Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JUDITE PIRES | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO PODERES DE INVESTIGAÇÃO OFICIOSA DO TRIBUNAL | ||
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Nº do Documento: | RP202405098237/18.0T8VNG-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Apesar da incontroversa evolução para a prevalência do princípio do inquisitório, este continua a coexistir com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, continuando a exigir-se destas não apenas o cumprimento do dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e daqueles em que se baseiem as excepções invocadas, mas também a indicação dos meios de prova adequados à satisfação do respectivo ónus probatório, a cumprir no momento processualmente fixado para o efeito. II - O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus sobre elas recai, não podendo aceitar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 8237/18.0T8VNG-A.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO. Na acção declarativa com processo comum que AA e esposa, BB, residentes na Rua ..., ... ..., Vila Nova de Gaia, por si e em representação da sua filha menor CC, propuseram contra A..., Lda., pessoa colectiva n.º ...70, com sede na Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, formularam os Autores, no início da audiência de julgamento de 30.10.2023, o seguinte requerimento: “No seu requerimento referência 30952257, de 10.12.2018, requereram os Autores que se oficiasse à IGEC, para que remetesse aos autos o relatório de inspeção à Ré, por exigência de propinas de frequência indevidas aos pais dos alunos, o qual se constata que, salvo melhor opinião, não foi objeto de despacho. Entretanto, e na passada semana, obteve a Autora a informação de que tal inspeção deu lugar a dois processos disciplinares, movidos pela IGEC à Ré, com os números PD.../..09.../2017 e PD.../...48/.../2018, os quais já se encontram concluídos e nos quais foi proferida decisão final, na qual se conclui que a aqui Ré, nos anos de 2014 a 2017, cobrou indevidamente dos pais dos alunos do seu estabelecimento de ensino “Inscrições e Matrículas” e “Mensalidades/Propinas” e de “Serviços que não usufruíram e atividades que não frequentaram cobradas indevidamente”, processos que culminaram com a aplicação de sanção de multa à Ré e notificação para devolução das quantias indevidamente recebidas aos pais. Por tal razão, e pela evidente relevância para os presentes autos, requer-se novamente que se oficie à IGEC, agora com esta informação suplementar, com a identificação da Ré e dos processos disciplinares acima indicados, a fim de serem juntos pois a estes autos cópias das decisões dos mesmos ainda para prova do alegado em 18. a 20. da Petição Inicial”. Concedido à Ré prazo de 10 dias para exercer o contraditório, pronunciou-se a mesma, dentro do referido prazo, por requerimento escrito, pugnando pelo indeferimento do requerido pelos Autores. Seguidamente, foi proferido o seguinte despacho: “Refª 453328660, de 30.10.2023, 47100499, de 13.11.2023 Porquanto as informações solicitadas pelos autores a 30 de Outubro de 2023 poderão apresentar relevância para o apuramento dos factos e em conformidade com o disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, defiro o ali requerido, devendo oficiar-se à IGEC nos termos requeridos pelos autores”. Não se resignando a Ré com tal despacho, dele interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões: i. Em sede de audiência de discussão e julgamento os Autores apresentaram o seguinte requerimento oral: No seu requerimento referência 30952257, de 10.12.2018, requereram os Autores que se oficiasse à IGEC, para que remetesse aos autos o relatório de inspeção à Ré, por exigência de propinas de frequência indevidas aos pais dos alunos, o qual se constata que, salvo melhor opinião, não foi objeto de despacho. Entretanto, e na passada semana, obteve a Autora a informação de que tal inspeção deu lugar a dois processos disciplinares, movidos pela IGEC à Ré, com os números PD.../..09.../2017 e PD.../...48/.../2018, os quais já se encontram concluídos e nos quais foi proferida decisão final, na qual se conclui que a aqui Ré, nos anos de 2014 a 2017, cobrou indevidamente dos pais dos alunos do seu estabelecimento de ensino “Inscrições e Matrículas” e “Mensalidades/Propinas” e de “Serviços que não usufruíram e atividades que não frequentaram cobradas indevidamente”, processos que culminaram com a aplicação de sanção de multa à Ré e notificação para devolução das quantias indevidamente recebidas aos pais. Por tal razão, e pela evidente relevância para os presentes autos, requer-se novamente que se oficie à IGEC, agora com esta informação suplementar, com a identificação da Ré e dos processos disciplinares acima indicados, a fim de serem juntos pois a estes autos cópias das decisões dos mesmos ainda para prova do alegado em 18. a 20. da Petição Inicial. ii. Por despacho com a referência 455729602 de 20.01.2024, o Tribunal a quo decidiu: Refª 453328660, de 30.10.2023, 47100499, de 13.11.2023 Porquanto as informações solicitadas pelos autores a 30 de Outubro de 2023 poderão apresentar relevância para o apuramento dos factos e em conformidade com o disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, defiro o ali requerido, devendo oficiar-se à IGEC nos termos requeridos pelos autores. Proceda como requer a ré no ponto 67 do seu requerimento de 13.11.2023. Não obstante os argumentos esgrimidos pelos autores quanto à tempestividade do requerimento de prestação do depoimento de parte pela autora CC, por ser nosso entendimento que o mesmo poderá apresentar utilidade para o apuramento dos factos, defiro o requerido. Refª 47373214, de 11.12.2023 Proceda como se requer. iii. Vem o presente recurso interposto precisamente sobre a parte do despacho “Refª 453328660, de 30.10.2023, 47100499, de 13.11.2023: Porquanto as informações solicitadas pelos autores a 30 de Outubro de 2023 poderão apresentar relevância para o apuramento dos factos e em conformidade com o disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, defiro o ali requerido, devendo oficiar-se à IGEC nos termos requeridos pelos autores.”, pois entende a Recorrente que, à luz das regras aplicáveis, o sentido da decisão do Tribunal a quo deveria ter sido o oposto, isto é, o requerimento probatório dos Autores de 30.10.2023 deveria ter sido indeferido, o que impõe a invalidação/desconsideração dos atos de produção de prova indevidamente executados. iv. Ora, no dia 30.10.2023, em sede de audiência final, os Autores apresentaram um requerimento probatório novo (distinto do e em nada relacionado com o apresentado no dia 10.12.2018, o qual, de resto, foi indeferido). v. O requerimento probatório de 30.10.2023 apresentado na audiência final é, desde logo, legalmente inadmissível, por extemporâneo, não só por ultrapassados todos os momentos legalmente previstos para a apresentação de requerimentos de produção de prova, como por não verificados os pressupostos contidos no art. 423.º, n.º 3 do CPC, mesmo após o Tribunal ter notificado os Autores para a respetiva alegação e demonstração. vi. Ademais, o requerimento probatório de 30.10.2023 apresentado na audiência final é legalmente inadmissível também por os factos mencionados pelos Autores como pretendidos provar através dos documentos em apreço não serem passíveis de prova através dos mesmos. vii. Acresce que as supostas decisões a que os Autores se referem nunca foram notificadas à Ré e se o tivessem sido e se o respetivo teor fosse o descrito pelos Autores certamente teriam sido objeto de impugnação. Portanto, certo é que, de qualquer modo, tais decisões não são definitivas, logo o seu valor é nenhum, para além de, precisamente por não definitivas, serem inúteis ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. viii. Por fim, a aplicação in casu do art. 411.º do CPC extravasa manifestamente o escopo do princípio do inquisitório, (a) em face do comportamento processual abusivo dos Autores – que nem sequer, mesmo após notificados para o efeito, cuidaram de alegar e demonstrar que o requerimento apresentado na audiência final cumpre os ditames legais, inclusivamente sob o ponto de vista da sua tempestividade –, (b) da coexistência deste princípio com o do dispositivo, da igualdade, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, a que acresce (c) a diligência deferida não cumprir o critério objetivo da necessidade ao apuramento da verdade, na medida em que eventuais decisões de procedimentos disciplinares não foram, nem notificadas, nem impugnadas pela Ré, como certamente o seriam, se verificado conterem o sentido condenatório que os Autores avançaram. ix. Tudo sopesado, o despacho recorrido, na parte sob crise, violou o disposto nos arts. 139.º, n.º 3, 411.º, 423.º, 432.º, 436.º do CPC, bem como os princípios do dispositivo, da preclusão, da igualdade e da autorresponsabilidade das partes. […]. Termos em que requer seja revogado o segmento do despacho sob recurso “refª 453328660, de 30.10.2023, 47100499, de 13.11.2023: porquanto as informações solicitadas pelos autores a 30 de Outubro de 2023 poderão apresentar relevância para o apuramento dos factos e em conformidade com o disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, defiro o ali requerido, devendo oficiar-se à IGEC nos termos requeridos pelos autores.”, assim fazendo V. Exas. Venerandos Desembargadores Justiça”. Os apelados apresentaram contra-alegações, nas quais invocam a inutilidade do recurso, a renúncia ao recurso, pugnando, em todo o caso, pela improcedência do mesmo e confirmação da decisão recorrida. Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO. A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito. B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar: - da possibilidade da requisição oficiosa de documentos em poder de terceiro.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. Os factos/incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso são os descritos no relatório introdutório e, além destes, os seguintes: 1. A 10 de Dezembro de 2018 os Autores apresentaram requerimento nos autos no qual, procedendo à alteração do requerimento probatório apresentado com a petição inicial, indicam prova documental por requisição, requerendo ainda “...que se oficie à IGEC, com sede na na Av. ..., ... Lisboa, para que remeta aos presentes autos o relatório da inspecção efectuada à ré no âmbito de irregularidades e incumprimento nos contratos de patrocínio com as respectivas conclusões quanto à exigência por esta de propinas de frequência aos encarregados de educação dos formandos, o que se requer para prova do alegado em 20º e 21º da PI e em 9 e 10 supra desta peça processual”. 2. A 18 de Janeiro de 2023 foi proferido despacho que procedeu ao saneamento e pronunciou-se sobre os meios de prova apresentados pelas partes nos seguintes termos: MEIOS DE PROVA Todos os documentos juntos serão, oportunamente, valorados. Os autores pedem a prova por depoimento de parte da ré. Indicam o respectivo objecto. Apreciando. O depoimento de parte destina-se a provocar a confissão da parte relativamente aos factos indicados como objecto, por isso, implica o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à posição da parte contrária. Assim, o depoimento só pode ser exigido quando esteja em causa o reconhecimento pelo depoente de factos "cujas consequência jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto, à parte contrária, nos termos do artigo 342º, do Código Civil». Tendo em conta o que vem de se dizer, defere-se o depoimento de parte da ré apenas e só aos factos que sejam desfavoráveis e favoráveis à posição da parte contrária. Admite-se o rol de 3 testemunhas. Admite-se o rol de 9 testemunhas indicadas pela ré Notifique (n.º 3 do artigo 593º, do Código de Processo Civil).
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Na resposta às alegações de recurso sustentam os apelantes existir inutilidade do recurso porquanto foi “junto aos autos em 22/2/2024 o ofício (ref. 38232954) com os documentos solicitados e o mesmo notificado às partes”, tendo posteriormente a Ré interposto recurso do despacho que deferiu aquela requisição oficiosa. A circunstância invocada pelos apelados não confere, de forma alguma, inutilidade ao recurso, estando em causa, como está, a possibilidade de aproveitamentos dos elementos entretanto juntos aos autos para efeitos probatórios, sendo incontroverso que, em caso de revogação do despacho questionado pela apelante em sede de recurso, os documentos requisitados não poderão ser considerados para efeitos probatórios. Também o facto de a Ré, após junção aos autos dos documentos requisitados, haver tomado posição acerca deles, requerendo, nomeadamente, que fosse a IGEC notificada para prestar esclarecimentos, não representa qualquer renúncia ao recurso interposto. Trata-se de simples exercício do direito ao contraditório que, não exercido em tempo, conduziria à sua preclusão. Nada, pois, obsta ao conhecimento do mérito do recurso. 2. Do mérito do recurso. Os meios de prova devem, por regra, ser indicados com o respectivo articulado, como decorre, designadamente, dos artigos 552.º, n.º 2 e 572.º, alínea d), ambos do Código de Processo Civil. Os requerimentos probatórios podem, no entanto, ser alterados nos termos do artigo 598.º do referido diploma legal. Os Autores, que indicaram com a petição inicial os meios de prova, vieram, em tempo, requerer a alteração do requerimento probatório antes apresentado, requerendo, nomeadamente, que fosse oficiado “à IGEC, com sede na na Av. ..., ... Lisboa, para que remeta aos presentes autos o relatório da inspecção efectuada à ré no âmbito de irregularidades e incumprimento nos contratos de patrocínio com as respectivas conclusões quanto à exigência por esta de propinas de frequência aos encarregados de educação dos formandos, o que se requer para prova do alegado em 20º e 21º da PI e em 9 e 10 supra desta peça processual”. O despacho de 18 de Janeiro de 2023 tomou posição sobre os meios de prova indicados pelas partes, mas sem se pronunciar, em concreto, sobre aquela pretensão dos Autores. A 30.10.2023, no início da audiência de julgamento, os Autores, fazendo referência ao requerimento por eles apresentado a 10.12.2028, e referindo que sobre ele não recaíra qualquer decisão, vieram reiterar o antes requerido, requerendo “novamente que se oficie à IGEC, agora com esta informação suplementar, com a identificação da Ré e dos processos disciplinares acima indicados, a fim de serem juntos pois a estes autos cópias das decisões dos mesmos ainda para prova do alegado em 18. a 20. da Petição Inicial”. Após assegurado o contraditório, foi proferido o despacho recursivamente impugnado, sobre o qual recai a sindicância desta Relação. Dispõe actualmente o n.º 1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil: “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”. Por sua vez, determina o artigo 411.º do mesmo diploma, que consagra o princípio do inquisitório, que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”. E o artigo 436.º estabelece: “1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade. 2 - A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros”. À semelhança do que já sucedia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, mesmo antes da reforma de 1995/1996, o juiz continua a dispor de amplos poderes de iniciativa oficiosa, incluindo determinar a junção de documentos ao processo, quer estejam em poder da parte contrária, de terceiro ou de organismo oficial[1]. Trata-se de uma clara manifestação do princípio do inquisitório, tudo sem prejuízo das regras do ónus de alegação dos factos essenciais e da prova[2]. Pode ler-se no acórdão desta Relação de 11.01.2021[3]: “A dinâmica evolutiva do processo civil tem-se afirmado no confronto dialéctico entre dois princípios que na aparência se contradizem – dispositivo e inquisitório – com sucessivas cedências do primeiro e prevalência do segundo, com vista à realização do verdadeiro desiderato do processo, afirmado nos artigos 8º, nº 1 e 411º do CPC: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. Uma das linhas mestras do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – que alterou o artigo 645º, nº 1 do CPC de 1961, atribuindo-lhe uma redacção igual à do artigo 526º, nº 1 do CPC actual (inquirição por iniciativa do tribunal) –, tal como definidas no seu preâmbulo, era a de privilegiar a decisão de fundo sobre a decisão meramente formal, através de uma atitude mais interventiva do Juiz – cfr. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão.” Nas palavras do legislador de 1995 cabia ao processo civil procurar a verdade material, em vez de se privilegiarem aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do Direito Substantivo ao caso concreto – cfr. citado diploma legal: “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.” De notar, que quando o legislador fala em verdade material quer significar como sendo a absoluta correspondência entre afirmações sobre factos e a realidade dos mesmos através da produção da prova. Esta verdade material, será ou tenderá a ser, aquela “verdade processual”, que os diversos meios de prova permitam apurar. A maior prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo foi explicada da seguinte forma no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Procede-se a uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados. (…) Para além de se reforçarem os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adoptar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se as restrições excepcionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.” Ora, “o CPC de 2013 acentuou a tendência para o reforço dos poderes do juiz e da sua compreensão como deveres, com a correlativa compressão do princípio do dispositivo (em sentido amplo) e os inerentes riscos no plano das garantias processuais fundamentais do cidadão perante o uso ou não uso de tais poderes/deveres… (…). O CPC de 2013 acentuou o carácter público da função jurisdicional civil, enquanto função estadual ao serviço da justa composição de litígios de acordo com a verdade material. Com efeito, a descoberta da verdade material envolve um alto interesse do Estado e assim se promove a confiança na justiça dos tribunais. O poder de livre disposição reconhecido à vontade individual mantém-se na fase do impulso inicial e de identificação do objecto do processo; porém, a partir do momento em que as partes submetem o litígio ao tribunal todo o decurso do processo passa a ser dominado quase exclusivamente pela ideia de que a função jurisdicional deve observar as exigências da justa composição do litigio e esta é uma incumbência do juiz, não está dependente da vontade das partes…”[...]. Esta prevalência da verdade material sobre a forma é a razão de ser da opção feita pelo legislador pela consagração do princípio do inquisitório em matéria da instrução do processo em detrimento (“com forte compressão”) do princípio do dispositivo - é significativo disso mesmo a expressão sistemática da inserção do artigo 411.º do Código de Processo Civil, logo nas disposições gerais do Título V, Instrução do processo, na actual redacção. Como referem A. Geraldes/ P. Pimenta/Luís Sousa[...], o artigo 411º do CPC faz apelo à realização de diligências probatórias que importem a justa composição do litígio, cumprindo ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objectividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade. Afirmando, noutro ponto das suas anotações, que, apesar da rigidez para que o art. 423.º do CPC (Prova Documental) parece apontar, “em parte associada ao princípio da auto-responsabilidade das partes, o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios que justificam a iniciativa oficiosa do tribunal na determinação da junção ou requisição de documentos que, estando embora fora daquelas condições, sejam tidos como relevantes para a justa composição do litígio, à luz, pois, de um critério de justiça material, cabendo realçar em especial o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º e concretizado ainda no art. 436º”[...]”. Se é certo que o juiz tem a obrigação de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, esses poderes/deveres inquisitórios não são ilimitados quanto à determinação de provas: “Se fosse este o alcance, então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas”[4]. Segundo Paulo Pimenta, “o equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção das duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever”. Como refere o acórdão da Relação do Porto de 23.04.2020[5], subscrito enquanto adjunta pela aqui relatora, “Não obstante esta possibilidade/dever de iniciativa instrutória do juiz, como manifestação do princípio do dispositivo, as provas devem, em princípio, ser requeridas pelas partes e no momento processual em que tal lhes é facultado, já que é de cada uma delas a defesa do interesse que visa acautelar no processo, tendo o ónus de demonstrar os factos cujo efeito a favorece. Como expõe Paulo Pimenta[13], “(…) não deve ser confundido aquilo que é próprio do princípio do inquisitório, em que a actuação do juiz é vinculada desde que se convença da necessidade de certa diligência probatória, com uma pretensa auto-responsabilidade das partes em sede probatória”. A atividade que o juiz desenvolve no exercício dos poderes conferidos pelo citado art.º 411º há de ter em mira a prevalência da verdade material sobre uma verdade meramente formal, e a justa composição do litígio, mas não pode deixar de ter presente os ónus que a lei especialmente impõe às partes, o que se torna evidente nas situações em que seria uma ofensa a estes imperativos que o juiz oficiosamente determinasse a realização de meios de prova que a parte, a quem incumbia a sua apresentação, não o tivesse feito nas condições em que o deveria ter efetuado. Na ação declarativa comum, é dever das partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova com os respetivos articulados (art.ºs 423º 552º, nº 2 e 572º, al d), do Código de Processo Civil). Depois dessa fase, poderá haver alteração do requerimento probatório e aditamento ou alteração ao rol de testemunhas apenas nas condições previstas no art.º 598º do mesmo código, entre elas, quanto ao requerimento probatório, na audiência prévia quando a ela haja lugar nos termos do disposto no artigo 591º ou nos termos do disposto no nº 3 do art.º 593º, ambos do Código de Processo Civil. Dos princípios da igualdade, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes resulta que, caso não indiquem os meios de prova nos respetivos articulados quando tal lhes é legalmente imposto, com observância dos prazos perentórios a que estes estão sujeitos, ocorre preclusão desse direito. É incontroverso que fora dos prazos e momentos previstos na lei não podem as partes apresentar os seus requerimentos probatórios. O dever de oferecer os meios de prova de que dispõem, nos respetivos articulados, ou seja, no ato em que cada uma das partes desenvolve a sua argumentação e formula a sua pretensão, tem razões óbvias: traz coerência, inteligibilidade e sustentabilidade à argumentação, e permite à parte contrária avaliar melhor a sua consistência e viabilidade, assim como a necessidade e a medida da sua oposição, no exercício do contraditório. Os documentos podem ainda ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (nº 2 do art.º 423º do Código de Processo Civil). Depois deste limite temporal, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tomado necessária em virtude de ocorrência posterior (nº 3 do mesmo preceito legal). Este regime, algo rígido e simultaneamente flexível, tem ainda uma válvula de escape na norma do citado art.º 411º, justificada pela necessidade de dar prevalência à realização da justiça material. Mas, o dever investigatório do juiz, fora das condições do exercício do ónus das partes requererem e apresentarem os meios de prova no prazo ou no momento próprio, não pode obliterar aquele regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes (a apresentação do requerimento probatório nos tempos e lugares devidos). O princípio do inquisitório não impõe ao tribunal o dever de acolher toda e qualquer pretensão instrutória de uma das partes em qualquer momento e condição formulada, e menos ainda que, oficiosamente, sob a invocação da relevância dos meios que aponta, lhe faculte a produção de qualquer prova que tempestivamente podia e devia ter oferecido e deixou de requerer, prejudicando com isso o regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes. Expende-se no acórdão da Relação do Porto de 4.6.2013[...]: “Com efeito, só em concreto, seja por via da dinâmica da produção da restante prova produzida em sede própria (maxime em audiência de julgamento), e sob contraditório, ou por via de sugestão de qualquer das partes, nessa mesma sede e sob o mesmo contraditório, haverá o tribunal de averiguar da utilidade ou necessidade da produção de outros meios de prova para além dos oportunamente produzidos ou requeridos pelas partes. Só em concreto, isto é, nas concretas circunstâncias da actividade instrutória desenvolvida conforme tempestivamente proposto pelas partes, é que o tribunal poderá considerar a necessidade de outros meios de prova, que se revelem necessários "ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio". E isso, poderá até acontecer no decurso da audiência de julgamento, ou até antes, se, na situação concreta, o tribunal entender antecipadamente ser essencial à realização desses objectivos a produção de qualquer meio de prova que as partes não requereram.”[...] Não esqueçamos que nos encontramos perante um processo de partes, em que impera o dispositivo quanto à alegação da matéria de facto e quanto ao ónus da prova, com julgamento segundo um critério de legalidade; não é um processo de jurisdição voluntária em que o legislador privilegia a intervenção do tribunal, pela oficiosidade dos atos[...], sem vinculação à observância rigorosa do direito aplicável, designadamente do direito processual” De acordo com Lopes do Rego[6], “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes”. Já assim o lembrava o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2002[7] ao referir que “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal não serve para suprir comportamentos negligentes das partes”, pressupondo “que estas cumpriram minimamente o ónus que sobre elas recai de indicarem as provas de que pretendem socorrer-se”. No caso concreto, requereram os Autores, por o considerarem relevante à demonstração de factos por si alegados, que fosse oficiado “à IGEC, com sede na Av. ..., ... Lisboa, para que remeta aos presentes autos o relatório da inspecção efectuada à ré [...]. E não tendo o tribunal tomado, no momento processual próprio, posição sobre o pedido de requisição antes formulado pelos Autores, insistiram estes, agora no início da audiência de julgamento, para que os elementos pretendidos fossem requisitados à referida entidade, vindo agora o tribunal a ordenar tal requisição, convocando, para o efeito, os seus poderes oficiosos e o princípio do inquisitório plasmado no artigo 411.º. da lei processual civil. Nenhum obstáculo se detecta, assim, que vedasse a possibilidade da requisição dos elementos em causa, podendo o tribunal fazê-lo, por sua própria iniciativa, independentemente de qualquer solicitação das partes, se o considerasse relevante para a descoberta da verdade dos factos em discussão nos autos. Não merece, como tal, qualquer censura o despacho recorrido, que, desta forma, se mantém. * Síntese conclusiva: …………………………… …………………………… …………………………… *
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida. Custas: pela apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Notifique. [Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos] Porto, 9.05.2024 Judite Pires Ana Luísa Loureiro Aristides Rodrigues de Almeida [1] Actuais artigos 429.º, 432.º e 436.º do Código de Processo Civil. [2] Artigo 5.º do Código de Processo Civil e artigos 342.º e seguintes do Código Civil. [3] Processo n.º 549/19.1T8PVZ-A.P1, www.dgsi.pt. [4] Acórdão da Relação de Coimbra de 12.03.2019, proc.º 141/16.2T8PBL-A.C1, www.dgsi.pt. [5] Processo n.º 6775/19.6T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt. [6] Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina. [7] Processo 02A1605, www.dgsi.pt.; em idêntico sentido, cfr. acórdão da Relação do Porto de 2.10.2006, www.dgsi.pt. |