Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | TERESA PINTO DA SILVA | ||
| Descritores: | DESERÇÃO DA INSTÂNCIA NEGLIGÊNCIA DA PARTE | ||
| Nº do Documento: | RP2025101370/24.6T8OBR.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A deserção da instância, prevista na alínea c) do artigo 277.º e no artigo 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pressupõe a verificação cumulativa de dois requisitos: um objetivo (paragem do processo por mais de seis meses) e outro subjetivo (negligência das partes). II - O requisito subjetivo da negligência exige que sobre a parte recaia, por força de preceito legal, ónus específico de impulso processual, não bastando a mera inércia objetiva. III - A declaração de deserção da instância exige ponderação casuística da conduta das partes, não podendo ser penalizada a parte que demonstrou inequívoco interesse na resolução do litígio e que cumpriu todas as obrigações processuais que lhe competiam. IV. No processo de inventário, compete primacialmente ao cabeça de casal assegurar o regular andamento dos autos, praticando os atos que lhe sejam judicialmente determinados. V - Não é negligente o comportamento da Interessada / requerente que, não sendo destinatária de determinação judicial específica, confia legitimamente no cumprimento pelo cabeça de casal dos seus deveres processuais, e que, logo que toma conhecimento de conduta que considera dilatória deste, instaura incidente de remoção do cargo. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 70/24.6T8OBR.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo de Família e Menores de Oliveira do Bairro Recorrente: AA Recorrida: BB Relatora: Teresa Pinto da Silva 1ª Adjunta: Ana Olívia Loureiro 2º Adjunto: Miguel Baldaia de Morais * Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do PortoI – Relatório 1. Nos autos de inventário para separação de meações, em consequência de divórcio, em que é Requerente/Interessada AA e Requerido/Cabeça de Casal BB, instaurados em 24 de fevereiro de 2024, no Cartório Notarial em Anadia, por despacho da Srª Notária CC, de 16 de março de 2019, na sequência de reclamação de 8 de outubro de 2017, por parte da Interessada AA, contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, a srª Notária remeteu os interessados para os meios comuns quanto à questão de várias verbas relacionadas serem bens comuns do casal ou bens próprios de um dos cônjuges, quanto à questão das benfeitorias e sua delimitação, e quanto à questão da realização ou não de escritura definitiva do imóvel sito em Angola, objeto de contrato-promessa, tendo sido determinada a suspensão da tramitação do processo até que ocorresse decisão definitiva dessas questões. 2. Em 31 de janeiro de 2024, foram os autos remetidos à comarca de Aveiro, Juízo de Família e de Menores de Oliveira do Bairro, nos termos do art. 12º/3, da Lei 117/2019, de 13/09. 3. Em 18.03.2024, tendo em vista ponderar se o processo se devia manter suspenso ou prosseguir os seus termos, o Tribunal a quo proferiu despacho a conceder ao cabeça de casal o prazo de 10 dias para informar se foi proposta a ação destinada a resolver as questões acima referidas e, em caso de resposta positiva, juntar certidão da respetiva petição inicial e indicar o estado do processo. 4. Em 25 de março de 2024, o cabeça de casal veio informar que a ação destinada a resolver todas as questões referidas no despacho notarial de 16.03.2019 havia sido oportunamente proposta (processo referido - nº431/19.2T8AND), juntando cópia do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito desse processo, requerendo o prosseguimento imediato dos presentes autos, com consequente apresentação de nova relação de bens corrigida com base na decisão proferida no âmbito do processo nº nº431/19.2T8AND. 5. Em 4 de abril de 2024, a interessada AA veio declarar que concorda que os presentes autos devem prosseguir os seus termos, uma vez que a grande parte dos imóveis e das demais verbas em discussão nos autos já está definida, apenas faltando decidir a verba relativa ao imóvel sito em Angola. 6. Em 11.04.2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «Requerimentos de 25.03.2024 e 04.04.2024: Pelos motivos que constam do despacho de 18.03.2024 (e considerando o teor do despacho de 16.03.2019 e o disposto no n.º 1 do artigo 36.º do RJPI) o presente inventário está suspenso até que haja decisão transitada em julgado, dos tribunais comuns, relativamente: à questão de “várias verbas relacionadas serem bens comuns do casal ou bens próprios de um dos cônjuges”, à questão “das benfeitorias e a sua delimitação” e à questão da “realização ou não de escritura definitiva do imóvel sito em Angola, objeto de contrato-promessa”. Face ao exposto: a) indefiro o pedido de prosseguimento dos autos, sendo irrelevante o acordo dos interessados a este respeito; b) concedo ao cabeça de casal o prazo de 10 dias para juntar certidão da petição inicial, reconvenção, sentença e acórdão do Tribunal da Relação do Porto integrantes do processo n.º 431/19.2T8AND, com informação do trânsito em julgado.» 7. Este despacho foi notificado às partes, conforme certificação Citius, elaborada em 16-04-2024. 8. Em 26.04.2024, o mandatário do cabeça de casal renunciou ao mandato, tendo o cabeça de casal vindo, em 14 de maio de 2024, a juntar procuração constituindo novo mandatário. 9. Em 06.05.2024 e 20.05.2024, foram proferidos despachos a determinar que os autos continuassem a aguardar a junção da certidão judicial referida no despacho de 11.04.2024, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil, despachos que foram notificados às partes. 10. Em 22 de maio de 2024 e em 17 de julho de 2024 o Tribunal a quo solicitou à Segurança Social informação sobre a decisão que recaiu relativamente ao pedido de apoio judiciário formulado pela Interessada AA. 11. Por email enviado em 18 de julho de 2024 o Instituto da Segurança Social veio informar, quanto ao pedido de proteção jurídica formulado pela Interessa AA, que foi efetuada a audiência prévia, com proposta de indeferimento, concedendo à Requerente o prazo de resposta de 10 dias úteis. 12. Em 4 de dezembro de 2024, a Interessada AA veio juntar aos autos comprovativo de entrega de novo pedido de apoio judiciário por ela formulado junto da Segurança Social, uma vez que o pedido anterior continha inexatidões. 13. Em 4 de fevereiro de 2025, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «Notificação enviada ao ISS em 17.07.2024 e requerimento de 04.12.2024: Oficie novamente ao ISS, solicitando que informe que decisão foi proferida relativamente aos pedidos de apoio judiciário formulados pela interessada requerente: Notifique as partes para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre a deserção da instância, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil.». 14. Em 11 de fevereiro de 2025, o cabeça de casal apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor: «BB, cabeça de casal nos autos á margem referenciados, vem, na sequência do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 29/10/2024, no âmbito do Processo n.º 431/19.2T8AND.P1.S1, 7ª Secção, nos autos de Revista Excecional, mediante o qual se confirma que existem bens que devem integrar o acervo comum do casal, requerer a V.a Ex.a se digne conceder-lhe um prazo de dez dias para apresentar relação de bens correta.» 15. 10. Em 13 de fevereiro de 2025, o Tribunal a quo solicitou à Segurança Social informação sobre a decisão que recaiu relativamente ao pedido de apoio judiciário formulado pela Interessada AA. 16. Em 27 de fevereiro de 2025, a interessada AA, na sequência do despacho de 4 de fevereiro de 2025, veio requerer que não seja declarada a deserção da instância e que o cabecelato seja entregue à Requerente, “operando nos próprios autos até tendo em conta que o ainda cabeça de casal se mantém em silêncio o que se entende não ser uma postura inocente e que visa precisamente o desfecho da deserção da instância”. 17. Em 7 de março de 2025, na sequência de despacho proferido no apenso B), datado de 21 de fevereiro de 2025, que determinou que se “juntem ao processo principal os requerimentos apresentados no presente apenso em 11.02.2025 e 17.02.2025, para aí serem apreciados”, foram juntos aos autos aqueles requerimentos. 18. Nesse requerimento de 11 de fevereiro de 2025, a Interessada AA deduziu incidente de remoção do cargo de cabeça de casal, requerendo: - A procedência do incidente com base na sonegação de Bens e violação das Leis do Processo aplicáveis; - A obrigatoriedade de imediata entrega à ora requerente da administração de todos os bens do acervo comum do extinto casal, com a obrigação de prestação e entrega de todas as informações e documentação respeitantes aos mesmos bens; - O prosseguimento da Prestação de Contas do Apenso A relativas ao período desde Junho de 2015 e até efetiva remoção do cargo de cabeça de casal do requerido e efetiva investidura da requerente como cabeça de casal e efetiva entrega da administração dos bens do referido acervo comum. 19. No requerimento de 17 de fevereiro de 2025, referido em 17., a Interessada AA alega que não tendo ainda obtido decisão definitiva do pedido de apoio judiciário já solicitado em 28 de outubro de 2024, e dada a urgência que atribui ao incidente, junta DUC e documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, requerendo o prosseguimento dos autos. 20. Em 10 de março de 2025, na sequência do despacho de 4 de fevereiro de 2025, o cabeça de casal veio requerer que seja declarada a deserção da instância e que o cabecelato se mantenha no Requerido, requerimento que o Tribunal a quo, por despacho de 27 de março de 2025, considerou extemporâneo e sem nenhum efeito. 21. Em 27 de março de 2025, o Tribunal a quo declarou deserta a instância, com efeitos reportados a 19 de outubro de 2024, nos termos da alínea c), do artigo, 277º e dos nºs 1 e 4, do artigo 281º, do Código de Processo Civil. * Inconformada com essa decisão, veio a interessada AA dela interpor o presente recurso, pretendendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que levante a suspensão dos autos e ordene o prosseguimento dos mesmos, com a consequente apreciação do incidente de remoção do cargo de cabeça de casal, para o que apresentou alegações que terminou com o seguinte acervo conclusivo:1 - Não se constata a existência de comportamento negligente por parte da ora requerente a quem o impulso processual não incumbia, pelo que o elemento essencial da negligência não está presente no que respeita á conduta da ora recorrente que, embora a Juíza a quo possa entender que podia ter assumido a obrigação do cabeça de casal, não se pode afirmar que estava obrigada ou vinculada a tal. Não estando verificado que o comportamento da ora Recorrente foi negligente e de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 281º do CPC, a Deserção da Instância não pode ser decretada por falta da presença do elemento necessário e obrigatório da negligência. 2 - A Decisão ora recorrida fere as legitimas expectativas decorrentes da atividade processual bem com não respeita Direitos Constitucionalmente consagrados de onde derivam os princípios basilares da Proporcionalidade (artºs 13 e 18º nº 2 e 3 da CRP); da Efetividade Processual (artº 20º /4 CRP); da equitatividade (artº 2º CRP), de onde derivam a segurança, previsibilidade, cognoscibilidade e calculabilidade, necessárias a uma efetiva tutela dos direitos de cada um e em particular da ora recorrente. * O cabeça de casal BB apresentou contra-alegações, que terminou com as seguintes conclusões:1ª O processo de inventário em causa encontrava-se suspenso desde 18-03-2024, data em que as partes foram remetidas para os meios comuns a fim de discutir a natureza comum e/ou própria de determinados bens e outras questões. 2ª Depois dessa data outros despachos foram proferidos no sentido de os autos continuarem a aguardar, sem prejuízo do decurso do prazo da deserção previsto no artigo 281º do CPC. 3ª Entendeu, por isso, a Mma Juiz a quo que em 19-10-2024, a instância de declarou deserta, pelo decurso do prazo e inércia das partes. 4ª Em face da sentença que declarou a instância deserta, veio a requerente do inventário e ora recorrente apresentar alegações, por inconformada, alegando em suma que se houve inércia, a mesma não foi da sua parte, nem lhe pode ser imputada, e que atos foram praticados após 19-10-2024 que criaram nela legítima expectativa do normal andamento dos autos. 5ª Ora, a existência de comportamento negligente não pode ser imputada a uma das partes, quando o impulso também podia ser dado pela outra parte, no caso a requerente. 6ª Aliás, assim se diz na douta sentença: se a recorrente assim o entendesse poderia ter feito juntar aos autos a certidão em falta. 7ª Mas não o fez. 8ª E nessa medida, foi inerte, já que também deixou o processo suspenso ciente das consequências daí advenientes. 9ª Portanto, não parece agora salutar vir alegar a violação de expectativas legitimamente criadas. 10ª Quando nesse “meio-tempo” ainda intentou um apenso aos autos. 11ª Ora, o comportamento processual é igual do ponto de vista do prosseguimento para ambas as partes. 12ª Ao contrário do qua alega a recorrente o seu comportamento não é exemplar, 13ª Pelo que se acham preenchidos os pressupostos do artigo 281º do CPC. 14ª A douta sentença não violou assim qualquer direito constitucionalmente consagrado, encontrando-se bem fundamentada do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial. 15ª Motivo pelo qual deve ser mantida nos seus precisos termos. 16ª Assim sendo, V.as Ex.as julgando o recurso improcedente e mantendo a decisão proferida farão a tão acostumada JUSTIÇA! * Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata e com efeito devolutivo.* Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * Delimitação do objeto do recursoO objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil). Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido. Mercê do exposto, da análise das conclusões apresentadas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão: - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao declarar deserta a instância. * II – FundamentaçãoA) Fundamentação de facto Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, não se procedendo à reprodução dos mesmos, por tal se revelar desnecessário. * B) Fundamentação de direito1) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao declarar deserta a instância A deserção constitui uma forma de extinção da instância, conforme o disposto na alínea c) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, encontrando-se regulada no artigo 281.º do mesmo diploma. Preceitua o n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil que "Sem prejuízo do disposto no nº5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses." Da análise do preceito legal resulta que a deserção da instância pressupõe a verificação cumulativa de dois requisitos essenciais: a) Um requisito objetivo: a paragem do processo por falta de impulso processual das partes durante mais de seis meses; b) Um requisito subjetivo: que essa paragem seja imputável a negligência das partes. Como salientou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 05.07.2018 (Processo n.º 105415/12.2YIPRT.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt: "para que se verifique o primeiro requisito é necessário que o prosseguimento da instância dependa de impulso da parte decorrente de algum preceito legal". Significa isto, tal como se pode ler no Acórdão do STJ de 03.10.2019 (Processo nº 1980/14.4TBVDL.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, “que não releva, para efeitos de deserção da instância, que o processo esteja a aguardar o impulso processual da parte por um período superior a 6 meses, se sobre a parte não recair, por força de algum preceito legal, o ónus específico de promoção da atividade processual, ou seja, se a parte não estiver, legalmente, onerada com o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de determinados atos cuja omissão impeça o prosseguimento da causa". No caso em análise está em causa um processo de inventário, no qual o cabeça de casal assume posição processual de especial relevo, sendo-lhe atribuídos deveres específicos de gestão e impulsionamento do processo. Dispõe o artigo 2086.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, que é causa de remoção do cargo de cabeça de casal o incumprimento dos deveres que a lei lhe impuser. Na economia do processo de inventário, compete primacialmente ao cabeça de casal assegurar a progressão regular dos autos, designadamente cumprindo as determinações do tribunal e praticando os atos que lhe sejam especificamente ordenados. No caso vertente, os despachos de 11.04.2024, 06.05.2024 e 20.05.2024 dirigiram-se especificamente ao cabeça de casal, determinando-lhe que juntasse aos autos certidão da petição inicial, reconvenção, sentença e acórdão do Tribunal da Relação do Porto integrantes do processo n.º 431/19.2T8AND, com informação do trânsito em julgado, tendo em vista o prosseguimento da instância de inventário. Assim sendo, o ónus de impulso processual recaía, em primeira linha, sobre o cabeça de casal, e não sobre a interessada requerente, ora Recorrente. Por outro lado, o conceito de negligência processual não se reconduz a uma mera inércia objetiva, antes exigindo uma valoração da conduta da parte à luz das circunstâncias concretas do caso. Com efeito, não basta a inércia de uma parte para declarar a deserção da instância, devendo ser verificados, em cada caso concreto, quais os interesses processuais a que correspondam incumbências específicas, para aferir da negligência e responsabilidade das partes nessa inércia processual. Aplicando os princípios e critérios enunciados ao caso dos autos, impõe-se concluir que não se encontra preenchido o requisito subjetivo da negligência relativamente à Interessada/Requerente, ora Recorrente. Com efeito: a) O ónus de impulso processual, conforme resulta dos despachos de 11.04.2024, 06.05.2024 e 20.05.2024, recaía especificamente sobre o cabeça de casal, que foi notificado para juntar documentação que o Tribunal a quo considerou necessária ao prosseguimento dos autos; b) A Interessada/ Requerente não foi destinatária de qualquer determinação judicial específica que lhe impusesse a prática de ato processual determinado; c) Logo que tomou conhecimento da junção pelo cabeça de casal, em 11.02.2025, de documentação que considerou manifestamente insuficiente e reveladora de manobra dilatória, a interessada requerente reagiu de imediato, instaurando, nessa mesma data, incidente de remoção de cabeça de casal, demonstrando inequívoca vontade de assegurar o prosseguimento regular dos autos; d) A própria sentença recorrida reconhece que o ónus primário de impulso processual competia ao cabeça de casal, tanto assim que lhe imputa as custas do processo, afirmando expressamente: "Custas a cargo do cabeça de casal, pois era a si que competia, em primeira linha, dar impulso aos autos"; e) Não se divisa, à luz de uma ponderação objetiva e razoável das circunstâncias do caso, qualquer comportamento negligente imputável à Recorrente, que diligenciou no âmbito das suas possibilidades e competências processuais. Importa ainda realçar que o prosseguimento dos autos não dependia exclusivamente da iniciativa das partes, antes cabendo também ao Tribunal, no exercício dos deveres de gestão e direção do processo que lhe são consignados no artigo 6.º do Código de Processo Civil, adotar as diligências necessárias ao regular andamento da instância. Com efeito, confrontado com a manifesta inércia do cabeça de casal no cumprimento das determinações judiciais, e perante a existência de um incidente de remoção de cabeça de casal instaurado pela Interessada/Requerente, competia ao Tribunal a quo, no exercício dos seus poderes-deveres de gestão processual, decidir esse incidente, apreciando se subsistiam razões para manter o cabeça de casal no exercício das suas funções ou se se impunha a sua substituição. Acresce que, como bem invoca a Recorrente, após a data de 19.10.2024 – reportada pela sentença recorrida como momento em que se consumou a deserção – o Tribunal ad quem praticou diversos atos processuais que, objetivamente considerados, criaram na Recorrente a legítima expectativa de que o processo se encontrava em regular curso de tramitação. Referimo-nos, designadamente, ao ofício dirigido ao Instituto da Segurança Social sobre o apoio judiciário da Recorrente (13.02.2025) e ao despacho de 7 de março de 2025, que ordenou a junção ao processo principal dos requerimentos apresentados no apenso B) em 11.02.2025 e 17.02.2025 (relativos à remoção do cabeça de casal), para aí serem apreciados. Esta circunstância não é irrelevante, pois traduz que o próprio tribunal ad quem, através da sua atividade processual, não considerava o processo como deserto, antes promovendo o seu andamento. A prática de atos jurisdicionais e administrativos posteriores à data de alegada consumação da deserção revela, no mínimo, uma contradição objetiva entre a conduta do Tribunal ad quem e a declaração posterior de deserção, suscetível de gerar nas partes uma confiança legítima incompatível com a extinção da instância. A Recorrente invoca ainda que a decisão recorrida colide frontalmente com princípios de matriz constitucional que informam o processo civil contemporâneo. A deserção da instância conduz à extinção do processo sem apreciação do mérito da causa. Ora, a aplicação de tão severa consequência jurídica exige que se demonstre, de forma inequívoca, a verificação dos seus pressupostos legais e, designadamente, a negligência censurável da parte onerada com o impulso processual. No caso vertente, como se deixou demonstrado, não se verifica negligência imputável à Recorrente, pelo que a declaração de deserção se revela manifestamente desproporcional, penalizando uma parte que cumpriu as suas obrigações processuais e que demonstrou, inequivocamente, interesse na resolução do litígio, para além de representar a negação do direito à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. Daí ser de concluir, sem necessidade de maiores considerações, que, no caso dos autos, não se mostram verificados os pressupostos para ser decretada a deserção da instância, impondo-se, pois, a revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir seus termos. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do Código de Processo Civil, as custas são a cargo do Recorrido. * Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil)……………………………… ……………………………… ……………………………… * III – DECISÃOPelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pela Apelante AA, revogando a decisão recorrida que julgou deserta a instância e determinando o prosseguimento dos autos de inventário. Custas pelo Recorrido. * Porto, 13 de outubro de 2025Os Juízes Desembargadores Teresa Pinto da SilvaAna Olívia Loureiro Miguel Baldaia de Morais |