferido pelo Tribunal recorrido em 4.07.2023 a comunicar a alteração não substancial dos factos e o requerimento do arguido em que arrola testemunhas, pois as restantes ocorrências relevantes, designadamente a concessão de prazo para a preparação da defesa já foram acima referidas no relatório.
2.2.2.1-O teor do despacho a comunicar a alteração é o seguinte:
«Em cumprimento do deliberado pelo tribunal coletivo:
I.
Comunica-se que, com base nos factos descritos no despacho de pronúncia, afigura-se ser outra a qualificação jurídica dos factos, passando o arguido AA a incorrer na prática, em coautoria, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 14 crimes de tráfico de pessoas, ps. e ps. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, e 160.º, n.º 1, als. b) e d), do C.P. (cfr. art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P.).
II.
Comunica-se também que serão tidos em conta em sede de acórdão, para aí serem dados como provados ou não provados, os seguintes factos, não descritos ou não concretizados no despacho de pronúncia e que consubstanciam uma alteração não substancial dos aí descritos (cfr. art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P.):
O segundo compartimento dos anexos da residência sita na Calle ..., ..., ..., Espanha, não tinha janelas e pelo respetivo teto, feito de cartão, passavam cabos de uma instalação elétrica precária, sem qualquer medida de segurança, apresentando grande risco de incêndio;
O tanque destinado à lavagem das roupas dos trabalhadores, existente no terceiro compartimento dos ditos anexos, não tinha torneira direta para a pia;
O quarto de banho aí existente estava equipado com lavatório, sanita e polibã e, em 29-08-2016, aí também se encontrava um frasco com um resto de gel;
O compartimento utilizado como cozinha naqueles anexos estava dotado de lareira;
O teto da garagem existente naqueles anexos era em chapa;
A dita garagem não tinha janelas;
As paredes da dita garagem apresentavam humidade e infiltrações;
Existiam nos ditos anexos poucos móveis auxiliares ou armários;
A despesa do consumido pelos trabalhadores no café, e suportada pelo arguido AA, era por ele contabilizada a fim de a mesma ser por ele oportunamente deduzida;
DD
No período referido no despacho de pronúncia (2011 a 30-08-2016), DD foi contratado pelo arguido AA para trabalhar em Espanha várias vezes, pelo menos três, tendo o arguido AA lhe referido, após a primeira, que posteriormente lhe entregaria a quantia em falta, no que aquele DD acreditou;
DD possui o 4.º ano de escolaridade;
EE
A primeira vez que o arguido contratou EE foi em data não concretamente apurada de setembro de 2012, mas anterior a 24-09-2012;
FF
FF possui o 4.º ano de escolaridade;
A primeira vez que o arguido contratou FF foi em data não concretamente apurada de setembro de 2013, mas anterior a 09-01-2013;
Após 21-04-2013 e antes de 23-08-2016, FF foi contratado pelo arguido AA para trabalhar em Espanha, pelo menos uma outra vez, tendo o arguido AA lhe referido que lhe entregaria a quantia em falta, no que aquele FF acreditou;
GG
GG vivia em ..., Guimarães, tendo sido aí que o arguido AA o contactou, sendo que daí que o transportou para Espanha;
Após o primeiro período de trabalho em Espanha, o arguido AA referiu a GG que lhe entregaria as quantias em falta, no que aquele GG acreditou;
Após o segundo período de trabalho em Espanha, o arguido AA apenas entregou a GG a quantia de 350 EUR;
HH
HH possui o 5.º ano de escolaridade;
Foi acordado entre o arguido AA e HH que o trabalho em Espanha seria por um mês;
II
II possui o 1.º ano de escolaridade e era toxicodependente;
Foi acordado entre o arguido AA e II que o trabalho em Espanha seria por um mês;
O arguido AA disse ainda a II “Vais trabalhar senão eu mato-te”.
O familiar com quem II falou ao telefone foi a sua irmã;
JJ
O acordo entre o arguido AA e JJ ocorreu em 09-05-2015;
Foi acordado entre o arguido AA e JJ que o trabalho em Espanha seria por três meses;
JJ possui o 3.º ano de escolaridade, era toxicodependente e estava desempregado;
O transporte de JJ para Espanha ocorreu em 10-05-2015;
O transporte de regresso a Portugal ocorreu em 28-07-2015;
KK
O acordo entre o arguido AA e KK ocorreu em 09-05-2015;
Foi acordado entre o arguido AA e KK que o trabalho em Espanha seria por três meses;
KK estava desempregada desde 2013;
O transporte de KK para Espanha ocorreu em 10-05-2015;
Em Espanha, KK trabalhou todos os dias;
Quando KK disse que queria regressar a Portugal, foi agarrada por um braço e foi-lhe dito que KK não ia embora;
Quando KK disse ao arguido AA que queria regressar a Portugal, este disse-lhe que não podia, que precisavam dela, que havia trabalho e bom tempo, protelando o regresso;
O transporte de regresso a Portugal ocorreu em 28-07-2015;
KK ficou receosa de ficar sem qualquer quantia;
LL
LL possui o 2.º ano de escolaridade;
MM
MM residia em ..., Penafiel;
Foi acordado entre o arguido AA e MM que o trabalho em Espanha seria por um mês;
MM possui o 4.º ano de escolaridade e vivia à custa da mãe;
O arguido AA disse a MM que lhe dava dois murros caso não fosse trabalhar;
NN
Foi acordado entre o arguido AA e NN que o trabalho em Espanha seria por um mês;
NN contactou a sua irmã telefonicamente e, nessa chamada, o arguido AA falou com aquela;
NN possui o 4.º ano de escolaridade; e
OO
Por diversas vezes OO solicitou ao arguido AA que acertassem as contas e, assim, o pagamento da retribuição devida pelo trabalho já prestado, mas este dizia que não tinha dinheiro e que só pagava depois de acabar a campanha.»

2.2.2.2 - O teor requerimento de prova do arguido é o seguinte:
«Ex.mo Sr. Dr. Juiz,
AA, supra identificado, vem ARROLAR as seguintes testemunhas:
1. QQ, residente na Rua ..., ..., ... ....
2. RR, residente na Rua ..., ..., ... ....
3. SS, residente na ..., ..., ....
4. PP, residente na Rua ..., ..., ....
5. TT, residente na ... ....
6. UU, residente na ... Estarreja.
7. VV, residente na Calle ..., ... ....
8. WW, residente na Rua ..., ..., ... ....»

2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1- Os termos da questão colocada.
Na decisão recorrida indeferiu-se o requerimento de prova (reinquirição de uma testemunha e inquirição de sete novas testemunhas) com fundamento no disposto no art.º 340.º, n.º 1, e n.º 4, als. b) e d), do CPP, argumentando-se que o requerimento probatório apresentado ao abrigo do artigo 358º do CPP terá que ser apreciado nos termos do art.º 340º do CPP, pelo que, para que possa ser devidamente escrutinada a sua admissibilidade, tem de ser acompanhado da respetiva justificação para os efeitos do art.º 340º do CPP. De outro modo, o juiz ficaria impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade à luz dos critérios de aferição fixados nos n.ºs 3 e 4 do citado art.º 340.º do CPP. Mais se argumentou que o arguido se limitou a apresentar oito testemunhas sem justificar do seu relevo relativamente à restrita factualidade comunicada, sendo que a reinquirição de uma testemunha evidencia a irrelevância da repetição deste meio probatório e que nem o arguido nem qualquer uma das várias testemunhas inquiridas em audiência de julgamento se referiu a qualquer uma das restantes testemunhas arroladas. Em todo o caso, o arguido limitou-se a arrolar as oito testemunhas sem apresentar qualquer justificação, pelo que não se mostra possível afirmar que os seus depoimentos se mostrem necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Entende o recorrente que perante uma alteração não substancial dos factos, o arguido não tem de justificar, antecipadamente, a prova que indicar para demonstrar a sua perspetiva sobre a mesma, tendo o despacho recorrido violado o disposto nos artigos invocados (358º e 340º do CPP) pois não há norma que imponha que a defesa tenha de justificar, antecipadamente, a prova que indica perante realidade factual nova e onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir. Mais argui, subsidiariamente, a inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação dos artigos 358º nº 1 e 340º, nº 1 e 4º, alíneas b) e d) do CPP, interpretada no sentido de que perante uma alteração não substancial dos factos o arguido tem de justificar, antecipadamente, a prova que indicou para sustentar a sua perspetiva perante a nova realidade, por violação do artigo 32º nº 1 da CRP.
Vejamos então se a apresentação de prova testemunhal pelo arguido na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (artigo 358º, nº 1 do CPP) tem de ser acompanhada da respetiva justificação para os efeitos do artigo 340º nº 1 e 4 do CP, sob pena de não ser admitida a produção daquele meio de prova.
2.3.2 - Os princípios. A estrutura acusatória do processo penal. Garantias de defesa. Vinculação temática do tribunal. Contraditório.
O nosso processo penal tem estrutura acusatória (artigo 32º, n.º 5 da CRP), sendo a entidade que investiga e acusa distinta da que julga, o que garante a objetividade e imparcialidade da decisão judicial. A tarefa de investigar e acusar cabe ao ministério público e ao juiz comete proceder ao julgamento.[1] E também por força do acusatório, a fase de instrução é presidida pelo juiz de instrução que fica impedido de intervir em julgamento caso tenha presidido ao debate instrutório.
Por outro lado, são asseguradas todas as garantias de defesa (artigo 32º, n.º 5 da CRP), nomeadamente o direito de audição e ao contraditório, bem como o direito a um processo justo e equitativo como imposto pelos artigos 20º, n.º 4 da CRP e 6º, n.º 3 da CEDH.
Da conjugação do princípio do acusatório e da tutela do direito de defesa do arguido decorre a vinculação temática do tribunal do julgamento à acusação ou ao despacho de pronúncia, que definem e fixam os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado[2].
A este efeito da vinculação temática do tribunal ligam-se o princípio da identidade (o objeto do processo deve manter-se o mesmo desde que é fixado até ao trânsito em julgado da decisão), o princípio da unidade (o objeto do processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade) e o princípio da consunção (mesmo quando não tenha sido conhecido e julgado na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido)[3].
A vinculação temática do tribunal constitui a pedra angular de um efetivo e consistente direito de defesa do arguido que assim fica protegido contra arbitrários alargamentos da atividade cognitiva e decisória do tribunal e dá-lhe a garantia de não ser surpreendido com novos factos na audiência de julgamento, podendo aí exercer o direito de contraditar os factos que lhe são imputados na acusação[4].
Ora, o princípio do contraditório, característico de todo o processo acusatório quando visto da parte do arguido, constitui uma das garantias de defesa que o processo criminal lhe deve assegurar e está constitucionalmente consagrado no artigo 32, n.º 5 da Constituição, parte final (... estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.)[5].
Chegados a este momento cabe realçar que não obstante a Constituição consagrar expressamente no artigo 32º, n.º 5 que o processo criminal tem estrutura acusatória, a verdade é que o nosso sistema processual penal não segue o modelo puro do sistema acusatório. Neste o processo não passa de um duelo entre partes (o acusador e o acusado) que apresentam os factos e as provas sem que o juiz possa ter qualquer interferência, limitando-se a dizer se os factos, face às provas apresentadas, estão ou não provados, de acordo com o princípio in dubio pro reo, e decidindo em conformidade, condenando ou absolvendo. O juiz não pode ter em conta outras provas ou factos ainda que relacionados diretamente com o objeto ou provas do processo, tal como estes foram delimitados pelas partes[6].
2.3.3-O princípio subsidiário de investigação e o objeto do processo.
Com efeito, no nosso sistema processual penal a estrutura acusatória do processo é integrada por um princípio subsidiário de investigação (ou da verdade material) a cargo do juiz, devendo, por força do carácter indisponível do processo, da intenção de prosseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, esclarecer e instruir autonomamente o facto sujeito a julgamento criando ele próprio as bases da decisão, limitado embora à validade processual da sua atuação e à garantia dos direitos das pessoas, mas respeitando sempre a proteção dos direitos dos sujeitos e intervenientes processuais[7].
O princípio tem consagração no 340º, n.º 1 do CPP quando permite que o tribunal ordene oficiosamente a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Acresce que n.º 4 artigo 339º do CPP, número esse acrescentado pela Lei n.º 59/98, de 25/08, veio reforçar a ideia de que a estrutura acusatória do nosso processo penal não segue o modelo teórico puro do acusatório, pois nele se refere que «Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º»
Assim, fazem parte do objeto do processo, tendo em vista a apreciação da culpa e a determinação da medida da pena (artigos 368º e 369º do CPP), mas sem prejuízo do regime de alteração dos factos (358º e 359º do CPP): a) os factos da acusação (pronúncia); b) os factos da defesa; c) os factos que resultarem da prova produzida em audiência; d) todas as soluções jurídicas pertinentes.
Embora o princípio da investigação não tenha expressa consagração na letra da CRP, a sua consagração é implícita no entender do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 137/2002, que a fundamenta nos artigos 1º, 2º, 18º, n.2, 25º, n.1, 27º, n.1 e 2, 32º, n.4 e 202º, n.º 1[8].
O princípio da investigação ou da verdade material constitui assim um princípio constitucional implícito[9].
2.3.4 - Alteração dos factos e garantia do direito de defesa.
Do princípio da investigação e da descoberta da verdade material resulta que o tribunal pode trazer à audiência provas não indicadas pela acusação e pela defesa, mas que se afigurem necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340º, n.º 1 do CPP), bem como, sob determinadas condições, factos novos que surgiram durante a discussão da causa e que alterem os anteriormente descritos na acusação (artigos 358º e 359º do CPP)[10].
Como se referiu no acórdão n.º 130/98 do Tribunal Constitucional[11]:
«O processo penal admite, porém, que, sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.»
Mas é preciso também não esquecer que como já em meados do século passado, mas sem perder atualidade, referia a doutrina processual penal «a mais pequena e aparentemente insignificante modificação dos termos da acusação pode, em certos casos, comprometer inteiramente o sistema de defesa. Especialmente porque um perfeito conhecimento de todos os aspectos que se possam ligar ao facto descrito e a preparação da respectiva defesa só poderia exigir-se de um culpado, o que não é de supor antes da decisão final.[12] »
Com efeito, logo relativamente à questão da culpabilidade (artigo 369º do CPP), basta pensar que uma ligeira mudança dos termos da acusação relativa ao tempo ou local dos factos, umas horas, um dia, duma rua para outra, pode destruir por completo um alibi apresentado pela defesa.
Também a questão da determinação da sanção (artigo 369º do CPP) pode ser afetada por uma ligeira alteração dos termos da acusação, reclamando uma escolha e/ou medida da pena mais dura. O acrescento ou alteração dum facto ou circunstância que agrave a ilicitude objetiva da forma de execução ou do resultado (p. ex: na ofensa à integridade física acrescentam-se várias ou mais intensas agressões em vez de apenas uma; num crime de sequestro pioram as condições do local do sequestro, não havendo luz ou ventilação ou sendo muito reduzido o espaço; a vítima sofria de alguma fragilidade – física, psíquica ou outra – não descrita na acusação; as lesões sofridas são mais extensas, os objetos subtraídos valiam substancialmente mais do que o constante na acusação, etc…) ou agrave o elemento subjetivo do tipo de ilícito, passando o dolo de eventual para necessário ou direto ou do necessário para direto (p. ex: resulta da audiência que o arguido, ao disparar uma arma de fogo sobre outrem, não considerou apenas que poderia causar a morte desta, conformando-se com esse resultado, mas antes disparou sobre a vítima querendo causar-lhe a morte, etc…) podem impor uma escolha de pena mais restritiva da liberdade ou uma medida mais elevada.
Acresce que se é certo que o juiz singular ou o tribunal coletivo sabem porque consideraram verificar-se uma alteração dos factos descritos na acusação ou pronúncia, o arguido não sabe ou pode não saber - e mesmo sabendo pode ter uma interpretação diversa da prova já produzida - por que razão o tribunal considera existir tal alteração.
Este poder-dever do tribunal imposto pelo princípio da investigação ou da verdade material, esta possibilidade de alargamento da atividade cognitiva do juiz para além da acusação ou pronúncia tem de estar fortemente condicionada pela prévia audição das ‘partes’, em especial pela garantia dos direitos de defesa[13], mantendo o arguido a plenitude dos seus constitucionalmente garantidos direitos de defesa e de como sujeito processual ter uma real possibilidade de influenciar a decisão final, de ter uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, de participar através da sua conceção própria tanto sobre a questão-de-facto como sobre as questões de direito que se discutem[14].
Não há verdade material sem que ao arguido, como sujeito processual que é dotado de um real e efetivo direito de defesa, seja dada a mais ampla e efetiva possibilidade de se defender, designadamente dos novos factos que constituam alteração relevante dos descritos na acusação ou pronúncia[15].
Por isso não pode o arguido ser condenado por factos não constantes da acusação ou pronúncia, por uma imputação de novos factos, sem que os mesmos lhe tenham sido comunicados, sem que se lhe tenha dado o tempo devido para contra eles organizar a sua defesa e, querendo, impugná-los através de novo ‘articulado’ e apresentando a sua prova, nomeadamente arrolando testemunhas.
Para novos factos nova defesa e na sua plenitude relativamente a esses factos, com uma nova contestação ou ‘contestação superveniente’[16] e um novo rol de testemunhas, assim garantindo ao arguido o exercício do seu direito como sujeito processual de ter uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto.
Esta obrigação do tribunal proceder à comunicação dos novos factos e conceder a possibilidade de o arguido exercer um real e efetivo direito de defesa é não só uma exigência constitucional resultante das garantias de defesa, do acusatório e contraditório consagrados no artigo 32º, n.º 1 e 5 da CRP (1.O processo criminal assegura todas as garantias de defesa…; 5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.) como também do direito a um processo justo e equitativo como imposto pelos artigos 20º, n.º 4 da CRP (Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.) e 6º, n.º 3 da CEDH (Sob a epígrafe Direito a um processo equitativo, 3- O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; c) (…); d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação; …).
2.3.5 - Regime jurídico do instituto da alteração dos factos estabelecido nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Vistos os princípios constitucionais, atentemos agora no concreto regime legal do instituto da alteração dos factos estabelecido nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, com incidência especial no regime da alteração não substancial dos factos por ser o que tem interesse mais direto para a solução da questão colocada nos autos.
2.3.5.1 - Noção de alteração não substancial dos factos - artigo 358º do CPP. Constitucionalidade do artigo 358º do CPP.
No nosso processo penal distinguem-se as alterações entre relevantes e irrelevantes para a decisão da causa. Só as primeiras estão sujeitas ao regime dos artigos 358º e 359º do CPP.
Sendo as alterações relevantes para a decisão causa, tanto podem ser substanciais como não substanciais.
Alteração substancial é, nos termos do n.º 1, al.- f) do CPP «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Alteração não substancial é, por contraposição à alteração substancial, aquela que não tiver por efeito a imputação ao arguido dum crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
O regime da alteração não substancial dos factos vem previsto no artigo 358º do CPP, que dispõe o seguinte:
«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.»

De acordo com este preceito, havendo uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia com relevo para a decisão da causa e que não seja derivada de factos alegados pela defesa, tal alteração tem de ser comunicada ao arguido pelo presidente do tribunal, que lhe concede o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, se tal lhe for requerido. A consequência do incumprimento destas condições é a nulidade da sentença (artigo 379º, nº 1-b do CPP)[17].
Quanto à constitucionalidade do artigo 358º do CPP, questão que já foi posta ao Tribunal Constitucional, é de dizer que a norma está conforme à Constituição, em primeiro lugar porque não viola o princípio da presunção de inocência, do artigo 32º, n.º 2 da CRP, princípio de acordo com o qual todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. O alcance da presunção de inocência tem como principal corolário o princípio in dubio pro reo, segundo o qual o tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido quando fica aquém da dúvida razoável, apesar de toda a prova produzida[18]. Mas, como refere o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 442/99, «já não tem o alcance de impedir que se considerem na decisão factos revelados em audiência que, não configurando uma alteração substancial dos descritos na acusação, sejam relevantes para a boa decisão da causa. A consideração de tais factos não só não viola o princípio da presunção da inocência como é, pelo contrário, exigida pelo princípio da verdade material.[19] »
Em segundo lugar, não é inconstitucional o regime do artigo 358º do CPP, porque, conforme se disse no já citado acórdão n.º 130/98 do Tribunal Constitucional, «é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados ex novo e, se se vierem a provar, integrá‑los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.[20] »
2.3.5.2 - Da ‘simplicidade’ dos princípios à insuficiência da letra da lei na regulação do incidente. O artigo 358º do CPP e a necessidade de interpretação ou integração. Dificuldades na interpretação do 340º do CPP.
Como acima já deixámos antever, no plano dos princípios constitucionais a solução da questão colocada pela alteração dos factos da acusação e a garantia do direito de defesa afigura-se de alguma simplicidade: para novos factos nova defesa e na sua plenitude em relação a esses factos.
Trata-se de uma exigência colocada pelos princípios do acusatório e do contraditório, bem como do direito a um processo justo e equitativo.
A harmonização das garantias de defesa do arguido com as finalidades do processo penal de realização da justiça, da verdade material e restabelecimento da paz jurídica implicam uma cedência da estrutura acusatória do processo ao princípio da investigação, mas essa cedência não pode colocar em causa o contraditório e o direito a um processo justo e equitativo.
A letra da lei do artigo 358º, n.º 1 do CPP é algo lacónica quer quanto ao teor da comunicação do juiz (comunica a alteração ao arguido) quer quanto à defesa do arguido, limitando-se a dizer que lhe é concedido, se ele o requerer, o prazo estritamente necessário para a preparação da defesa.
A letra da lei tem dado lugar a divergências na jurisprudência quer relativas ao que é exigido em termos de fundamentação do despacho que comunica a alteração quer relativas à preparação da defesa.
Como mais abaixo veremos com mais pormenor, a jurisprudência maioritária tem entendido que quanto à comunicação do juiz basta a comunicação dos novos factos, sem necessidade de justificação dos elementos de prova que a fundamentam.
Quanto ao que quis dizer o legislador com a expressão «preparar a sua defesa», parece-nos evidente que o legislador disse menos do que queria dizer, pois que não tem sentido preparar a sua defesa se não for para a apresentar. Apenas preparar a sua defesa é o mesmo que nada, não é defesa alguma, pelo que se esbarra com os princípios de defesa atrás referidos.
Assim, porque o legislador disse menos do que queria dizer, entendemos que por preparar a sua a defesa o legislador pretendeu dizer preparar e apresentar a sua defesa. Não se tratará verdadeiramente duma integração de uma lacuna por analogia, sempre permitida porque in bonam partem mas antes de uma interpretação extensiva da expressão preparar a sua defesa.
Outra questão que se levanta é a de saber que defesa é essa que se pode apresentar. O artigo 358º do CPP nada esclarece a este respeito. De acordo com os princípios constitucionais do processo penal que atrás expusemos a resposta à questão é simples: uma defesa plena implica a possibilidade de apresentar, não interessando se oralmente ou por escrito, uma impugnação de facto e de direito bem como um requerimento de prova dirigidos aos novos factos, ou, dito de outro modo, uma ‘nova contestação’ e um ‘novo rol de testemunhas’.
Parece não haver dúvidas jurisprudenciais sobre a possibilidade de se apresentar um requerimento impugnando os novos factos, seja de facto ou de direito, mas já quanto à apresentação de novo requerimento de prova se coloca uma nova questão: à apresentação do ‘novo rol de testemunhas’ são aplicáveis as regras do artigo 311º-B do CPP ou antes as regras do artigo 340º do CPP.
Quanto ao ‘novo rol de testemunhas’, a jurisprudência dominante, como abaixo veremos, tem vindo a entender que é aplicável o artigo 340º do CPP, ora remetendo para o seu n.º 1, ora para o seu n.º 4 , ora para ambos e por vezes até para os números 1, 3 e 4 desse artigo, mas sempre com a consequência de que o arguido tem de indicar os motivos porque apresenta as testemunhas, designadamente especificando a razão de ciência que têm sobre os novos factos, de modo a que o tribunal possa avaliar do interesse, relevância ou irrelevância, adequação ou se se trata de manobra dilatória.
Cremos que lido com atenção o artigo 340º do CPP podemos concluir que o legislador não foi feliz na sua integração sistemática, juntando num mesmo artigo normas com fundamento, intenção e finalidades diversas. Melhor seria que tivessem ficado em diferentes artigos e com epígrafes distintas.
Com efeito, como mais abaixo explicaremos com maior pormenor, o n.º 1 do artigo 340º diz respeito à produção de prova necessária para a boa decisão da causa e descoberta da verdade ao abrigo do princípio subsidiário de investigação que cabe ao juiz no nosso sistema estruturalmente acusatório. Esta norma tem incidência maior na fase da audiência de julgamento, quase sempre atuando na própria audiência.
Já os n.ºs 3 e 4 são, tal como a epígrafe diz, princípios gerais do processo penal que impedem a produção de provas ilegais ou proibidas ou provas notoriamente irrelevantes ou supérfluas, inadequadas, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou com finalidade meramente dilatória. E têm fundamento constitucional desde logo nos artigos 32º, n.º 2 (Todo o arguido …, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa). 32º, n.º 8 (São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.) e 20º, n.º 4 (Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.), todos da CRP. Acresce ainda o princípio geral processual da economia processual e proibição de atos inúteis.
Cremos que teria sido mais feliz a opção do legislador se tivesse dividido as matérias acabadas de referir em dois artigos, um com a epígrafe princípio da investigação, integrando os n.s 1 e 2 do artigo 340º do CPP e outro com a epígrafe princípios gerais, do qual fariam parte os n.s 3 e 4 do artigo em causa.
Às questões agora expostas nos referiremos com mais detalhe infra, na análise do incidente de alteração não substancial dos factos.
2.3.5.3 - O incidente de alteração não substancial dos factos. Tempos do incidente.
Do artigo 358º do CPP resulta que o incidente de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia tanto pode ser suscitado pelo tribunal, como pelo ministério público, assistente, arguido ou defensor.
O incidente, sendo desencadeado pelo tribunal, desenvolve-se em cinco tempos, a que se poderiam acrescentar mais dois no caso de ter sido requerido ao tribunal (requerimento e resposta).
Os cinco tempos do incidente são os seguintes: 1-Constatação pelo tribunal de que se verifica uma alteração não substancial dos factos; 2- Comunicação da alteração ao arguido; 3-Concessão de prazo para a preparação da defesa; 4-Apresentação de requerimento de defesa pelo arguido. 5-Despacho a deferir ou indeferir o requerimento de defesa.
2.3.5.3.1 - Constatação pelo tribunal de que se verifica uma alteração não substancial dos factos.
O juiz ou o coletivo de juízes, oficiosamente ou a requerimento, em qualquer momento da audiência após o início da produção de prova, face à prova que foi produzida até então, chega à conclusão de que se verifica uma alteração relevante, mas não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ou seja, dá-se conta de que existe a probabilidade de alterar factos ou aditar factos novos. Afinal de contas, a data, hora ou local dos factos são diversos do descrito na acusação; o arguido agiu com dolo direto e não com dolo necessário ou eventual ao disparar ou tiro ou ao desferir com uma faca um golpe no corpo da vítima; a vítima sofreu lesões mais extensas ou graves do que as descritas; há alterações da configuração do local do sequestro que tornam as condições da vítima mais penosas; a vítima era uma pessoa mais frágil do que o comum das pessoas da mesma idade, facto que não estava descrito na acusação; a quantia subtraída foi muito superior à descrita; ou os objetos destruídos eram de valor muito superior do descrito na acusação, etc….
2.3.5.3.2 - Comunicação da alteração ao arguido.
a) Momento da comunicação.
Quanto ao momento da comunicação, assim que constatada a alteração ou possibilidade de alteração a mesma tem de ser comunicada ao arguido pelo juiz presidente, através de despacho.
Resulta da prática judiciária e até da própria lógica das coisas que na esmagadora maioria dos casos o tribunal apenas se apercebe dos factos novos ou alterados perto do final da produção de prova ou mesmo até depois da produção de toda a prova e muitas vezes só após as alegações, na fase da deliberação. Especialmente nos julgamentos pelo tribunal coletivo só na reunião para deliberação que se segue ao encerramento da discussão (artigo 365º do CPP) se dá conta das alterações dos factos, o que sucede frequente e compreensivelmente. Nesse caso, o tribunal terá de reabrir a audiência e proceder à comunicação.
b) Conteúdo do despacho que procede à comunicação da alteração.
Quanto ao conteúdo do despacho que procede à comunicação da alteração, a jurisprudência tem-se dividido quanto ao alcance da obrigação de fundamentação.
Uma corrente, ao que sabemos minoritária[21], entende que a comunicação da alteração não substancial dos factos deve abranger não só o facto ou factos objeto da alteração, mas também a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação dos novos factos, pois só esta permitirá ao arguido contraditar os meios de prova já produzidos e oferecendo outros que, em seu entender, possam abalar os indícios dos factos entretanto comunicados. E que o não cumprimento desta exigência implica a nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, pois a condenação ocorre fora do condicionalismo e exigências legais do artigo 358.º, n.º 1 do CPP[22]. Ainda nesta corrente jurisprudencial, mas com resultado diverso, defende-se que a falta de especificação, na comunicação prevista no artigo 358º do CPP, dos meios de prova que suportam o juízo provisório sobre a alteração dos factos constitui uma irregularidade a arguir nos termos do artigo 123º, n.º 1 do CPP[23].
A maioria da jurisprudência publicada[24], ao invés, vai no sentido de que o conteúdo do despacho que ao abrigo do artigo 358º do CPP procede à comunicação da alteração não substancial dos factos não carece de especificação dos meios de prova em que o tribunal se fundamentou para a referida alteração. Os argumentos apresentados, singular ou conjuntamente, são os seguintes: a letra da lei não impõe expressamente no artigo 358º do CPP a especificação dos meios de prova que suportam a alteração; trata-se de um despacho não decisório; tratam-se de factos indiciados e não de factos provados; trata-se de um mero juízo provisório; a indicação/sustentação probatória tem é que existir aquando da motivação da decisão de facto, não fazendo qualquer sentido que ainda em tempo da discussão do pleito o tribunal adiante qual o juízo probatório que está a fazer; basta que na fundamentação da comunicação de alteração de factos se faça uma indicação genérica de que os mesmos resultaram da discussão da causa.
Chamado a intervir sobre a questão, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 216/2019[25], decidiu «Não julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, no sentido de que a comunicação de alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, não carece de ser acompanhada de referência especificada aos meios de prova indiciária em que se fundamenta.»
Em resumo, argumenta o Tribunal Constitucional que a não especificação na comunicação dos meios de prova que em julgamento se encontram na totalidade identificados não se reflete numa diminuição das garantias de defesa face ao que goza o arguido perante a notificação da acusação ou da pronúncia, onde, nos termos dos artigos 283º e 308º, n.º 2 do CPP, basta a indicação em rol das testemunhas a ouvir e a indicação de outros meios de prova, sem especificação dos concretos factos ou grupos de factos a que cada fonte probatória se reporta; a comunicação não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos, sendo apenas factos de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência; a valoração da prova produzida e a decisão sobre a verdade dos factos imputados ocorre apenas com a emissão da sentença ou acórdão; a possibilidade de o arguido utilizar um prazo para preparar e apresentar a defesa, salvaguarda a eficácia desta.
Estamos de acordo com a posição jurisprudencial maioritária. O despacho que, ao abrigo do artigo 358º do CPP, procede à comunicação da alteração não substancial dos factos não carece de especificação e relacionação com os novos factos dos meios de prova em que o tribunal se fundamentou para a referida alteração.
Com efeito, os factos novos que vieram a ser aditados à acusação ou pronúncia não passam de factos meramente indiciados face aos meios de prova produzidos em audiência antes da comunicação, os quais se encontram identificados.
E como refere o Tribunal Constitucional, a situação em que o arguido se encontra perante a comunicação dos novos factos é a mesma em que se encontra quando se depara com a comunicação da acusação ou pronúncia (artigos 283º, n.º 3 e 308º, n.º 2 do CPP), sem que se questione que é suficiente, para garantir os direitos de defesa do arguido, a indicação nestas peças processuais dos factos imputados e das provas a produzir, especialmente no caso das provas pessoais, sem ser necessária a especificação dos concretos factos ou grupos de factos a que cada fonte probatória se reporta e da razão de ciência de cada testemunha ou declarante.
c) Pressuposto e consequência da interpretação no sentido da desnecessidade de especificação da prova que fundamenta a comunicação da alteração dos factos.
Claro que pressuposto desta interpretação a que aderimos é o de que, considerando que o arguido não sabe ou pode não saber - e mesmo sabendo pode ter uma interpretação diversa da prova já produzida - por que razão o tribunal considera existir tal alteração, seja dada ao arguido, como sujeito processual que é, a real e efetiva possibilidade de se defender dos novos factos.
A consequência é a de que, encontrando-se o arguido numa situação igual, semelhante ou paralela à que se encontra face à acusação ou pronúncia, para novos factos imputados o arguido tem de ter a possibilidade de relativamente a eles, tal como na contestação, apresentar nova defesa e na sua plenitude relativamente a esses factos, impugnando e arrolando nova prova, ou seja, reconhecendo-se-lhe a sua qualidade de sujeito processual e o correlato direito subjetivo perante o Estado de ter uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto.
2.3.5.3.3 - Concessão de prazo para a preparação da defesa.
A concessão de prazo para a defesa tem como pressuposto que o arguido o requeira. Compreende-se a razão de ser desta regra em obediência à exigência constitucional de obtenção de uma decisão num prazo razoável e de celeridade processual, impostas nos artigos 20º, n.º 4 (Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo) e 32º, n.5 (… devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.), ambos da CRP. Assim, se o arguido não requerer prazo porque entende não ser necessário prazo para preparar a defesa, ou porque concorda com a decisão do tribunal ou porque já sabe qual a defesa a tomar, seja em sede de alegações, seja impugnando os novos factos ou a prova que quer arrolar. A concessão de um prazo não requerido constituiria um ato inútil além de uma dilação processual sem justificação.
Preenchido o pressuposto do requerimento do arguido, o juiz fixa o prazo estritamente necessário para a preparação da defesa, depois de ponderar as circunstâncias concretas do caso, designadamente a dimensão, relevo ou complexidade da alteração. Trata-se ainda aqui de uma exigência de celeridade processual, bem como de respeito pelo princípio da concentração da audiência. O princípio da concentração está estreitamento relacionado com os princípios da oralidade e da imediação que apontam para uma concentração espacial e temporal da audiência, com a continuidade da audiência prevista no artigo 328º, n.º 1 do CPP[26].
2.3.5.3.4 - Apresentação de requerimento de defesa pelo arguido.
a) Tempestividade.
O requerimento de defesa tem de ser tempestivo, de imediato em seguida à comunicação da alteração se não tiver sido requerido ou concedido prazo, ou dentro do prazo fixado pelo juiz para a sua apresentação, sob pena de rejeição por extemporâneo.
b) Conteúdo do requerimento de defesa
O conteúdo do requerimento de defesa para os novos factos imputados tanto pode ser ditado para a ata como ser feito por escrito e é constituído, logicamente, por duas peças processuais que podem ser apresentadas conjuntamente ou em separado: a nova contestação e o novo rol de testemunhas (mais exatamente, novo requerimento de prova), aplicando-se, dada a igualdade, semelhança ou paralelismo da situação do surgimento da imputação de novos factos com a da situação do arguido perante a acusação ou pronúncia, mas com a devida adaptação, o disposto nos artigos 311º-B e o disposto na alínea e) do n.º 3 e nos n.s 7 e 8 do artigo 283.º do CPP.
Claro que não é obrigatória a apresentação de ambas as peças processuais, bastando a de uma.
O requerimento de defesa deve observar os limites do objeto das alterações, o mesmo é que dizer que está limitado pelos novos factos imputados que foram comunicados.
A nova contestação não deve extravasar para além desses factos novos ou daqueles que os podem infirmar ou retirar relevância, tendo-se por não escrita na parte em que for além desses limites. Mas tirando essa restrição, a nova contestação tanto pode impugnar os factos como o direito, nomeadamente defendendo que os factos comunicados não constituem uma alteração não substancial, mas antes uma alteração substancial, nos termos do artigo n.º 1 al. f) e com os efeitos do artigo 359º, ambos do CPP.
O novo rol de testemunhas deve respeitar, por força da remissão do artigo 311º-B do CPP, o disposto na alínea e) do n.º 3 e nos n.s 7 e 8 do artigo 283º, designadamente quanto à identificação e número máximo de testemunhas.
O objeto da inquirição das testemunhas do novo rol está limitado aos factos novos, àqueles que os possam infirmar ou às circunstâncias que tenham relevo para contraditar ou retirar relevância à prova já produzida.
Uma questão que tem surgido na jurisprudência é a da necessidade ou não de o requerimento com o novo rol de testemunhas para ser admitido ter de justificar o motivo concreto revelador da indispensabilidade para a descoberta da verdade das novas testemunhas arroladas, sob pena de indeferimento, com base no disposto no artigo 340º do CPP.
Em relação aos demais meios de prova, designadamente a acareação (artigo 146º do CPP), reconhecimento (artigo 147º do CPP), reconstituição (artigo 150º do CPP), pericial (151º do CPP) e documental (artigo 164º do CPP), não basta como é evidente a sua mera indicação, devendo também cumprir com a alegação dos requisitos indicados nesses artigos, respetivamente a contradição e a utilidade da diligência para a descoberta da verdade, a necessidade de reconhecer qualquer pessoa, a necessidade de determinar se um facto podia ter ocorrido de determinada forma, a exigência de conhecimentos especiais para a apreciação dos factos, a não anonimidade.
Cingindo-nos à prova testemunhal questionemos se o arguido tem ou não o ónus ou encargo de, na sequência da comunicação do artigo 358º do CPP, indicar a relevância que a prova testemunhal, tem para a decisão da causa.
É o que veremos de seguida.
c) Do ónus de indicar a relevância que cada testemunha tem para a decisão da causa.
A jurisprudência que encontrámos publicada[27] (e alguma doutrina[28] no seguimento da referida jurisprudência) tem vindo a entender que a apresentação de prova testemunhal pelo arguido, na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (artigo 358º, nº 1 do CPP), tem de ser acompanhada da respetiva justificação, para os efeitos de ser sujeito ao crivo do artigo 340º do CPP, sob pena de não ser admitida a produção daquele meio de prova.
No primeiro e mais antigo dos acórdãos encontrados e já citados[29], argumenta-se que tal como acontece com os meios de prova apresentados com a contestação ou com os meios de prova supervenientes requeridos na audiência de julgamento, ao abrigo do artigo 340º, nº 1 do CPP, o pedido de produção de meios de prova, na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tem de ser acompanhado da respetiva justificação, para os efeitos do artigo 340º, nº 4, do CPP, pois que de outro modo, o juiz ficaria impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade, à luz dos critérios de aferição fixados nos nºs 3 e 4 do citado artigo 340º.
Analisando a argumentação deste acórdão constatamos que parte do pressuposto da semelhança de situações que se verifica entre a contestação (artigo 311º-B do CPP, antigo artigo 315º) e a nova defesa após comunicação dos novos factos (artigo 358º do CPP).
Quer isto dizer que, na tese defendida no citado acórdão da Relação de Guimarães, já na contestação à acusação ou à pronúncia o arguido é obrigado a justificar a apresentação das provas, tese que tem apoio em parte da doutrina[30].
Concordamos com o pressuposto da tese do dito acórdão quando entende que as situações são semelhantes, pois parece-nos inegável a identidade ou paralelismo da situação do arguido quando confrontado com a acusação ou com a comunicação dos novos factos imputados, devendo ser tratadas de modo igual. Esse tratamento igual das situações resulta de uma interpretação extensiva do conceito «preparar a sua defesa» do artigo 358º do CPP, não tendo lógica ou fundamento jurídico que se pudesse apenas preparar a defesa sem possibilidade de a apresentar e que a expressão defesa não incluísse uma defesa plena nos mesmo termos da defesa perante a acusação. Mas mesmo que se considere haver uma lacuna da lei a propósito do conteúdo da defesa de que o arguido goza, a solução é a mesma, pois terá lugar a integração por analogia (artigo 4º do CPP), não proibida porque in bonam partem. Certo é que o resultado de tal interpretação ou integração por analogia terá sempre de ser adaptado quanto «ao tempo estritamente necessário» para a sua preparação e quanto ao objeto da defesa – os factos novos.
Já discordamos da tese do referido acórdão quando defende que na contestação o arguido está obrigado a justificar a prova apresentada, designadamente especificando a relevância das testemunhas para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, v.g. com a indicação da razão de ciência e dos factos ou grupos de factos sobre que irão depor.
O artigo 311º-B, n.º 4 do CPP remete as regras limitativas do rol de testemunhas para o disposto na alínea e) do n.º 3 e nos n.s 7 e 8 do artigo 283º do CPP.
E no artigo 283º do CPP, para além das indicações previstas na alínea e) do n.º 3 e nos n.s 7 e 8, em parte alguma se diz que a acusação deve especificar a relevância das testemunhas para a decisão da causa ou a indicação da razão de ciência e dos factos ou grupos de factos sobre que irão depor.
Concluindo, da letra da lei não consta qualquer ónus processual de justificação da prova apresentada.
Mais à frente voltaremos a este tema com mais pormenor.
Os demais acórdãos e a doutrina atrás citados argumentam também com a necessidade de justificação da prova apresentada sob pena de o juiz não poder apreciar dos critérios do artigo 340º, n.º 3 e 4 do CPP.
Num dos acórdãos citados diverge-se na parte da rejeição imediata do requerimento de prova, entendendo que se não for apresentada a justificação das provas indicadas ao abrigo do artigo 358º do CPP, «o dever de cooperação, consagrado no n.º 1 do artigo 266.º do Código de Processo Civil, impõe que o tribunal, antes de decidir, solicite aos requerentes os necessários esclarecimentos, só depois podendo pronunciar-se sobre eles. [31]»
Vejamos com atenção o artigo 340º do CPP.
O n.º 1 do artigo 340º do CPP, ao dispor que «O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.», conforme já acima foi referido, consagra a integração no nosso sistema processual penal de estrutura acusatória de um princípio subsidiário de investigação a cargo do juiz, regra essa que constitui um princípio constitucional implícito.
Este nº 1 diz respeito, na fase de julgamento, a decisões por iniciativa do juiz ou a requerimento dos demais sujeitos processuais. Tem o tribunal o poder-dever de ordenar todos os meios de prova que se lhe afigurem necessários à descoberta da verdade, devendo para tanto fazer o respetivo juízo de necessidade depois de observado o contraditório.
Mas, conforme resulta a contrario do n.º 2 não abarca a produção de meios de prova constantes da acusação (283º do CPP), da pronúncia (308º do CPP) ou da contestação e rol (311º-B do CPP) ou do aditamento ao rol (316º do CPP), o que quer dizer que apenas diz respeito a prova não tempestivamente apresentada na ‘fase dos articulados’[32].
Nem a poderia abarcar, pois as ‘partes’, a acusação e a defesa, têm, como sujeitos processuais, um amplo direito à prova - desde que respeitado o princípio da legalidade da prova (artigo 125º do CPP) -, em especial relativamente à prova pessoal – testemunhas e declarantes - quer requerendo a sua admissão quer participando na sua produção, sem que sejam sujeitos a ónus processuais desproporcionados ou não expressamente previstos na lei sob pena de violação da estrutura acusatória do processo e em relação ao arguido do seu direito de defesa e do processo justo e equitativo.
Claro que este direito à prova não é ilimitado, tendo de ser harmonizado com as finalidades de realização da justiça e em tempo razoável, pelo que são estabelecidos prazos e limites para apresentação de prova, passados os quais, em regra já em audiência ou após o aditamento permitido no artigo 316º do CPP, só com a formulação do juízo positivo de necessidade pelo juiz poderão ser admitidos novos meios de prova.
Assim, resultando da iniciativa das partes, fora da ‘fase dos articulados’, a apresentação de um meio de prova deverá ser requerida com justificação da relevância do meio de prova, sob pena de o juiz não o poder deferir por não conseguir fazer o juízo positivo de necessidade para a descoberta da verdade, exigido pelo artigo 340º, n.º 1 do CPP. Trata-se de um ónus inteiramente justificado face aos princípios conformadores do processo penal e às finalidades deste: a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a proteção perante o Estado dos direitos das pessoas, e o restabelecimento da paz jurídica (da comunidade, do arguido) posta em causa com a prática do crime[33].
Mas mesmo sendo requerida na fase dos articulados a prova pode não ser admitida, entrando aqui em campo os n.ºs 3 e 4 do artigo 340º do CPP.
De acordo com estas normas, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis, porque proibidos por lei (artigo 125º do CPP), ou se for notório que as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou o requerimento tem finalidade meramente dilatória.
Resulta da redação do número 4 (se for notório) a diferença substancial existente entre o regime destes requisitos para o indeferimento e o do n.º 1 do artigo 340º do CPP. Enquanto que no n.º 1 o juiz perante o requerimento de prova tem de se convencer da necessidade do meio de prova requerido para a descoberta da verdade, no n.º 4 o juiz, perante o requerimento, tem de fazer um juízo bem diferente. Tem de fazer o juízo de que resulta inequivocamente, que é notório do próprio requerimento e da prova apresentada, que o meio de prova é irrelevante ou supérfluo, ou inadequado, ou de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou o requerimento tem finalidade meramente dilatória. Se ficar na dúvida sobre a irrelevância, superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou manobra dilatória, falta o requisito da notoriedade e por isso não pode indeferir sem mais o requerimento de prova.
Há toda uma diferença substancial entre o juízo a fazer num e noutro caso.
No primeiro (artigo 340º, n.º 1 do CPP) o juiz tem de se convencer pela leitura do requerimento da necessidade do meio de prova sob pena de indeferimento, o que acaba por constituir um ónus processual de no requerimento o sujeito processual (ministério público, arguido ou assistente) invocar as razões por que a inquirição da testemunha tem interesse para a discussão da causa e descoberta da verdade material.
No segundo (artigo 340º, n.º 3 e 4 do CPP) o juiz tem de se convencer, também pela mera leitura do requerimento, de que a prova apresentada é proibida por lei, ou notoriamente irrelevante, supérflua, de obtenção muito difícil ou tem finalidade meramente dilatória. Disso não se convencendo, está obrigado a admitir a produção de prova requerida. Neste caso o requerente, não tem o ónus de justificar a prova apresentada. E não se diga que esta interpretação da norma a torna em ‘letra morta da lei’, que da mera exposição do meio de prova pretendido não se pode aferir da notoriedade da irrelevância ou superfluidade, dificuldade de obtenção ou que se trate de matéria dilatória. Com efeito, embora não seja frequente, não é difícil cogitar casos em que, por exemplo, a perícia requerida é notoriamente irrelevante (ex: uma perícia à letra quando as ameaças foram proferidas de viva voz; o exame a uma espingarda caçadeira, quando se constatou que o tiro de arma de fogo que atingiu a vítima foi desferido por uma pistola), ou o meio de prova é de obtenção impossível ou muito duvidosa (ex: o exame do local não é possível porque sobre ele foi construído um edifício, a estrada onde se deu o acidente já não tem a mesma configuração; a testemunha faleceu ou está incapacitada de prestar depoimento por doença, sem esperança de que venha a recuperar).
É certo que estes limites do n.º 3 e 4 do artigo 340º do CPP estão constitucionalmente justificados, designadamente pela realização da justiça em tempo adequado, proibindo-se a prática de atos inúteis, e no artigo 6º, n.º 3 da CEDH, mas, como adverte a doutrina[34], alguns daqueles limites, sobretudo a irrelevância e superfluidade, podem na prática degenerar em arbitrárias limitações do direito à prova, pelo que é preciso muita cautela na apreciação do caso concreto.
Por isso, para evitar o risco de arbitrárias limitações do direito à prova, o legislador relativamente à prova testemunhal limitou a possibilidade de tal rejeição de prova com base no n.º 4 do artigo 340º do CPP aos casos em que o número de testemunhas da acusação ou da contestação exceda o número previsto do artigo 287º, n.º 3, al. e) do CPP, conforme rege o n.º 8 do artigo 287º, aplicável à contestação por força do disposto no artigo 311º-B, ambos do CPP. É óbvio que caso se verifique uma situação excecional de que é exemplo a morte ou incapacidade da testemunha deve ser indeferida a produção da prova.
Compreende-se e está justificada a diferença de regimes entre a admissão da prova na fase dos articulados (artigos 283º, 308º, 311º-B e 316º do CPP) e na fase posterior aos articulados.
Na fase dos articulados a prova apresentada deve ser o mais livre possível, com o mínimo de restrições, em especial na prova testemunhal, cuja valoração como de relevo ou não para a causa se torna mais difícil e sujeita a erros de apreciação, não se impondo quanto a esta prova qualquer ónus às partes, com exceção na parte relativa ao excesso do número de testemunhas do artigo 283º do CPP. Quanto à prova posterior aos ‘articulados’ é de aceitar que a sua admissibilidade seja fortemente controlada e só seja de admitir se o juiz a considerar necessária para a decisão da causa e descoberta da verdade material.
Finalmente, cabe dizer que não tem qualquer sentido a ideia de que nos ‘articulados’ as ‘partes’, a acusação e a defesa, estão sujeitas ao ónus de justificar qual a relevância das testemunhas que indicam.
É que em lado algum do artigo 283º do CPP se impõe à acusação que justifique a que se destinam e porque têm relevância as testemunhas que indicou. Se o legislador não impôs tal ónus, não tem o intérprete de o criar. Ora, tal normativo é aplicável à defesa, por força do disposto no artigo 311º-B, n.º 4 do CPP, a qual por isso não está sujeita a qualquer ónus a que a acusação não esteja, pois de outro modo violavam-se os princípios do acusatório, do contraditório, das garantias de defesa e do direito a um processo justo e equitativo, tudo com assento constitucional, como já vimos.
E não vemos que possa ou deva ser de outro modo, criando-se um ónus processual onde a lei não o impõe ou pressupõe, nem que seja possível criar um ónus processual para a defesa quando não existe para a acusação.
Se esses ónus ou limitações à atividade processual do arguido na fase dos ‘articulados’ não constam da letra da lei, não é admissível qualquer tentativa de aplicação por analogia das limitações impostas no n.º 1 artigo 340º do CPP, ou do seu n.º4 se se interpretar este, contrariamente ao que entendemos, no sentido de que implica o ónus para o requerente, em especial o arguido, de demonstrar que a prova é necessária e que não é meio de prova irrelevante ou supérfluo, ou inadequado, ou de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou o requerimento tem finalidade meramente dilatória.
E tal aplicação analógica não é admissível ou legítima desde logo porque como pensamos ter demonstrado não se verifica qualquer lacuna na lei ou verificando-se deve ser suprida por analogia in bonam partem. Depois, porque o princípio da legalidade criminal (artigo 29º, n.º 1 da CRP) se estende ao processo penal, cabendo a este assegurar todas as garantias de defesa (32º, n.º1 da CRP), sendo constitucionalmente vedada a aplicação por analogia de normas desfavoráveis ao arguido – analogia in malam partem -, devendo o artigo 4º do CPP ser interpretado conforme à Constituição[35].
Concluímos assim que os n.ºs 3 e 4 (este na interpretação que expusemos) do artigo 340º do CPP se aplicam à prova requerida tempestivamente (com exceção da prova testemunhal que não exceda 20 testemunhas, à qual não é aplicável o n.º 4), ou seja, na fase dos ‘articulados’, nesta incluído o artigo 316º do CPP. Já o n.º 1 do artigo 340º, com o ónus que nele vai implicado de o juiz se convencer da necessidade do meio de prova apresentado, não se aplica a tal fase, mas somente à fase posterior, aos meios de prova apresentados intempestivamente[36].
2.3.5.3.5 - Despacho a deferir ou indeferir o requerimento de defesa.
Percorridos estes tempos do incidente de alteração dos factos, o juiz decide se é de admitir ou não o requerimento de defesa (contestação e prova), considerando a tempestividade, a admissibilidade legal da prova (nº 3 do artigo 340º do CPP), a notoriedade da irrelevância ou superfluidade, a inadequação, a obtenção impossível ou muito duvidosa, ou a finalidade meramente dilatória (n.º 4 do artigo 340º do CPP). Sendo certo que relativamente à prova testemunhal o requerimento só pode ser indeferido com base no n.º 4 do artigo 340º do CPP se for ultrapassado o número de testemunhas previsto na alínea e) do n.º 3 e nos n.s 7 e 8 do artigo 283.º, aplicável ex vi artigo 311º-B do CPP.
2.3.6 - Conclusão sobre o ónus do arguido justificar qual a relevância para a decisão da causa da prova testemunhal que veio apresentar na sequência da comunicação do artigo 358º do CPP.
É chegada a altura de responder à questão de se saber o arguido tem ou não o ónus de, na sequência da comunicação do artigo 358º do CPP, justificar a relevância da prova requerida para a decisão da causa, em especial a testemunhal, sob pena de ver rejeitado o rol de testemunhas.
A resposta que fomos expondo acima pode resumir-se aos seguintes pontos.
Para novos factos nova defesa, tendo o arguido a possibilidade do exercício do seu direito como sujeito processual de ter uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto.
A obrigação do tribunal proceder à comunicação dos novos factos e conceder a possibilidade de o arguido exercer um real e efetivo direito de defesa é não só uma exigência constitucional resultante das garantias de defesa, do acusatório e contraditório do artigo 32º, n.º 1 e 5 da CRP, como também do direito a um processo justo e equitativo como imposto pelos artigos 20º, n.º 4 da CRP e 6º, n.º 3 da CEDH.
A situação em que o arguido se encontra perante a comunicação dos novos factos é a mesma em que se encontra quando se depara com a comunicação da acusação ou pronúncia (artigos 283º, n.º 3 e 308º, n.º 2 do CPP), sem que se exija que na contestação (artigo 311º-B do CPP), tal como na acusação ou pronúncia, se proceda à especificação dos concretos factos ou grupos de factos a que cada fonte probatória se reporta e da razão de ciência de cada testemunha[37].
Se o arguido se encontra perante a comunicação dos novos factos em situação igual ou em tudo semelhante à que se encontra quando se depara com a comunicação da acusação ou pronúncia, o exercício do seu direito de defesa previsto no artigo 358º do CPP deve, por aplicação analógica nos termos do artigo 4º do CPP, permitida porque in bonam partem, ser regulado pelas disposições relativas à contestação, com a adaptação do «prazo estritamente necessário para preparação da defesa» e quanto ao objeto da defesa – os factos novos.
Concluindo, na sequência da comunicação do artigo 358º do CPP o arguido, tal como na contestação e nos limites desta, não tem o ónus de justificar qual a relevância para a decisão da causa da prova testemunhal que veio apresentar.
2.3.7 - Aplicação do direito ao caso concreto dos autos.
Apurada a regra de direito aplicável ao caso concreto, vejamos o que resulta da sua aplicação.
Resumindo, nos autos, no final da audiência, após deliberação, procedeu-se à comunicação, nos termos do artigo 358º do CPP, de uma alteração da qualificação jurídica e de uma alteração não substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia, sem que fosse feita qualquer especificação da prova em que se baseou a alteração.
Em suma, os factos comunicados correspondem, no essencial, a alterações para pior das instalações onde os ofendidos se encontravam acomodados, às condições pessoais mais frágeis dos ofendidos, designadamente a escolaridade que tinham, problemas de toxicodependência e desemprego, bem como ameaças proferidas, quantias que receberam, períodos de duração de trabalho em Espanha e ausência de período de descanso.
As alterações têm relevo para a decisão da causa, designadamente agravando a ilicitude dos factos cometidos e por aí a determinação da pena.
Dentro do prazo concedido, oito dias, o arguido apresentou a sua defesa, na forma de um singelo rol de oito testemunhas, uma das quais já tinha sido inquirida em sede de audiência.
Foi proferido o despacho recorrido, no qual, em suma, considerando-se que o requerimento probatório teria de ser acompanhado da respetiva justificação, para os efeitos do artigo 340º do CPP, sob pena de o juiz ficar impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade, à luz dos critérios de aferição fixados nos n.ºs 3 e 4 do citado art.º 340.º do CPP. Como o arguido se limitou a arrolar oito testemunhas, sendo que uma delas já foi inquirida em audiência, a reinquirição da mesma evidencia a irrelevância da repetição deste meio probatório, e que quanto às demais testemunhas ninguém as referiu em sede de audiência. Não tendo o arguido apresentado qualquer justificação do seu relevo relativamente à restrita factualidade comunicada, não se mostra possível afirmar que os seus depoimentos se mostrem necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. Acresce que não há qualquer "convite ao aperfeiçoamento", dado que este se trata de “uma regra civilista, sem aplicação no processo penal”. Concluiu o despacho no sentido de ao abrigo ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 1, e n.º 4, als. b) e d), do CPP, relativamente à factualidade comunicada, indeferir a reinquirição de uma testemunha a inquirição das restantes testemunhas arroladas.
Vista a interpretação dos artigos 358º e 340º do CPP que acima expusemos, cremos não assistir razão ao despacho recorrido.
Desde logo, quanto ao facto de se pedir a reinquirição de uma testemunha, não há razão ou regra da experiência que diga que é notório que um depoimento prestado antes da comunicação da alteração tenha esgotado tudo o que a testemunha pudesse saber sobre os novos factos com que o arguido foi confrontado depois da audiência. Depois, o facto de ninguém ter falado sobre as outras testemunhas apresentadas não tem qualquer implicação, muito menos notória, sobre a eventual irrelevância ou superfluidade dos referidos depoimentos quanto aos novos factos. Também não vemos como concluir que o requerimento apresentado tem notoriamente uma finalidade meramente dilatória. Portanto, daqui se conclui que se mostra violado o disposto no n.º 4 do artigo 340º do CPP, dada a falta de notoriedade da alegada irrelevância, superfluidade da reinquirição e inquirição das testemunhas arroladas ou da finalidade meramente dilatória do requerimento.
Quanto ao n.º 1 do artigo 340º do CPP, com que o tribunal também fundamenta a decisão, na interpretação que sufragamos de tal norma esta não é aplicável ao rol de testemunhas apresentado na sequência da comunicação prevista no artigo 358º do CPP, sendo antes aplicável o disposto nos artigos 311º-B do CPP e 283º do CPP, não cabendo ao arguido qualquer ónus de justificação da relevância ou necessidade dos depoimentos das testemunhas arroladas para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Assim, ao indeferir o rol de testemunhas apresentado pelo arguido após comunicação da alteração não substancial dos factos, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 340º, n.º 1 e 4, 358º, n.º 1 e 311º-B do CPP.
Concluindo, é de conceder provimento ao recurso intercalar e revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine a reabertura da audiência para inquirição das pessoas indicadas pelo arguido no requerimento de prova apresentado em 24.03.2023 (ref. 35182182), o que acarreta a anulação dos atos posteriores ao despacho recorrido, incluindo o acórdão, mas mantendo-se incólumes os atos praticados até esse momento, incluindo a prova até então produzida.
Em face do decidido quanto ao recurso do despacho de 29.03.2023 fica prejudicado o conhecimento dos recursos interpostos do acórdão final.
*

3 - DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso intercalar e, em consequência:
- Revogam o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine a reabertura da audiência para inquirição das pessoas indicadas pelo arguido no requerimento de prova apresentado na sequência do despacho que comunicou a alteração não substancial dos factos.
- Anulam os atos posteriores ao despacho recorrido, neles incluindo o acórdão.
- Fica prejudicado o conhecimento dos recursos interpostos do acórdão final.

Sem custas.
*
Notifique.

Porto, 8 de novembro de 2023
William Themudo Gilman
Elsa Paixão
Liliana de Páris Dias
_________________
[1] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 26, 92-94; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 136-137
[2] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 93, 218-224; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 144-145.
[3] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 93-94.
[4] Cfr Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 145; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 94;
[5] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 95.
[6] Cfr. sobre este modelo puro Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol I, 2017, p.65.
[7] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 26-27; Jorge de Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos do Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, 1991, p.34; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p 72; para a justificação do princípio, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol I, 2017, p..92.
[8] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020137.html .
[9] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 27.
[10] Cfr. sobre esta adução de material de facto e de prova, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 196.
[11] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980130.html .
[12] Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, reimpressão, 1983, p. 366.
[13] Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, reimpressão, 1983, p. 365.
[14] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos do Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, 1991, p.34; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 428; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p.50-51.
[15] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 429; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 51.
[16] A expressão ‘contestação superveniente’ é de Tiago Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª edição, tomo IV, p. 99.
[17] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 219.
[18] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 205; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 213.
[19] Em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19990442.html .
[20] E a jurisprudência Constitucional tem sido constante quanto a este aspeto, cfr. o ac. TC 237/2007, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070237.html .
[21] Adverte-se que será minoritária de acordo com a jurisprudência por nós consultada e disponível em www.dgsi.pt, a qual poderá não refletir a realidade da jurisprudência, uma vez que existe um processo de seleção dos acórdãos a publicar na base de dados da dgsi.pt, ficando aí acessível apenas uma ínfima parte dos acórdãos proferidos pelos Tribunais da Relação.
[22] Ac. TRC de 23.10.2019, proc. 163/17.6GAMGR.C1 (Luís Teixeira).
[23] Ac. TRP de 13.01.2016, proc. 411/12.9TALSD.P1 (Jorge Langweg).
[24] Ac. TRC de 28.05.2008, proc. 20/05.9TAMR.C1 (Vasques Osório), Ac. TRC de 30.04.2014, proc. 2317/07.4TAAVR.C1 (Olga Maurício), Ac. TRC de 14.01.2015, proc. 72/11.2GDSRT.C1, Ac. TRC de 12.07.2022, proc. 260/11.JALRA.C1 (Paulo Guerra), Ac. TRE de 28.02.2023, proc. 8/22.5GECUB.P1 (Carlos Campo Lobo), Ac. TRL de 06.11.2010, proc. 233/03.8PDFUND.L1-5 (Filomena Lima), Ac. TRP de 09.11.2022, proc. 471/20.9PIVNG.P1 (Pedro Afonso Lucas).
[25] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190216.html
[26] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 183-186; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 215-218.
[27] Cfr. Ac. TRG de 26.10.2009, proc. 154/06.2IDBRG.P1 (Nazaré Saraiva); Ac. TRL de 13.03.2013, proc. 33/01.0GBCLD.L1-3 (Carlos Almeida); Ac. TRP de 13.01.2016, proc. 411/12.9TALSD.P1 (Jorge Langweg); Ac. TRP de 24.05.2023, de proc. 11/22.5PAGDM.P1 (Pedro Afonso Lucas).
[28] Cfr. Pedro Soares Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª edição, tomo IV, p. 651.
[29] Ac. TRG de 26.10.2009, proc. 154/06.2IDBRG.P1 (Nazaré Saraiva).
[30] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2011, 4ª ed., pág. 833.
[31] Ac. TRL de 13.03.2013, proc. 33/01.0GBCLD.L1-3 (Carlos Almeida).
[32] No sentido de que o âmbito da norma do artigo 340º do CPP diz respeito a normas sobre iniciativas probatórias ocorridas na fase de julgamento num momento superveniente aos articulados, e, no caso das provas pessoais quando as provas arroladas já não puderem ser admitidas ao abrigo do artigo 316º do CPP, Paulo Dá Mesquita, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª ed.p. 415-416.
[33] Sobre estas finalidades ver Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 18.
[34] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 5ª edição revista, vol II, p. 166.
[35] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª edição, 2023, p. 30; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, 1981, p. 97.
[36] Cfr. Paulo Dá Mesquita, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª ed. p. 417-418.
[37] Cfr . quanto à comunicação dos novos factos o acórdão n.º 216/2019 do Tribunal Constitucional acima citado.