Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9715/22.1T8PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO LOCADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ EM SEDE DE RECURSO
Nº do Documento: RP202411259715/22.1T8PRT.P2
Data do Acordão: 11/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O indeferimento do diferimento de desocupação do arrendado não obsta a que o pedido de suspensão da execução para entrega de tal imóvel ao abrigo do art. 863º nº3 do CPC possa ser acionado.
II – Este pedido, traduzindo-se numa suspensão das diligências executórias a levar a cabo pelo agente de execução e a ser tramitado nos termos dos nºs 3 e 4 do art. 863º, distingue-se daquele diferimento de desocupação previsto no art. 864º do CPC, que deve ser requerido dentro do prazo de oposição à execução e é tramitado nos termos previsto no art. 865º.
III – A suspensão da execução em causa depende da prova de que a pessoa que se encontra no arrendado sofre de doença aguda e que a retirada da mesma por via do despejo põe em risco a sua vida, prova esta que deve ser feita através de atestado médico no qual necessariamente se terá de indicar de forma fundamentada o prazo durante o qual a execução deve ser suspensa.
IV – Não sendo invocada a litigância de má-fé no tribunal recorrido, não tendo tal tribunal oficiosamente dela conhecido e antes só sendo a mesma invocada em sede de recurso, o tribunal de recurso só pode conhecer dela na parte atinente à conduta da recorrente na fase do recurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº9715/22.1T8PRT.P2

(Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 2)

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Anabela Mendes Morais

2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

A..., Lda.”, intentou execução contra AA para entrega de coisa certa, dando à execução sentença condenatória de despejo proferida no processo nº 20550/19.4T8PRT do Juízo Local Cível do Porto.

Citada a executada, a mesma veio, em 20.06.2022, requerer o diferimento de desocupação do locado, por um tempo mínimo de 90 dias, nos termos dos art.ºs 861.º n.º 6, 863.º e 864.º do C.P.Civil.

Para tanto alegou: “…é indiscutível que a desocupação imediata do local causa à requerente um prejuízo muito superior à vantagem conferida aos exequentes. A requerente vive só, tendo apenas como rendimento o Rendimento Social de Inserção no valor de €148,00 (…) até ao momento não conseguiu a requerente arranjar qualquer habitação, não obstante já tenha feito inúmeros esforços nesse sentido.Com efeito, não obstante a boa vontade da segurança social, facto é que não passa da intenção, não dispondo de qualquer alternativa (…) a execução imediata da presente entrega, colocará inevitavelmente esta família em sérias dificuldades, uma vez que se verá na «rua» sem qualquer lugar onde possa acolher-se.

Por outro lado, não tem a requerente qualquer capacidade financeira que lhe permita alojar-se provisoriamente em qualquer estabelecimento dessa natureza, (…) É por demais evidente que o ato de entrega do imóvel é susceptível de causar prejuízo à subsistência da executada, sendo certo que a suspensão da prática do referido ato não causa prejuízo grave à subsistência dos exequentes nem um prejuízo irreparável. (…) A executada encontra-se a passar muitas dificuldades. Visto ter vários problemas de saúde, correndo, assim, risco de subsistência. Vivendo da ajuda de amigos e família (…) foi efectivamente por falta de meios financeiros, e pela sua vida, nos últimos anos ter vindo consideravelmente a piorar, que a executada não conseguiu pagar as rendas. Acresce que a executada se encontra doente, tendo crises constantes que são despoletadas em períodos de maior nervosismo ou excitação. (…) Ficando a mesma muito alterada, ao receber a notificação, de que iria ser despejada. Encontrando-se numa verdadeira luta contra o tempo. Esta situação de angústia e desespero originou a que a executada tivesse novas crises, estando neste momento sob medicação mais forte. Principalmente por este motivo, necessita imperiosamente a requerida de mais algum tempo para conseguir arranjar uma habitação, para o que necessitará de um período mínimo de 90 dias, permitindo à executada, fazer uma transição com um pouco mais de tranquilidade, que é a única forma de salvaguardar a pouca saúde da executada (…) não possui a requerente, como já se referiu, imediatamente outra habitação; tem um agregado constituído por si, dispondo de uma condição financeira precária (…)”.

Tal pedido foi liminarmente admitido e notificada a exequente para se pronunciar veio a mesma dizer que desconhece se a matéria de facto alegada pela executada corresponde, ou não, à verdade, mas manifestou a sua estranheza face ao facto de não ter sido junto qualquer documento que serva de prova à veracidade desses factos, nomeadamente os invocados a propósito dos rendimentos e das doenças da executada.

Por despacho de 27.06.2022 foi a executada notificada para, em cinco dias, juntar aos autos documentos comprovativos dos seus rendimentos e composição do agregado familiar.

Decorrido o referido prazo sem que a executada tenha requerido ou junto o que quer que fosse aos autos, foi proferido, em 12.07.2022, o seguinte despacho:

Uma vez que a executada não juntou aos autos os comprovativos do seu rendimento e da composição do agregado familiar, o que impossibilita que o Tribunal conclua pela verificação de razões sociais imperiosas, que imponham o deferimento da desocupação, indefiro o requerido - art.º 864.º, n.º1, do C.P.C”.

Por requerimento de 12.07.2022 veio a executada juntar aos autos dois documentos comprovativos dos seus rendimentos e agregado familiar, mais alegando que “Por lapso da subscritora, pelo qual desde já se penitencia, o presente requerimento foi junto ao processo n.º 1717/22.4T8VNG, em 05.07.2022, tendo-lhe sido atribuída a ref.ª 32733679”.

Ouvida a parte contrária, foi depois, a 19.09.2022, proferido o seguinte despacho: “Considerando que o Tribunal já se pronunciou quanto ao incidente de deferimento de desocupação do locado e que os documentos apresentados o foram posteriormente a esse indeferimento, sem que tenha sido apresentado novo requerimento, nada mais há a acrescentar àquele despacho”.

De tal decisão veio a executada, a 20.09.2022, interpor recurso de apelação pedindo que seja a mesma revogada.

Por acórdão em conferência proferido por este Tribunal da Relação a 7/2/2023, foi julgado improcedente aquele recurso e confirmada a decisão recorrida.

De tal acórdão veio a executada, em 21.02.2023, a interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, por despacho de 13.03.2023, não foi admitido.

Desse despacho de não admissão de recurso veio a executada a apresentar reclamação para o Presidente do Tribunal Constitucional.

Neste tribunal, por acórdão em conferência proferido a 6.06.203, foi decidido indeferir aquela reclamação.

Na sequência de tal acórdão, a executada, a 20.06.2023, veio arguir nulidade processual junto daquele tribunal, a qual veio a ser indeferida por acórdão em conferência proferido a 10.10.2023.

Baixados os autos à primeira instância, foi informada a agente de execução do indeferimento do incidente de deferimento de desocupação do locado.

Por requerimento dirigido aos autos a 26.01.2024, a agente de execução deu conta da sua tentativa frustrada de tomada de posse do imóvel em virtude da oposição da executada, conforme auto de diligência efetuada a 25.01.2024 que anexou.

Por despacho de 30.01.2024, foi autorizada a realização daquela diligência “com recurso à força pública e arrombamento, se necessário (artº 757º e 767º, do C.P.C.)”.

A agente de execução notificou a executada de que aquela diligência teria lugar a 19.03.2024.

A 12.03.2024, a executada deu entrada de requerimento com o seguinte teor:

A executada recebeu uma comunicação da Senhora Agente de Execução a marcar o dia 19.03.2024 para proceder à entrega do imóvel, sito na Rua ..., ..., Casa-..., no Porto.

Sucede que o imóvel em questão constitui a única casa de morada de família da aqui executada.

Sublinhando-se, também, as dificuldades pelas quais a executada está a passar.

Com efeito, a executada está desempregada, vivendo apenas do RSI no montante de pouco mais de 200€.

Acresce que a executada ainda se encontra a recuperar de uma cirurgia aos olhos, encontrando-se em pânico com esta situação, uma vez que se apercebeu que não tem qualquer alternativa se não sair de casa, estando a ser muito complicada a obtenção de uma alternativa habitacional no momento.

Acrescido de problemas de saúde do foro psicológico, nomeadamente depressão.

Nestes trâmites, torna-se necessário atentar à saúde débil da executada.

Visto que, o seu grave estado de saúde poderá agravar-se com a execução do despejo que se pretende realizar.

Na verdade, a mesmo tem estado sob medicação ainda mais forte tendo em conta as várias crises de ansiedade despoletadas pelo presente processo, crises essas que surgem em períodos de maior nervosismo ou excitação, estando o mesmo em pânico com a hipótese de ser despejada.

Ora, a realidade é que os rendimentos da executada – 200,00€, são insuficientes para arrendar, neste preciso momento, um imóvel, tendo em conta os valores exorbitantes nos quais se situam as rendas.

10º

Nem mesmo chegando para um quarto sequer!

11º

Acrescido de tal fator, não tem neste momento qualquer família ou amigos aos quais possa recorrer.

12º

Por outro lado, não obstante a boa vontade da segurança social, facto é que não passa da intenção, não dispondo de qualquer alternativa.

Nestes termos,

13º

No âmbito dos presentes autos, é aplicável o disposto pelo art. 863º a 866º do CPC.

14º

Concretamente, diz o nº 3 do art. 863º CPC: “Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

15º

Ora, tal como já referido anteriormente, a executada encontra-se numa situação bastante frágil, a recuperar de uma cirurgia aos olhos, revelando uma grave condição médica.

16º

Nessa esteira, a concreta diligência de entrega tem de ser, necessariamente, suspensa até que seja assegurado o realojamento deste agregado familiar que, de outro modo, ficará na rua, visto não ter qualquer outra solução.

17º

O que se revela inconstitucional por violar, desde logo, o direito à habitação previsto no art. 65º CRP.

Nestes termos e nos mais de direito, requer-se muito respeitosamente a V.Exa se digne a suspender as diligências de entrega do imóvel que é casa de morada de família da executada.

Mais se requer que seja promovida comunicação à Câmara Municipal ... e entidades assistenciais competentes a fim de providenciarem pelo realojamento da executada.

A exequente, por requerimento de 14.03.2024, opôs-se ao requerido pela executada [defende que à presente situação não é aplicável o disposto nos art.ºs 864º e 865º do C. P. Civil, aduzindo o seguinte:

“Por um lado, porque a executada já suscitou o incidente de diferimento de desocupação aí previsto, que seguiu os seus termos até decisão transitada em julgado.

Por outro lado, porque há muito que foi ultrapassado o prazo previsto no n.º 1 do referido art. 864º.

A suspensão prevista no n.º 3 do art.º 863.º admite a suspensão das diligências executórias quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

O que significa que as diligências executórias (despejo) têm que ocorrer, podendo o agente de execução suspendê-las se lhe for entregue um atestado médico com as características acima elencadas.

Ocorrendo essa suspensão, seguir-se-á a tramitação prevista nos n.ºs 4 e 5 do art.º 863.º do C. P. Civil.”]

A 15.03.2024 foi proferido o seguinte despacho:

A executada veio requerer o deferimento da desocupação do locado alegando, em síntese, ter sido submetida a cirurgia aos olhos que determinam uma incapacidade temporária, além de apenas ter como rendimentos RSI no valor de € 200.

Não juntou qualquer comprovativo do alegado.

O exequente pronunciou-se no sentido do indeferimento.

Compulsados os autos verifica-se que já em 2022 a executada requerera o deferimento da desocupação do locado, qual foi indeferido com fundamento no facto de após ter sido convidada a juntar comprovativos do alegado, nada ter junto, decisão que viria a ser mantida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.

Como já antes se referira, e o Tribunal da Relação não censurou o decidido, com aquela primeira decisão esgotou-se o poder jurisdicional na referida matéria.

Porém, saliente-se que, mais uma vez, a executada formula o pedido sem juntar qualquer comprovativo, quer de que aufere rendimento social de inserção, quer da alegada incapacidade e do período previsível da sua duração, sendo que primitivamente, em 2022, requereu o deferimento e, como sublinhou o Tribunal da Relação do Porto na douta decisão de 07.02.2023, um prazo que se se requeria fosse de noventa dias, transmutou-se, com os expedientes a que a executada vem lançando mão, em mais de dois anos, em claro prejuízo dos direitos do exequente, sendo manifesto que os mesmos excedem os princípios da boa fé.

Pelo exposto, em obediência ao caso julgado da decisão que não indeferiu o deferimento da desocupação do locado, decide-se não conhecer do pedido ora formulado.

Custas do incidente pela executada, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

De tal despacho veio a executada interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I – O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.

II – O Digníssimo Tribunal entendeu que a executada pretendia o requerimento de diferimento da desocupação do locado, todavia não foi esse o requerimento pretendido.

III – Com efeito, na sequência da comunicação recebida por parte da Senhora Agente de Execução a agendar o dia 19 de Março de 2024 para proceder à entrega do imóvel identificado nos autos, a executada veio requerer a suspensão das diligências de entrega do imóvel que é casa de morada de família, mais requerendo que seja promovida comunicação à Câmara Municipal ... e entidades assistenciais competentes a fim de providenciarem pelo realojamento da mesma.

IV - Concretamente, diz o nº 3 do art. 863º CPC: “Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

V - O imóvel em questão constitui a única casa de morada de família da aqui executada, a qual está a passar inúmeras dificuldades.

VI - Com efeito, a executada está desempregada, vivendo apenas do RSI no montante de pouco mais de 200€.

VII - Acresce que a executada ainda se encontra a recuperar de uma cirurgia aos olhos, encontrando-se em pânico com esta situação, uma vez que se apercebeu que não tem qualquer alternativa se não sair de casa, estando a ser muito complicada a obtenção de uma alternativa habitacional no momento.

VIII - Tudo acrescido de problemas de saúde do foro psicológico, nomeadamente depressão.

IX - Nestes trâmites, torna-se necessário atentar à saúde débil da executada, visto que, o seu grave estado de saúde poderá agravar-se com a execução do despejo que se pretende realizar, estando em risco a sua própria vida.

X -Na verdade, a mesma tem estado sob medicação ainda mais forte tendo em conta as várias crises de ansiedade despoletadas pelo presente processo, crises essas que surgem em períodos de maior nervosismo ou excitação, estando a mesma em pânico com a hipótese de ser despejado.

XI - Ora, a realidade é que o rendimento da executada é insuficiente para arrendar, neste preciso momento, um imóvel, tendo em conta os valores exorbitantes nos quais se situam as rendas.

XII - Acrescido de tal fator, não tem neste momento qualquer família ou amigos aos quais possam recorrer.

XIII - Por outro lado, não obstante a boa vontade da segurança social, facto é que não passa da intenção, não dispondo de qualquer alternativa.

XIV - Tudo isto alegou a executada, tendo a Meritíssima Juiz indeferido, sem mais o seu requerimento.

XV - A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, salvo devido respeito, não procedeu a uma decisão justa e legal ao proferir o despacho de indeferimento de suspensão da entrega.

XVI - Já constam do processo os problemas de saúde da executada.

XVII - Esta, usou uma faculdade que a lei lhe dá de pedir a suspensão da execução e de desocupação do imóvel exatamente porque não dispõe de outra alternativa, e não por um capricho seu, provando os problemas de saúde através da junção de documentos médicos, que protestou juntar.

XVIII - Ora, a Meritíssima Juiz deveria ter notificado a mesma para apresentar um atestado mais pormenorizado.

XIX - Ao invés preferiu proferir despacho de indeferimento da suspensão da entrega do locado.

XX - O n.º 6 do art.º 861º CPC refere:

6 — Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.

XXI – Por sua vez o art.º 863º CPC nos seus números 3 a 5, estipula

3 — Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

“4 — Nos casos referidos nos n.ºs 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante.

“5 — No prazo de cinco dias, o juiz de execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos.”

XXII – Ora, são requisitos para a suspensão em questão:

1) Tratar-se da casa de habitação principal do executado;

2) Apresentar-se atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução;

3) Apresentar-se atestado médico que indique fundamentadamente a doença aguda que sofre a pessoa que se encontra no local e a coloque em risco de vida com a realização da diligência.

XXIII - Doença aguda significa doença súbita e inesperada, por contraposição a doença crónica. (Ver Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, CE, 2013, páginas 1061 e 1148 e seguintes, com anotação de jurisprudência.)

“As doenças agudas são aquelas que têm um curso acelerado, terminando com convalescença ou morte em menos de três meses.”

“As doenças agudas distinguem-se dos episódios agudos das doenças crónicas, que são exacerbação de sintomas normalmente menos intensos nessas condições.”

“Uma doença crónica é uma doença que não é resolvida num tempo curto, definido usualmente em três meses. As doenças crónicas são doenças que não põem em risco a vida da pessoa num prazo curto, logo não são emergências médicas.”

XXIV - Estamos perante uma doença aguda, correndo a executada risco da própria vida!

XXV - Assim, entende a recorrente que preenche os requisitos legais para que seja deferida a suspensão da instância e consequentemente da desocupação do imóvel.

XXVI - Nessa esteira, a concreta diligência de entrega tem de ser, necessariamente, suspensa até que seja assegurado o realojamento deste agregado familiar que, de outro modo, ficará na rua, visto não ter qualquer outra solução.

XXVII - O que se revela inconstitucional por violar, desde logo, o direito à habitação previsto no art.º 65º CRP.

XXVIII - Nestes termos, espera a recorrente que V. Exªs julguem procedente a apelação e seja revogada a decisão recorrida, determinando-se, em consequência o deferimento da suspensão da execução e de desocupação do imóvel.

XXIX - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos arts.º 862º a 866º do CPC e 65º CRP.”

A exequente apresentou contra-alegações, que notificou à executada nos termos do art. 221º do CPC, pugnando pela improcedência do recurso.

Nestas requereu ainda a condenação da executada como litigante de má-fé, em multa e em indemnização a pagar a si em valor a fixar de acordo com o disposto no artigo 543.º do CPC.

Além disso, peticionou que seja observado o disposto no art. 545º do CPC, pois, referiu, “entende ainda que esta má-fé da Executada na causa teve responsabilidade pessoal e direta da Ilustre Mandatária que a representa”.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar:

a) – apurar da suspensão da execução nos termos da previsão do art. 863º nº3 do CPC;

b) – caso se conclua pela não suspensão, apurar se tal viola o art. 65º da Constituição da República Portuguesa;

c) – apurar se ocorre litigância de má-fé por parte da recorrente.


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II – Fundamentação

Os dados a ter em conta são os referidos no relatório que antecede.

Vamos à primeira questão enunciada.

Os autos a que respeitam o recurso em apreço integram uma execução para entrega de coisa certa (no caso, a entrega de imóvel arrendado), tendo nela sido deduzido pela executada o incidente de diferimento de desocupação do locado.

Tal incidente foi indeferido por despacho proferido em 19/9/2022, o qual, na sequência de recurso dele interposto, foi confirmado por acórdão deste Tribunal da Relação de 7/2/2023 (foi depois interposto recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, mas tal recurso não foi admitido e tal não admissão foi depois confirmada por acórdão de tal tribunal proferido a 6/6/2023).

Assim, mostra-se transitada em julgado a decisão de indeferimento daquele incidente.

Decidido tal incidente e reatada a execução, a agente de execução deu conta da sua tentativa frustrada de tomada de posse do imóvel em 25/1/2024 em virtude da oposição da executada e, autorizada aquela por despacho de 30/1/2024 a realizar daquela diligência “com recurso à força pública e arrombamento, se necessário”, veio a mesma a notificar a executada de que tal diligência iria ter lugar a 19/3/2024.

Veio então a executada, a 12/3/2024, a dar entrada do requerimento que se transcreveu no relatório desta peça, pretendendo suspender a execução ao abrigo do art. 863º nº3 do CPC.

A exequente opôs-se, nos termos que acima se referiram.

Foi então proferido o despacho sob recurso.

Analisemos.

Desde logo há que precisar que, ao contrário do que resulta do despacho recorrido, não se está agora perante um incidente de diferimento de desocupação do locado – esse já teve lugar nos autos e foi indeferido por decisão com trânsito em julgado –, mas antes perante um pedido de suspensão da execução ao abrigo do disposto no art. 863º nº3 do CPC.

O facto de ter já tido lugar aquele indeferimento do diferimento de desocupação não obsta a que este pedido de suspensão da execução ao abrigo do art. 863º nº3 possa ser acionado.

Efetivamente, este pedido de suspensão, traduzindo-se numa suspensão das diligências executórias a levar a cabo pelo agente de execução e a ser tramitado nos termos dos nºs 3 e 4 do art. 863º, distingue-se do diferimento de desocupação previsto no art. 864º, que, como se dispõe no nº1 deste preceito, deve ser requerido dentro do prazo de oposição à execução e é tramitado nos termos previsto no art. 865º.

Como se prevê no referido nº3 do art. 863º, “Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda”.

Considerando a tramitação prevista nos subsequentes nºs 4 e 5 daquele art. 863º, o requerimento da executada de 12/3/2024 integra o requerimento previsto no nº4 e o despacho recorrido acaba por integrar a decisão prevista no nº5.

A suspensão da execução em análise, como se vê do preceito acima transcrito, depende da prova de que a pessoa que se encontra no arrendado sofre de doença aguda e que a retirada da mesma por via do despejo põe em risco a sua vida, prova esta que deve ser feita através de atestado médico no qual necessariamente se terá de indicar de forma fundamentada o prazo durante o qual a execução deve ser suspensa.

Como se vê dos autos, a executada apresentou o seu requerimento que acima se referiu, mas não juntou aos autos qualquer prova a sustentar a sua pretensão, designadamente qualquer atestado médico a comprovar uma sua qualquer doença aguda nos termos exigidos naquele preceito. Limitou-se a referir que se encontra a recuperar de uma cirurgia aos olhos” e que tem “problemas de saúde do foro psicológico, nomeadamente depressão” (nºs 4 e 5 do seu requerimento) e mesmo quanto a qualquer destes itens não juntou qualquer relatório ou atestado médico.

Assim, há que concluir pela manifesta improcedência da sua pretensão de suspensão da execução, e, como tal, que a mesma deve prosseguir os seus termos.

Passemos para a segunda questão enunciada.

A recorrente, de forma absolutamente conclusiva (já que não aduz qualquer explicação ou argumentação jurídica em tal sentido), defende que caso a suspensão por si requerida não tenha lugar ocorre violação do direito à habitação previsto no art. 65º da CRP (conclusões XXVI e XXVII do recurso).

No nº1 daquele art. 65º preceitua-se que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

O direito à habitação ali previsto, como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº612/2019 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), configura um direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, como se acentua nos nºs 2 a 4 daquele mesmo art. 65º, o que significa que, “sendo o mesmo configurado como um direito à protecção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários directos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido de criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito” e “[a]ssim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares” (sublinhados e negrito nossos).

No caso vertente, a decisão de não suspensão da execução decidida nos autos apenas se limita a interpretar e aplicar ao caso sub judice a previsão do art. 863º nº3 do CPC – sendo que não consta, nem se vislumbra, que esta norma não esteja constitucionalmente conformada – e a mesma tem lugar num processo entre particulares, do que decorre que tal decisão, por si, não colide com aquele direito social.

Assim, improcede tal questão recursória.

Passemos agora para a terceira questão enunciada.

Conforme se vê dos autos, não foi invocada pela exequente a litigância de má-fé da executada perante o tribunal de primeira instância, nem este oficiosamente conheceu dela.

Só nesta sede de recurso é que a exequente a invoca.

Assim, este tribunal só pode conhecer dela na parte atinente à conduta da recorrente em fase de recurso[1].

Neste conspecto, considerando que o que nesta fase estava em causa era a apreciação da pretensão de suspensão da execução ao abrigo da previsão do art. 863º nº3 do CPC, que à dedução de tal pretensão, ainda que tal possa custar à exequente, não obsta a dedução anterior do incidente de diferimento da desocupação do locado já decidido, e que a executada mais não fez do que interpor recurso da decisão da primeira instância que sobre aquela recaiu com os fundamentos que teve como adequados, não se vislumbra, neste contexto, que haja litigância de má-fé.

Efetivamente, ainda que se tenha concluído pela manifesta improcedência da pretensão de suspensão da execução, a executada apenas utilizou o seu direito de recorrer daquela decisão – a qual, sendo algo equívoca sobre o que estava em causa (como se referiu anteriormente, interpretou aquela pretensão como um novo pedido de diferimento de desocupação do locado e não era disso que se tratava), até tornava o recurso, sob tal prisma, perfeitamente pertinente.

Assim, improcede a pretensão de condenação da recorrente como litigante de má-fé.

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, que decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário a si concedido, sendo de precisar que a improcedência do pedido da recorrida no sentido da condenação da recorrente como litigante de má-fé não se repercute em custas sobre aquela [pois a litigância de má fé não releva para a determinação do valor da causa – neste sentido, Acórdão do STJ de 22/11/2006 (proc. nº06S1542, disponível em www.dgsi.pt), referido por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre no seu “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, volume 2º, 4ª edição, pág. 46].


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, indeferindo-se a suspensão da execução, ordena-se que a mesma prossiga os seus termos.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário a si concedido.


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Porto, 25/11/2024
Mendes Coelho
Anabela Mendes Morais
Ana Paula Amorim
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[1] Neste sentido, vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 459, citando Paula Costa e Silva, “A litigância de má fé”, Coimbra Editora, 2008, págs. 598 a 612, em que se dá conta da necessidade de a apreciação do comportamento da parte ser realizada pelo tribunal perante o qual esta litigou de má-fé.