Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | CARLOS CUNHA RODRIGUES CARVALHO | ||
| Descritores: | CONTRATO DE SEGURO RAMO VIDA QUESTIONÁRIO ABERTO DECLARAÇÕES DO SEGURADO | ||
| Nº do Documento: | RP20250626528/20.6T8PVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 06/26/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Doenças preexistentes, condições crónicas ou histórico familiar de doenças podem aumentar a probabilidade de «sinistro», influenciando diretamente a decisão de aceitação do risco pelas entidades seguradoras ou impactando o cálculo do prémio do seguro. II - Retira-se do n.º2 do art.º24 do regime jurídico do contrato de seguro (RJCS) a não obrigatoriedade de apresentação de um questionário por parte do segurador, adoptando-se um sistema de declaração espontâneo/questionário aberto por oposição a um sistema de questionário fechado. III - A obrigação de declarar com exatidão todas as circunstâncias que se conheça e razoavelmente se devam ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido para o efeito. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Proc. 528/20.6T8PVZ.P1
Recorrente: AA Recorrida: A... – Cª Portuguesa de Seguros de Vida S.A. Interveniente: Banco 1... S.A
* Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. AA deduziu contra A... Companhia Portuguesa de Seguros de Vida S.A., ambas com os demais sinais dos autos,
ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO, SOB A FORMA DE PROCESSO COMUM.
Pede que seja:
- a) Reconhecido o direito de activação das apólices de seguros contratadas com a Ré, de forma a serem liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroactivos à data da activação, por se encontrar em situação de invalidez total permanente superior a 66,6% (para efeitos dessa cobertura é considerada 100%)
- b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €10.550,61 (dez mil e quinhentos cinquenta euros e sessenta um cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos (os valores que tem vindo a ser liquidados desde o momento da activação das apólices de seguros 08/2018, até à presente data), acrescida de juros de mora vincendos a contar da citação, custas e demais cominações legais.
- c) E de €30.000,00 (trinta mil euros), como compensação dos danos não patrimoniais sofridos, dentro deste ponto de vista, temos como sendo um valor justo e equitativo, representa aquele quid mínimo que, indo ao encontro das exigências contidas no já citado artigo 496º do Código Civil, poderá ajudar a minorar todo o extenso sofrimento, danos causados a que a Autora foi, injustamente, sujeita, e que, «vistas bem as cousas, a dor de alma é, sem receios de exageros, incomensurável, mau grado os esforços (louváveis) da Psiquiatria em tentar medi-la.» URBANO DIAS, Idem.
Alega[1], no essencial, ter contratado com a ré dois seguros de vida associados ao crédito à habitação e um seguro associado a um crédito pessoal, tendo, em Junho de 2018, informado a seguradora que tinha sido considerada incapaz para trabalhar, em virtude de doenças profissionais, solicitando por sua vez que as apólices dos seguros fossem activadas.
Na sequência do que lhe foram sendo solicitados vários esclarecimentos de documentos que foi sempre fornecendo.
Não obstante isso e estar demonstrada a situação de incapacidade, a ré foi sempre protelando a activação das apólices e acabou por lhe comunicar, em 10 de setembro de 2018 e 23 de Outubro de 2019, que os contratos de seguro haviam sido anulados por a autora e não ter declarado a patologia de que era portadora e que foi diagnosticada em data anterior à celebração dos contratos de seguro.
Mais alega que as patologias que determinaram a sua incapacidade, claramente, advêm da actividade que desempenhou ao longo de quase duas décadas e que se tornaram incomportáveis, não de forma imediata, mas ao longo dos anos, sem que fossem conhecidas à data em que foram celebrados os contratos de seguro.
Sendo que, ao celebrar os contratos, não sofria destes problemas de saúde, não existindo qualquer indicação deste tipo no seu historial clínico.
Donde estando comprovada a sua incapacidade superior a 66% e que não tem condições para trabalhar, já que padece de problemas de visão irreversíveis, tendo uma visão insuficiente para o desempenho de qualquer tarefa, assim como, as lesões e mazelas da coluna, terá direito à activação do seguro e ao pagamento da totalidade do crédito habitação e dos créditos pessoais, com efeitos retroactivos à data do pedido de activação das apólices.
Alega também ter continuado a suportar integralmente os valores mensais de créditos que já deveriam estar liquidados.
A autora alegou ainda ser com muito sacrifício que continua a fazer face às despesas inerentes ao crédito habitação, tendo sofrido danos não patrimoniais com a recusa da ré em proceder ao pagamento devido.
Mais alegou que a si e ao seu marido, também titular dos contratos de crédito e dos de seguro, nunca lhes foi explicado de forma concreta e explicita as cláusulas dos contratos ou fornecida antecipadamente cópia dos mesmos, que assinaram, apenas no dia da celebração dos contratos de crédito, sem lerem o seu conteúdo e sem que lhes fosse explicado o teor e alcance das cláusulas.
Não podendo a ré assim prevalecer-se das cláusulas de exclusão por força das normas previstas no Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro.
(…)
A ré contestou, alegando, no essencial, que a autora e o seu marido, em 09/06/2010, aderiram à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, em que figura como seguradora, para garantir um empréstimo bancário (crédito à habitação) celebrado entre ambos e o “Banco 1...”, sendo este o beneficiário do seguro.
Tendo em conformidade procedido à emissão dos dois certificados individuais de seguro que identificou e comuns à mesma proposta de adesão.
A ré alega ainda que, em 02/09/2015, na qualidade de pessoa segura, a autora aderiu ainda à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, para garantir um crédito pessoal celebrado com o “Banco 1...”, sendo este o beneficiário do seguro, tendo procedido à emissão do certificado individual de seguro nº ...51.
Tendo sido nas datas entregues às pessoas seguras as condições particulares e as condições gerais do contrato de seguro, bem como explicado o seu conteúdo e prestados todos os esclarecimentos sobre coberturas, garantias e exclusões, conforme os mesmos declararam na proposta de adesão.
Mais alega que as adesões foram aceites, à tarifa normal, sem qualquer exclusão e/ou agravamento, tendo por base os elementos, as declarações e as informações clínicas nelas prestadas pelos proponentes, não tendo sido por tal razão necessário exames médicos adicionais, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.
Mais sustentou que os seguros foram aceites no pressuposto de que as declarações efectuadas pelas pessoas seguras não padeciam de incorrecções ou omissões que, no futuro, se fosse esse o caso, poderiam originar a resolução do contrato ou a cessação das garantias conferidas, inclusive, numa eventual participação de sinistro, conforme, aliás, consta das declarações da proposta do seguro, subscritas pelas pessoas seguras, relativamente à exactidão das mesmas.
E que caso soubesse de tais patologias não teria celebrado os contratos ou tê-los-ia celebrado de forma distinta, com exclusão dos riscos inerentes às patologias em causa.
A ré alegou ainda que a autora, em 19/06/2018, remeteu-lhe uma participação de sinistro, tendo-se apurado que, pese embora a autora fosse portadora de um grau de incapacidade de 77%, decorrente de patologias do foro de Oftalmologia, Neurologia e Neurocirurgia, a mesma sofria de uma doença, desde os 16 anos, tendo sido nessa idade submetida a transplante da córnea em Barcelona e tendo efectuado ainda um enxerto da córnea em 2002 e cirurgia para corrigir o estrabismo em 2004.
Mais alegou que na informação clínica enviada existem várias referências a cirurgias realizadas (glaucoma, transplante de Córnea e tratamento Cirúrgico de estrabismo), em Barcelona quando tinha 14 anos e em 2002 e 2004 no Hospital ..., não sendo quaisquer destas intervenções e frequência de várias consultas de Oftalmologia referidas nas suas propostas de adesão, nem em 2010 nem em 2015.
Razão pela qual comunicou à autora, em 23/10/2019, a exclusão nos certificados individuais nº ...90 e ...91, permanecendo como pessoa segura apenas o seu marido e mantendo-se a cobertura dos riscos contratados assim como a garantia perante o Banco, e a recusa do Certificado nº ...51.
Mais alega que a autora tinha o dever de informar de quaisquer circunstâncias que pudessem influenciar a avaliação do risco e não o fez conscientemente, em violação e com as consequências previstas nos artigos 24º a 26 do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de Abril e condições gerais do contrato de seguro.
Tendo ainda alegado que ao contrário do que a autora alegou, não estão em causa quaisquer cláusulas contratuais gerais, mas sim a declaração inicial do risco pelos proponentes.
Sem prejuízo de também ter alegado que o atestado de incapacidade multiusos, apresentado pela autora, não é definitivo, admitindo variação futura e fixa momento para a sua futura reavaliação em 2021.
Sendo que o accionamento da cobertura de invalidez total e permanente não depende apenas da existência de um grau de invalidez igual ou superior a 66,6%, afigurando-se ainda como imprescindível que tal suceda a título definitivo e total, o que não aconteceu.
* Após convite nesse sentido, a autora requereu a intervenção principal provocada do Banco 1..., S.A.
Admitida tal intervenção, procedeu-se à sua citação, não tendo aquele apresentado contestação.
* A autora veio posteriormente requerer a ampliação do pedido para incluir o pagamento adicional de € 30.336,98 (correspondendo € 20.810,98 a capital e juros amortizados do crédito habitação e € 9.496,00 a título de prémios de seguro liquidados).
Tendo a final formulado o seu pedido ampliado nos seguintes termos:
“Termos em que, nos mais de Direito e com o mui douto suprimento de Vossa Excelência, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência ser: a) Reconhecido o direito de activação das apólices de seguros contratadas com a Ré, de forma a ser liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroactivos à data da activação, por se encontrar em situação de invalidez total em permanente superior a 66,6% (para efeitos desta cobertura, é considerado a 100%); b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €40.887,59 (quarenta mil oitocentos e oitenta sete euros e cinquenta nove cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos (os valores que tem vindo a ser liquidados desde o momento da activação das apólices de seguros 08/2018, até à presente data), acrescida de juros de mora vincendos a contar da citação, custas e demais cominações legais. c) bem como deverá ser a Ré ainda condenada, além das prestações já vencidas conforme já requerido, como nas prestações vincendas e todos os valores associados ao crédito, até ao trânsito, bem como no seu pagamento integral do que vier a ser determinado na presente demanda. e) E de €30.000 (trinta mil euros), como compensação dos danos não patrimoniais sofridos, dentro deste ponto de vista, temos como sendo um valor justo e equitativo, representa aquele quid mínimo que, indo ao encontro das exigências contidas no já citado artigo 496º do Código Civil, poderá ajudar a minorar todo o extenso sofrimento, danos causados a que a Autora foi, injustamente, sujeita, é que, «vistas bem as cousas, a dor de alma é, sem receios de exageros, incomensurável, mau grado os esforços (louváveis) da Psiquiatria em tentar medi-la.» URBANO DIAS, Idem. d) Devendo ainda a Ré ser condenada em custas e procuradoria condigna.”.
Tal ampliação do pedido foi admitida.
* Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, seguido de identificação do litígio e enunciação dos temas da prova[2].
Tendo-se procedido a perícia na pessoa da autora, foi realizada audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida a seguinte decisão:
« Pelo exposto decido julgar a presente acção totalmente improcedente e em consequência absolvo os réus de todos os pedidos formulados pela autora, condenando esta última no pagamento integral das custas da acção, sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário que lhe foi concedido.» * Desta decisão a A. interpôs recurso, apresentando alegações e as seguintes conclusões:
a) A decisão recorrida assenta numa errada apreciação da prova e na incorreta aplicação do direito, devendo ser revogada e substituída por decisão que reconheça o direito da Recorrente à ativação da apólice de seguro de vida.
b) A sentença recorrida baseia-se na alegada omissão dolosa de uma doença passada, interpretação que não se sustenta nos factos provados nem na legislação aplicável, ignorando a Lei do Esquecimento (Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro), que à data da decisão já se encontrava em vigor e regulamentada pela Norma Regulamentar n.º 12/2024-R, de 17 de dezembro.
c) A correta aplicação desta Lei impunha uma decisão diversa, impondo-se a revogação da sentença recorrida.
d) O Tribunal a quo considerou que a Recorrente, no momento da celebração do contrato de seguro de vida, omitiu intencionalmente uma doença que sofreu na adolescência, concluindo que essa omissão configuraria dolo, justificando a exclusão da cobertura.
e) Contudo, resultou provado nos autos, através da prova documental e testemunhal, que: - As patologias sofridas pela Recorrente quando era menor estavam completamente curadas há data da celebração do contrato de seguro; - Não existe qualquer relação entre essas patologias e a doença incapacitante que motivou o pedido de ativação da apólice de seguro; - A última intervenção cirúrgica relacionada com essa condição ocorreu em 2003, tendo a Recorrente celebrado o contrato de crédito habitação apenas em 2010 e solicitado a ativação do seguro apenas em 2018, na sequência de uma doença profissional completamente distinta.
f) Assim, a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1.ª instância não sustenta a conclusão de que houve omissão dolosa, impondo-se a alteração dessa qualificação jurídica.
g) A sentença recorrida não teve em consideração a Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro, que já se encontrava em vigor à data da decisão e que estabelece o direito ao esquecimento para pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência.
h) Esta Lei, regulamentada pela Norma Regulamentar n.º 12/2024-R, de 17 de dezembro, impõe a proibição de exigência de informações sobre doenças preexistentes ultrapassadas, não podendo essas doenças ser utilizadas para recusar seguros ou anular apólices já contratadas.
i) Ora, aplicando a referida legislação ao caso concreto: -A doença pré-existente da Recorrente estava completamente ultrapassada há vários anos antes da celebração do seguro; - A seguradora não podia invocar essa doença como fundamento para recusar a ativação da apólice; - O Tribunal estava vinculado à aplicação desta Lei, dado que já se encontrava plenamente em vigor e regulamentada à data da sentença.
j) Ao ignorar completamente a aplicação da Lei n.º 75/2021, a sentença recorrida violou a lei expressamente aplicável ao caso, devendo ser revogada.
k) O Tribunal a quo, ao desconsiderar a Lei do Esquecimento e ao concluir erradamente pela existência de omissão dolosa, chegou a uma decisão manifestamente injusta, ignorando factos essenciais como:
l) O lapso temporal superior a 15 anos entre a última intervenção cirúrgica e a ativação do seguro;
m) A natureza completamente distinta da doença incapacitante;
n) A falta de relevância da patologia ultrapassada para a atual situação clínica da Recorrente.
o) Se o Tribunal tivesse aplicado corretamente a Lei n.º 75/2021, teria necessariamente concluído que a seguradora não poderia recusar a ativação da apólice com fundamento na doença ultrapassada.
p) Em face do exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida, reconhecendo-se o direito da Recorrente à ativação da apólice de seguro de vida.
q) Durante a instrução do processo, foi feita prova inequívoca, com base em documentos, testemunhos e o relatório pericial do Instituto de Medicina Legal (IML), de que RESULTA sem margem de dúvidas: - Incapacidade Permanente da Autora; - A Autora foi diagnosticada com uma incapacidade permanente superior a 70%, conforme atestado pelo relatório do IML; - Esta sua incapacidade permanente compromete de forma irreversível a sua capacidade para o desempenho de atividades habituais, incluindo as tarefas rotineiras do dia a dia;
r) Ficou provado que as atuais patologias que motivaram a incapacidade permanente da Recorrente não têm qualquer relação com doenças ou condições preexistentes à data da contratação da apólice de seguro.
s) A Recorrente esteve livre de qualquer condição médica incapacitante por mais de 10 anos, tendo uma vida normal e sem baixas médicas.
t) A peritagem do relatório do IML é cristalina, sem qualquer margem para dúvidas.
u) Comprova que as patologias incapacitantes são supervenientes, ou seja, surgiram após a celebração da apólice, sendo, por isso, enquadráveis nos riscos cobertos pelo seguro, onde se verifica que as patologias que levaram à sua incapacidade, apenas surgiram ou foram verificadas ESSENCIALMENTE no ano de 2017, que apesar das cirurgias, a levaram ao seu actual estado, mas sempre depois do ano de 2010.
v) Bastando verificar as respostas aos quesitos do relatório do IML, que é que efectivamente tem a competência para que, por direito e formação, possa efectivamente avaliar e opinar os factos em demanda.
w) A Recorrente assinou os documentos relacionados com a apólice de seguro em circunstâncias que violam os princípios da boa-fé e os deveres de informação por parte da Ré.
x) Como ficou patente, os documentos foram apresentados em conjunto para assinatura, sem explicação clara ou detalhamento das cláusulas pela seguradora, contrariando as normas previstas no artigo 5.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril).
y) Ademais, sabe-se que tais documentos são “pré-formatados”, sem possibilidade de alterações pelo consumidor, o que reforça a vulnerabilidade da Autora no momento da contratação, ainda para mais, conforme pode V. Exa. constatar, a pouca literacia da A. e do seu marido, onde deveria acrescer ainda um maior zelo e cuidado por que lhe apresentou os seguros ao crédito habitação... mas como todos sabemos, para pagar, não é necessário nada... basta rubricar e assinar a última página... todos passamos por isto.
z) Comprovando-se, pela prova apresentada e careada pela própria Ré (Doc. 1) e assim até se poderá considerar por confissão, provar-se que os documentos e propostas, foram elaborados e assinados no próprio dia 09/06/2010, bem como pela prova testemunhal, mais concretamente dos testemunhos do Sr. BB e da Sra. CC (funcionária da Ré).
aa) A Ré não apresentou qualquer fundamento válido para justificar o cancelamento da apólice de seguro, agindo de forma unilateral e sem observância dos princípios da boa-fé e da confiança, essenciais nos contratos de seguro.
bb) Tampouco procedeu à devolução dos valores liquidados até à data do cancelamento da apólice, isto é, está em claro abuso de direito e num estado de enriquecimento sem justa causa.
cc) Porque a sua obrigação, mediante o cancelamento unilateral efectuado pela Ré Ocidente, era proceder à devolução de todos os valores pagos desde da sua celebração, até à data em que cessaram, nem isto foi o Tribunal capaz de descortinar... Surreal.
dd) Onde uma vez mais, se comprova o claro erro na apreciação da prova e na falta de pronuncia a que estava obrigado o Juiz a quo.
ee) Nos termos da apólice contratada, estava expressamente prevista a cobertura para situações de incapacidade permanente igual ou superior a 70%, condição que foi preenchida e está comprovada pelos documentos periciais constantes nos autos.
ff) A atuação da Ré ao recusar a ativação da apólice e ao cancelar o contrato de seguro contraria os princípios fundamentais dos contratos de seguro e configura um claro descumprimento contratual, lesando gravemente a Autora, com todos os transtornos e dificuldade de que começou a viver.
gg) O comportamento da Ré é ainda agravado pelo facto de, em nenhum momento, ter alertado ou esclarecido a Autora sobre eventuais limitações ou exclusões contratuais.
hh) Mais grave, foi o que veio a suceder, dando O Juiz a quo, incorreu numa apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas, ignorando as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.
ii) O Tribunal de Primeira Instância não realizou, convenientemente, o exame crítico das provas, violando assim a norma presente no art.º 659.º, n.º 2 do Código Processo Civil.
jj) Isto porque a fundamentação de facto da sentença foram incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo, porque não existe compatibilidade e coerência entre as provas documentais, o teor das inquirições produzidas nos autos e as respostas dadas.
kk) Toda a Sentença ora recorrida, padece de clara sustentação legal, onde uma vez mais, de forma manifesta, incorreu o Juiz a quo numa apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas, ignorando as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.
ll) Teria que ser a Autora com a 4.ª classe do ensino básico, perante tal conclusão, que teria a obrigação ou o dever de “deduzir” ou extrair de uma frase ou expressões, que tal facto consubstanciava uma “resolução do contrato”?
mm) Verificando-se assim, de uma forma patente e cristalina, que o Juiz a quo incorreu, de facto, num erro ostensivo na apreciação da prova, numa apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas, ignorando as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis (documental, testemunhal e pericial) e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.
nn) Senão vejamos, dá o Juiz a quo como não provado o constante no ponto A) Quanto a este ponto, nenhuma das partes o pôs em causa, aliás, consta mesmo dos elementos da celebração dos contratos de seguro e do contrato habitação, que a Ré junta aos autos, mas para que não haja dúvidas, junta a Recorrente o seu extrato de remunerações, onde sem qualquer margem para dúvidas, o período em que esteve a trabalhar para empresa B..., S.A.
oo) Tanto mais, que constatando o próprio despacho Saneador e os TEMAS DE PROVA ai determinado, em momento algum consta os factos considerados como não provada entras aos pontos A) a G), caso contrário, teria a Recorrente entregue a prova ora apresentada, bem como a prova testemunhal que dispensou em virtude do despacho saneador proferido pelo Juiz a quo, pelo que se justifica a presente apresentação.
pp) Quanto ao ponto G), deveria o mesmo ter sido dado como provado, visto que além de já alegado, conforme invocado e junto com a P.I. Isto é, teria que ser dado como provado que a 05-06-2018, foi elaborado relatório pela C..., empresa contratada pela Entidade Patronal da Autora (Doc. 20 junto da P.I.), que menciona que a mesma padece de uma Lesão Músculo Esquelética relacionada com o trabalho, assim como lesões no ombro e lesões na córnea, em virtude das funções inerentes ao seu posto de trabalho/actividades conexas. Que igualmente serve como prova dos restantes pontos a) a g) dos factos não provados.
qq) Quanto ao ponto H), nem sabe a Recorrente como qualificar tal circunstância, depois de toda a prova produzida, essencialmente o relatório pericial do IML, bem como da prova testemunhal produzida, mas concretamente o Sr. BB, DD, EE e FF, cujo depoimento concreto, efetuados de forma serena, isentos e de forma concreta e explicita, não deixa qualquer margem de dúvidas, pelo que, uma vez mais, mal andou o Juiz a quo.
rr) Quanto ao ponto i), volta-se a não compreender, visto que é notório, quer pela prova documental, bem como e essencialmente após o depoimento do Sr. DD, onde justifica e comprava, que era este que vinha auxiliando os seus pais, inclusive, teve que deixar a sua própria casa, para evitar que os seus pais, perdessem a sua própria casa,
ss) Pelo que, não se compreende e nem se pode aceitar, que para determinados factos O Juiz a quo tenha partido de uma premissa menor para provar uma premissa maior, e nos factos acima descritos, não posso partir de uma premissa maior para provar uma premissa menor.
tt) A Recorrente demonstrou a procedência dos seus pedidos com base em prova documental, testemunhal e pericial robusta, sendo evidente que a conduta da Ré não só violou os termos do contrato, como também os deveres de boa-fé e informação impostos pela Lei.
uu) A Apelante cumpriu com todas as suas obrigações legais e contratuais, nunca em momento algum, faltou à verdade ou omitiu os factos que lhe foram questionados, pelo que não compreende a posição e conclusões do Juiz a quo.
vv) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida” (artigo 685º-B, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).
Pede:
1. Seja declarada a inaplicabilidade de qualquer fundamento de exclusão da cobertura do seguro, por força da Lei n.º 75/2021 e da sua regulamentação; 2. Seja reformulada a matéria de facto e de direito, afastando-se a conclusão errada de que existiu omissão dolosa, reconhecendo-se que a doença ultrapassada não teve qualquer impacto na doença incapacitante da Recorrente; 3. Reconhecido o direito de activação das apólices de seguros contratadas com a Ré, de forma a ser liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroactivos à data da activação, por se encontrar em situação de invalidez total em permanente superior a 66,6% (para efeitos desta cobertura, é considerado a 100%); 4. Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €40.887,59 (quarenta mil oitocentos e oitenta sete euros e cinquenta nove cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos (os valores que tem vindo a ser liquidados desde o momento da activação das apólices de seguros 08/2018, até à presente data), acrescida de juros de mora vincendos a contar da citação, custas e demais cominações legais; 5. bem como deverá ser a Ré ainda condenada, além das prestações já vencidas conforme já requerido, como nas prestações vincendas e todos os valores associados ao crédito, até ao trânsito, bem como no seu pagamento integral do que vier a ser determinado na presente demanda. 6. E de €30.000 (trinta mil euros), como compensação dos danos não patrimoniais sofridos, dentro deste ponto de vista, temos como sendo um valor justo e equitativo, representa aquele quid mínimo que, indo ao encontro das exigências contidas no já citado artigo 496º do Código Civil, poderá ajudar a minorar todo o extenso sofrimento, danos causados a que a Autora foi, injustamente, sujeita.
* A R. Cª Seguros contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1ª - O que a A. alega para fundamentar a pretendida alteração à matéria de facto são meras opiniões, divagações e conclusões, em nada enfermando a apreciação crítica de todos os meios probatórios que fez o Tribunal “a quo” tal como consta da criteriosa, cuidada e exaustiva fundamentação da Sentença ora em crise.
2ª - A A. insiste no presente recurso na alegação de que as patologias que determinaram a sua incapacidade atual nenhuma relação têm com o historial clínico que apresenta desde a adolescência, ignorando os registos clínicos e conclusões da perícia médico-legal realizada no âmbito destes autos, nomeadamente, na especialidade de Oftalmologia, quer quanto à data de diagnóstico de cada uma das patologias, quer quanto ao nexo de causalidade com a situação atual, e que lhe determinam, só nesta especialidade, uma incapacidade de 71%.
3ª - A junção de documentos em fase de recurso tem que obedecer ao preceituado nos arts. 425º e 651º do CPC, não tendo a A. demonstrado, nem alegado, que a apresentação não foi possível em momento anterior, nem que a junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância,
4ª - Pelo que deverá ser indeferida a junção de documentos, procedendo-se ao desentranhamento dos mesmos.
5ª - Sem prescindir, a R. impugna os documentos quanto ao seu teor, letra e assinatura.
6ª - Tendo em conta a factualidade provada, não restam dúvidas que a A., na data da adesão aos contratos de seguro, tinha conhecimento do seu estado de saúde e não comunicou os seus problemas de saúde.
7ª - A Lei nº 75/2021, de 18 de novembro, entrou em vigor no dia 01/01/2022, não prevendo efeitos retroativos.
8ª - A Norma Regulamentar nº 12/2024-R, de 17 de Dezembro, só se aplica aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor, 120 dias após publicação.
9ª - Esta Lei consagra o direito ao esquecimento a pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência, melhorando o seu acesso ao crédito a contratos de seguro (art. 1º, nº 1).
10ª - Face aos elementos probatórios constantes dos autos e à factualidade apurada, de forma alguma se poderá considerar que a A. superou ou mitigou a sua situação de risco agravado de saúde.
11ª - Deverá, sim, considerar-se precisamente o contrário, que a A. sofre de patologias oftalmológicas desde a adolescência que evoluíram até à situação de incapacidade em que se encontra atualmente.
12ª - A sentença encontra-se bem fundamentada, concluindo-se pela omissão intencional por parte da A. das patologias de que padecia na data em que contratou os seguros: exotropia alternante (operada no Hospital ... em 2004), queratocone desde os 16 anos, transplante do olho esquerdo aos 20 anos (em Barcelona), transplante do olho direito em 2003 (no Hospital ...); alta miopia (doença progressiva que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017).
13ª - A acuidade visual da A. foi diminuindo em consequência destas doenças degenerativas, pré-existentes na data da contratação dos seguros.
14ª - Quanto à alegada violação do regime das cláusulas contratuais gerais, o questionário médico em causa não constitui qualquer cláusula contratual geral, trata-se da declaração inicial do risco.
15ª - A A. não declarou as patologias de que era portadora e que lhe foram diagnosticadas em data anterior à celebração dos contratos de seguro, e que se tivessem sido declaradas teriam condicionado a aceitação do risco.
16ª - É no momento da subscrição e em função das declarações dos proponentes que a seguradora decide se aceita ou recusa a proposta, se solicita exames complementares, se a eventual aceitação é condicionada ou excluída determinada cobertura, se o prémio é agravado e em que montante, ou qualquer outra hipótese, tendo por base a avaliação da situação concreta, realizada pelo departamento médico.
17ª - A A. tinha o dever de informar a seguradora de quaisquer circunstâncias que pudessem influenciar a avaliação do risco e não o fez conscientemente.
18ª - Caso a R. tivesse conhecimento da situação de doenças pré-existentes, nunca teria aceite segurar o risco em causa.
19ª - Tudo ao abrigo do disposto nos arts. 24º, 25º e 26º do DL 72/2008, de 16 de Abril, e das condições gerais dos contratos de seguro.
20ª - As adesões subscritas pela A. são inválidas nos termos das condições gerais do contrato de seguro e da lei.
21ª - De todo o modo, nos termos do art. 6º, ponto 6.1, al. a) das Condições Gerais, está excluída a cobertura do seguro em caso de doença pré-existente.
22ª - De notar que a incapacidade permanente parcial atribuída à A. de 73%, inclui 71% do foro de Oftalmologia, patologias estas que a R. desconhecia na data da celebração dos contratos de seguro e que eram pré-existentes.
23ª - Pelo que muito bem foram julgados improcedentes todos os pedidos deduzidos pela A. nos presentes autos, como deverá também ser julgado improcedente o presente recurso.
Termos em que, julgando-se improcedente o presente recurso, mantendo-se a douta a Sentença recorrida e julgando-se a ação totalmente improcedente se fará inteira JUSTIÇA!
* O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
* Foram colhidos os vistos legais.
*
II. O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:
1. Em 09/06/2010, a autora AA e o seu marido BB, assinaram a proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, em que a ré figura como seguradora, para garantir um empréstimo bancário (crédito à habitação) celebrado entre ambos e o “Banco 1...”, sendo este o beneficiário do seguro, nos termos que resultam do documento nº 1 junto com a contestação e que aqui se dão como integralmente reproduzidos. 2. Tendo então a ré procedido à emissão dos certificados individuais de seguro, com inicio em 18/06/2010: - nº ...90, com o capital seguro inicial de € 73.500,00 (sessenta e três mil e quinhentos euros), com as coberturas de morte e invalidez total ou permanente (ITP), nos termos que resultam do documento nº 2 junto com a contestação e que aqui se dão como integralmente reproduzidos. - nº ...91, com o capital seguro inicial de € 6.000,00 (seis mil euros), com as coberturas de morte e invalidez total ou permanente (ITP), nos termos que resultam do documento nº 3 junto com a contestação e que aqui se dão como integralmente reproduzidos. 3. A apólice de seguro do ramo vida nº ...90 ficou sujeita às condições gerais e especiais que constam do documento nº 4 junto com a contestação que aqui se dá por integralmente reproduzido. 4. Na cláusula quarta das condições especiais empréstimos referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, consta o seguinte: “1. O pagamento do capital seguro torna-se exigível no momento em que se verifique, em relação à Pessoa segura, um dos riscos cobertos pelo contrato. O Segurador garante pagamento de um único capital, ainda que o risco respeite a duas Pessoas seguras.”. 5. Na cláusula sexta das condições gerais referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, consta o seguinte: “1. Não se consideram cobertos por este contrato os riscos resultantes de: a) doença pré-existente, considerando como tal, toda a alteração involuntária do estado de saúde de Pessoa segura, não causada por acidente e susceptível de constatação médica objectiva, e que tenha sido objecto de um diagnóstico ou que com suficiente grau de evidência se tenha revelado, em data anterior à da celebração do presente contrato, salvo o caso em que tenha havido comunicação formal ao Segurador, e aceitação por parte deste, mediante as condições que para o efeito tenham sido estabelecidas;”. 6. Nas condições especiais da cobertura complementar por invalidez total e permanente referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, na cláusula primeira, consta o seguinte: “e) Invalidez Total e Permanente - A Pessoa encontra-se na situação de invalidez Total e Permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%.”. 7. Os capitais seguros foram sendo anualmente actualizados sendo que, em 19/06/2018, os capitais dos referidos certificados ascendiam a € 61.970,33 e € 5.056,95, respectivamente. 8. Em 02/09/2015, a autora assinou a proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, em que a ré figura como seguradora, para garantir um crédito pessoal celebrado com o “Banco 1...”, sendo este o beneficiário do seguro, nos termos que resultam do documento nº 5 junto com a contestação e que aqui se dão como integralmente reproduzidos. 9. Tendo a ré procedido então à emissão do certificado individual de seguro nº ...51, com o capital seguro de € 1.067,17, com as coberturas de morte, invalidez total e permanente por acidente (ITP) e invalidez absoluta e definitiva (IAD), pelo prazo de três anos, nos termos que resultam do documento nº 6 junto com a contestação e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, com inicio em 08/09/2015 e termo em 08/09/2018. 10. A apólice de seguro do ramo vida nº ...20 ficou sujeita às condições gerais e especiais que constam do documento nº 7 junto com a contestação que aqui se dá por integralmente reproduzido. 11. Na cláusula sexta das condições gerais referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, consta o seguinte: “1. Não se consideram cobertos por este contrato os sinistros resultantes de: a) doença pré-existente, considerando-se como tal toda a alteração involuntária do estado de saúde da Pessoa segura, susceptível de constatação médica objectiva, e que tenha sido objecto de um diagnóstico ou que, com suficiente grau de evidência, se tenha revelado em data anterior à da adesão ao presente contrato, salvo quando tenha havido comunicação formal ao Segurador, e aceitação por parte deste, nas condições que para o efeito tenham sido estabelecidas;”. 12. Nas condições especiais do crédito pessoal temporário da cobertura complementar por invalidez total e definitiva referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, na cláusula primeira, consta o seguinte: “Para efeitos desta cobertura complementar, considera-se: ACIDENTE: Todo o acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido à acção de uma causa exterior e estranha à vontade da Pessoa Segura e que nesta origine lesões corporais. DOENÇA: Toda a alteração involuntária do estado de saúde da Pessoa Segura, não causada por acidente e suscetivel de constatação médica objectiva. INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA: A Pessoa Segura encontra-se em situação de Invalidez Absoluta e Definitiva se, em consequência de doença ou acidente, estiver totalmente incapacitado de exercer qualquer profissão ou atividade remunerada, com fundamento em sintomas objetivos, clinicamente comprovados, necessitando de recorrer, de modo continuo, à assistência de uma terceira pessoa para efetuar atos normais de vida diária”. 13. Nas condições especiais da cobertura complementar por invalidez total e permanente referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, na cláusula segunda, consta o seguinte: “Pelo presente contrato, o Segurador garante o pagamento do Capital Seguro definido nas Condições Particulares ou Certificado Individual da apólice, em caso de Invalidez Total Permanente da Pessoa Segura, em consequência de acidente ocorrido durante a vigência desta cobertura.”. 14. A autora recebeu as condições gerais e particulares referidas em 3) e 10). 15. Em Junho de 2018, a autora informou a seguradora que tinha sido considerada incapaz para trabalhar, em virtude de doenças profissionais, solicitando que as apólices dos seguros fossem activadas. 16. A ré remeteu à autora então a carta, datada de 25/06/2018, com o teor que resulta do documento nº 4 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzida, entre o mais, solicitando-lhe os documentos ali discriminados para análise do processo de indemnização. 17. A autora, através de advogado, remeteu então à ré seguradora a carta, datada de 02/08/2018, com o teor que resulta do documento nº 5 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzida, entre o mais, juntando além de outros documentos, um atestado médico de incapacidade multiuso, com data de 07/06/2018, atribuindo à autora um grau de incapacidade de 77%. 18. A ré remeteu então à autora as cartas, datadas de 04/09/2018, 22/11/2018, 17/04/2019 e 27/08/2019, com o teor que resulta dos documentos nºs 6, 9, 11 e 13, juntos com a petição inicial, que aqui se dão como integralmente reproduzidos, entre o mais, solicitando-lhe os documentos ali discriminados. 19. A autora foi remetendo à ré os vários documentos que lhe foram sendo pedidos, designadamente através das cartas datadas de 05/11/2018, 18/02/2019, 16/04/2019 e 13/09/2019, sem prejuízo de igualmente solicitar o accionamento das apólices por entender mostrar-se já comprovada a situação de invalidez, nos termos que resultam dos documentos nºs 8, 10, 12 e 14, juntos com a petição inicial, que aqui se dão como integralmente reproduzidos. 20. A ré remeteu à autora uma carta datada de 10 de Setembro de 2018, com o teor que resulta do documento nº 13 junto com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido, a informar que o contrato de seguro de apólice ...20 havia sido anulado. 21. Em resposta a autora, através de advogado, em 05/10/2018, enviou à ré o email com o teor que resulta do documento nº 7 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 22. A autora, em 07/11/2017, foi consultada em oftalmologia no Hospital ..., onde foi elaborado Relatório para a Médica de Família, com o teor que resulta do documento nº 17 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzido. 23. Em 11/06/2018, foi emitida uma declaração médica pela Dra. GG, com o teor que resulta do documento nº 18 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzido. 24. Em 25/10/2018, foi emitida uma declaração médica com o teor que resulta do documento nº 24 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzido. 25. Em 03/01/2019 foi elaborada informação clínica por um oftalmologista do Hospital ..., com o teor que resulta do documento nº 25 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzido. 26. Através de atestado médico de incapacidade multiuso, com data de 07/06/2018, foi atribuído à autora um grau de incapacidade de 77%. 27. A autora foi observada por perito médico no INMLCF, constando do relatório junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, as seguintes conclusões: “1. A Examinanda é portadora de patologia do foro oftalmológico, tendo sido submetida a exame de especialidade de Oftalmologia, cujas conclusões se encontram acima transcritas. 2. A Examinanda é portadora de patologia do foro otorrinolaringológico, tendo sido submetida a exame de especialidade de Otorrinolaringologia, cujas conclusões se encontram acima transcritas. A Examinanda é portadora de epicondilite do cotovelo direito, epicondilite do cotovelo esquerdo, tendinose do supraespinhoso, tenossinovite do polegar esquerdo, artrose da tibiotársica direita, discopatia cervical e discopatia lombar. 3.1. Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre patologia natural e o estado clínico descrito nos registos clínicos disponíveis, atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe adequação entre a sede da patologia natural e o estado clínico apresentado; existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre a doença natural, os tratamentos necessários e o estado clínico apresentando; o estado clínico apresentando é adequado a uma etiologia de patologia natural subjacente; o tipo de patologia natural é adequado a produzir o quadro clínico apresentado; se exclui a existência de uma causa estranha relativamente à patologia natural subjacente e se exclui a pré-existência do quadro clínico apresentado. 3.2. Estas condições são de carácter permanente e passíveis de agravamento, embora com provável oscilação sintomatológica em função de fatores externos, alternando períodos de agudização sintomatológica com outros de menor expressão clínica e com repercussão na sua capacidade de trabalho geral e profissional, principalmente aquando de períodos de agudização das sintomatológica. 4. No âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes: - Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica. Este dano é avaliado relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos), considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida) e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, tendo como elemento indicativo a referência à Tabela Nacional de Incapacidades (Anexo I do Dec-Lei 352/07, de 23/10). Assim, consideraram-se os danos permanentes constantes na tabela seguinte:
Nesta conformidade, atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas afetarem a Examinada em termos de autonomia e independência, sendo causa de sofrimento físico e limitando-a em termos funcionais, atribui-se um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 73 pontos. - Repercussão Permanente na Actidade Profissional: No caso em apreço a examinada encontra-se impossibilitada do exercício de qualquer profissão tendo em conta as sequelas oftalmológicas - Dependências Permanentes de Ajudas: - Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular - ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepiléticos, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária). Neste caso, medicação analgésica para controlo sintomatológico das queixas álgicas, a melhor caracterizar pelo médico assistente. Admite-se também a necessidade de lentes de contacto, cuja graduação deverá ser regularmente revista, de acordo com a evolução do quadro clínico do foro Oftalmológico. - Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas - ex.: fisioterapia). Neste caso, consultas médicas regulares de especialidade de Oftalmologia e de Otorrinolaringologia. A título de exemplo, sugerem-se duas consultas de cada especialidade por ano, com vista ao controlo sintomático e controlo da doença. - Adaptação do domicílio, do local de trabalho ou do veículo (corresponde à necessidade de recurso à tecnologia a nível arquitetónico, de mobiliário e/ou equipamentos, no sentido de permitir a realização de determinadas atividades diárias a pessoas que, de outra maneira, o não conseguiriam fazer sem a ajuda de terceiros). Neste caso, a Examinada necessitará de adaptação dos locais que habitualmente frequenta, devido à diminuição da sua acuidade visual, tornando-os mais amplos e menos propícios a acidentes. - Ajuda de terceira pessoa (corresponde à ajuda humana apropriada à vítima que se tornou dependente, como complemento ou substituição na realização de uma determinada função ou situação de vida diária). Neste caso, admite-se que a Examinada necessite de ajuda parcial de terceira pessoa, nomeadamente para a realização das atividades de vida diária que impliquem a realização de cuidados de higiene (como por exemplo tomar banho), tendo em conta a diminuição da sua acuidade visual e com vista à sua segurança. 28. No referido relatório constam ainda as seguintes respostas aos quesitos: “1. A A. padece de incapacidade permanente impeditiva do exercício de qualquer atividade remunerada, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais? Refere estar reformada por invalidez. Admite-se que sim face às patologias de que padece. 2. Se sim, de que grau Ver conclusões 3. Se superior a 66.6%, desde quando? Ver conclusões 4. Quais as patologias que determinam a incapacidade e qual o respetivo grau de incapacidade? Ver conclusões 5. Qual a data de início e de diagnóstico de cada uma das patologias? Exotropia alternante desde 2004, transplante do olho esquerdo aos 16 anos de idade, CPP do olho direito em 2022, espondilouncartrose cervical documentada em 2017, lama biliar documentada em 2017 com posterior colecistemia (data não documentada mas sempre após 2017), epicondilites bilaterais documentadas em 2016, alterações otorrinolaringológicas segundo perícia desde 2019, artrose tibiotársica e tendinopatia direita documentada em 2017, gonartrose e patologia artrósica da coluna lombar documentada em 2018 6. Qual a evolução clínica das mesmas Segundo otorrinolaringologia, do seu foro, imprevisível. As alterações artrósicas é expetável evoluir com agravamento ao longo dos anos. Pela oftalmologia, imprevisível. 7. A A. necessita de recorrer, de modo contínuo, a ajuda de terceira pessoa para os atos normais da vida diária? Por Otorrinolaringologia não. Pelas alterações degenerativas, artrósicas, não embora possa ter limitações por dores nas regiões da coluna, ombro, joelho, cotovelos e tibiotársica direita, e por limitação funcional dos ombros. Por oftalmologia É expectável que a doente consiga realizar os atos normais da vida diária com maior ou menor limitação. Em termos práticos, admite-se o referido pela própria nas Queixas deste relatório pericial, pelo que necessita de ajuda de terceira pessoa para muitos dos atos de vida diária. Embora não necessite de ajuda em todo e qualquer momento (como por ex. vigilância durante o sono), necessita de ajuda em muitas tarefas de forma mais ou menos acentuada. Em termos gerais e do dia-a-dia é de considerar ter de haver disponibilidade contínua de terceira pessoa para eventual, já que vai necessitando de ajuda em menor ou maior grau mas nos mais variados atos do dia-a-dia. Deste modo, em resposta ao quesitado: sim”. 29. Do relatório elaborado pelo INMLCF consta ainda que, do exame complementar da especialidade de oftalmologia, realizado no dia 3 de Fevereiro de 2022, resulta o seguinte: “- transplante da córnea bilateral (suspeita de queratocone); CPP OD 7,25/7,50) há 10 anos no HSJ; CPP OE há 30 anos em Barcelona por ceratocone; - alta miopia, complicada de neovascularização miópica do olho direito que resolveu com 4 injeções intravitreais de anti-VEGF em 2017; -astigmatismo elevado corrigido com lentes de contacto (não tolera óculos); - exotropia alternante operada CHSJ em 2004. À data da consulta: AV OD 5/10 com lente de contacto; AV OE 4/10 com lente de contacto. BIO OD enxerto transparente, com LC catarata incipiente; BIO OE neovasos na córnea recetora que atingem enxerto em vários pontos, LC algo degradada, enxerto trans com shagreen posterior?, catarata incipiente. FO OD coroidose miópica com tilt disc e atrofia peripapilar ++, mácula com NVC cicatricial e mobilização pigmentar, retina aplicada. FO OE difícil visualização, mas retina aplicada e sem lesões de neovascularização. Campo visual, cinética de Goldman. OD - constrição das isópteras com isóptera l4 entre 10-20º. OE - constrição das isópteras, mais acentuada que no olho direito, com isóptera l4 inferior a 10º. Admite-se diminuição generalizada da sensibilidade da retina por alterações da superfície ocular, relacionadas com antecedentes oculares. Em resumo, doente com vários antecedentes oculares de relevo. Apresenta boa acuidade visual com lentes de contacto, mas apresenta alterações do campo visual em provável relação com diminuição da sensibilidade da retina. Tabela Nacional de Incapacidades: Acuidade visual 0,05; Campo visual 0,66”. 30. Nos esclarecimentos prestados pela especialidade de Oftalmologia, datado de 18/10/2023, conforme documentos junto aos autos em 13/11/2023, consta o seguinte: “(...) Em relação às patologias em causa: - A doente apresenta antecedentes de exotropia alternante, que mais provavelmente será congénita, tendo sido operada no Centro Hospitalar ... em 2004. - A doente realizou transplante da córnea de ambos os olhos por presença de queratocone. Esta é uma doença que geralmente começa na adolescência. A doente fez transplante do olho esquerdo por volta dos 20 anos de idade em Barcelona e do olho direito no Centro Hospitalar ... em 2003. - A doente apresenta alta miopia, doença progressiva, que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017, tendo tido necessidade de realização de 4 injeções intravitreas de anti-VEGF. A situação clínica está estável desde então. As patologias acima descritas são crónicas e passíveis de agravamento clínico a qualquer momento. Não é expectável uma melhoria clínica do quadro clínico atual, eventualmente uma estabilização. A acuidade visual da doente sem correção ótica é muito baixa, porém com o uso de lentes de contacto melhora significativamente. De salientar que dado os antecedentes de transplante de córnea e o elevado astigmatismo residual, não é possível a correção da visão com o uso de óculos, apenas com lente de contacto. Os campos visuais da doente estão significativamente alterados pelas patologias acima descritas, porém é expectável que a doente consiga realizar os atos normais da vida diária com maior ou menor limitação”. 31. Por carta datada de 23/10/2019, a ré declarou à autora, entre o mais, declinar a responsabilidade pelo pagamento dos capitais seguros e proceder à exclusão da mesma dos certificados nºs ...90 e ...91, passando estes a ficar unicamente titulados por BB, tudo nos termos que resultam do documento nº 27 junto com a petição inicial, que aqui se dá como integralmente reproduzido. 32. Em 19/06/2018, o capital em divida relativo ao empréstimo à habitação ascendia ao valor de € 60.882,82. 33. A autora e o seu marido, no período compreendido entre 05/07/2018 e 10/09/2024, pagaram prestações relativas ao empréstimo à habitação no valor global de € 20.810,98, conforme declaração emitida pelo Banco 1..., S.A., junta aos autos em 03/10/2024, que aqui se dá como integralmente reproduzida. 34. Nos anos de 2018 a 2024 foram pagos prémio de seguro no valor total de € 9.496,00. 35. Na proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, a autora preencheu o questionário médico ali existente, nos termos que resultam do documento nº 1 junto com a contestação. 36. No referido questionário, entre outras, constavam as seguintes perguntas: “1. Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica? 4., Tem alguma alteração física ou funcional, teve algum acidente grave, foi submetido a alguma intervenção cirúrgica ou recebeu alguma transfusão de sangue?”. 37. A tais perguntas a autora respondeu não. 38. A adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...90 foi aceite pela ré, à tarifa normal, sem qualquer exclusão e/ou agravamento, tendo por base os elementos e as declarações prestadas pela autora na referida proposta de adesão. 39. Na proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...20 consta a seguinte declaração: “Declaro que até à presente data não me foi atribuído qualquer grau de Incapacidade funcional, que estou de boa saúde e que no último ano não estive sujeito a qualquer tratamento médico regular nem fui aconselhado a ser hospitalizado para me submeter a uma intervenção cirúrgica ou a tratamento médico. Mais declaro que nos últimos 3 anos não estive sujeito a tratamento clínico durante mais de 3 semanas consecutivas. Declaro ainda que sei que a omissão ou falsas declarações conduzem à nulidade da minha adesão à apólice de seguro subjacente ao presente contrato.”. 40. À referida declaração a autora respondeu sim, preenchendo o campo respectivo. 41. A adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...20 foi aceite pela ré, à tarifa normal, sem qualquer exclusão e/ou agravamento, tendo por base os elementos e as declarações prestadas pela autora na referida proposta de adesão. 42. De acordo com os procedimentos normais da ré, atendendo ao teor das respostas dos proponentes aos questionários médicos e nada sendo reportado, não são realizados exames médicos complementares e caso a autora tivesse dado respostas afirmativas ao referido questionário médico, teria que responder a um questionário clínico mais detalhado e fazer exames médicos. 43. A autora sofre de Exotropia alternante, tendo sido operada no Hospital ... em 2004, conforme decorre dos elementos clínicos juntos aos autos em 27/01/2022, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. 44. A autora sofre de queratocone desde os 16 anos, tendo feito transplante do olho esquerdo por volta dos 20 anos de idade em Barcelona e do olho direito no Centro Hospitalar ... em 2003. 45. A autora apresenta alta miopia, doença progressiva, que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017. 46. Em consequência da diminuição da sua acuidade visual a autora necessita de ajuda parcial de terceira pessoa, nomeadamente para a realização das actividades de vida diária que impliquem a realização de cuidados de higiene (como por exemplo tomar banho) e ajuda de terceiros para se deslocar e cuidar da casa. 47. Caso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias não teria celebrado o contrato de seguro nos termos em que o fez, nomeadamente, no que diz respeito à cobertura de invalidez total e permanente. * E deu como não provados os seguintes factos: a) A autora, laborou na empresa B..., S.A., desde Janeiro de 2003 até Abril de 2019. b) Durante o exercício das suas funções na referida empresa usava a massa KLÜBERYNTH – LR 44-21, composta por lítio, hidrocarbonetos sintéticos e óleo mineral, causando-lhe o produto em causa irritações nas mãos e a nível ocular. c) Trabalhava ainda com um líquido, denominado por MAN RENOVA S que esguichava para os mordentes ao fazer os cortes do cabo de aço, muitas vezes atingindo-lhe a face, o que além de lhe causar irritações na pele, lhe causava irritações oculares. d) A utilização deste químico, que a altas temperaturas libertava muito fumo e um forte odor, difícil de suportar afectava-lhe inclusive a garganta. e) Na área em que trabalhava, a luz era demasiado forte, o que acrescido às tarefas que desempenhava, e a maior parte das vezes, sem as devidas condições, a obrigava a esforçar ainda mais a vista, até porque as suas tarefas exigiam muita concentração. f) Na produção de cabos, utilizava também a ferramenta espiral, que era prensada por uma outra máquina. Essa tarefa requeria injecção plástica e às vezes existia explosão desses materiais, onde sofreu com a elevada libertação de gases tóxicos. g) O descrito em b) a f) deu origem às patologias diagnosticadas à autora e que se provaram. h) A autora, em 2010, não sofria dos problemas de saúde que se provaram, não existindo qualquer indicação deste tipo no seu historial clínico. i) Em que condições a autora e o seu marido foram pagando as prestações referentes ao crédito à habitação desde a data do pedido de accionamento das apólices. j) Nunca foi fornecida cópia dos contratos à autora e ao seu marido e apenas no dia da celebração dos contratos de crédito e seguros, lhes colocaram a sua frente os documentos para assinarem, sem lerem o seu conteúdo e explicado o teor e alcance dessas cláusulas.
* III. É consabido que resulta dos art.635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[3], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar as seguintes questões:
1. Nulidade da decisão;
2. Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida sob os pontos A-H, também do facto constante do ponto I, todos dos não assentes[4];
3. Direito de activação das apólices de seguro contratadas pela A. com a ré, de forma a serem liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroactivos à data da activação, bem como o direito a exigir da ré as quantias peticionadas a título de indemnização por danos patrimoniais e danos não patrimoniais que alega ter sofrido[5].
* Questão prévia: documentos juntos com o recurso.
Com as alegações que apresentou, a apelante junta documentos.
A essa junção reagiu a apelada referido que devem ser desentranhados.
Refere:
«Acresce que, quanto aos factos não provados, veio a A. em sede de recurso juntar documentos para os tentar agora demonstrar.
A junção de documentos em fase de recurso tem que obedecer ao preceituado nos arts. 425º e 651º do CPC, não tendo a A. demonstrado, nem alegado, que a apresentação não foi possível em momento anterior, nem que a junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância.
Pelo que deverá ser indeferida a junção de documentos, procedendo-se ao desentranhamento dos mesmos.»
A apelante não alega qualquer justificação para juntar 4 documentos com as alegações que apresentou.
Autoriza a junção de documentos às alegações o art.º651.º, n.º1, do CPC, referindo que «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art.º425.º[6] ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância»
A apelante não justifica a junção pretendida dos 4 documentos que apresentou conjuntamente com as alegações, sequer o requerer, apenas fazendo menção da junção na página 1 («junta: Alegação, 4 documentos (….)»).
Tanto bastaria esse facto para não os relevar.
Não obstante existe outro fundamento, relacionado com os requisitos exigidos para seja viável a junção.
O doc.1 está datado de 12 de julho de 2018.
Os doc.s 2, 3 e 4 não estão datados, mas, visto o respectiva teor e natureza (com a epigrafe: instrução de ambiente e segurança e comunicação de riscos de segurança e ambiente da B...), estariam acessíveis quando foi introduzida a acção em juízo.
Por conseguinte inviável a junção respectiva por via da primeira parte do artº651.º, n.º1, do CPC.
E ao abrigo da 2º parte?
Como se topa do teor do doc.1 procura-se com ele provar o que consta na al.a) dos factos dados como não provados, ou seja, que a apelante trabalhava na B....
Já os restantes documentos estariam vocacionados à prova do que consta dos pontos b) a f) dos factos não provados.
Por conseguinte matéria objecto dos autos por via do fundamento da recusa da activação dos seguros em crise e que, com a acção, se pretendia contornar.
Mais a mais, que isso mesmo resulta inclusivamente do que se fixou em sede de enunciação dos temas da prova: (…) - patologias de que a Autora padecia aquando da subscrição dos contratos de seguro invocados nos autos; - incapacidade de que atualmente padece a Autora; - patologias que estão na origem dessa incapacidade.»
A junção ao abrigo da 2ª parte do art.651.º do CPC tem sido lida como admissível apenas quando tal junção «se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido. A jurisprudência tem entendido de modo uniforme, que não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a arte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
(…)
Tem-se entendido que a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseou em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam (STJ 26-9-12, 174/08, RP 8-3-18, 4208/16 e RL 8-2-18, 176/14) »[7]
Em face desta leitura quanto à admissibilidade dos documentos com as alegações ao abrigo da 2ª arte do artº651.º do CPC, leitura uniformemente aceite, visto o teor dos documentos e o que com eles se visa, temos por ilegal a respectiva junção.
Destarte não serão os mesmos relevados, devendo, a final, serem desentranhados e devolvidos.
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1. Nulidade da decisão.
A apelante ensaia nas suas alegações uma discordância quanto à fundamentação da decisão do tribunal a quo, referindo em epígrafe a fls.17 à FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DOUTA DECISÃO DO TRIBUNAL A QUO.
Refere a fls.17 que «[n]ão existe qualquer menção da prova que levou às conclusões de facto reflectidas na sentença, nem qualquer referência aos depoimentos das testemunhas, que perante o caso concreto, deveriam (ou não) provar um ou outro facto, pondo em crise o vertido no artigo 659º do Código Processual Civil.», adiantando de seguida, após citação de aresto da Relação de Coimbra, sob a epígrafe DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO que «[sabe a Apelante que o Juiz a quo decide de acordo com a sua prudente convicção com base na análise crítica das provas apresentadas, mas é imperativo que se explique às partes como é que esta se formou. É que não tendo explicado o seu fio condutor, a parte que agora recorre só pode presumir que era aquela a intenção do juiz.
O que, de facto, não aconteceu, pelo que estamos aqui perante uma Sentença viciada.»
Citando novamente o mesmo acórdão fecha o assunto afirmando: «Ora, para a Apelante está patente uma clara violação do referido no nº 4 do artigo 607.º do CPC, ao não se verificar, em parte alguma da Sentença, qualquer consideração acerca dos factos admitidos por acordo, por documento ou por confissão, não faz qualquer exame crítico das provas, num mesmo depoimento, valoriza parte do mesmo e depois menciona que outra parte não foi credível, enfim resulta claro um claro e nítido vazio de fundamentação na Douta Sentença.»
Não obstante, nenhuma invocação expressa de uma qualquer nulidade da sentença é formulada, sequer nas conclusões como se impunha, essencial e central na definição do objecto do recurso.
Fala-se, tão só, sem disso se tirar quaisquer consequências, em «falta de pronuncia a que estava obrigado o juiz a quo» (conclusão dd)), incompreensivelmente, o «tribunal violando o artº659.º, n.º2 do CPC»[8] por não ter realizado convenientemente o exame crítico da prova (conclusão II).
De todo modo, diremos muito brevemente que a decisão está fundamentada não padecendo de qualquer patologia com ela relacionada.
Como refere, bem, o senhor Juiz autor da decisão posta em crise, chamado a pronunciar-se nos termos do art.º617.º n.º1 do CPC., a decisão não sofre de qualquer vício relacionada com a sua fundamentação.
Refere:
«(…. conforme resulta do artigo 615º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Tal nulidade está conexionada com o disposto no artigo 154º nº 1 do Código de Processo Civil, de onde resulta que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. Tem-se por pacifico e notório que ressalta do teor da decisão que foram exaustivamente explicados os motivos que determinaram a prolação de decisão de mérito e as razões que determinaram a improcedência do peticionado pela autora. A autora pode não concordar, mas daqui não decorre qualquer nulidade. (…)»
Mas vejamos se existe alguma nulidade reconduzível ao art.º 615.º1, al.b), do CPC.
O vício de fundamentação a que se apela – alínea b), do citado nº. 1 do art. 615º do CPC -, a apreciar no campo do error in procedendo, concretiza-se na omissão da especificação dos fundamentos de direito ou na omissão de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão.
Todavia, na nossa óptica, de resto nem sendo maioritária, segundo cremos, não é só a absoluta falta de fundamentação da sentença que gera a nulidade. A fundamentação gravemente deficiente também gera a sua nulidade.
Refere Rui Pinto «[a] falta de fundamentação a que se refere a al. b) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre, seja quando não há nenhuma fundamentação (de direito ou de facto) da parte dispositiva, seja quando falta, em termos funcionais e efetivos, algum segmento da fundamentação exigida pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º. Trata-se, em ambos os casos, de um vício grosseiro, grave e manifesto, como é próprio dos vícios arrolados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º. Um entendimento conforme ao artigo 205.º, n.º 1, da Constituição impõe esta interpretação de modo a garantir sempre um mínimo de impugnação de tipo de reclamatório, para as sentenças que não admitam recurso ordinário. Portanto, a falta de fundamentação não tem de ser total, pelo que subscrevemos na integra a conclusão do ac. RG 18-1-2018/Proc. 75/16.0T8VRL.G1 (ANTÓNIO BARROCA PENHA), na esteira do ac. RC 17-4-2012/Proc. 1483/09.9TBTMR.C1 (CARLOS GIL) de que “ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial”, assim, “não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação” (STJ 2-3-2011/Proc. 161/05.2TBPRD.P1.S1 (SÉRGIO POÇAS))»[9]
Admite, no entanto, que esta jurisprudência é minoritária.
Ora da análise da fundamentação, cuja falta se imputa, não logramos chegar a referida patologia, sequer aqueloutra: fundamentação gravemente deficiente.
Quando muito estaríamos perante fundamentação que não apresenta o mérito demonstrativo suficiente, por isso mesmo a impugnação da matéria de facto produzida pela apelante.
De facto, «[s]ituação diversa da falta de fundamentação, é a fundamentação existente não apresentar o mérito demonstrativo suficiente para justificar a parte dispositiva. Tal ocorre quando a fundamentação existe formalmente, mas padece de insuficiência, mediocridade ou erroneidade. Ora, uma coisa é a decisão não conter fundamentação e, outra, é “bem ou mal, o tribunal fundamenta[r] a decisão” (RP 11-1-2018/Proc. 2685/15.4T8MTS.P1 (FILIPE CAROÇO)). É como um tertium genus, “entre a fundamentação completa, total e indubitável e a falta de fundamentação” (TCAN 28-4-2016/Proc. 00385/08.0BEBRG (MÁRIO REBELO)). Aqui já não se trata de uma causa da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º, mas de uma causa de recurso, por erro de julgamento.»[10]
Não está, neste caso, em causa a regularidade formal do acto decisório.
Neste caso, a questão não terá sido bem julgada, embora a decisão – isto é, o acto processual decisório – possa ter sido formalmente bem elaborada. A decisão (acto decisório) que exteriorize um error in judicando não é, com este fundamento, inválida.
O meio adequado à sua impugnação é o recurso, sendo o objecto deste o julgamento em que assenta a pronúncia.
Basta ler o recurso para perceber que o fundo da questão tem que ver com o acerto substantivo da decisão.
Não se perscruta qualquer nulidade.
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2.- Da impugnação da decisão da matéria de facto
A benefício da decisão quanto à impugnação da matéria de facto, quiçá excessivamente em face da sua utilidade no recurso vertente, importa reproduzir o que se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 5.12.24 e proferido no processo 245/22.2T8PRD-C.P1[11]:
«O presente recurso versa sobre o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1º instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: .- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a); .- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b); .- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.
Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.
A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).
O seu fim último é, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.
Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).»
A benefício da decisão que se impõe, importa também afirmar o seguinte, transcrevendo o escrito no Ac. da Relação de Guimarães de 2.11.17[12]:
«(…) o âmbito de apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
Por fim chamar à colação o referido no Ac. da R.P. de 6.3.25[13]:
«Note-se que a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.»
* Resulta impugnada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, relativamente aos factos constantes dos pontos A-H dos não assentes, também do facto constante do ponto J), portanto com exclusão de quaisquer outros factos como atrás se afirmou e pelas razões que aí se referiram (vide nota 4).
Dizer ainda a propósito desta exclusão que, se na alegação se ensaia a impugnação de alguns factos provados, ou seja, os ponto 35, 36, 37, 39, 40, 47 (pg.8 e 9), nas conclusões, ao invés de se fazer «eco» desses concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, afirma-se apenas que «a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1ª instância não sustenta a conclusão de que houve omissão dolosa, impondo-se a alteração dessa qualificação jurídica» (conclusão f)).
Quanto ao facto constante do ponto J, talvez apenas quanto a sua primeira parte, diz-se algo na conclusão Z)), todavia sem se identificar o ponto concreto e o sentido que se pretendia decidido.
Não obstante, o aspecto contra o qual a apelante se debate nas alegações (página 5), se bem se alcança, está pelo menos centrado e parte do facto constante do ponto 35, prendendo-se com o momento em que foi assinado o questionário médico que aí se faz menção: se no momento da assinatura da proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...90… ou, como defende, no próprio dia da celebração do contrato – vide página 5.
Cremos que o que a apelante pretende dizer é que o dia da assinatura do questionário corresponde ao dia da celebração do contrato de seguro.
De facto resulta da 6º da contestação que «Em 09/06/2010, a A. e o marido, BB, na qualidade de pessoas seguras, aderiram à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, em que a R. figura como seguradora, para garantir um empréstimo bancário (crédito à habitação) celebrado entre ambos e o “Banco 1...”, sendo este o beneficiário do seguro, conforme doc. nº 1 que se junta e cujo conteúdo aqui se tem como integramente reproduzido para os devidos efeitos legais.»
Ou seja, em rigor, e visto o teor do citado documento e que se identifica como proposta de seguro (facto constante do ponto 1 da sentença e que não se questiona), impresso a 9.6.2010 e assinado pela A., corresponde o mesmo a uma declaração negocial desta que, aceite pela R posteriormente (facto constante do ponto 38, contra o qual não se reage, e doc.1 junto com a contestação do qual consta como data do contrato o dia 11.6.2010 – dado por reproduzido pelo facto constante do ponto 1), levou à emissão dos certificados que se fazem referência no art.7 da contestação e assentes na sentença sob o ponto 2.
Da leitura dos factos assentes é isso que se retira, ou seja, que o questionário médico que acompanhou a citada proposta é, ele próprio, um elemento que acompanhou a declaração negocial da apelante de contratar o seguro[14], e que não houve qualquer outro momento em que, a propósito da citada celebração, se concretizou qualquer outro acto. Não obstante, como parece razoável entender, o contrato apenas ficou perfeito com a aceitação pela seguradora (dia 11.6.2010), naturalmente em momento posterior e após análise do risco em face, nomeadamente, das informações médicas prestadas.
É, portanto, descabida a insurgência da apelante: dos factos assentes retira-se, ao fim ao resto, a leitura que se propugna, ainda que não se possa dizer, exactamente como se pretende, que as informações são contemporâneas à celebração do contrato. Essa celebração surge no momento do encontro das vontades, que «partindo de pontos divergentes, convergem em direcção a ponto onde se encontram».
De todo o modo, quer porque não se trouxe o ponto em causa - e os demais referidos na nota 4.-, às conclusões, outrossim porque qualquer eventual modificação (nem se sabe em que termos por nada se ter afirmado) nenhum efeito útil repercutia no sentido da decisão[15], nada se impõe decidir a propósito.
* Vejamos então quanto aos demais impugnados.
São os seguintes factos constantes da sentença que se pretendem relevados e provados:
«a) A autora, laborou na empresa B..., S.A., desde Janeiro de 2003 até Abril de 2019. b) Durante o exercício das suas funções na referida empresa usava a massa KLÜBERYNTH – LR 44-21, composta por lítio, hidrocarbonetos sintéticos e óleo mineral, causando-lhe o produto em causa irritações nas mãos e a nível ocular. c) Trabalhava ainda com um líquido, denominado por MAN RENOVA S que esguichava para os mordentes ao fazer os cortes do cabo de aço, muitas vezes atingindo-lhe a face, o que além de lhe causar irritações na pele, lhe causava irritações oculares. d) A utilização deste químico, que a altas temperaturas libertava muito fumo e um forte odor, difícil de suportar afectava-lhe inclusive a garganta. e) Na área em que trabalhava, a luz era demasiado forte, o que acrescido às tarefas que desempenhava, e a maior parte das vezes, sem as devidas condições, a obrigava a esforçar ainda mais a vista, até porque as suas tarefas exigiam muita concentração. f) Na produção de cabos, utilizava também a ferramenta espiral, que era prensada por uma outra máquina. Essa tarefa requeria injecção plástica e às vezes existia explosão desses materiais, onde sofreu com a elevada libertação de gases tóxicos. g) O descrito em b) a f) deu origem às patologias diagnosticadas à autora e que se provaram. h) A autora, em 2010, não sofria dos problemas de saúde que se provaram, não existindo qualquer indicação deste tipo no seu historial clínico. (…)[16] i) Em que condições a autora e o seu marido foram pagando as prestações referentes ao crédito à habitação desde a data do pedido de accionamento das apólices.»
Fundamenta o tribunal a quo a sua decisão quanto a eles nos seguintes termos:
«Por outro lado, não se provaram os factos elencados nas alíneas a) a g) e i) dos factos não provados atendendo a que nenhum documento foi apresentado em ordem a confirmá-los e nem tais factos foram relatados pelas testemunhas inquiridas.
Sem prejuízo de se ter igualmente relevado que, quer na perícia médico legal, quer nos vários elementos clínicos carreados para os autos, nem sequer existe menção quanto à causalidade existente entre as patologias diagnosticadas à autora e o manuseamento dos alegados produtos.
Sem que se tivesse igualmente provado que a autora em 2010, não sofria dos problemas de saúde que se provaram, não existindo qualquer indicação deste tipo no seu historial clínico (alínea h) dos factos não provados), considerando que tal não só não se provou através de qualquer documento ou testemunho credível e com suficiente razão de ciência, como se mostra infirmado pelo teor da perícia efectuada pelo INML e elementos clínicos acima referidos.»
Importa antes de qualquer abordagem quanto ao rigor da decisão em relação aos factos em causa perguntar qual a utilidade da matéria de facto se provada.
O relevo dos factos constantes dos pontos b) a f), de certa forma também do que conta do ponto a), emerge da circunstância de servirem de estribo à resposta que se desse ao facto constante do ponto g), ou seja, que as patologias que levaram a incapacitação da apelante resultou do trabalho que desenvolveu na empresa onde alegadamente laborou (facto constante do ponto a)) e não de quaisquer outras circunstância que, antes de celebrado o que se celebrou como a apelada, ocorreram.
Ora, o inverso disso, ou seja, que as patologias são antecedentes ao momento da contratação, corresponde a factualidade que à apelada cabia provar e assim o logrou.
A declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado, tendente à celebração do contrato de seguro em geral, está regulada nos art.ºs 24.º e segs. do RJCS (DL 72/2008 de 16.04), prescrevendo-se nos art.ºs 25.º e 26.º, respetivamente, quanto a omissões ou inexatidões dolosas e negligentes.
O seguro só é anulável se o tomador ou o segurado incumprir «dolosamente» o seu dever de declarar as circunstâncias que conheça e «razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador» - artºs 24º e 25º do RJCS.
Nos termos do art.º26.º, n.º4, do RJCS prevê-se a possibilidade de a seguradora afastar a cobertura do seguro, se, ocorrendo sinistro, o segurado tiver, por negligência, omitido dados ou tendo sido inexacto.
A prova destes requisitos, porque de natureza exceptiva, compete à seguradora - 342º nº2 do CC.
Ora, não vemos que se tenha alterado a sacramental regra orientadora da selecção de factos, então no quadro do despacho saneador (durante o CPC que vigorou até 2013), que «proibia, como regra, a «dupla quesitão».
Continuamos a considerar que o ónus da prova é ainda critério de selecção factual[17], nessa medida, no caso, das duas uma: ou a R. prova os factos que suportam a anulação que se pretende reconhecida (digamos assim, em sentido mais amplo: o incumprimento pelo segurado), ou, porque não o logra, em sede de decisão jurídica, funcionando agora o ónus da prova como critério de decisão, o non liquet determinar-lhe-á um veredito desfavorável[18].
Os factos em causa, ajuizados como tinham de ser e foram, ao invés de corresponderem a algo que cabia à A. provar, teriam de «funcionar» como referencial factual a suportar a contra-prova de factos que à R. cabia provar[19], ou seja, a antecedência da patologia da apelante face ao momento da contratação, ou seja, os factos constantes dos pontos 27 – pelo menos do que constante em 3.1 e 3.2; 28 – do que consta em 5; 29; 30; 43, 44 e 45.
Diríamos então, servindo tais factos como impugnativos de matéria que, de acordo com o perfil da causa de pedir, à recorrida caberia alegar e provar, tais factos, não devendo ser levados aos provados nem aos não provados[20], deveriam, no entanto, ser objecto de prova, trabalhados na motivação da decisão e na medida que comprometessem a prova da versão que à recorrida coubesse.
Temos, pois, para nós, que os factos em análise não tinham de ser considerados.
O tribunal a quo, na sua fundamentação, acaba por afirmar essa função de contra-prova de factos exceptivos a provar pela R. quando refere:
- «[s]em prejuízo de se ter igualmente relevado que, quer na perícia médico legal, quer nos vários elementos clínicos carreados para os autos, nem sequer existe menção quanto à causalidade existente entre as patologias diagnosticadas à autora e o manuseamento dos alegados produtos.
e
- «[s]em que se tivesse igualmente provado que a autora em 2010, não sofria dos problemas de saúde que se provaram, não existindo qualquer indicação deste tipo no seu historial clínico (alínea h) dos factos não provados), considerando que tal não só não se provou através de qualquer documento ou testemunho credível e com suficiente razão de ciência, como se mostra infirmado pelo teor da perícia efectuada pelo INML e elementos clínicos acima referidos.»
Não se tendo impugnado estes factos exceptivos sempre ficaria prejudicada a apreciação da impugnação em causa quanto aos factos constantes dos pontos b) a f).
Restaria, pois, o conhecimento do facto constante do ponto a) dos não provados.
Todavia, nenhum efeito útil teria a prova desse facto na economia da decisão. Tal facto surge a enquadrar situacionalmente os que a seguir surgem no elenco dos não provados e atrás referidos.
Com se referiu «o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que (….) o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.”
* De todo o modo, pretendendo-se não deixar «ponta solta», quanto aos factos em causa, concretamente os que constam dos pontos b) a h), sempre se dirá que da prova produzida não resultam a respectiva afirmação.
Releva o que, nestas «coisas», tem verdadeiramente de se relevar e não obstante a princípio da livre convicção do juiz: a perícia.
Diz-se no Ac. da RP de 23.5.24 que ««[é]consabido que como dispõe o artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil: “o Tribunal…aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, com ressalva das situações em que a lei dispuser diferentemente.
No que respeita à ponderação a fazer da prova pericial há que precisar que, como afirma Castro Mendes no Direito Processual Civil, pp 474: “a prova pericial (…) é o meio de prova que consiste na transmissão ao juiz de informações de facto por uma entidade – perito (…)- especialmente encarregada de as recolher.
Atenta a necessidade de evitar que o princípio da livre apreciação da prova não resvale em arbitrariedade, a lei exige que a prova pericial seja apreciada pelo Juiz, segundo a sua experiência, prudência e bom senso, mas com inteira liberdade, sem se encontrar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 4º, 1981, 566 a 571; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 340, e Almeida, Francisco Manuel Lucas Ferreira de, Direito Processual Civil, Coimbra, Almedina, 2010 Vol I pp 276. 6).
(….)
Havemos de concluir que a convicção do juiz sobre os factos forma-se, livremente, com base nos elementos de prova, globalmente, considerados, sem vinculação estrita às conclusões dos exames periciais, se houver elementos de prova que contrariem a factualidade sobre que assentaram tais exames (neste sentido STJ, de 9-3-94, BMJ nº 435, 626 e Os meios de Prova em processo Civil, Fernando Pereira Rodrigues, 2015 pp 20 e Ac. Relação de Coimbra de 11 de Março de 2009, Processo 4/05.7TAACN:c1, relator Jorge Gonçalves disponível em www.dgsi.pt).
Porém convém não esquecer o peculiar objeto da prova pericial: a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art.º 388 do Código Civil).
Acresce que como anota Diogo Assumpção Rezende A Prova Pericial no Processo Civil, «O Controle da Ciência e da Escolha do Perito pp 55” as legislações processuais dos países continentais europeus apresentam condições gerais de valoração da prova produzida nos autos.
Não se encontra, porém, critérios objetivos que subsidiem o juiz na verificação da qualidade daquilo que se atesta na perícia.
Não há norma que gere a obrigação do juiz de exercer controle sobre a cientificidade ou tecnicidade do laudo pericial, e (…).
Deste modo, à prova pericial há de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal»[21]
É pois, no caso, em resultado da tecnicidade do que importa conhecer e decidir (se as patologias da A. são antecedentes à contratação ou não), de crucial relevância relevar a perícia de 20.3.24 (junto aos autos a 1.4.24), tanto mais porque realizada por entidade de inquestionada idoneidade técnica, tendo analisado todo o manancial documental (clínico) disponível e promovido vários exames para recolha de dados clínicos que a habilitassem[22] a decidir com rigor, facto que, naturalmente, posterga o teor do doc.20 junto com a p.i. que é estribo da apelante para infirmar o que a propósito foi decido, documento este tão simples e singelo como o demostra o seu teor:
Consta da decisão a enunciação dos relatórios do INMLCF e dos esclarecimentos prestados pela especialidade de oftalmologia de 18.10.23, deles resultando o acerto da decisão do tribunal a quo, concretamente quanto aos factos constantes do pontos 43-45 dos factos assentes, ou seja, factos que correspondem ao inverso do que se pretende assente e consta dos pontos b)-h) dos não assentes
Isto posto, «ponderando de acordo com os critérios expostos o laudo que fundamenta a decisão do tribunal à quo impugnada valorizamos (i) a qualificação dos peritos e a sua maior especialização e prática na matéria objeto da perícia; (ii) o método de proceder utilizado mediante a descrição das operações levadas a cabo como consta do relatório junto (iii) o contacto direto e a imediação temporal que estão relatados no exame (iv) a justificação dos peritos encontrada para os métodos e procedimentos utilizados (v) a coerência e contextualização dos resultados bem assim como a ausência de prova contrária ou qualquer outra que coloque em causa quer os resultados quer a idoneidade dos peritos ou aos métodos utilizados»[23] não temos como contornar a conclusão que o tribunal a quo, a propósito, decidiu correctamente.
Pelo exposto, é de sufragar o juízo probatório do tribunal apoiado no relatório pericial.
Não se atende por consequência ao recurso neste segmento (quanto aos factos constantes dos pontos b) a h)).
* Relativamente ao facto constante do ponto i) dos não provados convoca a apelante o depoimento de DD, filho da A, quando afirma, singelamente, que: «sim, continuo a ajudar a pagar as prestações …»
Estas declarações, tão singelas como o referido, face a ligação tão substancial da testemunha à A., o relevo que delas se pode tirar apela a exigência acrescida, a cuidado especial, nomeadamente impondo-se o confronto com outros elementos de prova, no caso, vista a natureza do que se pretendia provar, com documentos: e que fácil seria juntar documentos bancários comprovativos do pagamento das prestações de crédito bancário pela testemunha e com o intuito de ajudar os pais.
Diz o tribunal a quo na sua fundamentação que «[p]or outro lado, não se provaram os factos elencados nas alíneas a) a g) e i) dos factos não provados atendendo a que nenhum documento foi apresentado em ordem a confirmá-los e nem tais factos foram relatados pelas testemunhas inquiridas.
Sem outros elementos não encontramos apoio suficiente para alterar a decisão a propósito.
De facto, como se citou, «a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»
Improcede o recurso também quanto a este segmento.
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3. - Direito de activação das apólices de seguro contratadas com a ré, de forma a serem liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroactivos à data da activação, bem como o direito a exigir da ré as quantias peticionadas a título de indemnização por danos patrimoniais e danos não patrimoniais que a A. alega ter sofrido.
Está em «crise» nestes autos a subsistência de dois contratos de seguro do grupo do ramo vida, celebrados entre a A (e marido) e a R, titulados pelas apólices atrás identificadas, contratos ligadas a crédito bancário contraído (emergente de dois mútuos: crédito hipotecário e pessoal) servindo o propósito de garantir o pagamento dos valores em dívida à entidade credora - “Banco 1...” em caso de morte, incapacidade (…) das pessoas seguradas, para o que releva, a A.
Como se refere na sentença, «(…) decorre dos factos provados, nas condições especiais da cobertura complementar em causa referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, ficou previsto que se consideraria existir uma situação de invalidez total e permanente se, em consequência de doença, a autora ficasse total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, desde que com um grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, se consideraria como sendo igual a 100%.
Já no que concerne à proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, ficou previsto que ocorreria uma situação de invalidez absoluta e definitiva se, em consequência de doença, a autora ficasse totalmente incapacitada de exercer qualquer profissão ou actividade remunerada, necessitando de recorrer, de modo continuo, à assistência de uma terceira pessoa para efectuar actos normais de vida diária.
Considerando o que se provou afigura-se-nos que a situação da autora, independentemente das demais condições contratualmente acordadas, será subsumível aos referidos conceito de invalidez».
A R. declinou qualquer responsabilidade pelo pagamento dos capitais seguros através daqueles contratos, recusa esta perante a A e a entidade bancária credora - no quadro dos mútuos entre estas celebrado.
Afirma-o nas omissões e inexactidões clínicas constante das declarações prestadas pela A em face da existência de um quadro clínico pré-existente.
Entendeu o tribunal a quo que, em face da matéria provada, que permanece intocada, se verificam preenchidos os requisitos exigidos pelos art.º25.º, nº1, na relação com o art.º24.º, ambos do DL 72/2008, de 16 de abril (RJCS), nessa medida sendo válida por legal a anulação pela R dos contratos de seguros referidos.
Pretende a A com a acção proposta, em primeira linha, que seja reconhecido o direito de activação das apólices de seguros contratadas com a R., de forma a serem liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroactivos à data da activação, tudo por se encontrar em situação de invalidez total permanente superior a 66,6%.
Estamos perante contratos que visam, em regra por imposição da entidade bancária deles beneficiária[24], acautelar e mitigar as consequências negativas resultantes do evento aleatório, digamos, talvez impropriamente, do respectivo «evento activador».
A prestação pecuniária da seguradora nestes contratos de seguro é ab initio incerta, quer na sua concretização, quer no seu montante, dependendo dum acontecimento futuro e incerto[25]: verificado, o valor a desembolsar pela seguradora corresponderá ao que, no momento relevante, estiver em dívida nos contratos de mútuo a que os seguros a estarão associados.
Os contratos em crise reconduzem-se ao amplo tipo do contrato de seguro, por efeito do qual, na definição do artº1 do RJCS «o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente»
O regime jurídico do contrato de seguro em Portugal é regulado pelo citado Decreto-Lei n.º 72/2008 (RJCS).
Um dos aspectos fundamentais regulado por este regime, com acuidade em relação aos seguros em causa, liga-se à questão da anulabilidade do contrato pela seguradora decorrentes da inexatidão das informações médicas fornecidas por quem contrata com aquela.
As informações médicas são particularmente sensíveis uma vez que estão diretamente relacionadas com a avaliação do risco para a seguradora, assim conformando a sua vontade e termos de contratar.
As seguradoras carecem de informações precisas sobre a saúde do segurado por forma a calcular o risco associado à cobertura. Doenças preexistentes, condições crónicas ou histórico familiar de doenças podem aumentar a probabilidade de «sinistros», influenciando diretamente a decisão de aceitação do risco pelas entidades seguradoras.
De resto as informações médicas impactam o cálculo do premio do seguro. Segurados com maior risco de saúde comportam prémios mais elevados.
Sendo as informações inexatas, ou tendo sido omitidas, a seguradora pode acabar cobrir um risco com que não se contava, e, se ainda assim, sendo um risco com o qual aceitaria contratar, seria um risco, digamos assim, «não correspondente» ao valor do prémio pago.
Diz-se no ac. do STJ de 19.09.24[26], que «[s]obre a importância da declaração inicial do risco, pronunciou-se o acórdão deste STJ, de 30-11-2022, nos seguintes termos “A importância da declaração inicial do risco no âmbito do contrato de seguro assume total sentido atento o seu desígnio, que é o de transferir determinado sinistro para a seguradora mediante uma contrapartida.
Trata-se, afinal, da relevância do princípio da boa-fé na fase pré-contratual, dever adstrito aos contraentes (a conformação da conduta de qualquer das partes envolvidas com os ditames de um correcto, honesto e leal proceder), que se reconduz não só na obrigação do tomador do seguro ou do segurado declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (artigo 24.º, n.º1, do RJCS), como na imposição, à entidade seguradora, de conduzir todo o processo negocial com lisura procedimental, em nome da tutela da confiança da contraparte, reflectida quer na elaboração e teor do questionário, quer no esclarecimento do tomador ou segurado acerca da relevância do dever de informação exacta que sobre o mesmo impende (cfr. artigos 24.º, n.º 3 e 4, do RJCS)”.
VANESSA LOURO deixou, igualmente, escrito a este propósito que “o contrato de seguro é por excelência – atentas as suas características, funções e objectivos – um contrato uberrimae fides, surgindo a declaração do risco como umas das várias manifestações dessa mesma natureza fiduciária. É em homenagem à especial relação de confiança entre as partes e ao princípio da boa-fé que se impõe um dever de declaração ao Tomador do Seguro/Segurado, e é natural que assim seja, uma vez que, relembremos, a figura nasceu para proteger o Segurador que tem de confiar nas declarações do Tomador do Seguro/Segurado (o que melhor conhece o risco) para poder delimitar o risco a segurar. Por outro lado, o facto de estarmos numa fase pré-contratual convoca necessariamente o princípio da boa-fé, na medida em que é de esperar que, na fase de negociações de um contrato, as partes se comportem de forma leal e honesta, devendo, no caso em apreço (dever de informação), comunicar informações de conhecimento essencial para a contraparte. Para além disso, é expectável que as partes não se enganem, não mintam e se inibam de transmitir informações erradas. Assim, as omissões ou inexactidões na declaração do risco consubstanciam não só uma quebra na relação de confiança mas também uma violação do princípio da boa-fé, na sua vertente objectiva.”
Percebe-se, pois, por patentes, as razões de fundo do regime que resulta do art.º24.º, n.º1 e 25,º nº1, também do art.º26, do RJCS, um regime geral para qualquer tipo de seguro mas com especial destaque nos contratos de seguro como os dos autos (ramo vida).
De resto, apartando-nos daquele regime de prestação da citadas informações, e consequências da respectiva omissão ou inexactidão, as seguradoras frequentemente estabelecem exclusões de cobertura baseadas em informações médicas que consignam no clausulado do contrato[27].
Se o tomador do seguro (em regra o segurado)[28] omitir ou distorcer informações sobre o seu estado de saúde, doenças preexistentes ou tratamentos realizados, a seguradora pode considerar que foi induzida em erro. Nesse caso, pode optar pela anulabilidade do contrato, desde que a inexatidão tenha sido determinante para a sua decisão de aceitar o risco.
Como já resulta do que se deixou, o RJCS destina algumas normas aos deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado.
Reza o n.º 1 do artigo 24.º do RJSC que «o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador».
A segurada A. estava obrigada, antes da celebração dos contratos, na proposta que depois foi aceite pela R., a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conhecia e que razoavelmente devia ter por significativas para a apreciação do risco pela seguradora R..
E tal, visto o sistema de declaração espontânea adoptado pelo RJCS, como resulta do seu art.º24.º, n.º2[29], sempre se impunha ainda que não lhe tivessem sido solicitadas através de questionário que lhe feito quando aderiu ao seguro através das proposta supra assentes.
Na verdade o n.º 2 do artigo 24.º do RJCS explicita que o disposto no número anterior – a obrigação de declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador – é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito[30].
No caso em apreço resulta provado a omissão e inexatidões (e afirmação inverídica) de dados médico/clínicos relevantíssimos à conformação da R. contratar[31], coisa que se perscruta quer em face ao que se declarou nos questionários que faziam parte do formulário das propostas de seguro[32], quer perante o que de facto se omitiu e se tinha a obrigação legal de declarar ainda que não questionada[33], de resto coisa que sabia, ou devia saber, por constar da proposta a advertência que a omissão ou falsas declarações conduzem à nulidade da adesão à apólice de seguro.
O jaez das omissões, inexatidões e inverdades declaradas comprometedor da «sobrevivência dos contratos» surpreende-se, naturalmente, e em definitivo, no confronto do que se veio posteriormente a apurar:
«(…) 27. A autora foi observada por perito médico no INMLCF, constando do relatório junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, as seguintes conclusões: “1. A Examinanda é portadora de patologia do foro oftalmológico, tendo sido submetida a exame de especialidade de Oftalmologia, cujas conclusões se encontram acima transcritas. 2. A Examinanda é portadora de patologia do foro otorrinolaringológico, tendo sido submetida a exame de especialidade de Otorrinolaringologia, cujas conclusões se encontram acima transcritas. A Examinanda é portadora de epicondilite do cotovelo direito, epicondilite do cotovelo esquerdo, tendinose do supraespinhoso, tenossinovite do polegar esquerdo, artrose da tibiotársica direita, discopatia cervical e discopatia lombar. 3.1. Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre patologia natural e o estado clínico descrito nos registos clínicos disponíveis, atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe adequação entre a sede da patologia natural e o estado clínico apresentado; existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre a doença natural, os tratamentos necessários e o estado clínico apresentando; o estado clínico apresentando é adequado a uma etiologia de patologia natural subjacente; o tipo de patologia natural é adequado a produzir o quadro clínico apresentado; se exclui a existência de uma causa estranha relativamente à patologia natural subjacente e se exclui a pré-existência do quadro clínico apresentado. 3.2. Estas condições são de carácter permanente e passíveis de agravamento, embora com provável oscilação sintomatológica em função de fatores externos, alternando períodos de agudização sintomatológica com outros de menor expressão clínica e com repercussão na sua capacidade de trabalho geral e profissional, principalmente aquando de períodos de agudização das sintomatológica. 4. No âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes: - Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica. Este dano é avaliado relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos), considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida) e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, tendo como elemento indicativo a referência à Tabela Nacional de Incapacidades (Anexo I do Dec-Lei 352/07, de 23/10). Assim, consideraram-se os danos permanentes constantes na tabela seguinte: (…)
Nesta conformidade, atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas afetarem a Examinada em termos de autonomia e independência, sendo causa de sofrimento físico e limitando-a em termos funcionais, atribui-se um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 73 pontos. - Repercussão Permanente na Actidade Profissional: No caso em apreço a examinada encontra-se impossibilitada do exercício de qualquer profissão tendo em conta as sequelas oftalmológicas - Dependências Permanentes de Ajudas: - Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular - ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepiléticos, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária). Neste caso, medicação analgésica para controlo sintomatológico das queixas álgicas, a melhor caracterizar pelo médico assistente. Admite-se também a necessidade de lentes de contacto, cuja graduação deverá ser regularmente revista, de acordo com a evolução do quadro clínico do foro Oftalmológico. - Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas - ex.: fisioterapia). Neste caso, consultas médicas regulares de especialidade de Oftalmologia e de Otorrinolaringologia. A título de exemplo, sugerem-se duas consultas de cada especialidade por ano, com vista ao controlo sintomático e controlo da doença. - Adaptação do domicílio, do local de trabalho ou do veículo (corresponde à necessidade de recurso à tecnologia a nível arquitetónico, de mobiliário e/ou equipamentos, no sentido de permitir a realização de determinadas atividades diárias a pessoas que, de outra maneira, o não conseguiriam fazer sem a ajuda de terceiros). Neste caso, a Examinada necessitará de adaptação dos locais que habitualmente frequenta, devido à diminuição da sua acuidade visual, tornando-os mais amplos e menos propícios a acidentes. - Ajuda de terceira pessoa (corresponde à ajuda humana apropriada à vítima que se tornou dependente, como complemento ou substituição na realização de uma determinada função ou situação de vida diária). Neste caso, admite-se que a Examinada necessite de ajuda parcial de terceira pessoa, nomeadamente para a realização das atividades de vida diária que impliquem a realização de cuidados de higiene (como por exemplo tomar banho), tendo em conta a diminuição da sua acuidade visual e com vista à sua segurança.
28. No referido relatório constam ainda as seguintes respostas aos quesitos: (…) 5. Qual a data de início e de diagnóstico de cada uma das patologias? Exotropia alternante desde 2004, transplante do olho esquerdo aos 16 anos de idade, CPP do olho direito em 2022, espondilouncartrose cervical documentada em 2017, lama biliar documentada em 2017 com posterior colecistemia (data não documentada mas sempre após 2017), epicondilites bilaterais documentadas em 2016, alterações otorrinolaringológicas segundo perícia desde 2019, artrose tibiotársica e tendinopatia direita documentada em 2017, gonartrose e patologia artrósica da coluna lombar documentada em 2018 6. Qual a evolução clínica das mesmas Segundo otorrinolaringologia, do seu foro, imprevisível. As alterações artrósicas é expetável evoluir com agravamento ao longo dos anos. Pela oftalmologia, imprevisível. (…)
29. Do relatório elaborado pelo INMLCF consta ainda que, do exame complementar da especialidade de oftalmologia, realizado no dia 3 de Fevereiro de 2022, resulta o seguinte:
“- transplante da córnea bilateral (suspeita de queratocone); CPP OD 7,25/7,50) há 10 anos no HSJ; CPP OE há 30 anos em Barcelona por ceratocone; - alta miopia, complicada de neovascularização miópica do olho direito que resolveu com 4 injeções intravitreais de anti-VEGF em 2017; -astigmatismo elevado corrigido com lentes de contacto (não tolera óculos); - exotropia alternante operada CHSJ em 2004. À data da consulta: AV OD 5/10 com lente de contacto; AV OE 4/10 com lente de contacto. BIO OD enxerto transparente, com LC catarata incipiente; BIO OE neovasos na córnea recetora que atingem enxerto em vários pontos, LC algo degradada, enxerto trans com shagreen posterior?, catarata incipiente. FO OD coroidose miópica com tilt disc e atrofia peripapilar ++, mácula com NVC cicatricial e mobilização pigmentar, retina aplicada. FO OE difícil visualização, mas retina aplicada e sem lesões de neovascularização. Campo visual, cinética de Goldman. OD - constrição das isópteras com isóptera l4 entre 10-20º. OE - constrição das isópteras, mais acentuada que no olho direito, com isóptera l4 inferior a 10º. Admite-se diminuição generalizada da sensibilidade da retina por alterações da superfície ocular, relacionadas com antecedentes oculares. Em resumo, doente com vários antecedentes oculares de relevo. Apresenta boa acuidade visual com lentes de contacto, mas apresenta alterações do campo visual em provável relação com diminuição da sensibilidade da retina. Tabela Nacional de Incapacidades: Acuidade visual 0,05; Campo visual 0,66”.
30. Nos esclarecimentos prestados pela especialidade de Oftalmologia, datado de 18/10/2023, conforme documentos junto aos autos em 13/11/2023, consta o seguinte:
“(...) Em relação às patologias em causa: - A doente apresenta antecedentes de exotropia alternante, que mais provavelmente será congénita, tendo sido operada no Centro Hospitalar ... em 2004. - A doente realizou transplante da córnea de ambos os olhos por presença de queratocone. Esta é uma doença que geralmente começa na adolescência. A doente fez transplante do olho esquerdo por volta dos 20 anos de idade em Barcelona e do olho direito no Centro Hospitalar ... em 2003. - A doente apresenta alta miopia, doença progressiva, que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017, tendo tido necessidade de realização de 4 injeções intravitreas de anti-VEGF. A situação clínica está estável desde então. As patologias acima descritas são crónicas e passíveis de agravamento clínico a qualquer momento. Não é expectável uma melhoria clínica do quadro clínico atual, eventualmente uma estabilização. A acuidade visual da doente sem correção ótica é muito baixa, porém com o uso de lentes de contacto melhora significativamente. De salientar que dado os antecedentes de transplante de córnea e o elevado astigmatismo residual, não é possível a correção da visão com o uso de óculos, apenas com lente de contacto. Os campos visuais da doente estão significativamente alterados pelas patologias acima descritas, porém é expectável que a doente consiga realizar os atos normais da vida diária com maior ou menor limitação”. (…)
43. A autora sofre de Exotropia alternante, tendo sido operada no Hospital ... em 2004, conforme decorre dos elementos clínicos juntos aos autos em 27/01/2022, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. 44. A autora sofre de queratocone desde os 16 anos, tendo feito transplante do olho esquerdo por volta dos 20 anos de idade em Barcelona e do olho direito no Centro Hospitalar ... em 2003. 45. A autora apresenta alta miopia, doença progressiva, que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017. »
Ou seja, resulta claro, como se refere na sentença, que «(…) a autora, em data anterior à celebração dos contratos, já sofria de exotropia alternante, tendo sido operada no Hospital ... em 2004, sofria de queratocone desde os 16 anos, tendo feito transplante do olho esquerdo por volta dos 20 anos de idade em Barcelona e do olho direito no Centro Hospitalar ... em 2003.
Tendo-se ainda provado que a autora apresenta alta miopia, doença progressiva, que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017. »
Estes elementos clínicos, que se omitiram e tinham de ser legalmente declarados, como resulta da sentença, retira ou esvazia a importância da desconsideração de cláusulas desfavoráveis à pretensão da A. por não lhe terem sido explicadas, convocando-se para o efeito o RCCG (aprovado pelo Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro e alterado pelo Decreto-Lei nº 220/95 de 31 de Agosto, Decreto-Lei nº 249/99 de 7 de Julho e Decreto-Lei nº 323/2001 de 17 de Dezembro).
Trata-se de segmento que se encontra competentemente tratado na sentença e que o recurso não tem a virtualidade de comprometer.
A honestidade intelectual impõe-nos a transcrição da sentença nesta parte:
« (…) Donde, não tendo tais doenças pré-existentes sido comunicadas à ré, nos termos contratualmente previstos, terá de se considerar excluído o risco daí decorrente. No entanto, não se poderá igualmente deixar de relevar que a autora também alegou que nunca lhe foi explicado de forma concreta e explicita as cláusulas dos contratos ou fornecida antecipadamente cópia dos mesmos que assinaram, concluindo que a ré não se poderá assim prevalecer das cláusulas de exclusão. Efectivamente, nos termos do disposto no artigo 1º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro e alterado pelo Decreto-Lei nº 220/95 de 31 de Agosto, Decreto-Lei nº 249/99 de 7 de Julho e Decreto-Lei nº 323/2001 de 17 de Dezembro), as cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo referido diploma, que se aplica igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar. Cabendo o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo. Nesta medida, não tendo a ré alegado e muito menos provado que os contratos em causa foram previamente negociados, terá ainda de se relevar que, nos termos conjugados do disposto nos artigos 5º, 8º e 9º do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro, as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, cabendo o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais. Resultando do incumprimento de tal dever que, as cláusulas que não tenham sido comunicadas, consideram-se excluídas dos contratos singulares, sem prejuízo dos mesmos, em princípio, se manterem, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos. Tal dever de informação deverá ser igualmente aferido, tendo por base as regras previstas no RJCS, em especial no seu artigo 18º, donde decorre que, sem prejuízo das menções obrigatórias a incluir na apólice, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato, nomeadamente, entre o mais, do âmbito do risco que se propõe cobrir e das exclusões e limitações de cobertura. Devendo tais informações ser prestadas de forma clara, por escrito e em língua portuguesa, antes de o tomador do seguro se vincular, devendo a proposta de seguro conter uma menção comprovativa de que as informações que o segurador tem de prestar foram dadas a conhecer ao tomador do seguro antes de este se vincular (artigo 21º do RGCS). Impondo-se ainda ponderar que, por força do disposto no artigo 29º do RJCS, quando o contrato de seguro seja celebrado com intervenção de um mediador de seguros, aos deveres de informação acima referidos acrescem ainda os deveres de informação específicos estabelecidos no regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros, designadamente os previstos nos artigos 31º e 32º do Decreto-Lei nº 144/2006 de 31 de Julho. Neste conspecto, cumpre apreciar se e de que forma, foram violados quaisquer deveres de informação e consequências daí decorrentes. Sem esquecer que, conforme se disse, a aplicação das normas próprias do regime jurídico do contrato de seguro não prejudica a aplicação das normas inscritas no Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (artigo 3º do RJCS). A autora não alegou que concretas informações lhe foram omitidas e que influenciaram que tivesse outorgado os contratos nos termos em que o fez, tendo-se provado, além do mais, que lhe foram entregues as cláusulas gerais e especiais referentes a ambos os contratos. Mas ainda que se considere que existiu violação do dever de informação, como se disse, então, a única consequência é que a ré não se poderia prevalecer das referidas cláusulas de exclusão. Todavia, tal não impediria, como se disse, que passem a vigorar, na parte afectada, as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos. Neste conspecto não se poderá desconsiderar que, por força do disposto no artigo 24º do RJCS, o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, inclusive quanto a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito. (…)»
Por conseguinte, ainda que sem consideração das cláusulas excludentes contratualmente firmadas[34], as normas legais supletivas sempre imporiam um quadro regulamentar em tudo semelhante ao que se reteria daquelas.
E é no quadro das normas legais que perscrutaremos a legalidade da recusa da R., com enfoque no art.º24.º nº1 e art.º25.º nº1 do RJCS. Neste conspecto, cumpre considerar em especial o disposto no art. 25.º do RJCS: “1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro. 2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento. 3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade. 4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante. 5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.”.
Já se concluiu pela inobservância, pela A., da sua obrigação à luz do n.º1 e 2 do citado art.º24.
Da conjugação dos n.º1 e nº3 do artº24.º, com o n.º1 do art.º 25 do RJCS resulta a concessão da via da anulação do contrato de seguro em situações de incumprimento doloso do dever de informação, estabelecendo o nº 3 deste art.º que o segurador fica desobrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade
«O legislador, a par da previsão do dever de declaração inicial do risco, estabeleceu regras especiais para sancionar o seu incumprimento, nos artigos 25º e 26º DL nº72/2008, cada um correspondendo a uma forma de violação do dever, dolosa ou negligente.
Tratando-se de um incumprimento doloso do dever de declaração inicial, o contrato é anulável mediante declaração enviada ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento. Caso ocorra um sinistro dentro deste período de tempo ou antes de o segurador ter tido conhecimento do incumprimento, ele não fica obrigado a cobrir o risco, determinando o artigo 25º/3 que se segue o regime geral da anulabilidade. O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo de três meses anteriormente referido, só perdendo tal direito se existir dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante. Se o dolo do tomador do seguro tiver como propósito obter uma vantagem, o prémio é devido até ao final do contrato.
(…)» [35]
Como refere o ac. do STJ atrás citado «[e]stá, assim, em causa o regime do erro enquanto vício da vontade que se verifica “sempre que a vontade contratual se formou defeituosamente, com intervenção de um elemento que afecta e compromete o carácter esclarecido, espontâneo e livre do consentimento das partes, isto é, quando haja uma divergência entre a vontade real (não esclarecida ou não livre) e a vontade virtual (esclarecida e livre) do contratante.
PEDRO ROMANO MARTINEZ esclarece a este propósito que “o art. 24.º consagra um dever de informação na formação do contrato - ou, nalguns casos, na adesão ao contrato, que é equivalente para estes efeitos. Em princípio, um dever de informar no momento da formação do contrato destina-se a evitar que a outra parte (segurador) tome a decisão de contratar estando tal decisão (a vontade) viciada por erro. Como a relevância desse erro, para o art. 25.º, depende de ele resultar da violação dolosa do dever de informar, estamos, em princípio, em plena matéria do dolo negocial. Tal conclusão é corroborada pela estatuição de anulabilidade do art. 25.º, por a anulação caber ao errante, o segurador (art. 25.º n.º 1), e por a cessação do vício relevante para o prazo da anulação ser a cessação do erro, ou seja, o «conhecimento [do] incumprimento» do dever de informação (art. 25.º, n.s 2).»
Ora resulta provada a citada omissão/inexactidão, sendo que o erro retira-se, além do mais, do que consta vertido no ponto 47 dos factos dados como provados: «Caso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias não teria celebrado o contrato de seguro nos termos em que o fez, nomeadamente, no que diz respeito à cobertura de invalidez total e permanente.»
Sabendo a A das patologias atrás referenciadas, omitindo-as, sabia que com essa actuação a seguradora iria contratar em erro sobre a sua situação clínica, e, digamos, apesar disso, conformou-se com a indução desse erro (é um juízo que a leitura dos factos permite, à luz das regras da normalidade).
Temos este quadro como suficiente para concluir que se verifica dolo no incumprimento do dever de declarações exactas, na dupla vertente de «de dolo enquanto vício da formação da voluntas e dolo enquanto forma de culpa», como exigido por parte da doutrina[36].
E para densificar esta conclusão, uma vez mais, não temos como não acompanhar a decisão recorrida, inexcedível neste aspecto quando refere:
«Neste quadro, assumindo que a intenção que esteve subjacente à actuação da autora, em ordem a apurar se agiu com dolo ou negligência, contendendo com fenómenos internos cognitivos e volitivos de actuação e resolução, apenas poderá extrair-se com referência aos factos concretos apurados (fora de um quadro de confissão), teremos de relevar que, mesmo à luz do homem abaixo da média e com baixa instrução, a autora não poderia deixar de ter presente ou esquecido, no momento em que declarou o que declarou e teve de preencher um questionário médico, dada a gravidade e consequências das patologias em causa, que estava a sonegar à seguradora informações importantes. No limite, tendo dúvidas (que se não nos afiguram sequer plausíveis no caso), sempre poderia e deveria ter suscitado esclarecimento acerca da relevância do seu quadro clinico. Para afirmar que a mesma actuou com dolo, mostrando-se preenchida a previsão ínsita no artigo 25º do RJCS. Concordando-se com o entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/09/2024 (base de dados da DGSI, processo nº 3576/18.2T8CBR.C2.S1), no sentido de que “ (…) a afirmação do dolo não depende de uma qualquer intenção de obtenção de vantagem, bastando a intenção ou a consciência de que se está a prestar informação falsa ou a omitir informação relevante e de que, com essa actuação, se está a induzir em erro o declarante (dolo simples).”. Não se podendo perder de vista, igualmente, a nosso ver, que no caso em que um segurado/proponente saiba ou não possa ignorar padecer de uma doença grave, que não só ocultou, mas que irá levar inevitavelmente a uma situação de incapacidade, por se tratar de doença degenerativa e sem cura, além do mais, estará em causa o próprio elemento essencial que caracteriza o contrato de seguro, a cobertura de um risco e não de uma certeza, com a inerente consequência daí decorrente em termos de boa fé ou até abuso de direito. Não sendo despiciendo notar, conforme resulta dos factos que se provaram através da perícia, que as patologias oftalmológicas de que a autora já padecia, à data, enquadravam-se num quadro degenerativo que veio a redundar na incapacidade fixada. Resultando aliás do relatório do INMLCF que a autora tem uma incapacidade de 73%, atendendo à totalidade das patologias diagnosticadas, tendo-lhe sido arbitrada, no entanto, só na parte oftalmológica, um coeficiente de desvalorização de 71%. Para concluir que, não fossem as patologias oftalmológicas em causa, nem sequer estaríamos perante uma incapacidade total e permanente nos termos contratualmente previstos. Afirmando-se, sem dúvidas, que, não só a autora omitiu informações relevantes para que a ré pudesse assumir o risco de forma minimamente informada, como as patologias em causa foram as que vieram precisamente a determinar o risco coberto.»
A segurada não só tinha conhecimento da sua condição física, como não podia deixar de saber – como qualquer adulto mediano na posse de plena capacidade de entender – que a sua condição, se revelada à seguradora, conduziria à recusa da sua adesão, de resto como resultou provado: Ponto 47 dos factos provados - «[c]aso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias não teria celebrado o contrato de seguro nos termos em que o fez, nomeadamente, no que diz respeito à cobertura de invalidez total e permanente.»
Acresce que, em desabono da pretensão da apelante, não fora a conclusão pelo comportamento doloso, sempre seria o mesmo o sentido da decisão, agora com arrimo no art.º26 do RJCS e como cuidadamente se referiu na sentença em crise:
«Sem esquecer que, tendo-se provado que, caso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias não teria celebrado o contrato de seguro, nos termos em que o fez, nomeadamente, no que diz respeito à cobertura de invalidez total e permanente, sempre ficaria excluída a sua responsabilidade, ainda que entendêssemos que estaríamos perante uma conduta negligente, por força do disposto no artigo 26º do RJCS»
Dizer ainda que não releva chamar à colação a designada lei do esquecimento.
A Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro, que «consagra o direito ao esquecimento a pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência, melhorando o seu acesso ao crédito e a contratos de seguro», estava em vigor à data da decisão recorrida.
Todavia é posterior à celebração dos contratos em crise.
Trata-se de Lei, de resto, dependente da operacionalização dos respectivos parâmetros, a definir por regulamentação (art.º7), coisa que só veio a ocorrer por via da Norma Regulamentar n.º 12/2024-R, de 17 de dezembro, com a vacatio de 120 dias após a data da sua publicação, ou seja, 120 dias computar de 17 de Dezembro de 2024 (art.º15.º).
Acresce que não está previsto qualquer efeito retroactivo destes normativos.
Refere o art.º3 daquele diploma que:
1 - As pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência têm, na qualidade de consumidor, direito ao esquecimento na contratação de crédito à habitação e crédito aos consumidores, bem como na contratação de seguros obrigatórios ou facultativos associados aos referidos créditos, garantindo que: a) Não podem ser sujeitas a um aumento de prémio de seguro ou exclusão de garantias de contratos de seguro; b) Nenhuma informação de saúde relativa à situação médica que originou o risco agravado de saúde ou a deficiência pode ser recolhida ou objeto de tratamento pelas instituições de crédito ou seguradores em contexto pré-contratual. 2 - Nenhuma informação de saúde relativa à situação de risco agravado de saúde ou de deficiência pode ser recolhida pelas instituições de crédito ou seguradores em contexto pré-contratual desde que tenham decorrido, de forma ininterrupta:
a) 10 anos desde o término do protocolo terapêutico, no caso de risco agravado de saúde ou deficiência superada; b) Cinco anos desde o término do protocolo terapêutico, no caso de a patologia superada ter ocorrido antes dos 21 anos de idade; c) Dois anos de protocolo terapêutico continuado e eficaz, no caso de risco agravado de saúde ou deficiência mitigada.
Ainda que atendível a lei em análise, e não era, sempre seria inaplicável.
E para assim concluir bastando atender à data da celebração dos contratos em crise na relação do que consta do ponto 27, 44 e 45 dos factos provados: 27. «3.1. Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre patologia natural e o estado clínico descrito nos registos clínicos disponíveis, atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe adequação entre a sede da patologia natural e o estado clínico apresentado; existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre a doença natural, os tratamentos necessários e o estado clínico apresentando; o estado clínico apresentando é adequado a uma etiologia de patologia natural subjacente; o tipo de patologia natural é adequado a produzir o quadro clínico apresentado; se exclui a existência de uma causa estranha relativamente à patologia natural subjacente e se exclui a pré-existência do quadro clínico apresentado. 3.2. Estas condições são de carácter permanente e passíveis de agravamento, embora com provável oscilação sintomatológica em função de fatores externos, alternando períodos de agudização sintomatológica com outros de menor expressão clínica e com repercussão na sua capacidade de trabalho geral e profissional, principalmente aquando de períodos de agudização das sintomatológica. / 44. «A autora sofre de queratocone desde os 16 anos, tendo feito transplante do olho esquerdo por volta dos 20 anos de idade em Barcelona e do olho direito no Centro Hospitalar ... em 2003. / 45. A autora apresenta alta miopia, doença progressiva, que se complicou com o aparecimento de neovascularização miópica em 2017.»
Ou seja, resulta desta factualidade que a doença tinha natureza evolutiva e nunca foi superada ou mitigada a situação de risco agravado de saúde, pressuposto para a aplicação da citada lei.
* Por todo o exposto, temos por correctíssima a decisão posta em crise, destarte não merecendo censura, ficando com isso prejudicadas as demais questões objecto do recurso: indemnizações pretendidas.
*
IV. Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo A, assim se mantendo a decisão recorrida.
Custas pela A, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
* Sumário: ……………………………………. ……………………………………. …………………………………….
*
Porto, 2025/6/26.
Carlos Cunha Rodrigues de Carvalho Ana Luísa Gomes Loureiro Aristides Rodrigues de Almeida ___________________________________________ O objeto do litígio consiste em saber se assiste à Autora o «direito de ativação das apólices de seguros contratadas com a Ré, de forma a ser[em] liquidados todos os valores abrangidos por essas mesmas apólices, com efeitos retroativos à data da ativação»; bem como o direito a exigir da Ré a quantia de € 10.550,61, a título de indemnização por danos patrimoniais que alega ter sofrido, e a quantia de € 30.000,00, como compensação dos danos não patrimoniais que alega ter sofrido. * Temas da prova: Procede-se à enunciação dos temas da prova nos seguintes termos: - valores em dívida ao Banco 1..., S. A. em 19-06-2018 – data de participação de sinistro –, bem como os valores pagos pela Autora e marido, desde então, ao referido Banco e a título de prémios, no âmbito dos contratos de seguro; - danos não patrimoniais sofridos pela Autora, desde 19-06-2018 – data de participação de sinistro – por força do comportamento da Ré; - fornecimento de cópia integral das condições gerais e especiais das apólices de seguro e prestação de esclarecimentos sobre tais condições gerais e especiais à Autora; - declarações inexatas, reticentes ou omissivas sobre o estado de saúde da Autora, por esta prestadas aquando da subscrição dos contratos de seguro invocados nos autos; - patologias de que a Autora padecia aquando da subscrição dos contratos de seguro invocados nos autos; - incapacidade de que atualmente padece a Autora; - patologias que estão na origem dessa incapacidade.» [15] Acórdão atrás citado: «(…) tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente”.» [17] O tribunal a quo refere-se precisamente a isso na sua fundamentação em relação a outros factos que não relevou: «No que concerne ao demais alegado pelas partes, o tribunal teve presente as regras da distribuição do ónus da prova e a relevância dos demais factos (não essenciais) para a decisão da causa, expurgando tudo o que entendeu ser irrelevante ou meramente instrumental (sem interesse nos termos sobreditos) ou consubstanciar meras conclusões ou matéria de direito.» [18] Se o autor não prova o facto constitutivo, a ação é julgada improcedente, segundo o princípio actore non probante reus absolvitur, mesmo que o réu não prove qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo - Cf. Teixeira de Sousa, As partes, O objeto e a Prova na Acção Declarativa, pp. 259-260. Assim, é na versão apresentada por quem está onerado com o respectivo ónus da prova que os factos devem ser levados àquelas peças. Pelo que os factos constitutivos do direito do autor devem ser dados como assentes ou levados à base instrutória na versão em que por este foram alegados, e os factos que servem de fundamento a excepções alegadas pelo réu deve ser levados às mesmas peças na versão por este alegada.» - Regras para a elaboração do Despacho Saneador (CPC de Macau), policopiados Centro Formação Jurídica e Judiciária de Macau, CCCarvalho. [27] O que ocorre nos contratos em crise nestes autos: «Na cláusula sexta das condições gerais referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, consta o seguinte: “1. Não se consideram cobertos por este contrato os riscos resultantes de: a) doença pré-existente, considerando como tal, toda a alteração involuntária do estado de saúde de Pessoa segura, não causada por acidente e susceptível de constatação médica objectiva, e que tenha sido objecto de um diagnóstico ou que com suficiente grau de evidência se tenha revelado, em data anterior à da celebração do presente contrato, salvo o caso em que tenha havido comunicação formal ao Segurador, e aceitação por parte deste, mediante as condições que para o efeito tenham sido estabelecidas;”. Na cláusula sexta das condições gerais referentes à apólice de seguro do ramo vida nº ...20, consta o seguinte: “1. Não se consideram cobertos por este contrato os sinistros resultantes de: a) doença pré-existente, considerando-se como tal toda a alteração involuntária do estado de saúde da Pessoa segura, susceptível de constatação médica objectiva, e que tenha sido objecto de um diagnóstico ou que, com suficiente grau de evidência, se tenha revelado em data anterior à da adesão ao presente contrato, salvo quando tenha havido comunicação formal ao Segurador, e aceitação por parte deste, nas condições que para o efeito tenham sido estabelecidas;”. [31] Fixando-se um prémio como se a A. não padecesse de qualquer problema de saúde: 38. A adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...90 foi aceite pela ré, à tarifa normal, sem qualquer exclusão e/ou agravamento, tendo por base os elementos e as declarações prestadas pela autora na referida proposta de adesão. 41. A adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...20 foi aceite pela ré, à tarifa normal, sem qualquer exclusão e/ou agravamento, tendo por base os elementos e as declarações prestadas pela autora na referida proposta de adesão. [32] Veja-se, além do mais que consta das propostas: «35. Na proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...90, a autora preencheu o questionário médico ali existente, nos termos que resultam do documento nº 1 junto com a contestação. 36. No referido questionário, entre outras, constavam as seguintes perguntas: “1. Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica? 4. Tem alguma alteração física ou funcional, teve algum acidente grave, foi submetido a alguma intervenção cirúrgica ou recebeu alguma transfusão de sangue?”. 37. A tais perguntas a autora respondeu não. 39. Na proposta de adesão à apólice de seguro do ramo vida nº ...20 consta a seguinte declaração: “Declaro que até à presente data não me foi atribuído qualquer grau de Incapacidade funcional, que estou de boa saúde e que no último ano não estive sujeito a qualquer tratamento médico regular nem fui aconselhado a ser hospitalizado para me submeter a uma intervenção cirúrgica ou a tratamento médico. Mais declaro que nos últimos 3 anos não estive sujeito a tratamento clínico durante mais de 3 semanas consecutivas. Declaro ainda que sei que a omissão ou falsas declarações conduzem à nulidade da minha adesão à apólice de seguro subjacente ao presente contrato.”. 40. À referida declaração a autora respondeu sim, preenchendo o campo respectivo. [33] «Considerando esta idiossincrasia, é facilmente compreensível que o candidato a tomador do seguro deva informar correctamente a contraparte acerca das circunstâncias relevantes para apreciação do risco, ainda que a entidade seguradora na eventualidade de realizar um questionário, não tenha interrogado expressamente certos aspectos que se assumam significativos» - Fábio Gulpilhares, O dever de declaração inicial do risco: âmbito, critério de relevância (materiality test) e sistemas de declaração espontânea vs. sistemas de questionário fechado, Julgar Online,outubro de 2020, citando em nota doutrina autorizada (ALBUQUERQUE DE MATOS, Filipe, “As declarações reticentes e inexactas no contrato de seguro”, in ARS IVDICANDI Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Volume II: Direito Privado, Coimbra Editora, p. 466.) [34] Dizer não obstante que os questionários médico sempre se manteriam incólumes por não consubstanciarem quaisquer cláusulas contratuais, de resto como se afirma na sentença: «Desde logo, importa relevar que o questionário médico que a ré apresentou à autora não constitui em si qualquer cláusula contratual e muito menos uma cláusula geral que possa ser influenciada pelo Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, com os inerentes deveres de informação (nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/10/2024, base de dados da DGSI, processo nº 926/19.8T8PVZ.P1.S1). Isto porque tal questionário médico não se encontra pré-elaborado e integrado sem mais no contrato, mas consiste, precisamente, num meio através do qual o próprio segurado fornecerá informações pertinentes para que a seguradora possa ficar na posse dos essenciais em ordem a estabelecer as condições de aceitação do contrato e avaliação dos riscos.» [35] Mafalda Miranda Barbosa, «Causalidade no universo dos seguros: o não cumprimento da declaração inicial de risco e o seu regime», Revista de Direito Comercial, 15/01/2028, p. 48 ( www.revistadedireitocomercial.com). [36] Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit., p.51. |