Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
576/23.4GBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
TIPO INCRIMINADOR
RELAÇÃO DE PROXIMIDADE EXISTENCIAL
CONSUMAÇÃO
PENA
PRINCÍPIO DA CULPA
DIMINUIÇÃO DA CULPA
DIMINUIÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RP20250219576/23.4GBPRD.P1
Data do Acordão: 02/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS INTERLOCUTÓRIOS INTERPOSTOS PELO ARGUIDO E CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO INTERPOSTO DA SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental.
II - Sempre que nas condições de proximidade existencial previstas no art.º 152.º se mostre preenchido um tipo incriminador do Código Penal relacionado com a saúde e integridade pessoal, nomeadamente ofensas à integridade física, injúrias, sequestro ou ameaças, forçosamente preenchido estará também o tipo de ilícito da violência doméstica.
III - A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Por outro lado, não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor.
IV - O princípio da culpa, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana e objeto de consagração constitucional, tem uma eficácia irradiante sobre o sistema de direito penal ordinário, sujeitando-o à necessidade de fundamentar a responsabilidade penal em apropriados elementos subjetivos e recusando-lhe a possibilidade de instrumentalização da pessoa, designadamente para efeitos de prevenção geral.
V - Verificando-se que o arguido padece de uma condição psiconeurológica com reflexos no seu comportamento, traduzida na diminuição da capacidade de controlo dos impulsos, a diminuição do juízo de censura jurídico-penal que lhe pode ser dirigido impõe a consequente redução da pena concretamente aplicada, na medida em que, por muito elevadas que se afigurem as exigências de prevenção, a pena em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 576/23.4GBPRD.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório

No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 576/23.4GBPRD, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Paredes, foi submetido a julgamento o arguido AA, devidamente identificado nos autos, tendo a final sido proferida sentença com o seguinte dispositivo (segue transcrição parcial):

«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas:

A) Julgar a acusação pública procedente, por provada e, em consequência, decide-se:

1) Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão efetiva;

2) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contacto pessoal, telefone ou telemóvel ou por qualquer outro meio com a assistente, incluindo da sua residência/local de trabalho, devendo o cumprimento de tal pena ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, mediante a motorização telemática posicional, ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados, caso se verifiquem os legais pressupostos, mas independentemente dos consentimentos do arguido e da vítima, os quais desta forma se substituem, por tal se afigurar necessário à proteção dos direitos desta última (conforme artigos 26.º, n.º 2, da Lei n.º 33/2010, de 02 de setembro e 36.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro) e com aplicação a partir do momento em que o arguido seja colocado em liberdade, pelo período de 3 (três) anos a contar do trânsito em julgado da presente decisão, nos termos do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal;

3) Não aplicar as penas acessórias de proibição de uso e porte de arma e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, previstas no artigo 152.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal;

4) Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, que englobam a taxa de justiça e demais encargos, fixando-se aquela em 4 (quatro) U.C.´s, ao abrigo do disposto nos artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do apoio judiciário já concedido ou a conceder, desde que requerido até ao trânsito em julgado da presente sentença.


*

B) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela demandante/assistente parcialmente procedente, por parcialmente provado e, consequentemente, decide-se:

1) Condenar o demandado/arguido AA a pagar à demandante/assistente BB a quantia de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal atualmente de 4% ao ano, ao abrigo da Portaria n.º 291/2003, de 08 de abril e sem prejuízo de outras taxas legais para as obrigações civis que entretanto venham a estar em vigor, contados desde a data do trânsito em julgado da presente decisão e até efetivo e integral pagamento;

2) Absolver o demandado/arguido AA do demais peticionado pela demandante/assistente BB;

3) Condenar a demandante/assistente BB e o arguido/demandado AA no pagamento das custas cíveis, na proporção do respetivo decaimento, cuja fixação depende exclusivamente de cálculo aritmético, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil ex vi artigo 523.º, do Código de Processo Penal, fixando-se o valor processual desse pedido, em € 13.000,00 (treze mil euros), conforme os artigos 297.º e 306.º, ambos do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ou a conceder (até ao trânsito em julgado) nos presentes autos.


*

Adverte-se ainda o arguido que, caso contacte (por qualquer forma) com a assistente ou permaneça na residência e/ou local de trabalho da mesma durante o período da proibição, poderá eventualmente incorrer na prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punível pelo artigo 353.º, do Código Penal.

*

Da revisão do estatuto coativo do arguido:

O arguido foi preso preventivamente à ordem destes autos no passado dia 14 de agosto de 2023, encontrando-se, desde então, sujeito a essa medida de coação.

Importa, desde logo, referir que, atenta a data em que foram reexaminados, pela última vez, os pressupostos da aplicação dessa medida de coação – ou seja, em 19 de setembro de 2024, considera-se não ser necessário proceder à audição prévia do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 213.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Com efeito, atendendo à moldura penal abstrata do crime em apreço, verifica-se que o prazo máximo de duração da medida de coação em apreço e face ao estipulado, designadamente, no artigo 215.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) e 2, do Código Penal, não se encontra ultrapassado neste momento, sendo certo que se mantêm, nesta data, todos os pressupostos de facto e de direito que estiveram na base da prolação da decisão de manutenção da medida de coação de prisão preventiva vertidos no despacho datado de 19 de setembro de 2024 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Na verdade, o facto de arguido ter sido condenado em 1.ª instância, ainda que por sentença não transitada em julgado, confere maior consistência aos indícios da prática de infração, por que vinha acusado. Ademais, é patente a existência do perigo de continuação da atividade criminosa, pelos motivos também já apontados supra e que, aliás, justificaram a não aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, sendo certo que, pelo contrário, dado já ter sido realizada a audiência de julgamento, que culminou com a condenação do arguido, mostra-se manifestamente esbatido o perigo de perturbação da instrução do processo.

De todo o modo, dada a gravidade dos factos pelos quais o arguido foi condenado e a maior ressonância social dos mesmos, geram grande insegurança e alarme na sociedade, que aumenta com a sua reiteração, o que se consubstancia numa perturbação, de forma grave, da ordem e tranquilidade públicas.

Outrossim, a pena de prisão efetiva ora aplicada é superior ao tempo de prisão preventiva cumprida pelo arguido até à presente data, não havendo por isso motivo para a extinguir de imediato, à luz do disposto no artigo 214.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Por tudo exposto, e para os efeitos do mencionado artigo 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, decide-se manter o arguido sujeito à medida de coação de prisão preventiva, o que se determina, ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, n.º 1, 192.º, 193.º, n.ºs 1 e 2, 202.º, n.ºs 1, alínea b) e 2 e 204.º, alínea c), todos do citado diploma, para além do termo de identidade e residência já prestado, sem prejuízo de a mesma cessar automaticamente logo que ocorra o trânsito em julgado da presente sentença que o condenou na referida pena de prisão efetiva, por força do disposto no artigo 214.º, n.º 1, alínea e), do mesmo Código.

Anote na capa a data limite até ao próximo reexame dos pressupostos da medida de coação em apreço, caso entretanto não ocorra o trânsito em julgado da presente sentença, nos termos do disposto no artigo 213.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atempadamente abra vista ao Ministério Público para promover o que tiver por conveniente.

Notifique e comunique ao Estabelecimento Prisional onde aquele se encontra detido. […]».


*

Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:

«1. O presente recurso tem como objeto a modificação da decisão do Tribunal a quo, estando aqui em causa quer decisões anteriores à sentença, quer a sentença propriamente dita, e versará quer sobre a decisão relativa à matéria de facto, quer quanto à matéria direito.

2. Os pontos objeto do presente recurso são os seguintes:

a) O indeferimento de grande parte da prova apresentada ou solicitada pela defesa;

b) o excesso de pronúncia relativo a matéria de facto que o Tribunal deu, indevidamente, como provada;

c) a omissão de pronúncia relativa a matéria de facto ou, em alternativa, a insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada;

d) a decisão proferida sobre a matéria de facto, que se impugna;

e) a existência de contradição entre a matéria de facto provada e não provada;

f) a qualificação jurídica do crime cometido pelo arguido;

g) a medida da culpa que lhe foi atribuída e, consequentemente, com a medida da pena que lhe foi aplicada; e

h) a condenação cível que lhe foi aplicada.

3. Simultaneamente com o presente recurso deverá subir o recurso anteriormente interposto e retido.

Ora assim,

4. Ao rejeitar o Requerimento de prova apresentado pela defesa na sequência da alteração não substancial dos factos determinada pelo Tribunal, impedindo desta forma que o arguido se defendesse da nova janela temporal aberta para a prática, por este, do crime que a acusação lhe tinha imputado como tendo sido praticado na tarde do dia 29.04.2023, violou a Mma Juiz a quo o disposto no art. 340º do CPP;

5. Violou ainda os direitos do arguido a uma livre e ampla defesa e ao contraditório, assim violando o princípio da presunção de inocência e, consequentemente, o artigo 32º-1 e 2 da CRP e, bem assim, o art. 48º-2 e 3 d) da Carta dos direitos fundamentais da EU, o art 6º-2 e 3 d) da CEDH, e 11º da DUDH que aqui desde já se invocam.

Acresce que

Sem prescindir

6. Ao ter dado como provada a matéria de facto levada aos pontos 35 e 36, e tendo em conta que tal matéria não constava, nem da acusação, nem da matéria de facto que passou a fazer parte do processo por ter sido levada à “alteração não substancial dos factos” violou a Mma Juiz o disposto no art 379º-1 c) do CPP por excesso de pronúncia, o que determina a nulidade da sentença nessa parte, a qual aqui se invoca para todos os efeitos.

Acresce que

7. Um dos temas centrais da prova ao longo de todo o processo foi a condição neurológica do arguido decorrente do gravíssimo sinistro automóvel de que foi vítima no dia 24.03.2019, condição com consequências tais que lhe determinam alterações comportamentais e lhe condicionam a liberdade, a vontade e a personalidade, facto que levou à avaliação do mesmo pelo INML no âmbito da Psiquiatria que, para além do muito mais que ali vai e que mereceu longos esclarecimentos prestados em audiência deixou claro que “o examinado padece de Perturbação secundária do controlo de impulsos (...) que são uma consequência fisiopatológica direta de uma condição de saúde não classificada em transtornos mentais e comportamentais. No caso do examinado, está bem documentada neuroimagiologicamente a afetação de áreas cerebrais diretamente relacionadas com o controlo de impulsos (...) sequela de lesão traumática”.

8. Ao não julgar esta específica questão de facto, apesar de esta manifestamente condicionar todo o demais julgamento da presente lide e ser fundamental à boa decisão da causa, a Mma Juiz a quo incorreu numa omissão de pronúncia, o que determina a nulidade da sentença nos termos do disposto no art 379º-1 c) do CPP, nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais, para além de determinar a insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa nos termos do disposto no art 410º-2 a) CPP.

Acresce que

9. Outra questão fundamental da prova seria a da qualidade da relação entre arguido e assistente, resultando cristalinamente das declarações da própria ofendida que, à exceção dos três episódios porque o arguido vem condenado, a relação entre ambos era boa ou mesmo excelente e de que mesmo quando bêbado apenas ocasionalmente o arguido se tornava violento, sendo certo que essa violência era dirigida a qualquer pessoa que entendesse que o provocava, e não especificamente a ela, ofendida.

10. Mais uma vez, porém, não obstante esta questão ser, também ela, essencial à boa decisão da causa, nomeadamente por demonstrar que, quando mais no domínio das suas capacidades o arguido tratava muito bem a assistente e que, apenas ocasionalmente, quanto etilizado (e vimos já atrás o drama neurológico em que o arguido vivia), acontecia, por vezes, de alterar o comportamento, umas vezes ficando brincalhão e noutras agressivo, sem que, porém, tal agressividade fosse especialmente dirigida contra a assistente mas dirigida a qualquer pessoa que o “olhasse de lado”, mais uma vez a Mma. Juiz a quo não levou tal matéria aos factos provados, não se pronunciou, como deveria, sobre esta específica matéria de facto.

Donde que

11. Ao não ter julgado de facto tal questão, ela também fundamental à boa decisão da causa, ocorreu uma nova omissão de pronúncia, suscetível de determinar a nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 379º-1 c) do CPP, nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais, para além de determinar a insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa nos termos do disposto no art. 410º-2 a) CPP.

Acresce que

12. A decisão preferida não julgou corretamente a matéria de facto dada como provada sob os factos nºs 3º, 4º, 5º e 6º, referentes todos ao 1º episódio de violência por que o arguido se encontra a ser julgado.

13. Relativamente ao período da tarde do dia 29.04.2023, resulta claramente do depoimento das testemunhas CC e DD que o arguido passou essa tarde entre o Maia e o Porto, a trabalhar, pelo que não poderia ter praticado os factos da acusação;

14. Quanto ao período resultante do alargamento da janela temporal determinado pela alteração não substancial dos factos, a questão nem se coloca visto o arguido ter sido impedido de se defender nos termos que melhor resultam de 4 e 5 das presentes conclusões.

Acresce que

15. A sentença proferida julgou provada, também erradamente, a matéria dos nºs 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 16º, 17º, e 18º, todos referentes ao 2º episódio de violência por que o arguido se encontra a ser julgado.

16. Com efeito, resulta claramente dos testemunhos da EE, e da FF que, no dia em causa, o arguido jantou em casa da referida EE e, desde aí, passou toda a noite com a mesma e a FF no arraial da festa do ..., no lugar ..., em ..., Paredes, donde resulta a impossibilidade de ter cometido o crime dos autos.

17. Entendeu, porém, a Mma Juiz a quo que o arguido e todas as testemunhas arroladas pela defesa vieram mentir ao Tribunal, e que a verdade estava, toda ela, só e apenas no que a ofendida/assistente e as testemunhas de acusação deixaram (numa assunção quase religiosa, uma verdadeira profissão de fé que a Mma Juiz faz pela “verdade” da assistente).

18. Fazendo por ignorar que os factos dados como não provados de als l) a s) resultam das declarações daquela mesma assistente, prestadas no auto de inquirição no DIAP de Paredes em 22.01.2024 que, em audiência, se demonstrou serem absolutamente falsos e, pior, uma evidente maquinação premeditada daquela, donde claramente se retira que a assistente está muito longe de merecer o crédito de honestidade e verdade que o Tribunal lhe quer dar, numa posição que corresponde a uma presunção da culpa do arguido e, como tal, inconstitucional, por violação do disposto no art 32º-2 da CRP, para além de violar o art 48º-2 da Carta dos direitos fundamentais da EU, o art 6º-2 da CEDH, e 11º-1 da DUDH,

19. Já quanto ao ponto 13 dos factos dados como provados, foi-o uma vez mais erradamente porquanto, embora constando do auto que teria sido o arguido a enviar à assistente tais áudios, dele não consta qual a razão de ciência de tal afirmação, e muito menos qual(is) a(s) origem(ns) de tais áudios, nomeadamente, de que nº de telemóvel terão sido remetidos e, tanto assim que, nas respetivas transcrições, a GNR passou, e bem, a deixar de imputar os mesmos ao arguido para passar a referir “supostamente o arguido”, nada permitindo ligar tais áudios ao arguido.

Acresce que

20. Enquanto que, na acusação, os factos constantes dos arts 42, 44 e 45 da acusação decorriam logicamente da matéria de facto levada aos arts 32 a 38 da própria acusação,

21. Tendo a Mma Juiz dado como não provada a matéria daqueles arts 32 a 38 da acusação (factos dados como não provados pelas als l) a s) da sentença) e atenta toda a demais matéria de facto dada como provada, deixa de haver como sustentar a tese a “perseguição” da qual decorrem as demais factualidades, antes levadas aos arts 42, 44 e 45 da acusação e agora levadas aos arts 30, 32 e 33 dos factos dados como provados.

De igual modo,

22. Tendo a Mma Juiz dado como não provado que a relação entre arguido e assistente fosse análoga à dos cônjuges (facto da al. a) dos “não provados), e que apenas por vezes partilhavam a habitação sita na Rua ..., propriedade do pai do arguido (facto 1 dos provados), mostra-se contraditório o facto levado a 29 dos dados como provados, de que alguns dos factos supra descritos teriam sido praticados na residência comum do casal quer porque arguido e assistente nunca constituíram um casal (=cônjuges), nem algo análogo, quer também porque não tinham residência comum.

23. Daqui decorre, necessariamente, uma contradição insanável da própria matéria de facto dada como provada que torna nula a decisão relativa aos factos 30, 32 e 33 dos dados como provados o que se requer nos termos do disposto no art 410º-2 b) do CPP.

24. Decorre igualmente uma contradição insanável da própria matéria de facto dada como provada que torna nula a decisão relativa ao facto 29 dos dados como provados na parte que refere a “residência comum do casal”, o que se requer nos termos do disposto no art 410º- 2 b) do CPP.

Sem prescindir

25. Ainda que se mantenha toda a matéria de facto dada por provada, apenas podemos constatar a existência de 3 episódios de agressões físicas, 2 deles acompanhados por injúrias que, atento o meio em que arguido e ofendida se inserem e se relacionam não poderão deixar de ser consideradas como corriqueiras, no sentido de não terem uma carga especialmente injuriosa ou ofensiva e muito menos vexatória.

E nada mais.

26. O que, dito de outro modo, significa que, no presente caso, nada vemos que permita ultrapassar a fronteira das ofensas à integridade física e das injúrias para alçar todo um patamar de gravidade que permita fazer integrar a conduta do arguido no crime da violência doméstica.

27. Nada, nos factos dados como provados, permite fazer perceber que o arguido fosse cruel com a ofendida, que a maltratasse, que a desrespeitasse, que a menosprezasse, que a humilhasse, que a coisificasse, que contra ela praticasse violência sexual, ou económica, ou emocional; nada indicia uma situação de desrespeito pela pessoa da vítima; de tratamento cruel, degradante ou desumano.

Muito pelo contrário, é a própria vítima quem, como se viu já, veio afirmar nos autos que, com exceção dos 3 episódios dos autos, o arguido era uma “joia de moço” e o melhor amigo dela e do filho dela.

28. Daqui claramente decorre ter andado mal a Mma Juiz a quo ao ter enquadrado os factos e ter condenado o arguido pelo crime de violência doméstica porquanto os mesmos não poderão deixar de ser enquadrados apenas e só como ofensas à integridade física simples e injúrias, pelo que violou o disposto nos arts 152º, 143º e 181º do CP.

Acresce que

Sem prescindir

29. Para o efeito de determinação da medida concreta da pena, estabelece a lei penal como parâmetros os estabelecidos nos arts. 40.º e 70º e 71.º do CP, os quais fornecem ao Juiz os critérios por que se há de pautar, sendo certo que, se são várias as finalidades da pena, nomeadamente de prevenção geral e de prevenção especial, não pode deixar de se ter em conta que mais do que tudo, o que a mesma visa é a proteção de bens jurídicos, a ressocialização e reintegração do delinquente na sociedade, estando limitadas pela medida da culpa – cf. art. 40º CP.

30. Tendo em conta ser a culpa elemento subjetivo que tem que ver com o “eu” do infrator, importa, antes de se determinar em concreto a pena a aplicar verificar se, in casu, algo concorre no “eu” do arguido, que mereça uma especial consideração em termos penais.

ORA

31. O que é um facto notório e foi largamente burilado ao longo deste julgamento é que a grave condição neurológica de que o arguido ficou a padecer na sequência do gravíssimo acidente de viação que sofreu em 2019 afeta drasticamente o seu comportamento e a capacidade de entender e querer do arguido, tornando-o, sem culpa sua mais agressivo.

32. E se é verdade que essa agressividade se potencia sempre que o arguido bebe, é verdade também, como deixou claramente o Sr Perito Psiquiatra nomeado pelo INML que o arguido não tem controlo sobre os impulsos que o fazem beber ou continuar a beber para lá do que outra pessoa o faria, por lhe faltarem os filtros ou a consciência do seu estado, muitas vezes com falta de consciência, a posteriori, do que de facto possa ter feito.

33. Tal alteração comportamental é consequência de acidente, e portanto sem culpa sua.

34. Assim sendo, não pode o arguido ser julgado como outro que, livre, voluntária e consciente seja dono do seu destino, porque o não é, está limitado pela sua condição que, no mínimo, se não a exclui, lhe diminui drasticamente a culpa e, consequentemente a pena a ser aplicada, como o impõe o art. 40º-2 do CP, não poderá afastar-se muito dos mínimos legais.

35. Acresce que, mesmo tendo em conta o cadastro do arguido, tendo por base as suas limitações neurológicas, o facto de este ainda não ter consolidado a sua recuperação pós acidente e de ter, consequentemente uma previsão favorável de recuperação, mas principalmente de ser claro e evidente que tal recuperação será tão mais favorável ocorra em meio livre, atenta ainda a idade do AA que, à data da detenção, tinha apenas 25 anos de idade, e atento o seu histórico quase imaculado em meio prisional, considerando que o AA ainda se encontra em recuperação e merece uma oportunidade para recuperar e ser um membro válido da sociedade, para o que se impõe que este Tribunal lhe dê essa oportunidade, a pena que lhe venha a ser aplicada deverá continuar a ser suspensa na sua execução,

36. Tudo o que a Mma Juiz a quo não fez com o que violou o disposto nos arts. 40º e 71º do CP.

Ainda sem prescindir e por último

37. A condenação cível decorre e depende naturalmente da condenação penal, razão pela qual se remete para o recurso da condenação penal as razões de recurso da mesma.

Termos em que,

Com os melhores de direito que Vª.s Exª. Mui Doutamente suprirão,

Deve a sentença recorrida ser anulada, ordenando se o reenvio do processo à primeira instância para novo julgamento;

Sem prescindir

Deverá excluir-se dos factos provados aqueles que a Mma Juiz a quo ali levou com excesso de pronúncia;

Ainda sem prescindir

Deverá ainda, incluir-se nos factos dados como provados os supra referidos, relativos à condição clínica neurológico-comportamental do arguido e, bem assim, de como era a relação “diária” entre arguido e assistente;

Sempre sem prescindir

Deverá revogar-se a sentença recorrida e, consequentemente, absolver-se o arguido da prática do crime de violência doméstica por que vem condenado e, consequentemente, do pedido cível, eventualmente condenando-se o mesmo pelo crime de ofensas à integridade física acaso se mostrem reunidos os necessários requisitos.

Tudo com o que, Vª.s Exª.s farão, como sempre, a habitual e imprescindível Justiça».


*

O arguido apresentou, para além do recurso da decisão final e do despacho proferido na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 21/10/2024, um recurso interlocutório, datado de 11/6/2024 (referência citius 9710533), contendo as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. VEM O PRESENTE RECURSO DO DESPACHO DE 08.05.2024 (REFª 95197430), DA MMA JUIZ A QUO NA PARTE EM QUE INDEFERIU A PROVA DOCUMENTAL REQUERIDA NOS PONTOS 2, 3, 4, 5 E 7 DO REQUERIMENTO DE PROVA APRESENTADO COM A CONTESTAÇÃO PELO ARGUIDO POR A JULGAR COMO IRRELEVANTE OU SUPÉRFLUA.

ORA, SALVO O MUITO DEVIDO RESPEITO

2. NÃO SE PODE TER COMO COMO IRRELEVANTE NEM SUPÉRFLUA A PROVA DESTINADA A DEMONSTRAR QUE A ASSISTENTE TEM COMO COMPORTAMENTO TÍPICO RECORRENTE O APRESENTAR QUEIXAS-CRIME POR VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA OS SEUS SUPOSTOS COMPANHEIROS OU NAMORADOS,

3. MENOS AINDA QUANDO UMA DESSAS QUEIXAS-CRIME (OU AUTO DE NOTÍCIA), ASSIM O INDICA O NUIPC 574/23.8GAPRD QUE LHE FOI ATRIBUÍDO, TERÁ SIDO APRESENTADA NO PRÓPRIO DIA, OU NA VÉSPERA, DO AUTO DE NOTÍCIA QUE DEU ORIGEM AO PROCESSO DOS PRESENTES AUTOS,

4. E QUE, POR ISSO SE MOSTRA AINDA MAIS RELEVANTE EXIGINDO-SE QUE O TRIBUNAL VERIFIQUE SE O ESTADO DA ASSISTENTE RELATADO NO ART 25 DA ACUSAÇÃO E CUJA RESPONSABILIDADE VEM FALSAMENTE IMPUTADA AO ARGUIDO NÃO DECORRE DA SITUAÇÃO NARRADA NA QUEIXA QUE DEU ORIGEM AO Pº 574/23.8GAPRD.

DE IGUAL MODO

5. NÃO PODERÁ SER TIDA COMO COMO IRRELEVANTE NEM SUPÉRFLUA A PROVA DESTINADA A DEMONSTRAR QUE AO CONTRÁRIO DO QUE A ASSISTENTE FALSAMENTE ALEGA EM 12 DO SEU PEDIDO CÍVEL, ESTA INDEPENDENTEMENTE DE TER OU NÃO CARTA DE CONDUÇÃO, TEM CARRO E CONDUZ.

6. CABENDO O DIREITO DO ARGUIDO DE PROVAR TAL FACTO NO ÂMBITO DA SUA AMPLA LIBERDADE DE DEFESA E DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO E POR TER SIDO A ASSISTENTE QUEM ABRIU A PORTA PARA QUE TAL PROVA SE PRODUZISSE AO ALEGAR O QUE DEIXA EM 12 DO SEU PEDIDO CÍVEL.

POR ÚLTIMO

7. NÃO PODERÁ AINDA SER TIDA COMO COMO IRRELEVANTE NEM SUPÉRFLUA A PROVA DESTINADA A INFIRMAR O VERTIDO EM 1 DA ACUSAÇÃO E A PROVAR O VERTIDO EM 9 E 10 DA CONTESTAÇÃO,

8. ASSIM DEMONSTRANDO QUE ARGUIDO E ASSISTENTE NÃO SÓ NÃO COABITAVAM DESDE FEVEREIRO, COMO A ASSISTENTE APENAS HABITOU NO APARTAMENTO REFERIDO NOS AUTOS, PERTENÇA DO PAI DO ARGUIDO, POR CURTOS PERÍODOS, NOS TERMOS ALEGADOS PELA DEFESA.

PELO QUE

9. AO NÃO ADMITIR A REFERIDA PROVA ASSIM REQUERIDA, VIOLOU A MMA JUIZ A QUO O VERTIDO NO ART. 340-1 E 4 B) EM QUE, ERRADAMENTE, SE FUNDAMENTOU E, EM SIMULTÂNEO,

10. VIOLOU AINDA OS DIREITOS DO ARGUIDO A UMA LIVRE E AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO, COM O QUE VIOLOU O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E, CONSEQUENTEMENTE, O ART 32º-1 DA CRP,

11. DESPACHO QUE, POR ISSO, DEVERÁ SER REVERTIDO, ADMITINDO-SE A REQUERIDA PROVA DE MODO A QUE POSSA SER TIDA EM CONTA NA DECISÃO FINAL A SER PROFERIDA.

12. CASO A DECISÃO DO PRESENTE RECURSO VENHA A SER POSTERIOR À DECISÃO FINAL EM PRIMEIRA INSTÂNCIA, NOMEADAMENTE EM FACE DO REGIME DE SUBIDA QUE LHE VENHA A SER ATRIBUÍDO, DEVERÁ A SENTENÇA PROFERIDA SER REVOGADA E ADMITIR-SE A PROVA REQUERIDA, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.

TUDO COM O QUE, COMO SEMPRE, Vª.S EXª.S FARÃO JUSTIÇA!»

O despacho recorrido, datado de 8/5/2024 (referência citius 95197430) é do seguinte teor:

«Cumprido o contraditório quanto às diligências probatórias requeridas pelo arguido e, face às explicações por este fornecidas, cumpre apreciar:

- quanto ao ponto 1, folhas 735: - relega-se para a audiência de julgamento, sendo a sua pertinência probatória analisada de acordo com aquilo que vier a ser produzido nessa sede;

- quanto ao pontos 2, folhas 735, 3, folhas 735-verso – por ser manifestamente irrelevante para a boa decisão da causa e descoberta da verdade (tanto mais que a credibilidade de uma testemunha não se afere pela circunstância de a mesma ter ou não ter antecedentes criminais e/ou ter ou não apresentado outras queixas criminais), indefere-se o requerido, nos termos do disposto no artigo 340.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código de Processo Penal;

- quanto aos pontos 4 e 5, de folhas 735-verso - por ser manifestamente irrelevante para a boa decisão da causa e descoberta da verdade, indefere-se o requerido, nos termos do disposto no artigo 340.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código de Processo Penal;

- quanto ao ponto 7, de folhas 736 - por ser manifestamente irrelevante para a boa decisão da causa e descoberta da verdade, indefere-se a requerida junção do documento de folhas 737, nos termos do disposto no artigo 340.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Código de Processo Penal, pelo que, oportunamente, desentranhe o mesmo e devolva-a ao seu apresentante (arguido).

Notifique».

O mencionado despacho incidiu sobre requerimento apresentado pelo arguido conjuntamente com a contestação (referência citius 48604077), com o seguinte teor (segue transcrição parcial):

«[…] 2. Por terem interesse para o apuramento dos factos e consequentemente para a boa decisão da causa, Requer a Vª. Exª. se digne a mandar extrair e juntar aos autos certidões dos autos de notícia, acusação e sentença dos seguintes processos:

a) Pº nº 494/22.3GAPFR que correu termos pelo Juízo local Criminal de Paços de Ferreira;

b) Pºs 180/22.4GAPFR, 824/22.8GAPFR e 738/22.1GAPFR e, bem assim, do cúmulo jurídico efetuado neste último, todos que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira;

c) Pº 254/23.4GAPFR que correu termos por este Juízo;

3. Mais Requer se digne Vª. Exª. a mandar extrair e juntar aos presentes autos certidões das Queixas-crime que deram origem aos processos que com o nºs 574/23.8GAPRD e 93/24.5GAPRD correm termos pelo DIAP deste Tribunal, mais se certificando o atual estado de tais autos.

4. Requer ainda a Vª. Exª., por se mostrar fundamental para a boa decisão da causa, se digne a oficiar a CPCJ ... a fim de juntar aos presentes autos todos os processos relativos ao menor GG cuja melhor id estará a fls. 65 dos autos, podendo ainda ser identificado pelo nome da assistente, sua mãe ou ser notificada esta para melhor o identificar.

5. Requer a Vª. Exª. se digne a determinar a junção aos presentes autos da regulação do poder paternal do referido GG, a qual correu termos pelo 3º J do Juízo de Família e Menores deste Tribunal sob o Pº nº 1873/22.1T8PRD

6. Declarações da ofendida contemporâneas dos prints de fls 448 a 454 e, correlativamente, a desistência de queixa junta aos autos a 04.12.2023;

7. A do documento que ao diante se junta como nº 1. […]».

No despacho datado de 15/4/2024, determinou o tribunal a quo, na parte que para aqui releva, o seguinte: «Requerimento de 13/04: Por legal e tempestiva, admite-se a contestação que antecede, ao abrigo do disposto no artigo 311.º-B, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Quanto aos meios probatórios apresentados pelo arguido:

[…]

- pontos 2. a 5. e 7. – Notifique, pela via mais expedita, o arguido para, em 2 dias, esclarecer qual o interesse para a boa decisão da causa e, em particular, quais os factos que pretende demonstrar e/ou infirmar com a produção dessa prova documental;

- ponto 6. – Consigna-se que as declarações da assistente foram já indicadas como meio de prova da acusação;

- os indicados Drs. HH e II, psiquiatra e psicóloga, respetivamente serão inquiridos na qualidade de testemunhas e não como peritos, já que não realizaram nenhuma perícia ordenada por este tribunal (cfr. artigo 155.º, do Código de Processo Penal);

- por legal e tempestivo, admite-se o rol de testemunhas indicado pelo arguido (cfr. artigo 311.º-B, n.º 1, do Código de Processo Penal) […]».

No requerimento subsequente, datado de 22/4/2024 (referência citius 9585455), fez o arguido constar o seguinte: «Notificado para “em 2 dias, esclarecer qual o interesse para a boa decisão da causa e, em particular, quais os factos que pretende demonstrar e/ou infirmar com a produção dessa prova documental”, i.é, a prova que requerera,

Diz o seguinte:

Meritíssima Juiz

1. Quanto aos processos cujas certidões se solicitou fossem requeridas, as dos Pºs 494/22.3GAPFR que correu termos pelo Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira e 574/23.8GAPRD, a correr termos pelo DIAP de Paços de Ferreira, destinam-se a provar que a queixosa é uma “habituée”, recorrente em apresentar queixas por violência doméstica.

2. Já as dos Pºs 180/22.4GAPFR, 824/22.8GAPFR e 738/22.1GAPFR todos que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira e, bem assim do 254/23.4GAPFR que correu termos por este Juízo, tal como o documento referido em 7 e junto com a contestação como Doc 1 destinam-se a provar que, ao contrário do que afirma, a ofendida e demandante civil, muito embora não fosse detentora de carta de condução, não só costumava conduzir como tinha carro ou próprio ou, pelo menos, à disposição.

3. O Requerido em 4 e 5 do Requerimento de Prova, destina-se a provar o alegado em 8 a 10 da Contestação.

4. Já o Requerido em 1 e 6 destina-se a provar que a ofendida tem vindo a mentir descaradamente ao tribunal, quer ao imputar ao arguido falsos telefonemas que este nunca lhe fez e nem sequer poderia,

5. Quer por estar recluído e, portanto, não ter acesso a telefones para além do que existe para esse fim e é controlado pelo EP,

6. Quer por terem origem (parte) num nº fixo da rede de Penafiel e, portando, de acesso impossível a quem como o arguido está recluído em ..., área da rede do Porto,

7. Quer ainda por serem (alguns) em horário em que o arguido se encontrava já fechado na cela.

Mas mais ainda

8. Pretendendo imputar-lhe ou imputar ao pai deste a “compra” da desistência de queixa dos autos.

De facto

9. Pretende a arguida que a desistência junta aos autos foi por si assinada no dia 13.12.2023, data em que, diz, lhe foi “comprada” por 15 mil euros pelo pai do arguido,

10. Que nesse dia aquele lhe teria ligado ás 14h55 (mas o print screen por ela junto situa a chamada pelas 15h29) e que pelas 16h00 desse mesmo dia lhe assinou a desistência de queixa que fez juntar aos autos no mesmo dia.

Isto quando

11. A desistência de queixa que se mostra junta aos autos dera entrada já em 04.12.2023 e fora objeto de despacho de indeferimento, com ressalvas, da digna Procuradora de dia 6 desse mesmo mês, para onde se remete […]».


*

Os recursos foram admitidos para subirem nos próprios autos, tendo sido atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto da sentença e devolutivo ao recurso interlocutório.

O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência dos recursos interpostos pelo arguido, com os fundamentos constantes das respetivas motivações (e cujo teor aqui damos por reproduzido).


*

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, no parecer emitido, pronunciou-se pela negação de provimento aos recursos interpostos pelo arguido, aderindo aos fundamentos constantes da resposta ao recurso apresentada e nos termos dele constantes e cujo teor aqui damos por reproduzido, concluindo, em síntese, o seguinte (segue transcrição parcial):

«QUANTO AO MÉRITO DOS RECURSOS

1. Analisados os fundamentos do recurso intercalar, e compulsada a prova produzida no decurso da fase de julgamento, afigura-se-nos que não assiste razão ao recorrente e que o recurso deverá improceder. […]

Concluindo, na opinião do Ministério Público afiguram-se manifestamente irrelevantes para a boa decisão da causa e da descoberta da verdade, nos termos do art.º 340.º n. 1, 4 al. b) do Código de Processo Penal, qualquer das provas a 2, 3, 4, 5 e 7 requeridas pelo recorrente, motivo pelo qual não merece censura o despacho de fls.768”.

2. No que concerne ao recurso da sentença condenatória, analisados os fundamentos do recurso, e os demais elementos processuais, nomeadamente, o teor da sentença recorrida no que concerne à matéria de facto dado como provada e sua motivação, com a qual estou de acordo, bem ainda as razões que motivaram a não suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, acompanho, na íntegra, a posição do Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância na sua resposta a este recurso, no sentido de que o recurso deverá ser julgado não provido, nada mais se me oferecendo acrescentar.

Assim, o meu parecer é de que se deve negar provimento aos dois recursos interpostos pelo arguido e manter-se, integralmente, o despacho de fls. 768 (referência 95197430, e sentença condenatória».


*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo sido apresentada resposta ao parecer pelo recorrente, reiterando a procedência dos recursos nos termos que aqui temos por reproduzidos.

Procedeu-se a exame preliminar, tendo sido colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


*

II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes [1]:

1) Quanto aos recursos interlocutórios: violação do princípio da investigação (art.º 340.º do CPP).

2) Quanto ao recurso da sentença [2]:

a) Nulidade por omissão e excesso de pronúncia.

b) Impugnação da matéria de facto: vícios decisórios e erro de julgamento.

c) Preenchimento do tipo de ilícito objetivo do crime de violência doméstica.

d) Dosimetria da pena e possibilidade de suspensão da respetiva execução.


*

Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade e respetiva fundamentação (análise crítica da prova) em que assenta a decisão proferida (segue transcrição):

«III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A – FACTOS PROVADOS:

Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:

1.º O arguido e a assistente BB mantiveram um relacionamento amoroso estável e regular, com projetos de futuro e com sentimentos de afetividade, convivência, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade e cooperação mútua desde fevereiro de 2023, tendo inclusivamente partilhado, por vezes, a habitação sita na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, ..., Paredes, a qual era pertencente dos pais do arguido;

2.º A assistente tem um filho menor, com dois anos de idade, de uma outra relação, de seu nome GG, nascido a ../../2021, o qual residia com a mãe;

3.º Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre os dias 27 e 29 de abril de 2023, durante a tarde, quando o arguido e a assistente se faziam transportar num veículo automóvel, a assistente referiu que o arguido estava alcoolizado e não deveria estar a conduzir e o arguido desferiu-lhe uma bofetada na cara, atingindo-a na zona da boca, provocando-lhe aí sangramento;

4.º Mais à frente, na localidade de ..., o arguido parou o veículo por si conduzido e dirigiu-se à porta do passageiro, onde seguia a assistente, tendo esta saído para fora, dizendo-lhe “vai mas é embora a pé”, dirigindo-se a assistente à porta de trás do veículo para retirar o seu filho que ali também seguia, tendo então o arguido desferido uma cabeçada na testa daquela, provocando-lhe um hematoma, na zona atingida;

5.º Logo após o sucedido, o arguido pediu desculpa à assistente, dizendo-lhe que estava nervoso e pedindo-lhe para que entrasse no carro, o que aquela fez, após o que o arguido arrancou com a viatura;

6.º Tais agressões foram cometidas na presença do filho menor da assistente, que ia sentado na cadeirinha no banco de trás da viatura;

7.º No dia 27 de maio de 2023, o arguido e a assistente foram almoçar ao restaurante “Autêntico”, sito em ..., Paredes, tendo o arguido ingerido bebidas alcoólicas, o qual entretanto disse à assistente que não iria para casa;

8.º Nesse dia, pelas 21 horas, o arguido regressou à casa, identificada em 1.º supra, acompanhado por um amigo, ali já se encontrando a assistente;

9.º O arguido estava alcoolizado e dirigiu as seguintes expressões à assistente: “a puta não fez o jantar para nós”;

10.º O arguido dirigiu-se então à assistente e ergueu a mão no ar, no sentido de a agredir fisicamente, no entanto o amigo que o acompanhava interveio e colocou-se à frente, evitando que a mesma se concretizasse;

11.º Logo depois, a assistente fugiu para a garagem do apartamento e ligou para uma amiga JJ para a vir buscar, o que aquela fez, levando-a para a sua casa, onde permaneceu até por volta das 22 horas e 30 minutos, após o que se deslocou para casa da sua mãe, sita na travessa ..., em Paços de Ferreira, acompanhada dessa sua amiga;

12.º Quando lá chegou, a sua mãe contou-lhe que o arguido tinha ali estado à procura dela e que lhe tinha dito que a assistente se encontrava na casa da amiga JJ;

13.º Nessa altura, o arguido enviou seis ficheiros de áudio à assistente, apodando-a de “puta e vaca”, dizendo-lhe ainda que “era uma merda” e que era uma má mãe para o seu filho;

14.º Ainda nessa ocasião, por volta das 00 horas o arguido tocou à porta da casa da mãe da assistente, onde esta ainda se encontrava e quando esta abriu a porta, o arguido logo lhe disse para ir para casa com ele, ao que aquela respondeu negativamente, tendo então aquele colocado o pé na porta, impedindo-a de a fechar, ao mesmo tempo que lhe dizia “anda comigo embora porque o teu lugar é em casa, não aqui”, continuando aquela a dizer-lhe que não ia;

15.º Nesse momento, a mãe da assistente disse ao arguido que a assistente não ia a lado nenhum e numa altura em que o filho da assistente já se encontrava no colo daquela e a chorar, o arguido puxou o cabelo à assistente e desferiu-lhe bofetadas na cara e murros nos braços, tendo ainda batido com a sua cabeça na cabeça da mãe da assistente, a qual entretanto conseguiu soltar-se, correndo na direção do apartamento do vizinho KK, o qual lhe abriu a porta e a quem aquela pediu ajuda;

16.º O arguido só parou com as agressões, porque a mãe da assistente e o referido KK intervieram, tendo sido o amigo do arguido, que ali também estava, a conduzir o arguido para o exterior da residência, acabando ambos por logo depois abandonar o local;

17.º Ainda nessa ocasião, o arguido apodou a assistente de puta, vaca e merda;

18.º Por força do sucedido, a assistente permaneceu na casa da sua mãe cerca de quatro dias, mas perante as insistências e promessas do arguido, no sentido de se submeter a tratamento à sua dependência alcoólica e de não adotar comportamentos idênticos, a assistente anuiu em regressar à habitação referida em 1.ª supra;

19.º Já no dia 12 de agosto de 2023, pelas 16 horas, o arguido regressou à residência referida em 1.º supra, onde já se encontrava a assistente e, dirigindo-se a esta, proferiu as seguintes expressões: “Faz as tuas malas e vai embora”, tendo a assistente perguntado o que se estava a passar;

20.º De imediato o arguido começou a desferir murros na cara e na cabeça da assistente, em número não concretamente apurado, mas seguramente superior a dois, ao mesmo tempo que a assistente lhe pedia para parar porque estava a ter um ataque de ansiedade, o que aquele não fez;

21.º Para além disso, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar o arguido apodou a assistente de “puta e vaca”, mais lhe dizendo “és uma merda, devias perder o teu filho”;

22.º Entretanto os Militares da G.N.R. foram chamados ao local e, no exterior da aludida residência, ouviram o arguido a proferir as seguintes expressões: “filha da puta, vaca”;

23.º Os Militares da G.N.R. tocaram à campainha da referida residência, tendo o arguido aberto a porta, tendo aqueles verificado que a assistente sangrava do nariz, tinha o olho direito negro e pisado, os dois braços com hematomas e a camisola branca com sangue;

24.º De seguida, os Militares da G.N.R. lograram proceder à detenção do arguido, conduzindo-o ao Posto, onde o mesmo foi submetido ao teste de alcoolemia, apresentando uma taxa de 1,79 gramas/litro;

25.º Como consequência necessária e direta da conduta do arguido resultou para a assistente as seguintes lesões, para além de fenómenos dolorosos: escoriações dispersas no braço esquerdo e região cervical direita, equimose e hematoma supra-orbitário no olho direito; no membro superior esquerdo: sem desnivelamento da cintura escapular, sem evidência de atrofia muscular e sem diminuição da força muscular na abdução do ombro e na preensão da mão que lhe determinaram 8 (oito) dias de doença, sem lhe provocar, porém, consequências permanentes, para as quais teve a necessidade de receber assistência hospitalar no Hospital ...;

26.º Pelos factos que se tem vindo a descrever, foi o arguido sujeito a primeiro interrogatório judicial, em 14 de agosto de 2023, ficando sujeito desde então à medida de coação de prisão preventiva;

27.º O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de lesar a saúde física e psíquica da assistente, sua companheira, agredindo-a fisicamente, cerceando a sua liberdade de movimentos, intimidando-a e humilhando-a na sua dignidade enquanto pessoa, o que efetivamente sucedeu;

28.º Fê-lo com total indiferença aos deveres de respeito e cooperação para com a assistente e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência e à intimidação;

29.º O arguido bem sabia que praticou os factos supra descritos, alguns na residência comum do casal e, outros, na presença do filho menor daquela, circunstância essa que coartava as possibilidades de defesa e/ou fuga da assistente e lhe infligia um maior sentimento de intranquilidade, insegurança e vulnerabilidade e, não obstante esse conhecimento, quis agir do modo supra descrito;

30.º Ao proferir as expressões descritas, o arguido agiu com o propósito de amedrontar e assustar a assistente, o que quis e conseguiu;

31.º O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de ofender a honra e consideração da assistente, o que representou e quis;

32.º Perseguindo-a da forma que se descreveu, o arguido quis, como conseguiu, invadir a esfera de privacidade da assistente, donde resultou um dano à sua integridade psicológica e emocional e restrição à sua liberdade de locomoção, ficando, por isso, psicologicamente afetada pelos atos de que foi vítima, o que, tudo junto, provocou estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores do arguido;

33.º Com tal comportamento abusivo, agiu o arguido com o objetivo de manter a assistente sob domínio, cujo sossego e sentimento de segurança e, em geral, a sua saúde psíquica foram fortemente atingidos e neste contexto de tensão e violência iminente, esta acabou por viver submergida pela ansiedade e pelo medo;

34.º O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

Ademais, ficou provado que:

35.º Também como consequência direta e necessária da sobredita atuação do arguido, a assistente sentiu medo, inquietação, além de ter vivido um estado de ansiedade, de nervos, angústia, pânico, insegurança e irritação e, ademais, sentiu-se ofendida na sua honra, consideração, bom nome e reputação;

36.º Além disso, também como consequência direta e necessária da conduta do arguido supra descrita, a assistente apresentava, em agosto de 2023, quadro depressivo/ansiedade, iniciando a toma diária de sertralina 50 mg, tendo sido reavaliada em 03 de novembro de 2023 e aumentada a dose de sertralina para 100 mg, por quadro psiquiátrico descontrolado.

Também ficou demonstrado que:

37.º Das conclusões contidas no relatório de perícia médico-legal de psicologia, de folhas 877 a 881, consta o seguinte: “(…) À data da avaliação AA mostra-se colaborante e disponível. Humor eutímico (normal), com colorido de ansiedade, observável através do comportamento não verbal; e de revolta, pela perceção de que estará a ser acusado injustamente. Postura natural, revelando alguma imaturidade. Expressão emocional concordante com o discurso, que é claro e organizado. Não se observaram alterações quanto ao conteúdo, ou forma do pensamento. Orientado no tempo e no espaço. Aparenta ter uma idade que corresponde à sua idade real, tem uma apresentação cuidada de acordo com o seu estatuto sociocultural. Revela capacidade de insight e juízo critico. No que diz respeito à avaliação instrumental ao nível da personalidade, não nos foi possível interpretar o perfil, tendo em consideração a elevada inconsistência nas respostas, o que invalidou a prova. Das entrevistas salienta-se que a nível familiar AA manifesta uma relação de grande proximidade com a figura paterna, percecionada como uma figura de apoio e suporte. Já com a irmã existe ausência de contacto, por incompatibilidades entre a fratria. A nível social as relações são descritas de forma superficial, não se tendo identificado relações de proximidade. AA revela ser uma pessoa com interesses simples, com objetivos de vida pessoais e profissionais, ainda pouco estruturados. Após o acidente de viação refere dificuldades ao nível da memória e concentração, bem como o desenvolvimento de epilepsia para o qual se encontra medicado. Evidencia queixas ao nível do sono, com despertares noturnos e ao nível do humor (sentimento de ansiedade). Face ao mencionado, de acordo com a avaliação, o examinando evidencia algumas características, tais como, imaturidade psicoafectiva, dificuldade no controlo dos impulsos, impulsividade, baixas estratégias de coping, dificuldade em lidar com a frustração, comportamentos de risco, que podem influenciar o seu comportamento e funcionamento psicológico. o entanto, não nos é possível concluir de forma clara, se as características mencionadas representam alterações ao nível da personalidade, ou se poderão ser uma manifestação do diagnóstico de que padece, podendo influenciar diretamente sua personalidade e comportamento”;

38.º Do relatório de perícia de psiquiatria forense, de folhas 889 a 895, consta: “(…) Do ponto de vista psiquiátrico, o examinado padece de Perturbação secundária do controlo de impulsos (6E66, CID-11), síndrome caracterizada pela presença de sintomas proeminentes característicos de Transtornos de Controle de Impulsos ou Transtornos Devidos a Comportamentos Aditivos (por exemplo, surtos de comportamentos agressivos) que são uma consequência fisiopatológica direta de uma condição de saúde não classificada em transtornos mentais e comportamentais. No caso do examinado, está bem documentada neuroimagiologicamente a afetação de áreas cerebrais diretamente relacionadas com o controlo de impulsos (RM cerebral: múltiplas lesões focais com hipossinal em T2* interessando a interface cortico-subcortical dos hemisférios cerebrais, sobretudo nas regiões frontais, temporais e parietais, mas também o corpo caloso, sugerindo hemorragias petequiais não recentes, em provável contexto de lesão axonal difusa, corroborando a informação clínica. Lesão encefaloclástica cortico-subcortical frontobasal esquerda provável sequela de lesão traumática. Não há captações anómalas do produto de contraste, intraparenquimatosas ou meníngeas. Não se identificam coleções hemorrágicas recentes, intra ou extra-axiais. As restantes vias de circulação de líquor estão permeáveis, definindo-se discreta redução do volume encefálico). O consumo de tóxicos (álcool ou outras substâncias psicoativas) agrava esta incapacidade de controlo de impulsos e o baixo limiar de tolerância à frustração, propiciando a adoção de comportamentos explosivos de hetero e/ou auto agressividade”;

39.º Do relatório social elaborado pela D.G.R.S.P., de folhas 764 a 766, consta:

a. “À data dos factos constantes do presente processo, AA refere encontrar-se a residir com o progenitor em habitação pertença daquele, sita na Rua ..., ..., Paredes.

b. Segundo a ofendida nos autos e a informação recolhida junto das fontes apresentadas, o casal viveu em união de facto entre fevereiro e agosto de 2023, juntamente com o filho daquela na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, em ..., Paredes. AA refere nunca ter estabelecido relacionamento amoroso e união de facto com a ofendida, mencionado que aquela seria uma amiga, que conheceu numa rede social e com quem se encontrava para contatos de cariz sexual.

c. O arguido encontrava-se laboralmente ativo na empresa de mobiliário pertencente ao seu progenitor auferindo o vencimento mensal aproximado de 1500€.

d. O processo de desenvolvimento de AA decorreu em ..., concelho de Paredes, inserido num agregado familiar constituído pelos progenitores, o pai, empresário, e a mãe empregada numa quinta de fabrico de vinhos, e uma irmã mais velha, num contexto familiar descrito como securizante.

e. A mãe do arguido faleceu quando aquele tinha 12 anos de idade, passando o mesmo e a irmã a residir apenas com o progenitor.

f. Iniciou percurso escolar em idade regular, tendo concluído o 12.º ano de escolaridade, com registo de um percurso adaptado e bons resultados escolares.

g. Seguiu-se a integração no mundo laboral junto do pai, proprietário de uma fábrica de mobiliário, onde trabalhou até à data da reclusão.

h. Aos 20 anos AA foi vítima de um acidente de viação tendo, nesse âmbito, chegado a estar em coma, do qual resultaram diversas sequelas.

i. Desde essa altura, padece de epilepsia, encontrando-se medicado.

j. É no período pós internamento que o arguido e o progenitor situam o início do consumo de álcool e haxixe por parte daquele.

k. Ambos verbalizam que, com o consumo de álcool e drogas, AA assumia comportamentos agressivos.

l. O arguido chegou a recorrer ao Centro de Respostas Integradas ... e, no período que antecedeu a prisão preventiva, realizou tratamento à problemática do consumo de estupefacientes no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar ..., em ..., assumindo redução do consumo de bebidas alcoólicas, limitando a utilização de estupefacientes a consumos esporádicos de haxixe.

m. No plano afetivo, AA estabeleceu relacionamento amoroso com ex-companheira, LL, da qual veio a separar-se, vindo a ser condenado no âmbito do Processo nº 434/21.7GAPRD, por sentença transitada em julgado a 05.06.2023, pela prática do crime de violência doméstica, violação, ofensa à integridade física qualificada, ameaça agravada e um crime de injúria, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.

n. Entretanto e durante o período da suspensão de pena de prisão estabeleceu união de facto com a ofendida no presente processo, BB, referindo o arguido que aquele era um relacionamento de amizade entre ambos, que se limitava a encontros de cariz sexual no apartamento pertença do pai do mesmo.

o. Segundo a ex-companheira/ofendida nos autos, aquela união foi caracterizada por dificuldades de gestão e disfuncionalidades, observando-se comunicação conflitual associada ao consumo de estupefacientes por parte do arguido.

p. BB menciona que mantém o receio pela eventual presença do arguido em meio livre.

q. As rotinas de AA eram orientadas em função do trabalho que desenvolvia e do convívio com amigos e com a companheira, constituindo-se o pai e irmã como os únicos familiares diretos que possuía, conservando com a última uma relação de distanciamento.

r. No meio social envolvente, o arguido beneficia de uma imagem social genericamente abonatória, exceto quando sob o efeito do consumo de bebidas alcoólicas, alturas em que alterava radicalmente o seu comportamento, tornando-se agressivo.

s. Contudo, é considerado que, desde que mantenha a problemática aditiva controlada, não se registarão sinais de rejeição à sua presença.

t. 2. Repercussões da situação jurídico-penal do arguido

u. AA encontra-se preso no Estabelecimento Prisional ... (EP...) desde 14/08/2023 à ordem do presente processo.

v. Refere manter-se abstinente do consumo de estupefacientes desde a sua entrada no Estabelecimento Prisional.

w. Em novembro transato foi alvo de sanção disciplinar de repreensão escrita por ter, no seu espaço de alojamento, objeto não permitido (cachimbo artesanal para consumo de estupefacientes).

x. Assume atividade laboral na carpintaria do EP....

y. Beneficia de visitas regulares do pai, de amigos e da família alargada.

z. 3.Conclusão

aa. O processo de socialização de AA decorreu em meio núcleo familiar referenciado como adequado e com transmissão de valores normativos.

bb. Apresenta problemática de saúde ao nível da toxicodependência, com acompanhamento médico após acidente de viação em 2021 no Hospital ... em ..., na área da Psiquiatria.

cc. O arguido possui antecedentes criminais, com condenação em suspensão de execução de pena, pela prática de crime de idêntica natureza ao do presente processo.

dd. No plano afetivo, encetou união com a ex-companheira/ofendida nos autos, enfrentando dificuldades pessoais de gestão da relação, observando-se comunicação conflitual, atribuída aos consumos de estupefacientes do arguido, que conduziu ao presente processo e ao fim do relacionamento.

ee. Pelo exposto, em caso de condenação, será importante uma intervenção orientada para a prevenção da reincidência de comportamentos de violência nas relações de intimidade bem como a manutenção do acompanhamento médico especializado no âmbito da problemática aditiva, no sentido da estabilização de um projeto de vida que promova um melhor ajustamento comportamental.”;

40.º O arguido já foi condenado:

a. Por decisão datada de 28/07/2022, transitada em julgado em 30/09/2022, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, cometido em 17/07/2022, no âmbito do processo n.º 388/22.2GBPRD, do J2, deste Juízo Local Criminal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 (cinco) meses e 15 (quinze) dias, penas essas já extintas, pelo respetivo cumprimento, em 07/03/2023 e 26/06/2023;

b. Por decisão datada de 04/05/2023, transitada em julgado em 05/06/2023, pela prática de um crime de violação, um crime de violência doméstica, um crime de ameaça agravada, um crime de injúria e um crime de ofensa à integridade física qualificada, cometidos, respetivamente, em 2019, 27/06/2021, 06/2021, 2019 e 06/2021, no âmbito do processo n.º 434/21.7GAPRD, do J2, deste Juízo Local Criminal, na pena única de 4 (quatro) anos, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e com sujeição a deveres (afastamento da ofendida, frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica e tratamento médico à sua dependência aditiva), na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de 3 (três) anos e, ainda, na pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de 2 (dois) anos.


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B – FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevo para a decisão justa da causa não se provaram os seguintes factos:

a) Que a relação aludida em 1.º supra fosse análoga à dos cônjuges;

b) Que o filho da assistente tivesse nascido a ../../2021;

c) Que nas circunstâncias aludidas em 3.º supra o arguido provocasse, com a sua atuação, sangramento no nariz;

d) Que na ocasião referida em 4.º supra, o arguido dirigisse ainda à assistente as seguintes expressões: “És uma puta, uma vaca, não sabes dar educação ao teu filho, vais ser sempre uma merda”;

e) Que nas circunstâncias referidas em 4.º e 5.º supra, a assistente não tivesse ido ao hospital para receber assistência médica, porque o arguido a impediu de o fazer;

f) Que nas circunstâncias descritas em 7.º supra o arguido dirigisse à assistente as seguintes expressões: “Sua puta, sua vaca, vai para casa, que o teu sítio é em casa”.

g) Que na ocasião referida em 8.º supra, o arguido também dissesse “vejo tudo apagado”;

h) Que nas circunstâncias mencionadas em 20.º supra a assistente fugisse para o quarto e que o arguido a tivesse agarrado pelo braço, arrastando-a para o sofá da sala e, em ato contínuo, desferisse vários murros na cabeça e a tentasse estrangular no pescoço com uma das mãos;

i) Que, ainda nessa ocasião, a assistente tentasse proteger a cara com os braços e o arguido lhe desferisse vários murros, atingindo-os;

j) Que além das expressões referidas em 21.º supra, o arguido também apodasse a assistente de “porca”;

k) Que as agressões descritas nas circunstâncias referidas em 19.º a 23.º supra fossem cometidas na presença do filho menor da assistente;

l) Que desde o dia 20 de janeiro de 2024, que o arguido, do interior do Estabelecimento Prisional onde se encontra preso preventivamente, tivesse vindo a contactar a assistente, desta forma a perturbando;

m) Que nesse dia 20 de janeiro de 2024, pelas 14 horas e 01 minutos, o arguido telefonasse à assistente através do n.º ... e durante essa chamada, que durou 14 (catorze) segundos, tivesse imitado imitou o som do riso e desligasse;

n) Que pelas 14 horas e 04 minutos, desse mesmo dia, o arguido voltasse a telefonar à assistente, através do mesmo número de telefone fixo, dizendo-lhe, em tom sério: “vou-te matar”, chamada que durou 8 (oito) segundos;

o) Que ainda no mesmo dia, pelas 20 horas e 13 minutos, o arguido voltasse a telefonar à assistente, através do mesmo número de telefone fixo, chamada que durou 32 (trinta e dois) segundos, em que o arguido voltasse a imitar o som do riso e desligou;

p) Que no dia 21 de janeiro de 2024, pelas 14 horas, via Instagram do seu perfil: "...", o arguido, através de mensagem e áudios, tivesse até efetuado uma chamada, que se iniciou pelas 14 horas e 42 minutos e terminou pelas 14 horas e 59 minutos, contactando o pai do filho da assistente, identificado como MM, residente em França, dizendo-lhe, para além do demais, que não estava arrependido de ter batido na assistente e que o voltaria a fazer;

q) Que no passado dia 25 de janeiro de 2024, pelas 13 horas e 44 minutos, o arguido telefonasse à assistente através do n.º ..., mantendo-se calado e desligando a chamada, logo de seguida;

r) Que o arguido tivesse remetido à assistente, nas descritas circunstâncias, mensagens através de correio eletrónico e/ou das redes sociais;

s) Que por força do descrito em l) a r) supra a assistente vivesse num constante medo pela sua própria vida, atenta a perseguição do arguido, que mesmo privado da liberdade, manteve-a pela via dessas ligações telefónicas e mensagens, correio eletrónico e redes sociais;

t) Que como consequência direta e necessária da atuação do arguido e sem prejuízo do descrito nos factos provados supra, a assistente sofresse sequelas graves do lado esquerdo do seu corpo, sentindo picadelas na cabeça, não tendo força no braço esquerdo, ficando com formigueiro no mesmo, assim como na perna esquerda, chegando mesmo a deixar de sentir o lado esquerdo do corpo, o que consequentemente a impedisse de pegar no seu filho;

u) Que como consequência direta e necessária da sobredita atuação do arguido e sem prejuízo do descrito nos factos provados supra, a assistente ficasse com a mão esquerda em mau estado de molde a ter de receber tratamento, por não aguentar as dores e desconforto;

v) Que como consequência direta e necessária da descrita atuação do arguido e sem prejuízo do descrito nos factos provados supra, a assistente ficasse incapacitada para o exercício de uma profissão;

w) Que como consequência direta e necessária da descrita atuação do arguido e sem prejuízo do descrito nos factos provados supra, a assistente ficasse impedida de dormir tranquilamente, acordando repetidamente de madrugada, já não conseguindo voltar a dormir, vivendo com dores constantes na cabeça e no lado esquerdo do seu corpo.


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Sublinhe-se que o que foi descrito e alegado na acusação e que não foi especificamente dado como provado ou não provado, não o foi por assumir manifestamente caráter genérico na correspondente descrição fatual, pois que tal caráter genérico impede a respetiva valoração e consequentemente a sustentação de uma condenação com base nessas alegações, conforme já foi decidido nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de setembro de 2006, 15 de novembro de 2007 e 02 de abril de 20081, por colidir com o direito do contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa.

Ademais, o que foi descrito e alegado no pedido de indemnização civil e na contestação do arguido e que não foi especificamente dado como provado ou não provado, tal sucede por consubstanciar mera impugnação, explanação de matéria de direito e/ou se referir a conceitos vagos, genéricos e/ou jurídicos e/ou não se debruçar sobre factos essenciais à boa decisão (cfr. artigos 5.º, 552.º, n.º 1, alínea d) e 572.º, alínea c), todos do Código de Processo Civil aplicáveis ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal).


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C – CONVICÇÃO DO TRIBUNAL:

Para responder à matéria de facto com relevância jurídico-penal, o tribunal atendeu ao apurado em sede de audiência de julgamento, analisando global e criticamente, segundo as regras da experiência e da livre convicção do tribunal, nos termos do disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

Com efeito, a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Sendo que a convicção do tribunal é formada, através dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.

Na verdade, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras, mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram, daí dar-se a devida relevância à perceção direta que a imediação e a oralidade conferem ao julgador.

Trata-se de um acervo de informação não-verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras de experiência comum.

Foi assim, à luz de tais princípios, que se formou a convicção deste tribunal e consequentemente se procedeu à seleção da matéria de facto positiva e negativa relevante para a boa decisão da causa.

Para tanto, o tribunal confrontou-se, desde logo, com as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento, o que sucedeu logo no seu início, tendo aquele apresentado um discurso previamente ensaiado, de forma a, por um lado, descredibilizar a assistente, menorizando o seu papel (negando inclusivamente ter sido seu namorado, mas apenas alguém com quem tinha encontros esporádicos de cariz sexual e como tal catalogando-a como uma pessoa interesseira, que pretendia apenas aproveitar-se da riqueza do seu pai para enriquecer a qualquer custo) e, por outro lado, apontar um “alibi” para cada um dos episódios descritos na acusação, de modo a negar a sua presença nesses dias e locais e, consequentemente, fazer vingar a tese de que não podia ter cometido esses factos, sendo estes inventados pela assistente.

De resto, tal desiderato (duplo) trespassou por cada um dos depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa do arguido, as quais, e desde já se adiantando, vieram cirurgicamente com as mesmas “desculpas” para justificar a não presença do arguido naqueles dias e horas (indicando, portanto, que aquele estaria num outro local, na companhia de uma daquelas testemunhas) – aliás, a convicção do tribunal é mesmo a de que, mais episódios tivessem sido indicados, mais testemunhas certamente que iriam ser indicadas para vir ao julgamento afirmar que o arguido, naquela ocasião, estava num local completamente distinto e que não os poderia ter cometido -, mas sobretudo foi chocante a forma como se referiram à assistente (sobretudo os/as amigos/as do arguido), querendo passar a ideia de que nem sequer a conheciam e que, por isso, seria alguém sem qualquer tipo de importância na vida do arguido, ou seja, alguém que tinha tido alguns encontros fortuitos de cariz sexual com aquele, mas relativamente à qual o arguido não nutria qualquer sentimento, porque, segundo esses/essas amigos/as nunca lhes tinha sido apresentada como tal.

No que toca ao arguido, este reconheceu que conheceu a assistente em janeiro de 2023, encontrando-se ambos, no tal apartamento que era do seu pai, mas que usava para esse tipo de “encontros”, apenas a partir de fevereiro de 2023, o que se repetiu mais algumas vezes, até que, em março, a assistente lhe pediu para ir para lá, supostamente para poder fazer prova no processo de promoção e proteção do seu filho GG de que tinha uma casa com condições (pois a da mãe dela não tinha), ao que acedeu apenas para a ajudar, tendo ali permanecido durante cerca de 10 dias, juntamente com o filho (ao passo que o arguido ia dormir normalmente a casa do seu pai), inclusivamente ali recebendo a visita das técnicas da Segurança Social, após o que regressou a casa da mãe, porque segundo o arguido “não queria nada de sério” (sic). No que concerne aos episódios descritos na acusação, prontamente respondeu que, no dia 29 de abril passou o dia todo na Maia, tendo saído logo a meio da manhã e regressado apenas às 21 horas, na companhia do seu pai e do NN, para fazer uma mudança de móveis, a pedido deste último, para um armazém no Porto, pelo que nem sequer esteve com a assistente nesse dia. Igualmente negou que tivesse praticado qualquer dos factos que a assistente lhe imputou no dia 27 de maio, disso se recordando porque, como o seu pai fez anos no dia anterior, naquela ocasião almoçou com ele e nem sequer esteve com a assistente. Quanto ao dia 12 de agosto, afirmou que foi trabalhar e depois esteve a almoçar com um amigo, que o deixou no seu apartamento, onde já se encontrava a assistente (mas não o filho desta). Confrontado com o facto de a assistente ali estar naquele dia, quando segundo a sua versão, já tinha saído em março e nunca ali tinha vivido efetivamente, foi com manifesto embaraço que acabou por admitir que a assistente “ia ficando lá” (sic), logo acrescentando que “ela não se ia embora” (sic), apesar de já lhe ter pedido para sair, tanto que, naquele dia, quando ali chegou, perguntou-lhe o que ainda estava ali a fazer. Reconheceu ainda, que nessa ocasião, apodou-a de “burra” (sic) e que lhe disse que tinha outras pessoas e queria usufruir daquele espaço para esses encontros. Acrescentou também que, quando ali chegou, a assistente estava a sangrar do nariz “por causa do vapor do ferro” (sic), o que já tinha sucedido, pelo menos, três vezes quando ela estava a “dar a ferro”, pois segundo ela lhe disse, “tinha o sangue fino” (sic). Não deixa de ser curioso, no mínimo, que, segundo o arguido, não tivesse qualquer relação “séria” com a assistente e ela só ali fosse para encontros sexuais ou, então, para passar a ideia junto das autoridades judiciais de que tinha uma casa para acolher o seu filho, e depois, segundo o próprio arguido, já a tivesse visto a passar a ferro, pelo menos três vezes, e isto porque, ditam as regras da experiência comum, que, caso a assistente ali apenas fosse para ter encontros de cariz sexual, seguramente que, nem antes, nem depois, iria passar a ferro a roupa, daí se podendo concluir que o arguido, ao querer arranjar uma desculpa (irrazoável, portanto) para os Militares da G.N.R. se terem deparado, naquela ocasião, com a assistente no interior do apartamento com sangue no nariz, dizendo que era do vapor do ferro, acabou por se descair, dando a entender que efetivamente a assistente ali ficava a dormir, fazia a sua vida ali, com um caráter mais ou menos ininterrupto e não apenas de forma esporádica, para ter encontros sexuais com o arguido. Aliás, a propósito da ida da G.N.R. naquela ocasião, disse não saber quem tinha chamado a polícia, mas seguramente que não foi a assistente, com quem esteve sempre naquela altura, o que também permitiu concluir que, seguramente o barulho que fizeram foi de tal ordem, que os vizinhos alertados pelos berros, pelo choro, etc. não tiveram qualquer dúvida em considerar que se tratava de alguém que estava numa situação de perigo, tanto que chamaram a autoridade policial, o que denota que não se tratou de um episódio inventado pela assistente. Mesmo quando confrontado com as fotos de folhas 6 a 12, disse que não viu (ou não tem memória disso) que a assistente tivesse algum hematoma, negando assim, uma vez mais, que a tivesse agredido fisicamente, não compreendendo, segundo afirmou, o porquê de ter sido detido porque nunca lhe fez mal. Refutou igualmente ter efetuado, desde a sua detenção, qualquer telefonema à assistente, assim como nunca lhe enviou mensagens, vídeos, etc. desde então, porque foi o seu pai quem ficou com o seu telemóvel e na prisão nunca teve acesso a telemóveis, só podendo usar o telefone do estabelecimento, usando unicamente para falar com o seu pai. Disse até que lhe foi instaurado um procedimento disciplinar no estabelecimento prisional, o qual entretanto foi arquivado, porque não lhe foi encontrado nenhum telemóvel. Já a instâncias do Ministério Público, pese embora, uma vez mais, ter pretendido passar a ideia de que tinha uma “amizade colorida” (sic) com a assistente, reconheceu que o seu pai sabia que a assistente estava a “viver lá”, mas também sabia que tal apenas sucedia para que a pudesse ajudar por causa do filho. De todo o modo, também admitiu que a assistente tinha o número de telemóvel do seu pai e que este chegou a levá-la a casa da mãe dela e que também a tinha apresentado ao seu amigo OO, o qual inclusivamente lhe deu boleia para o seu local de trabalho, a pedido do arguido. Confrontado com o teor das transcrições de folhas 48 a 54, negou que tivesse sido ele a mandar essas mensagens. Ademais, pese embora confirmar o seu perfil no instagram e o facto de conhecer o ex-companheiro da assistente (MM) negou que tivesse usado o telemóvel/redes sociais, etc. depois de ter sido detido, mais dizendo que a assistente tinha as suas palavras passe nessas redes sociais (assim como ele tinha as dela, porque a assistente as colocou no telemóvel dele), justificação esta que, uma vez mais, não deixa de ser, no mínimo, curiosa, pois, se a relação era meramente fortuita e de cariz sexual, como o arguido o afirmou por diversas vezes, também não se compreende como é que a assistente tinha acesso às suas palavras passe, o que significa que, novamente, o arguido, a querer arranjar uma desculpa, deixou-se descair outra vez no que toca ao tipo de relação que verdadeiramente manteve com a assistente. Do mesmo modo, confrontado com o teor do relatório de perícia na área de psicologia, constante de folhas 528 a 531 e, em particular, com o facto de ter afirmado junto da Psicóloga de que tinha ciúmes da assistente, negou pura e simplesmente que os tivesse, porque nunca mantiveram uma relação amorosa séria, pese embora ter reconhecido que frequentou a casa da mãe da assistente e que foi à festa de aniversário do filho dela, a qual inclusivamente foi realizada na casa do seu pai. Questionado pelo seu Ilustre Advogado, disse que tinha sofrido um acidente de viação, tendo ficado em coma e sofrido sequelas cerebrais, mais referindo que a sua então namorada, PP, que também seguia na viatura acidentada, ficou em estado vegetativo, tendo sido com ela que teve efetivamente um relacionamento sério com projetos futuros de casamento, relação essa que terminou com o dito acidente.

A contrariar, porém, a versão dos factos apresentada pelo arguido, apresentaram-se as declarações para memória futura prestadas por BB (realizadas numa altura em que ainda nem sequer tinha assumido a qualidade de assistente, nem de demandante, porque prestadas numa fase muito inicial do processo), as quais, por cumprirem os requisitos legais previstos no artigo 271.º, do Código de Processo Penal, foram dadas por reproduzidas em sede de audiência de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 356.º, n.º 2, alínea a) do mesmo diploma (constando do respetivo auto de transcrição junto a folhas 292 a 311), ali relatando a mesma, de forma emocionada e sofrida, as agressões físicas e verbais de que foi vítima ao longo da relação que manteve com o arguido (e que caraterizou como se tratando de uma relação amorosa séria), assim como descrevendo os episódios nos quais foi agredida física e verbalmente pelo arguido, sendo certo que, dada a forma como respondeu a todas as questões, mereceu, pois, total credibilidade, convencendo positivamente o tribunal acerca da veracidade dos seus relatos, tanto assim que nem sequer se mostrou necessário chamá-la a depor novamente (e presencialmente) em sede de audiência de julgamento, já que através da apreciação das suas declarações, foi bem patente a veracidade das mesmas, mesmo tendo em conta que a própria assistente, já depois de prestar aquelas declarações, veio juntar aos autos um requerimento assinado pela própria, datado de 04 de dezembro de 2023, pretendendo desistir da queixa – cfr. folhas 360 e 361 – dando conta de que “o que disse não foi bem o que se passou e estou arrependida” (sic), como de resto infra abordaremos de novo o teor deste requerimento.

E pese embora a tentativa (sem êxito, porém) da defesa do arguido, como já referimos supra, mas não é despiciendo repetir porque foi evidente e constante ao longo do julgamento, no sentido de descredibilizar esta versão narrada pela assistente, seja ao querer fazer passar a ideia de que esta não manteve um relação amorosa séria com o arguido, seja no sentido de ter inventado tudo isto, com o único fito – conforme referido em sede de alegações orais pela defesa do arguido – de se tornar “nora do pai do arguido” (com objetivos económicos, portanto, para arranjar uma melhor vida), ao ponto até de acrescentar que a assistente era uma espécie de “habitué” no tocante à apresentação de queixas crime (inclusivamente de violência doméstica contra o ex-companheiro (aliás até foi sugerido que as lesões que a mesma apresentava tivessem sido provocadas por aquele e não pelo arguido), a verdade é que a restante prova indicada pela acusação foi prestada no sentido de corroborar as declarações daquela, formando a convicção do tribunal no sentido de dar como provados, no essencial, os factos imputados ao arguido (embora com ligeiras alterações relativamente ao que vinha descrito na acusação, no tocante às palavras usadas e aos atos concretamente apurados), convicção essa que não foi minimamente abalada pela prova apresentada pelo defesa, já que o único propósito das testemunhas arroladas pelo arguido foi no sentido de ridicularizar/menosprezar o papel da assistente na vida do arguido, passando a ideia de que a mesma não passava de uma distração sexual e que tinha inventado tudo isto para se aproveitar do dinheiro dele, não podendo o arguido ter cometido os factos em apreço precisamente porque, quanto a cada um deles, tinha um “alibi” que respetivamente cada uma daquelas vieram aqui contar.

Senão vejamos.

QQ identificou-se como militar da G.N.R. e, como tal a sua razão de ciência fundou-se no facto de integrar a patrulha às ocorrências no dia 12 de agosto de 2023, juntamente com o cabo RR, que se deslocou ao local melhor identificado no auto de notícia que elaborou e que deu origem aos presentes autos, culminando com a detenção do arguido, tudo conforme descrito a folhas 2 a 4, cujo teor confirmou. Depôs de forma isenta, objetiva, natural, espontânea, sem exageros e, como tal, digna de crédito e sem qualquer suspeição quanto à sua credibilidade, narrando os factos que presenciou no aludido dia de modo consentâneo com aquilo que, no essencial, foi afirmado pela assistente em sede de declarações para memória futura. Explicou, pois, que se tratou de uma denúncia anónima dando conta da ocorrência de um episódio de violência doméstica naquele local. Foi impressiva a forma como descreveu aquilo que ouviu quando ali chegou (ou seja, uma voz masculina aos gritos e uma voz feminina, que apenas pedia para aquele parar), tendo subido às escadas (porque a porta da entrada no prédio estava aberta) e apenas tocado à companhia do apartamento do qual provinha aquele barulho, mais ouvindo, nesse entretanto, essa voz masculina a dizer “puta, vaca” e que, quando o homem (que veio a identificar como sendo o aqui arguido) lhe abriu a porta, deparou-se com a mulher (que veio a identificar como sendo a aqui assistente), com o nariz a sangrar, camisola branca com sangue, olho direito com hematoma, pescoço com marcas e braços com hematomas, sendo que que, até então, não conhecia nem um nem outro, o que apenas sucedeu por força do exercício das suas funções. Acrescentou, de modo espontâneo, que a assistente estava a tremer e que, quando o viu, disse-lhe apenas “obrigado”, ao passo que o arguido virou-se para a assistente, dizendo “vês o que me fazes, é sempre a mesma merda”. Confirmou também que, na altura, falou com a assistente, exarando no auto aquilo que ela lhe contou quanto ao sucedido antes da chegada da patrulha, assim como questionou o arguido, limitando-se este a dizer que tinham tido uma discussão, no decurso da qual apenas lhe tinha apertado os braços e o pescoço, porque estava “fora do normal/nervoso” (sic). Fez alusão ainda ao facto de ambos se terem identificado como companheiros, ali residindo juntos, pese embora ter colocado no aludido auto de notícia uma morada da assistente distinta daquela, por indicação desta, precisamente porque, perante o sucedido, iria sair daquela casa naquele dia. Explicou que, face ao que viu e ouviu, ao estado da vítima e perante o que esta narrou, procedeu à detenção do arguido, sujeitando-o ainda ao teste de pesquisa de álcool, o qual acusou positivo. Confrontado com as fotos de folhas 6 a 12/35 a 40, atestou que as mesmas foram por ele tiradas naquela ocasião (as primeiras em casa da vítima e as segundas já no Posto). Não teve qualquer hesitação em dizer que, no interior da habitação, apenas encontrou a assistente e o arguido (aliás, como de resto, a assistente afirmou-o em sede de declarações para memória futura) e mais ninguém (nomeadamente uma criança, caso contrário tê-lo-ia consignado no respetivo auto de notícia, o que não sucedeu).

A testemunha JJ, por seu turno, revelou ser amiga da assistente há mais de 24 anos (embora durante uns tempos estiveram zangadas), conhecendo, ao invés, o arguido por ter mantido um relacionamento com aquela, não logrando escamotear, aqui e acolá, algum ressentimento para com aquele (sem que isso afetasse, porém, a sua credibilidade, dada a forma natural como depôs), face àquilo que este fez à sua amiga, demonstrando, aliás, possuir, quanto ao sucedido no dia em que “jogou o ...” (sic) em maio de 2023, conhecimento direto e, quanto ao demais, indireto, por ter sido aquela a contar-lhe. Logrou depor de forma natural, assertiva e segura, mesmo perante as insistências da defesa do arguido, pois nunca vacilou nas respostas que deu, além de ter mantido o distanciamento necessário para depor sem exageros e de modo isento. Começou por dizer que chegou a ir jantar a casa do arguido, quando este manteve a relação com a sua amiga, cerca de cinco vezes, ficando com a ideia de que ambos ali viviam juntos, sendo que, por vezes, também ali ficava o filho da assistente. Aliás, afirmou que, quando conheceu o arguido, por intermédio da assistente, esta apresentou-o como seu namorado. Naquelas ocasiões em que ali foi, nunca viu nada de agressões físicas, verbais, etc., ficando até com a ideia de que o arguido “era bom para a assistente e para o filho” (sic). Sem concretizar a data em concreto (o que é perfeitamente natural, o contrário é que seria estranho, por já não se recordar), sabendo apenas esclarecer que o foi em maio de 2023, precisamente no dia em que o ... jogou e festejou a vitória no campeonato – recordando-se disso, porque veio aos festejos – recebeu um telefonema da assistente, a pedir-lhe ajuda, porque estava à chuva e já tinha saído da casa do arguido e que tinha medo, porque ele lhe tinha batido. Disse-lhe também que estava nas traseiras da garagem e pediu-lhe para a ir buscar, o que fez de imediato. Quando ali chegou (identificando o local, sem qualquer margem para dúvida, bem como o facto de a assistente se encontrar escondida na zona das garagens, descrevendo, ainda com pormenor, como é que estava trajada) a assistente entrou logo no carro, pedindo-lhe para arrancar rapidamente porque o arguido vinha atrás dela, o que fez, levando-a até à sua casa, onde ficou cerca de uma hora, verificando que a mesma apresentava a testa e braços vermelhos, tendo-a confrontado com isso, ao que aquela lhe respondeu que tinha sido agredida pelo arguido. Acrescentou que, nesse entretanto, ao arguido enviou mensagens áudio à assistente, as quais inclusivamente ouviu, porque aquela lhe mostrou, não tendo qualquer dúvida de que se tratava da voz daquele, que bem conhecia, apresentando um tom alterado, não se recordando, em concreto, do teor das mensagens, mas ficando-lhe apenas na memória de que o arguido a acusava de andar com ele só “para tirar proveito da minha piroca” (sic). Esclareceu também que, como o filho da assistente, nessa ocasião, estava na casa da mãe dela, levou-a até lá, sendo certo que, entretanto, a mãe da testemunha ligou-lhe a dar nota que o arguido tinha ido a casa delas, perguntando-lhe se a assistente ali estava, tendo-lhe dito que a mesma tinha sido levada à casa de Paços de Ferreira. Concretizou que o arguido sabia onde morava a testemunha, porque o sócio do pai dele era seu vizinho e, como tal, já tinha comentado com o arguido que morava junto daquele. Também referiu que depois de deixar a assistente na casa da mãe dela, e no regresso a sua casa, cruzou-se (em ..., perto do ...) com o carro do OO, amigo do arguido e também seu conhecido (porque era amigo de um seu ex-namorado e, por isso, estiveram várias vezes juntos no café, além de também o ver algumas vezes no prédio onde o arguido morava, por ali também morar uma irmã e prima da testemunha), a alta velocidade, com os dois no seu interior, sendo certo que, pese embora não ter assistido, a sua amiga depois contou-lhe que aqueles dois surgiram na casa da mãe dela e que o arguido bateu-lhe novamente, mais empurrando a mãe dela, o que ocorreu perante o filho. Mais disse que a assistente também lhe contou que tinha falado com o pai do arguido por causa da dependência alcoólica e de drogas, pois tornavam-no violento [pois quando tal não sucedia, o arguido era um “doce” (sic)] e que aquele dizia que ia interná-lo numa clínica. Aludiu ainda ao facto de a assistente sentir medo do arguido e do que lhe pudessem fazer, por estar preso por sua causa. Não se reportou a nenhum outro episódio, até porque perentoriamente reconheceu que nunca viu o arguido a agredir a assistente, sabendo apenas o que esta lhe contou a esse propósito. A instâncias do Ilustre Advogado do arguido, afirmou, com firmeza, que o relatado ocorreu na noite do festejo da vitória do ... e esclareceu que, mesmo estando a decorrer as festas do ..., não foi cortada a circulação de trânsito, já que as barracas foram colocadas nos passeios, asseverando assim que a circulação do trânsito decorria normalmente, daí se ter cruzado com aqueles dois perto desse local. Igualmente atestou que nessa noite choveu de forma intermitente (ora chovia, ora parava de chover).

SS, mãe da assistente, por seu turno, começou por dizer que a sua filha manteve uma relação amorosa com o arguido [eram “um casal” (sic)] e que chegou mesmo a ir jantar e/ou dormir a casa do arguido (duas vezes) e o arguido também foi a sua casa, algumas vezes, levar o seu neto. Sem lograr esclarecer a data (mas recordando-se que a filha apresentou queixa contra o arguido nessa ocasião, mas a testemunha não), esclareceu que o arguido apareceu na sua casa, por volta da meia noite, bateu à porta da cozinha, ela abriu e o arguido, de forma educada, perguntou-lhe pela filha, tendo-lhe respondido que ela estava em casa da amiga JJ. O arguido saiu rapidamente do local e pouco depois apareceu-lhe ali a filha e logo depois (cerca de cinco minutos depois) apareceu o arguido novamente, juntamente com o OO (“estavam os dois perdidos” (sic), ou seja, alcoolizados). Asseverou que a sua filha abriu-lhes a porta e o arguido puxou-lhe o cabelo, colocando-lhe as mãos ao pescoço, dizendo-lhe “sabes o que fizeste”, momento esse no qual tentou separá-los, mas logo levou com um empurrão, batendo com as costas no frigorífico. Nessa altura, o seu neto, que já estava a dormir, começou a chorar, a filha foi buscá-lo e ficou com ele ao colo, mas o arguido voltou a bater-lhe. Perante tal aflição, foi pedir ajuda ao seu vizinho KK, que até veio em cuecas porque o barulho era tanto e o arguido estava “possuído” (sic). Mais disse que, entretanto, o arguido e o amigo fugiram e que a G.N.R. foi chamada ao local, para tomar conta da ocorrência. Fez alusão às lesões que a filha tinha nessa ocasião, ademais asseverando que aquela ficou ali a viver, mas depois, contra a sua vontade, voltou para ele até que ocorreu o episódio que levou à sua detenção, ao qual não assistiu nem o seu neto, pois este tinha ficado em sua casa. Fez ainda referência a uma outra situação, ocorrida em abril, não sabendo dizer o dia, em que a sua filha chegou a sua casa para lhe levar o neto e estava com a “testa toda aberta” (sic). Na altura não lhe disse que tinha sido agredida pelo arguido, o que só sucedeu mais tarde, admitindo-lhe que tinha sido o arguido a dar-lhe uma cabeçada no interior da carrinha. Reportou-se ainda a uma outra situação, já depois do arguido ser preso, em que estava no parque, depois do almoço, na companhia da filha, do neto e da amiga TT, tendo a primeira recebido dois telefonemas do mesmo número, num dos quais apenas se “estavam a rir” (sic) e noutro em que alguém disse “vou-te matar” (sic). Não soube dizer quem efetuou esses telefonemas, nem a quem pertenciam esses números, assim como não reconheceu a voz da pessoa que falou, pese embora a assistente na altura ter dito que era a voz do arguido.

Seguiu-se a testemunha OO (ou seja, aquela que foi identificada pela assistente e pelas testemunhas JJ e SS, como tendo acompanhado o arguido naquele episódio ocorrido na casa desta última), a qual, com manifesto receio, pânico até, às perguntas que o Tribunal inicialmente lhe fez quanto aos costumes, respondeu que conhecia o arguido mas não a assistente e, pese embora por diversas vezes advertido de que, caso se recusasse a depor incorria na prática de um crime, o mesmo repetidamente afirmou que não prestava declarações, o que implicou a extração de certidão para efeitos de instauração do procedimento criminal.

KK disse ser vizinho da assistente, tendo relatado, de forma natural e espontânea, embora sem especificar o dia em que tal ocorreu (por já não se recordar) que estava em sua casa quando a vizinha SS lhe bateu à porta, por volta da meia-noite, queixando-se que o namorado da filha estava a bater-lhe. Foi logo na direção da casa dela (foi até em cuecas) e, de forma impressiva, descreveu que, quando lá chegou, viu um rapaz a bater (estava a dar-lhe murros) na assistente (que estava de costas para o rapaz e com o filho ao colo, o qual berrava e chorava), além de a insultar de “puta filha de puta” entre outros impropérios que não logrou esclarecer, tendo-lhe apenas dito para parar, o que aquele fez de imediato. Acrescentou que agarrou no rapaz e trouxe-o para a cozinha, tendo aquele, juntamente com um amigo dele que também lá estava, abandonado ambos o local, não sabendo dizer, porém, quem foi a conduzir. De modo completamente descomprometido, disse não saber o nome de ambos, nem conseguir identificá-los se “os visse” (sic) (aliás, na sala de audiências, olhou para o arguido, tendo afirmado não conseguir identificá-lo com total certeza) porque foi tudo muito rápido e nunca os tinha visto, nem os voltou a ver, desde o sucedido. Admitiu não poder esclarecer, por não ter visto, se o tal rapaz também tinha empurrado a sua vizinha SS. Depois deste episódio, nunca mais falou com as vizinhas sobre o assunto, nem presenciou qualquer outra situação idêntica. Questionado pelo Ilustre Advogado do arguido quanto ao estado do tempo nessa ocasião, referiu já não se recordar se estava a chover ou calor, tendo, porém, a ideia de que estava calor e tinha chovido, mas não naquele momento.

TT, por seu turno, testemunha arrolada pela assistente no respetivo pedido de indemnização civil, identificou-se como sendo amiga daquela há mais de 10 anos, embora não mantivessem contacto após aquela ter engravidado, só o tendo retomado em outubro de 2023. Nessa medida, admitiu não ter conhecimento direto dos factos descritos na acusação, porque nem sequer convivia com a assistente nesse período, assim como não conhecer pessoalmente o arguido, pois quando retomaram o contacto aquele já estava detido, contando-lhe apenas a assistente que ele a tinha agredido em três ocasiões distintas. Ao invés, disse ter estado na companhia daquela, em data que não logrou esclarecer, mas situada em janeiro de 2024, quando foram almoçar juntamente com a mãe e o filho daquela, numa altura em que estavam no parque e a assistente recebeu uns telefonemas de “alguém a rir-se” (sic), o que a deixou muito nervosa, sendo que ao terceiro telefonema, a assistente colocou em alta voz, ouvindo uma voz a dizer “vou-te matar sua filha da puta” (sic). Não conhecia a voz, tendo sido a assistente a dizer-lhe que era o arguido e que estava com muito medo e por isso queria ir embora, o que fizeram. Negou, ainda, que a assistente tivesse sido vítima de violência doméstica perpetrada pelo seu ex-companheiro “UU”. Questionada, ainda, acerca dos alegados problemas de saúde da assistente, disse que a mesma tinha dificuldade em dormir, sentia picadas e inclusivamente deixou de conseguir fazer massagens por lhe doer a mão, impedindo-a assim de trabalhar, sendo certo que, quando questionada sobre se a assistente já padecia anteriormente desses alegados problemas de saúde, curiosamente respondeu que não, denotando-se claramente que estava a responder de forma exagerada, porque sem qualquer sustentação, na medida em que se esteve sem contactar com a assistente desde que esta ficou grávida até novembro de 2023, como é que podia responder, com rigor, que a assistente não padecia desses problemas e, mais, que os mesmos, a existirem, tivessem sido provocados pela atuação do arguido.

Por outro lado, VV, testemunha indicada pela defesa, tia do arguido, começou logo de forma cautelosa, ao responder aos costumes, dizendo que conhecia a assistente “apenas de vista” (sic), clarificando depois que a viu apenas uma vez, mais concretamente no dia da detenção do arguido e que ela estava “normal” (sic), não evidenciando ter sido vítima de agressões físicas, pois não apresentava, a olho nu, nenhuma lesão/marca, pese embora estar a usar uma blusa que tinha sangue. Foi confrontada com as fotografias de folhas 6 a 12 e, manifestamente embaraçada, ao admitir que a assistente trajava o retratado a folhas 7, respondeu que não deu conta de nada de anormal nela, apesar de terem estado a uma distância de cerca de um a dois metros. No que toca aos factos elencados na acusação, revelou nada saber e, como tal, limitou-se a fazer alusão à personalidade que o seu sobrinho tinha antes do acidente de viação e depois desse evento trágico, reconhecendo que o arguido antes era um rapaz pacato, calmo e depois mudou completamente, passando a ser mais ansioso e de irritabilidade fácil, potenciado pelo consumo do álcool. Disse também que só conheceu uma namorada ao arguido, precisamente aquela que ficou em estado vegetativo por causa do acidente de viação que ambos sofreram.

CC, funcionário do pai do arguido, além de, à semelhança da testemunha anterior, afirmar que apenas conhecia a assistente “de vista” (sic) (embora reconhecendo, no final, que chegou a ver o arguido e a assistente juntos, aliás, algumas vezes, desconhecendo que tipo de relacionamento ambos mantinham), também se reportou à personalidade do arguido antes do acidente e depois desse acidente, reconhecendo, embora de modo cauteloso, que o arguido passou a ser uma pessoa mais tensa e stressada, tanto que nem sequer o colocava a trabalhar com as máquinas, por serem perigosas para ele. Instado pelo Ilustre Advogado do arguido quanto ao dia 29 de abril de 2023, prontamente respondeu que, nesse dia, esteve com o arguido o dia todo numa mudança de móveis na Maia, recordando-se dessa data porque esse serviço tinha ficado combinado para o dia 25 de abril, mas depois foi adiado para o sábado seguinte. Disse também recordar-se do dia 27 de maio de 2023, porque também esteve nesse dia com o arguido, até às 15 horas, a embalar móveis, à exceção da hora do almoço, pois não almoçaram juntos. Mais disse que nesse dia decorreu a festa do ..., na qual esteve presente, desde as 22 horas e 30 minutos e a 01 hora, tendo-se cruzado com o arguido, o qual ali se encontrava na companhia de umas amigas, por volta das 22 horas e 30 minutos ou 23 horas. Foi, no entanto, com manifesto embaraço que se mostrou, quando instado para esclarecer em que dia ocorreu a procissão de velas, ponto alto dessa festa, assim como também não logrou responder aquilo que tinha feito em qualquer outro dia desse mês de maio, sendo por isso, no mínimo curioso que se recordasse com tanta precisão aquilo que tinha supostamente feito no dia 29 de abril e 27 de maio, tanto mais que, confrontado para esclarecer se havia algum documento que atestasse a realização desse serviço e/ou transporte, respondeu, novamente de forma embaraçada e evasiva, que não, porque se tratou de um “favor de amigo” (sic), acrescentando, quando instado pelo Tribunal nesse sentido, que esse amigo era o DD.

WW, aos costumes disse ser tio do arguido e conhecer apenas “de vista” (sic) a assistente – aliás traço comum às testemunhas de defesa do arguido que se identificaram como familiares ou amigos deste foi precisamente responderem que a conheciam apenas “de vista” na senda do propósito de desconsiderar o papel que aquela teve na vida do arguido – pois esteve com ela no dia em que o sobrinho foi sujeito a primeiro interrogatório judicial em Penafiel (e não quando esteve detido no Posto, daí que, ao ser confrontado com as fotos de folhas 6 a 12, ter respondido que a assistente não se apresentou, naquela ocasião, com essa roupa nem tinha qualquer marca). Afirmou, a esse propósito, que, naquela ocasião, não viu “nada de especial” (sic), fazendo apenas alusão ao facto de ter sido abordado pela assistente, afirmando esta que o arguido não lhe tinha batido e que não lhe tinha feito “mal nenhum” (sic). Instado para esclarecer como é que a assistente sabia quem ele era e como se apresentou a ele, respondeu, de modo claramente comprometido, que a assistente se identificou como amiga do arguido, sendo certo que, ao admitir que ela ali chegou juntamente com o cunhado da testemunha (pai do arguido), acabou também por dizer que o arguido já lhe tinha “falado da BB” (sic), logo, “sabia quem era a BB, porque o AA lhe tinha falado” (sic), ao ponto de, perante as insistências que lhe foram feitas para esclarecer que tipo de relação existia entre ambos, afirmou, notoriamente enervado, que não prestava mais declarações, acabando por as prestar, depois de advertido de que era obrigado a fazê-lo, pouco mais acrescentando, porém, a não ser frisar que a assistente lhe manifestou, naquela ocasião, que não queria que o sobrinho fosse preso e que inclusivamente lhe deu boleia, levando-a a casa dela.

Na mesma senda depôs XX, amigo do pai do arguido, o qual disse que aquele lhe ligou a dizer que o filho tinha sido detido e estava no Tribunal em Penafiel, onde se dirigiu de imediato, ali encontrando uma “senhora com o filho ao colo” (sic), a chorar que queria falar com o juiz porque o arguido não lhe tinha feito nada, senhora essa que até aí nem sequer conhecia, mas depois veio a saber que era a senhora que o arguido “supostamente tinha agredido” (sic), segundo o que lhe foi transmitido pelo pai do arguido.

Outrossim, DD também se identificou como amigo do pai do arguido. Prontamente respondeu (e de tal forma que evidenciou tratar-se de um discurso previamente preparado e ensaiado, aliás à semelhança das quatro anteriores testemunhas) que era proprietário de dois stands, um na Maia e outro no Porto e que precisou levar umas coisas do primeiro para o segundo e por isso pediu ao pai do arguido para lhe fazer essa mudança, tendo ficado combinado para o dia 25 de abril, mas como “o AA disse que já tinha coisas combinadas” (sic) passaram para o sábado seguinte, às 10 horas (data essa da qual se recordava porque entretanto o pai do arguido falou com ele para vir depor e chegaram à conclusão de que tinha sido nesse dia 29, o que nos leva a dizer que, caso o pai do arguido lhe tivesse dito outra data qualquer, a testemunha também iria anuir a isso). Disse que ali estiveram, desde essa hora e até depois do jantar, o arguido, o AA e o CC, além da própria testemunha que, entretanto, se ausentou para se deslocar até ao stand do Porto, para onde iam ser transportados os móveis. De todo o modo, sempre que ligava ao pai do arguido para ver como estava a decorrer a mudança, conseguiu ouvir a voz do próprio arguido (dessa forma, podendo atestar que o arguido dali não saiu), além de terem almoçado e jantado todos juntos, após o que, por volta das 21 horas, foram embora. Mais disse que não pagou nada por este serviço e por isso até ofereceu-lhes uma mesa de bilhar que ali tinha, como recompensa. Também disse que não foi emitida guia de transporte, porque foi “um favor” (sic).

EE, corretora de seguros e amiga de escola do arguido, prontamente quis passar a ideia de que conhecia muito bem a vida dele, tendo-o acompanhado no episódio trágico da morte da mãe e depois no acidente de viação, que colocou a sua então namorada (PP, a qual era também sua amiga e que nunca se queixou do arguido) num estado vegetativo. Aliás, a esse propósito, afirmou que o arguido “nunca mais foi igual” (sic), passando a ter lapsos de memória e a beber mais. Passou então a descrever [num discurso claramente ensaiado, dada a forma forçada e descritiva como foi narrando cada um dos factos – veja-se que, não se recordando da data em que tal supostamente ocorreu, lembrava-se, no entanto, que tinha sido num sábado, porque tinha ligado ao arguido para irem fumar juntos, durante a tarde, mas como ele estava a trabalhar, combinaram esse encontro à noite, tanto mais que apenas isso a essa festa ao sábado, mas curiosamente nem sequer se lembrava do cantor que lá tinha ido atuar nessa noite, porque “não esteve atenta a isso” (sic)] que aquando da realização da festa do ..., a qual decorria em plena vila, a rua não era fechada ao trânsito, mas este fazia-se de uma forma mais lenta – por se circular quase parado, indo ao pormenor de dizer que, por isso, demorava mais de 20 minutos a fazer aquele pequeno percurso), acrescentando que, no ano passado, no dia dessa festa, o arguido foi jantar a casa dos seus pais, onde chegou por volta das 20 horas. Entretanto, ligou-lhe a FF, a qual, juntamente com outra amiga, a YY, foram ter com eles a casa dos seus pais. Como a FF estava muito nervosa, para a acalmarem, resolveram ir à tal festa popular, o que sucedeu por volta das 22 horas, tendo ali permanecido, todos juntos, até por volta da 01 hora. No que toca à assistente, afirmou que só a viu uma vez e que nunca lhe foi apresentada como namorada do arguido, pois namorada só lhe tinha conhecido a PP, sendo certo que, confrontada com o nome da vítima do processo que ditou a prévia condenação do arguido como autor de um crime de violência doméstica, disse que também nunca a conheceu e que foi um “choque” para a testemunha quando soube desse julgamento. Em contrapartida, disse saber quem era o OO, mais conhecido por “ZZ” por ser amigo do arguido.

O depoimento da FF não destoou muito do da testemunha anterior, aliás, nem podia, porque à semelhança daquele, também foi evidente o seu prévio ensaio. Após confirmar ser amiga do arguido há mais de 15 anos e conhecer a assistente porque lhe comprou roupa, também disse que foi a primeira a chegar ao carro onde seguia o arguido e a PP, quando estes sofreram o acidente, assinalando que esse evento mudou o seu amigo, tornando-o mais stressado e irritado, além de ter começado a beber muito. Passou logo a descrever que, no ano passado, na altura da festa de ..., num sábado (recordando-se que se tratava de um sábado porque estava a passar por problemas pessoais (com o namorado, que tinha saído de casa, dizendo-lhe que ia apenas jantar com os amigos e depois não voltou e foi a uma festa com os amigos, ficando bastante encabulada e nervosa quando instada pelo Tribunal no sentido de tal explicação não ter qualquer lógica, porque, na sua versão, o namorado tinha saído para jantar e porque entretanto não tinha voltado, ela veio a saber da tal festa, pelo que não podia ter ido para casa da EE antes de saber se o namorado voltava ou não, ou seja, tinha de ficar a aguardar pela sua chegada, respondendo então que afinal não tinha esperado que ele voltasse, porque os amigos dele a avisaram e resolveu distrair-se e também ir ter com as suas amigas), estava grávida de 7 meses, de gémeos, os quais nasceram antes do tempo, mais concretamente em ../../...., e por isso ligou à YY e à EE, tendo combinado passar em casa desta última, nesse dia. A YY foi buscá-la a casa, depois do jantar e seguiram para casa da EE, onde já ali estava o arguido e resolveram ir os quatro à tal festa. Para tanto, foram os quatro num Mini ... (sendo notório que se trata de um carro pequeno e de três portas, seguindo a testemunha – grávida de sete meses – no lugar traseiro. Afirmou que “viram o cantor (o AAA) e o jogo e depois vieram embora” (sic), tendo sido a YY que a levá-la a casa, antes porém tendo deixado o arguido em casa do pai dele. Esteve sempre com o arguido, o qual não estava alcoolizado. A instâncias do Ministério Público respondeu nada saber acerca das relações do arguido com as mulheres, porque apenas conviveu com a PP, com a qual aquele sempre teve uma excelente relação, mais dizendo que “não quis conhecer a outra namorada (sic) que ele teve enquanto esteve internado no hospital. Pese embora aos costumes ter respondido que conhecia a assistente por lhe ter comprado roupa, depois acabou por dizer que a viu uma vez com o arguido, mais concretamente em maio, durante umas festas populares. Mais uma vez com bastante embaraço, pese embora inicialmente ter respondido que o arguido a apresentou como sendo amiga dele, depois admitiu que se “constou que podia andar com ela” (sic), sendo que, instada para explicar o que significava isso, reconheceu que já o tinha visto com ela noutras situações e que a YY e a EE lhe disseram precisamente isso (o que não deixa de ser, no mínimo, curioso, pois a EE não disse nada disso ao Tribunal quando foi questionada sobre o tipo de relação que existia entre aqueles dois).

BBB, também amigo do arguido e apenas conhecer “de vista” a assistente, veio contar que no dia da detenção do arguido, almoçou com ele e passaram a tarde no café e depois foi levá-lo ao apartamento que ele tinha “para ter a sua vida privada” pois, no mais, vivia em casa do pai, o que fez para que aquele ali fosse buscar o seu jipe. Deixou-o ali ficar e foi embora, mas cerca de cinco minutos depois, ligou-lhe o pai do arguido a perguntar-lhe pelo filho, tendo voltado para trás e deparando-se com o pai e a tia do arguido, porque este já tinha sido levado pela G.N.R. versão que manteve, ainda que manifestando nervosismo, quando confrontado pelo Ministério Público quanto à impossibilidade de o arguido apenas ter estado aqueles breves minutos naquele apartamento, atendendo à circunstância de alguém ter chamado a G.N.R., o tempo necessário para a patrulha ali se deslocar, assim como o tempo necessário para proceder à detenção do arguido e depois levá-lo do local, circunstancialismo esse vertido no respetivo auto de notícia que, nessa sequência, foi elaborado e deu origem aos presentes autos. Também de forma evasiva e embaraçada, mas sobretudo referindo-se à assistente com evidente menosprezo, disse que o arguido teve “um caso com a BB” (sic), segundo o que lhe foi contado por aquele e que se encontrava com ela naquele apartamento, mas ela foi ali ficando, tanto que o arguido queria que ela saísse dali, porque estava “tudo acabado”. Aliás, disse também que o arguido a tinha ali metido porque ela tinha o menino e, caso contrário, a C.P.C.J. iria retirar-lhe a guarda. Frisou que o arguido “só tinha interesse sexual nela” (sic) e que aquele apartamento (onde esteve também mais de 200 vezes) era o “spot” (sic) deles para encontros com as amigas (tais como a CCC e a YY) e que, segundo o arguido, a assistente “era um bagaço” (sic), isto é apenas para o desenrasque. Mas curiosamente acabou por afirmar que a assistente viveu no apartamento com o menino, acrescentando que foi apenas um favor que o arguido lhe fez, o que não deixa de ser curioso que o arguido fizesse esse favor, quando ela era, segundo a testemunha, um mero “bagaço”.

No que toca ao depoimento da testemunha PP, a qual se identificou como prima do arguido, a mesma apenas se reportou ao sucedido aquando da realização do primeiro interrogatório do arguido. Disse a esse propósito que foi ao Tribunal com o seu pai, o XX, onde encontrou o pai do arguido e a assistente, juntamente com o filho. Disse não saber se ela era namorada ou não do primo, reconhecendo que a mesma (e o filho) ficava a dormir em casa dele e que até passava a roupa dele a ferro. Só lhe conheceu, porém, uma namorada (a PP). Referiu ainda que naquela ocasião a assistente dizia-lhe que só queria abraçar o arguido e que não tinha sido ela a chamar a G.N.R. e que estava a passar a ferro e do nada começou a sangrar, tendo sido um vizinho a chamar a autoridade, porque tinha ouvido a discussão entre eles, sem que na altura lhe tivesse também dito que o arguido lhe tinha batido. Mais disse que o seu pai deu boleia à assistente e que o menino só chorava porque queria o arguido, a quem aquele se reportava como “vida” (sic), acabando por reconhecer que havia confiança entre o menino e o arguido, o que só poderia suceder porque este manteve um relacionamento com a mãe, aqui assistente, tanto mais que, nesse dia, teve de ir ao apartamento do arguido buscar-lhe roupa e viu lá roupa que pertencia à assistente e ao filho, além de também os ter visto juntos, uma vez, antes desse episódio, no parque em Paços de Ferreira.

DDD, conhecida também pela alcunha “CCC”, como a própria admitiu, começou por dizer “conhecer muito bem o AA e a D. BB” desde que o filho desta era um bebé. Disse ter mantido uma “relação aberta” (sic) com o arguido durante um ano e seis meses, desde julho de 2021 (conheceu-o numa discoteca) e durante esse período “havia sempre fogo” (sic) e, por isso, encontravam-se, cerca de três a quatro vezes por semana, no apartamento dele, onde dormia (ao fim de semana, também, mas apenas de 15 em 15 dias, quando não tinha os filhos com ela) o que sucedeu até dezembro de 2022, altura em que ela arranjou outra pessoa e depois em fevereiro de 2023 descobriu que a sua “grande amiga BB andava com ele” (sic) (uma amiga da testemunha ligou-lhe a dizer que os tinha visto juntos no shopping de Paços de Ferreira). Acrescentou que o apartamento servia de ponto de encontro dela, do arguido, da amiga EEE e do BBB. Foi notório o desdém com que se reportou à assistente, com quem aliás se encontrava de relações cortadas, até manifestando um certo gozo ao afirmar que, na semana anterior à detenção do arguido, tinha estado com ele e que a assistente nunca morou na casa do arguido, pois só ali ficava porque aquele apenas lhe deu um abrigo para ficar com o filho, não sabendo dizer por quanto tempo, mas como o arguido era “muito boa pessoa” deixou-a ali ficar, tanto que, por vezes, queria ir ter com o arguido ao apartamento (com quem entretanto tinha reatado a relação) e tal não sucedeu, porque a BB lá estava. Confrontada com os prints de folhas 951 a 953, admitiu que o perfil “...” lhe pertencia e que as fotos eram suas, assim como a expressão “além das grades” que ali usava era alusiva à prisão do arguido, com quem nunca mais falou desde que foi preso. No tocante aos prints de folhas 954 a 957, com os quais foi confrontada, uma vez mais, com ar de troça, se é permitida a expressão mais comum, admitiu que teve essa troca de mensagens com a assistente (embora ali faltassem mensagens), porque esta se aproximou dela, depois do arguido ser preso, mas foi uma conversa “feita” para ver se a apanhava e, por isso, foi-lhe dando as respostas que ela queria ouvir, para ver “se ela caia na armadilha” (sic), para poder ajudar o arguido, até porque já sabia que era a assistente que usava as redes sociais do arguido e que inclusivamente fazia telefonemas através daqueles números, explicação essa que, contudo, até pela forma jocosa como respondia, pelos olhares que fazia e a postura desafiadora que assumiu, não logrou merecer qualquer crédito. Negou que tivesse ido visitar o arguido à prisão [pois não “tinha tempo” (sic)], assim como negou que este alguma vez a tivesse contactado desde então, pese embora, quando confrontada com o teor de folhas 955, acabou por afirmar que gravou o nome “...”, embora a foto não pertencesse ao arguido). Revelou não saber que o arguido tinha mantido uma relação com uma rapariga chamada JJ e que inclusivamente tinha sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica perpetrado na pessoa daquela. Negou que já tivesse sido agredida pelo arguido e, uma vez mais, aquilo que disse à assistente, foi tão somente para lhe montar a tal armadilha, porque “toda a gente sabe que a D. BB se vende por dinheiro” (sic) e como o arguido cansou-se de lhe dar dinheiro, ela apresentou queixa, talqualmente já tinha sucedido com o ex-companheiro dela que também deixou de a manter. Mais disse que a assistente era massagista, o que começou a fazer desde que o arguido foi preso, desconhecendo como teve dinheiro para abrir um salão desse género.

Finalmente, a testemunha FFF, arrolada ao abrigo do disposto no artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em face das informações prestadas pela operadora A..., com 84 anos, viúvo e a viver sozinho na morada indicada nessas informações, disse conhecer a assistente e apenas ter visto uma vez o aqui arguido. Disse conhecer a assistente desde que ela andava na escola porque foi companheiro da mãe dela, há mais de 10 anos atrás. Instado para identificar o seu número de telefone da sua residência, não soube dizer, porque nunca o utilizava, ao contrário do seu número de telemóvel, que reconheceu, como sendo ....... Disse morar sozinho e que ninguém frequentava a sua casa (a não ser a sua filha, que tinha as chaves), muito menos a assistente, embora mantivesse contacto com esta última, porque ela sempre o procurou quando precisava de ajuda. Negou que lhe tivesse telefonado a ameaçá-la ou a rir-se dela, não sabendo assim explicar como é que o número de telefone registado em seu nome apareceu associado a estes autos. Acrescentou que chegou a ver a assistente com o olho negro e que ela lhe disse que tinha sido agredida pelo arguido, o qual, uma ocasião, foi falar com a testemunha, quando se cruzaram na rua. Por fim, afirmou que a assistente não sabia qual era o seu número de telemóvel porque, quando aquela precisava da sua ajuda, era a mãe dela que lhe telefonava.

Pois bem.

Salientando-se que neste tipo de criminalidade como o é a violência doméstica, deve ter-se em linha de conta que as declarações das vítimas (quando as mesmas optam por prestar depoimento) merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos e psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio comum, muitas vezes sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em intrometer-se na vida privada dum casal, a que acresce o facto de, também neste tipo de criminalidade e vítima, existir uma outra nuance, derivada do facto de, normalmente, estes episódios se prolongarem no tempo e de forma reiterada, com a prática de factos muito semelhantes e repetidos, tornando-se assim extremamente difícil, do ponto de vista da vítima ou de quem presenciou alguns desses acontecimentos, concretizar o preciso momento em que os mesmos ocorreram e, ainda que seja capaz de os localizar temporalmente, o modo específico como sucederam (isto é, quais as concretas expressões proferidas, que tipo de agressões foram infligidas, se murros, bofetadas, pontapés, etc.), daí que, do ponto de vista do julgador, se mostre essencial uma ponderação acrescida deste tipo de depoimentos, de forma a discernir se as normais imprecisões que lhe estão associadas são explicadas precisamente por esse motivo ou, ao invés, se decorrem da sua eventual falta de credibilidade, associada, normalmente, a situações de vingança ou retaliação decorrente de uma relação amorosa mal sucedida, então, o caso em apreço tornou-se ainda mais peculiar (aliás, o próprio número de testemunhas e prova produzida, no seu conjunto, é disso bem revelador) porquanto o tribunal, além daquelas especificidades ditas normais de qualquer processo de violência doméstica, confrontou-se, ainda com outros dois fatores de extrema importância.

Primeiro, porque a assistente claramente deu sinais de, no decurso da relação mantida com o arguido e, sobretudo, já depois deste ter sido detido, ter seguramente experienciado algo próximo ao denominado “síndrome de Estocolmo” - caraterizado por um estado psicológico de intimidação, violência ou abuso em que a vítima é submetida por seu agressor, porém, ao invés de repulsa, ela cria simpatia ou até mesmo um laço emocional forte de amizade ou amor por ele – pois só assim se explica que, perante o sucedido no primeiro episódio, tivesse aceitado entrar no carro e desculpabilizar o arguido, face às desculpas por este apresentadas; no segundo episódio tivesse aceitado regressar a casa do arguido, depois de ter ficado alguns dias na casa da sua mãe e no último episódio que, perante a gravidade daquela agressão, nem sequer tivesse sido ela a chamar a G.N.R. e, mais, que ainda tivesse ido para o Tribunal, aquando da realização do primeiro interrogatório judicial do arguido, ali se desculpabilizando-se na presença dos seus familiares e com promessas de que não lhe queria mal, que não queria que fosse preso, quase como se fosse ela a agressora e não a vítima, ela própria desprezando-se perante aqueles, receosa também de sofrer represálias, mas sobretudo com “pena” do seu agressor, a quem apodou de um “doce” quando não estava sob a influência de drogas ou álcool. Também só assim se explica o facto de a mesma, em dezembro, ter pedido autorização no Estabelecimento Prisional para visitar o arguido [folhas 946 e 946-verso – cópia do pedido de emissão do cartão de visita da assistente], sem que nunca o tivesse feito (vide folhas 864 a 867, relativo à cópia da decisão tomada pelo Estabelecimento Prisional no âmbito do procedimento disciplinar instaurado contra o arguido, dando conta de que este nunca foi por ela visitado). Só assim se explica, de igual modo, que a mesma tivesse remetido ao pai do arguido as mensagens retratadas a folhas 944-verso e 945 e inclusivamente tivesse apresentado a declaração por si assinada, constante de folhas 360 e 361, datada de 04 de dezembro de 2023, sobretudo se tivermos em linha de conta de que a assistente, nesse período, apresentava um quadro psiquiátrico descontrolado – vide declaração médica de folhas 583 – o que é compatível com estes recuos que a mesma evidenciou no sentido de viver um estado de ansiedade e desorientação, ao ponto de querer perdoar o arguido, “dando o dito pelo não dito”, como de resto já o tinha feito no âmbito do processo n.º 331/23.1GAPFR, que teve origem no auto de notícia relativo ao episódio ocorrido no dia 28 de maio de 2023, às 00 horas e 30 minutos, na casa da mãe da assistente, onde se deslocou a G.N.R. para tomar conta da ocorrência e o qual foi arquivado, embora condicionalmente (vide folhas 204 e 205), ou seja, sem prejuízo da sua reabertura (como efetivamente sucedeu, ao serem levados tais factos ao libelo acusatório proferido neste processo), pois que, quando ali foi ouvida, declarou não pretender prestar declarações, arrastando seguramente a sua mãe, que ali também era testemunha, a ali dizer que nada tinha sucedido, por forma a obter o arquivamento daquele inquérito, como veio a efetivamente suceder. Aliás, o facto de ter rejeitado inicialmente apoio psicológico, conforme folhas 143, também é revelador dessa desorientação, sendo certo que, ao procurar apoio médico, passando a tomar a medicação adequada, seguramente que passou a encarar este processo de uma outra forma, além de que também passou a ter aconselhamento jurídico, tanto que, a folhas 386, veio requerer a sua constituição como assistente e, em 22 de janeiro de 2024 – vide auto de folhas 444 – foi novamente ouvida no âmbito destes autos, reafirmando a sua intenção de prosseguir com os mesmos e desde então nunca mais claudicou.

E note-se que esta explicação para a atuação da arguida não é só porque o Tribunal fez fé nas suas declarações, dada a forma como as prestou, mas sobretudo porque as mesmas se mostraram objetivamente corroboradas por elementos probatórios seguros, objetivos e isentos, nos moldes que infra se explicará, mesmo que, e agora olhando para o segundo fator peculiar neste processo (embora provavelmente ligado àquele primeiro, precisamente por a assistente também ter experienciado, na primeira pessoa, essa repulsa dos familiares/amigos do arguido), o qual tem que ver com o facto de, quer o arguido, quer todos os seus amigos e familiares aqui arrolados como testemunhas, não terem manifestado qualquer pejo em, por um lado, desprezar o papel daquela vítima, que apodaram, ainda que implicitamente (à exceção da testemunha DDD, que claramente zangada por a assistente lhe ter tomado o lugar, afirmou que a assistente vendia-se por dinheiro), de oportunista e interesseira, com vista a passar a ideia de que era tudo uma invenção para extorquir dinheiro ao arguido (ou melhor ao pai deste) e, por outro, para alcançar tal desiderato, adotarem discursos claramente orquestrados para criar um alibi no sentido de colocar o arguido num outro local, no dia e hora, da ocorrência dos factos que lhe eram imputados pelo libelo acusatório.

Veja-se que, quanto ao primeiro episódio, a assistente esclareceu-o, de forma segura, espontânea e natural, inclusivamente não sabendo precisar a data em que o mesmo ocorreu, mas situando-o seguramente entre o dia 27 e 29 de abril de 2023. É verdade que, nessa altura, a assistente não apresentou queixa e que, a não ser o filho dela, que seguia na cadeirinha, ninguém assistiu, pelo que, à partida, seria a sua palavra contra a do arguido, o qual, como vimos, negou o sucedido. Mas não só, indicou as sobreditas testemunhas CC e DD que vieram afirmar que no dia 29 de abril o arguido passou o dia todo no Porto e na Maia, a fazer uma mudança a pedido deste segundo.

Dada a forma forçada e ensaiada como depuseram, desde logo pelo motivo que indicaram para se recordarem, com tanto rigor, desse dia e data, além da preocupação de não deixarem qualquer “ponta solta” no sentido de colocar o arguido longe da assistente, durante todo aquele dia (veja-se que não havia qualquer tipo de comprovativo do suposto serviço que foi prestado, porque se trataria de um mero “favor” recompensado, porém, com o almoço e jantar que aquela testemunha lhes pagou e a entrega de uma mesa de bilhar), levou a que o tribunal não lhes atribuísse qualquer credibilidade, dando-a ao invés à assistente que, de modo vivencial e emotivo, relatou aquilo que sucedeu nesse episódio, ademais juntando uma foto que na altura tirou à sua testa – e que juntou aos autos a folhas 46 – demonstrativa do hematoma com que ficou derivado da cabeçada que lhe foi desferida pelo arguido.

Relativamente ao segundo episódio, pese embora o esforço das testemunhas CC, EE e FF e, em particular, da testemunha OO, que inclusivamente optou por prejudicar-se para evitar ter de dizer aquilo que bem sabia que iria incriminar o arguido, preferindo ter um procedimento criminal contra ele instaurado, do que ter de depor (é indescritível a cara de pânico desta testemunha quando confrontada com o tribunal – depois de dizer que não iria falar – com o facto de a mesma não se poder recusar a depor, a menos que pretendesse cometer um crime de recusa de depoimento), mas também da EE e da FF, as quais em nome da amizade que tinham para com o arguido e com o fito de obter a sua absolvição e libertação, vieram aqui contar uma história claramente ensaiada (veja-se que a EE lembrava-se do dia porque tinha telefonado ao arguido para irem fumar, mas ele não podia e por isso combinaram um jantar e a FF porque, embora grávida de sete meses e de gémeos, zangou-se com o namorado e para se distrair, ligou às amigas e depois foi para uma festa popular) precisamente para criarem um alibi ao arguido, de modo a justificar que o mesmo não poderia ter estado, naquele dia, no apartamento dele com a assistente, nem depois na casa da mãe desta, perpetrando aquelas agressões.

Ora, e uma vez mais, a assistente descreveu, com total naturalidade e sem exageros, aquilo que aconteceu nessa ocasião, relato esse que foi corroborado pela testemunha JJ, a qual, sem querer dizer mais do que aquilo que efetivamente viu e assistiu, contou quando e como a assistente lhe ligou, na sequência do que a levou a casa da testemunha e depois a casa da mãe daquela, nada mais tendo assistido, a não ser ao facto de ter ouvido as mensagens que o arguido entretanto lhe mandou e se ter cruzado com a viatura daquele, seguindo no seu interior o arguido e a testemunha OO, precisamente aquela que se recusou a depor. A testemunha SS também narrou, sem exageros, aquilo que viu e assistiu e se é certo que, naquele outro inquérito com o n.º 331/23.1GAFPR, essa testemunha não confirmou os factos ali denunciados (vide cópia do despacho de arquivamento junta a folhas 204 e 205), a verdade é que seguramente tal aconteceu porque lhe foi pedido pela própria filha, aqui assistente, pois, optando esta por na altura não prestar declarações, bem sabia que se a mãe falasse, iria incriminar o arguido, não possibilitando assim o arquivamento daquele inquérito, como efetivamente veio a suceder e foi na altura a sua pretensão, para o proteger, até porque, conforme referiu a testemunha SS, poucos dias depois a assistente perdoou o arguido e voltou a estar com ele.

Mas mesmo que alguma dúvida se tivesse suscitado quanto à fidedignidade do depoimento desta testemunha SS, a verdade é que este, assim como o da assistente, foi inteiramente corroborado pelo depoimento sério, isento, objetivo e imparcial, da testemunha KK, a qual, não tendo qualquer interesse no desfecho dos autos, contou espontaneamente aquilo que viu e ouviu, o que fez de forma coincidente com o relato daquelas duas, e se é certo que não logrou identificar o arguido, não teve qualquer dúvida em dizer que, na altura, foi-lhe dito que se tratava do namorado da assistente, o qual estava acompanhado por um amigo, logo, ligando ao que foi dito pela assistente, pela SS e pela JJ, dúvidas não se suscitaram quanto à sua identificação como sendo o arguido, acompanhado pela testemunha OO.

Além disso, se efetivamente esse episódio não tivesse ocorrido (e não teria ocorrido, segundo as testemunhas EE e FF, porque o arguido esteve sempre na companhia daquelas duas, na tal festa, onde também foi avistado pela testemunha CC), então como explicar que a G.N.R. tivesse sido chamada ao local, nesse dia 28 de maio de 2023, às 00 horas e 30 minutos, como de resto disso é claramente demonstrativo o teor do auto de notícia de folhas 147 a 152, o qual deu origem ao referido inquérito n.º 331/23.1GAPFR, pelo que, tudo aquilo que as sobreditas testemunhas arroladas pela defesa do arguido vieram afirmar a este propósito, assim como o teor dos documentos de folhas 943, 943-verso, 944, 948 a 959, não tiveram o condão de abalar a convicção do tribunal no sentido de que os factos ocorreram naquela ocasião (ou seja, no dia 27 de maio de 2023, prolongando-se até pouco depois da meia do dia seguinte, já que a G.N.R. quando ali chegou, às 00 horas e 30 minuto, já ali não encontrou o aqui arguido) como o relatou a assistente e foi corroborado, conforme vimos, pelos depoimentos das testemunhas SS, JJ e KK. Anote-se que a assistente e a JJ fizeram alusão ao facto de, nesse dia, ter jogado o ... e inclusivamente ter festejado a vitória do campeonato, sendo certo que é do conhecimento público que, efetivamente, o ..., nesse dia 27, jogou, às 18 horas, com o ..., no Estádio ..., tendo vencido o jogo 3-0 e festejado a conquista do 34.º campeonato nacional.

No tocante ao último episódio, que culminou com a detenção do arguido, não só a assistente, uma vez mais, narrou-o de forma escorreita e vivencial, inclusivamente dizendo que, nessa ocasião, o seu filho não estava no apartamento, como a testemunha QQ, na qualidade de militar da G.N.R., asseverou que se deslocou ao local, na sequência de uma denúncia anónima, e quando ali chegou ainda ouviu o arguido a insultar a assistente (logrando identificá-los como tal, porque eram os únicos que se encontravam no interior do apartamento, onde depois tocou à companhia), deparando-se nessa sequência com o arguido (o qual deteve e sujeitou a exame de pesquisa de álcool – cfr. folhas 5 e 25) e a assistente, a qual apresentava sinais claros de ter sido fisicamente agredida, como de resto exarou no auto de notícia que elaborou e que deu origem a estes autos, constante de folhas 2 a 4 e, em particular, o facto dela estar a sangrar do nariz, com marcas no pescoço, o olho direito negro, braços com hematomas e trajando uma camisola branca com sangue, tudo como também ficou retratado nas fotografias que lhe tirou quer no local – cfr. folhas 6 a 12 – quer depois já no interior do Posto – cfr. folhas 35 a 40 – tendo aquela necessitado de receber assistência médica, dando entrada no Centro Hospitalar ..., E.P.E., nesse dia, às 22h:06m:43s (o que só ocorreu a essa hora, porque previamente foi levada para o Posto, para recolha da prova fotográfica, conforme folhas 35 a 40), onde lhe foram detetadas as seguintes lesões: escoriações dispersas não braço esquerdo e região cervical direita, equimoses e hematoma supra-orbitrário no olho direito, tudo conforme registos clínicos referentes ao episódio de urgência, juntos a folhas 168 a 169.

É caso para dizer, então, isto também foi tudo inventado? Curiosamente, a este propósito, não foi apresentada nenhuma testemunha pela defesa do arguido que viesse atestar que, naquele dia e hora, este estava num outro local (como de resto sucedeu, como vimos, com aqueles dois outros episódios), mas ainda assim foi apresentada a testemunha BBB, a qual quis passar a ideia (quase anedótica, não fora a gravidade da situação) de dizer que deixou o arguido no apartamento, pois tinham estado a almoçar e a confraternizar durante a tarde e passado cinco minutos recebeu o telefonema do pai do arguido a dizer que aquele já tinha sido detido. Obviamente que não se atribuiu qualquer crédito a esse depoimento, porque frontalmente contrariado, não só pelas declarações da assistente, mas também pelo depoimento da testemunha QQ e pelo teor do respetivo expediente por este elaborado na sequência da ida da patrulha da G.N.R. ao local, da qual aquele fazia parte e que foi chamada, não pela assistente (porque mais uma vez quis “proteger” o arguido), mas sim por alguém que não se identificou, mas que seguramente teve de ser um vizinho que deu conta do barulho.

Inócuos também se mostraram, face ao ora exposto, os depoimentos das testemunhas VV, WW, XX e PP, ao pretenderem passar a ideia de que, quando viram a assistente ou no Posto da G.N.R. ou no Tribunal, aquando da realização do primeiro interrogatório, não viram qualquer lesão física – para assim confirmarem que o arguido não a tinha agredido – precisamente porque o depoimento da testemunha QQ contrariou essa versão, assim como os referidos registos clínicos referentes à admissão da assistente no Centro Hospitalar são demonstrativos das lesões que aquela apresentava, sem olvidarmos, ainda, o teor das próprias fotos tiradas pelo referido Sr.º Militar da G.N.R. logo após o sucedido.

O mesmo se diga, quanto a estes depoimentos, daquilo que também afirmaram no sentido de que a assistente estava, nessas duas ocasiões que respetivamente a viram, muito chorosa e com pena do arguido, pois que, na senda daquilo que dissemos supra, seguramente que a assistente, não tendo sido ela a chamar a G.N.R., também provavelmente, caso não tivesse alguém chamado, teria uma vez mais optado por não apresentar queixa e ter continuado a viver com o arguido, daí ter ido ao Tribunal, onde o arguido estava a ser ouvido depois de ser detido, para ver o que ainda podia fazer, sendo certo que, com receio de alguma represália, não iria adotar nenhuma atitude contra o arguido, estando todos aqueles familiares dele a rodeá-la, como de resto é perfeitamente compreensível neste tipo de situações. Aliás, neste tipo de processos, é muito comum, a vítima, mesmo quando apresenta queixa, quando são adotadas medidas de proteção com afastamento do agressor, depois, perdoe e volte a viver com aquele, ainda que o processo a que deu origem corra os seus ulteriores trâmites normais, sem que isso significa que os factos denunciados fossem falsos.

Tudo isto para dizer que nenhuma das aludidas testemunhas arroladas pela defesa do arguido, com o propósito de o colocar, em cada uma daquelas ocasiões, num outro local, de modo a que não pudesse ter praticado aqueles factos, logrou merecer credibilidade (aliás, o tom de voz e a forma de encarar o interlocutor, com (aparente) assertividade e facilidade de descrição, quando questionada pelo Ilustre Advogado do arguido e com visível desconforto quando confrontada pelo Tribunal, pelo Ministério Público ou pelo Ilustre Advogado da assistente, também foram sinais (ainda que apenas apreensíveis através da imediação da prova) dessa falta de naturalidade, isenção, imparcialidade e consequentemente veracidade dos respetivos relatos), não tendo por isso cada um deles, quer per se, quer concatenados entre si, logrado convencer este Tribunal da veracidade dos respetivos relatos, tendo, ao invés merecido total credibilidade as declarações da assistente, porque prestadas de forma coerente e dotada de lógica, pontuando o seu discurso com expressões “genuínas” de uma situação de aflição/vivência necessariamente experimentada e, sobretudo, sem exageros e com naturalidade, as quais, dessa forma, revelaram-se dignas de crédito, tanto mais que, conforme já se disse supra, foram prestadas numa altura em que nem sequer assumia a qualidade de assistente, nem de demandante, estando sujeita ao dever de dizer verdade, o que efetivamente cumpriu, mostrando-se o seu relato corroborado pelos já indicados depoimentos das testemunhas QQ, JJ, SS e KK, na estrita medida da razão de ciência que cada uma delas apresentou e pela prova documental supra aludida.

Sem prejuízo, contribuiu igualmente para a formação da convicção do Tribunal no sentido descrito, além dos já referidos documentos, o teor do(s): - auto de apreensão de folhas 41 e 42, - os autos de transcrição de folhas 48 a 54, - assentos de nascimento de folhas 61 a 64; - registo de nascimento do filho da assistente de folhas 65 e 66 (de cujo teor se extrai que o mesmo nasceu no dia ../../2021 e não no dia 21 de abril como vinha descrito na acusação).

Do mesmo modo, e no se refere ao episódio do dia 12 de agosto de 2023, valorou-se igualmente o teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito penal, de folhas 476 e 477, complementado com o de folhas 814/823/917 e 918. Diga-se, a este título, que, pese embora a defesa do arguido ter pretendido criar alguma confusão no sentido de que as lesões nele descritas terem por suporte uma outra agressão supostamente cometida em 2022 de que fora igualmente vítima a aqui assistente, a verdade é que, perante os esclarecimentos prestados, na audiência de julgamento, pelo seu subscritor, o Sr.º Perito Médico, Dr.º GGG, conjugado com o teor das fotos de folhas 6 a 12, 35 a 40, dos registos clínicos de folhas 168, 169 e 583, do pedido de remessa dos registos clínicos de folhas 480/482, com resposta a folhas 496 e 497, 578 e 579, o Tribunal não teve qualquer dúvida em considerar que as lesões ali descritas eram as apresentadas pela assistente no dia 12 de agosto de 2023, às 22h06m43s quando foi admitida no hospital, a fim de receber assistência médica por ter sido vítima da agressão perpetrada pelo arguido. De facto, o Sr.º Perito Médico admitiu que, burocraticamente, teria ocorrido um lapso na indicação do número interno do processo, que consequentemente ficou vertido no correspondente relatório (lapso ao qual era alheio, porque era da competência dos serviços administrativos a indicação daqueles números internos, admitindo também que esse erro se tivesse ficado a dever ao facto de, em 2022, aquela mesma pessoa, a assistente, provavelmente ter sofrido um outra agressão que deu origem a um outro processo interno) mas de qualquer modo, as lesões que analisou e ali relatou foram precisamente aquelas que constavam do registo clínico da urgência efetuada no dia 12 de agosto de 2023, conjugada com a informação que depois recebeu do Centro de Saúde, quanto ao quadro psiquiátrico descontrolado que aquela evidenciava à data e que, por isso, fez exarar no relatório final (ou seja, datado de 21 de junho de 2024). Ademais, e pese embora as insistências da defesa do arguido, a qual exibiu cada uma das fotos da assistente que se encontravam nos autos e inclusivamente questionou sobre a possibilidade daquela ter sangrado do nariz por causa do vapor do ferro, foi este Sr.º Perito Médico perentório em esclarecer que a sua análise não podia assentar em fotografias, mas sim nos registos clínicos que lhe foram exibidos e, ademais, no exame direto da vítima, no entanto, e ainda assim, não deixou de esclarecer aquilo que aparentemente lhe era possível extrair de cada uma das imagens exibidas (no que toca à contemporaneidade ou não da agressão), afirmando, em todo o caso, que “confiava mais naquilo que o colega do hospital” (sic) observou quando a assistente ali deu entrada e, como tal, exarou no respetivo registo clínico do que naquilo que era visível em cada uma das fotografias, tanto que só atribuiu nexo de causalidade às lesões observadas pelo colega do hospital. Referiu, por fim, não ter base científica para dizer que o vapor quente fazia sangrar o nariz, mas não deixando de evidenciar uma certa admiração pela questão colocada, tendo em conta aquilo que foi observado pelo seu colega aquando da admissão da assistente no hospital, por a mesma apresentar sinais de ter sido vítima de agressão e não de um qualquer “acidente doméstico” com o ferro.

Conciliando toda a prova acima enumerada, o tribunal não teve qualquer dúvida em considerar como provados os factos descritos nos pontos 1.º a 26.º supra, o mesmo já não sucedendo, porém, quanto aos factos descritos em a) a k) supra, os quais foram dados como não provados, porquanto ou a assistente os negou frontalmente ou então não os confirmou, em sede de declarações para memória futura, nem os mesmos foram corroborados pela prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, inexistindo, também prova documental ou outra a atestá-los, além de que também o próprio arguido expressamente negou-os.

Uma nota quanto ao tipo de relação assumida pelo arguido e pela assistente. Se é verdade que o primeiro caraterizou-a como fortuita e de cariz sexual, ao passo que a assistente referiu ter vivido uma relação amorosa séria e com coabitação com o arguido, a verdade é que, atendendo ao contexto em que a mesma se iniciou, à sua duração, ao facto de a assistente também ter um filho menor de outra relação que inclusivamente ficava aos cuidados da sua mãe, levou a que o Tribunal não a considerasse como sendo, à data, uma relação análoga à dos cônjuges (porque esta pressupunha um “plus” não confirmado pela própria assistente, nem pelas testemunhas JJ, SS e TT) – daí o facto dado como não provado em a) supra, mas também não a caraterizasse como meramente fortuita ou apenas de cariz sexual (como os amigos e familiares do arguido a catalogaram), mas sim como uma relação de namoro, com sentimentos de amor recíprocos, incluindo coabitação – daí o facto dado como provado em 1.º supra, como de resto o arguido deixou transparecer (quer ao admitir que a assistente dormia no seu apartamento, passava-lhe a roupa, tinha até as suas palavras passe das redes sociais, tinha o telemóvel do seu pai, do seu funcionário OO, que inclusivamente chegou a dar-lhe boleia, que festejasse os anos do filho dela no seu apartamento, que ali tivesse a sua roupa), assim como as próprias testemunhas CC, PP e XX o deixaram escapar, além da própria FF, a qual acabou mesmo por reconhecer que se constava que aqueles dois mantinham uma relação, não merecendo qualquer crédito aquilo que foi dito pelas testemunhas BBB e DDD a esse propósito, pois que, manifestamente em tom de “troça” pretenderam passar a ideia de que a assistente era apenas mais uma de muitas outras “amigas coloridas” do arguido.

Por outro lado, recorrendo ao teor do relatório social de folhas 420 a 422, do relatório pericial de psicologia, junto a folhas 528 a 531, 877 a 881, 883 a 887 e 909 a 913 e do relatório pericial de psiquiatria, junto a folhas 889 a 895/898 a 904, valendo cada um deles, in totum, como uma avaliação objetiva, isenta e especializada sobre a matéria analisada por cada um dos Sr.ºs Peritos Médicos que respetivamente os subscreveram (à luz do disposto no artigo 163.º, do Código de Processo Penal e 388.º, do Código Civil), o tribunal não ficou com qualquer dúvida quanto à imputabilidade do arguido e, em particular, à sua capacidade plena para, nas descritas ocasiões, ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo o que estava a fazer e a quem, querendo atuar desse modo, pese embora também conhecer o caráter ilícito e proibido dessa sua atuação. Na verdade, o teor do referido relatório de psicologia foi presencialmente esclarecido pela Dr.ª HHH, que o elaborou e que prestou esses esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, fazendo-o de uma forma completamente isenta, imparcial e esclarecedora, frisando que examinou o arguido, concluindo que o mesmo era uma pessoa imatura, com dificuldades em gerir os seus problemas e emoções, adotando, por via disso, comportamentos inadequados (potenciados pelo consumo do álcool e/drogas) não possuindo, porém, elementos para que pudesse afirmar se o mesmo padecia de alterações de personalidade ou se essas mudanças comportamentais foram provocadas pelo traumatismo craniano que aquele sofreu no acidente de viação, conclusão essa que, contudo, foi obtida através dos esclarecimentos prestados pelo Dr.º III, subscritor do aludido relatório de psiquiatria, o qual de modo completamente exemplar, concluiu no sentido de o arguido ter uma agressividade e falta de controlo de impulsos “que são dele” (sic), em resultado do traumatismo craniano que sofreu, precisamente por lhe ter afetado as áreas cerebrais que aumentam a probabilidade de agressividade nos seus comportamentos (não tem o “travão normal” (sic) que qualquer pessoa teria precisamente por causa do traumatismo que sofreu) e que, não sendo uma consequência necessária, pode ser potenciada pelo consumo de álcool e drogas, mais admitindo que, mantendo acompanhamento médico e abstinente quanto à ingestão dessas substâncias, o risco de o mesmo adotar comportamentos violentos ficava diminuído, mais acrescentando que o meio prisional não era, do ponto de vista médico, aconselhável para alcançar essa estabilização. Não teve qualquer hesitação em afirmar que o arguido era uma pessoa imputável, sabendo perfeitamente comportar-se e distinguir o bem e o mal, assim como tinha os meios e capacidades para resistir ao álcool e como tal tomar a decisão de não beber, mas depois de o fazer, ficava afetada a sua “noção crítica” (sic), sendo a natureza dos atos assumidos totalmente variável consoante o circunstancialismo exterior. Diga-se, igualmente, que o teor de tais relatórios e respetivas conclusões médico-periciais, a par dos esclarecimentos prestados nos moldes ora descritos, não foram minimamente contrariados pelo teor dos registos clínicos juntos a folhas 366 a 369, bem como do parecer clínico de folhas 487, 488, da declaração médica de folhas 580 e 597, dos pareceres médicos de folhas 802 a 806, 807 a 813 (estes sustentados em consultas efetuadas a pedido do arguido e a título particular, já na pendência destes autos) nem tão pouco pelo depoimento prestado pelo Dr.º HH, o qual se identificou como psiquiatra (no Hospital ...), esclarecendo, pois, que observou o arguido, a pedido do pai deste (que o procurou em abril de 2024, contando-lhe a história do arguido), e não a solicitação do Tribunal, mais explicando que o arguido teve duas fases, uma antes do acidente e outra depois do acidente, o qual lhe deixou várias sequelas, incluindo ao nível da memória, potenciado pelo consumo do álcool ao qual recorreu como “anestesia” pela angústia que passou depois desse evento traumático, reconhecendo, porém, que considerava o arguido imputável, além de ter total consciência de que o consumo do álcool e/ou droga o tornava uma pessoa “perigosa” (sic).

Pelo que, e sem olvidar que o tribunal, ao tomar as declarações do arguido em plena audiência de julgamento, não teve qualquer hesitação em concluir que o arguido tinha plena consciência do que fez (embora zero juízo crítico, já que negou todas as acusações), então, tudo conjugado entre si e tendo por referência a factualidade objetivamente descrita nos pontos 1.º a 25.º supra, foi possível chegar à demonstração do aspeto subjetivo da atuação do arguido, ponderando-se precisamente o seu iter criminis, ou seja, a ação objetivamente apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, da qual se extrai a intenção do mesmo, sendo certo que, face ao supra explanado, não foi produzida qualquer prova suscetível de contrariar tal entendimento, anotando-se, assim, que o arguido atuou da forma livre e consciente, não sendo o mesmo, na ocasião, inimputável nem tendo a sua imputabilidade diminuída designadamente por força da sua dependência alcoólica/de estupefacientes ou, ainda, derivado do traumatismo craniano que sofreu no acidente de viação de que foi vítima. De resto, e volta-se a frisar, atenta a forma como o arguido se expressou quando confrontado com cada um dos factos descritos na acusação e, pese embora os negar, foi reveladora de que o mesmo bem sabia o que fazia e fez, querendo atuar daquela concreta forma.

Conforme, aliás, se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 13 de outubro de 2010 “[é] frequente a prova do dolo produzir-se de uma forma indireta: o saber humano dispõe de certezas emergentes do id quod plerumque accidit [o que geralmente acontece] ou seja, de imposições da experiência comum que decorrem das especificidades do caso concreto e apoiam a objetividade da livre convicção do julgador”.

Também importa não esquecer a lição de CAVALEIRO FERREIRA quando ensinava que “(…) existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indireta como são todos os elementos de estrutura psicológica” o que é corroborado por MALATESTA quando refere que “(…) excetuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indiretas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se a concluir pela sua existência (...) afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material (...) o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas ações a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim”.

Ainda a propósito do elemento subjetivo em referência, também ditam as regras e as máximas da experiência que quem atua de acordo com as normas de uma sã convivência gregária sabe, e não pode ignorar, que tal conduta é prevista e punida por lei.

Pelo exposto, na sequência do descrito nos pontos 1.º a 25.º supra e da prova produzida a esse propósito, nos moldes que acabamos de referir, os factos mencionados em 27.º a 34.º supra não poderiam deixar de ser considerados como provados por reporte às regras da experiência comum, da lógica e do normal acontecer das coisas.

Quanto à não prova dos factos descritos em l) a r) supra e, porque umbilicalmente ligados a estes, os factos referidos em s) supra (reportado, portanto, aos supostos danos provocados por aqueles factos, que não se provaram) diga-se que a assistente, como é evidente, não os confirmou em sede de declarações para memória futura, pois que à data em que estas foram prestadas, supostamente aqueles ainda não tinham ocorrido. Não se considerou necessária, como vimos, a sua reinquirição em sede de julgamento a fim de lhe tomar declarações quanto a essa factualidade, precisamente porque, face ao teor da restante prova produzida, mesmo que a assistente viesse dizer que ficou “convencida” de que tinha sido o arguido a efetuar esses supostos telefonemas, tal não iria ser bastante para dar esses factos como provados. Desde logo, atente-se que os prints de folhas 448, 449, 450, 451, 453, 454 e 455 foram juntos pela assistente, logo, à partida extraídos do seu telemóvel e se é certo que neles são detetáveis vários números de telefone/telemóveis, já a identificação da suposta proveniência de cada um deles, foi dada pela própria assistente, ou seja, foi esta que, por exemplo, identificou o “...”, em circunstâncias e por motivos que se desconhece, tanto mais que a referida testemunha DDD, ainda que forma completamente nebulosa e evasiva, negou que esses contactos pertencessem ao arguido e que tivesse sido, através de algum deles, contactada por aquele, desde que o arguido foi detido, mais acrescentado que as mensagens cujos prints constavam de folhas 951 a 957 e 966 mais não eram do que uma armadilha que fizera à assistente para ver se a apanhava a mentir, para poder ajudar o arguido. Obtidas as informações prestadas pelas operadoras telefónicas, conforme folhas 975, 977, 978, 979, 980, 981 a 983, 994, 996 a 1000, além de não terem confirmado qualquer ligação desses números ao aqui arguido, permitiram identificar o titular do n.º ..., tratando-se de FFF, o qual, inquirido em sede de audiência de julgamento, veio dizer que conhecia muito bem a assistente, pois foi companheiro da mãe dela e que nunca lhe ligou daquele número, não conseguindo, porém, esclarecer como é que esse número aparecia nos registos telefónicos do telemóvel da assistente, não deixando, porém, de ser curioso que a assistente chegou a ligar para esse número, no dia 20 de janeiro de 2024, como se mostra documentado a folhas 999, pois que, segundo a informação prestada pela própria, a folhas 13, o seu n.º de telemóvel era o ....... Acresce dizer que o arguido negou perentoriamente que tivesse acesso a telemóveis, dentro da prisão, o que resto foi apurado em sede de procedimento disciplinar de que foi alvo e cuja decisão (cópia) consta de folhas 864 a 867, ali se concluindo não ter ficado demonstrado que tivesse ocorrido esse uso de telemóveis ou outros de meios de comunicação. E perante estes dados objetivos, claramente que aquilo que as testemunhas SS e TT disseram a propósito dos telefonemas que a assistente recebeu, quando estava na companhia delas, no parque, não se mostrou bastante para fazer prova de que tinha sido o arguido a efetuar esses contactos. Na verdade, nem uma nem outra identificou a voz do arguido, a primeira, porque não ouviu bem e a segunda, porque nem sequer conhecia a voz daquele, atestando apenas que tinha sido a assistente a afirmar que estava convencida de que tinha sido o arguido, o que, como é evidente, desprovido de qualquer outro suporte probatório, não foi suficiente para o Tribunal considerar como provados tais factos, razão pela qual, e em última instância, por força do denominado princípio do in dubio pro reo, foram dados como não provados.

Na verdade, “a situação de incerteza quanto à materialidade dos factos, resolve-se, não mediante o apelo a uma presunção de culpa, ainda que tão só natural ou simples, mas ao princípio “in dubio pro reo”, articulado com o princípio da presunção de inocência, do arguido acolhido no texto constitucional, o que conduz, necessariamente, à absolvição do réu”. Este princípio não constitui uma regra probatória em sentido próprio, uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre a credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, antes se reporta às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida.

O que significa que este princípio só deve ser aplicado quando os elementos probatórios, no seu conjunto, não foram suficientes para o julgador formar a sua convicção num sentido ou noutro, como refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de março de 2004.

A propósito da relação do princípio da livre apreciação da prova com o princípio in dubio pro reo, escreve JORGE FIGUEIREDO DIAS que “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo”, acrescentando que “as dúvidas relevantes para a operância do princípio in dubio pro reo são só as dúvidas razoáveis, aquelas que por uma via racionalizável o tribunal não logre afastar e para as quais subsistam razões”.

“[E]xistindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. Logo, a punição só pode ter lugar quando o julgador, face às provas produzidas, adquire a convicção da certeza da imputação feita ao acusado”.

Assim, a não prova dos aludidos factos resultou, em última instância, da atuação do princípio in dubio pro reo, princípio este radicado no princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o tribunal não logrou atingir o grau de certeza exigido para os considerar como provados, ficando assim, quanto a eles, muito aquém daquele nível necessário para, em consciência, se imputar a respetiva prática ao arguido tal como vinham descritos na acusação, o que culminou, como vimos, com a sua não demonstração.

Outrossim, considerando a factologia descrita nos pontos 1.º a 25.º supra, devidamente conciliada com as regras do normal acontecer e por apelo ao critério do homem médio e chamando aqui novamente à colação o que dissemos supra a propósito dos registos clínicos e relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito penal, o tribunal não teve qualquer dúvida em considerar como provados os factos mencionados em 35.º e 36.º supra, pois que, como é normal, dada a forma como a assistente foi agredida física e psicologicamente, a mesma sofreu dores nas zonas atingidas, tendo ficado com as lesões ali descritas, as quais, no entanto, não provocaram sequelas e ficaram curadas após oito dias, além de se sentir humilhada, receosa, ofendida na suja honra, com receio, ansiosa, nervosa, etc. Destarte, e também com base nesses mesmos elementos clínicos e relatório pericial, e porque em contradição com o teor daqueles, além de não terem sido confirmados por nenhum outro elemento probatório objetivo e inequívoco, foram dados como não provados os factos mencionados em t) a w) supra, precisamente porque, como vimos, a assistente não sofreu qualquer sequela/consequências permanentes (aquilo que a testemunha TT afirmou a esse propósito, de modo claramente exagerado, não encontrou suporte naquele relatório pericial, prevalecendo, logicamente, este em detrimento daquilo que por aquela foi dito) logo não ficou impossibilitada para trabalhar e, consequentemente, também não perdeu qualquer rendimento por força da atuação do arguido (tanto mais que nem sequer foi feita qualquer prova documental (por exemplo, cópia de contrato de trabalho, declaração à Segurança Social, recibo de vencimento, etc.) de que, à data, a assistente desempenhava alguma atividade profissional.

Por outra banda, para dar como provados os factos elencados em 37.º e 38.º supra, o tribunal atendeu ao teor dos já referidos relatórios periciais de psicologia, junto a folhas 528 a 531, 877 a 881, 883 a 887 e 909 a 913 e de psiquiatria, junto a folhas 889 a 895/898 a 904, pelas razões supra apontadas.

No tocante à prova dos factos referidos em 39.º supra, o tribunal estribou a sua convicção no teor do relatório social elaborado pela D.G.R.S.P., junto a folhas 764 a 766, ao abrigo do disposto no artigo 370.º, do Código de Processo Penal.

Por fim, resta dizer que a prova da factualidade descrita em 40.º supra assentou exclusivamente no teor do certificado do registo criminal do arguido junto a folhas 1019 a 1023».


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Apreciando os fundamentos dos recursos.

As questões suscitadas pelo arguido nos recursos interlocutórios têm precedência lógica sobre as restantes, atinentes à decisão final, pelo que serão conhecidas de imediato.

Assim:

A) Recursos interlocutórios.

1) Recurso apresentado pelo arguido tendo por objeto o despacho datado de 8/5/2024.

Comecemos por analisar o presente conjunto de recursos, nos quais o arguido/recorrente invoca a violação, pelo tribunal a quo, do princípio da investigação consagrado no artigo 340.º do CPP e do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

O artigo 340.º do CPP estabelece, no seu n.º 1, que “O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”.

Contudo, e como dispõe o n.º 4 do mesmo preceito legal, os requerimentos de prova devem ser indeferidos se for notório que: a) revogada; b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.

Deste modo, e como é salientado no acórdão do TRC de 3/12/2008 [3], o princípio da investigação oficiosa consagrado no art.º 340º do Código de Processo Penal está condicionado pelo princípio da necessidade, devendo ser limitado aos meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa e o árbitro dessa necessidade é o tribunal.

Na fase do julgamento, o poder de o tribunal recusar a admissão e produção de prova, requerida pela defesa ou pela acusação, é limitado pela sua inadmissibilidade, irrelevância ou superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou por se afigurar meramente dilatória [4].

Como observa Oliveira Mendes [5], «[A] prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando é inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demonstrar ou de nada serve para decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou segundo as regras da experiência improvavelmente alcançável; com finalidade dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência».

A norma contida no n.º 4 do art.º 340.º do CPP, na medida em que confere ao juiz poderes de disciplina da produção de prova, exigindo para o indeferimento desta a notoriedade do seu carácter irrelevante ou supérfluo, inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou, ainda, da sua finalidade meramente dilatória, não viola as garantias de defesa do arguido, nem o art.º 32.º da CRP, como reconheceu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 171/05, publicado no DR II ª série, de 6/5/2005.

No presente caso, o tribunal a quo considerou dispensável a produção de prova documental, requerida pelo arguido no âmbito da contestação apresentada, por entender que as diligências que este pretendia ver realizadas afiguravam-se irrelevantes para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

Cremos que, inequivocamente, lhe assiste razão, evidenciando-se claramente que a pretensão probatória do recorrente prendia-se com factos meramente acessórios e questões laterais, sem qualquer repercussão relevante no apuramento da factualidade que constituía o objeto do processo.

Como fez notar o tribunal a quo no despacho recorrido, a credibilidade de uma testemunha não se afere pela circunstância de ter ou não antecedentes criminais ou de ter apresentado ou não outras queixas criminais, mostrando-se, por isso, irrelevante e supérflua a obtenção de prova documental pretendida pelo recorrente com vista à demonstração de que, para além do mais, a assistente já havia apresentado outras queixas criminais por violência doméstica.

Por outro lado, a junção aos autos de todos os processos eventualmente pendentes na CPCJ ..., relativos ao menor GG, filho da assistente, e, bem assim, dos autos de regulação do poder paternal quanto ao referido menor, não teria a virtualidade de demonstrar aquilo que o recorrente alega nos pontos 8) a 10) da contestação.

Por fim, o documento que o requerente pretendia fazer juntar aos autos, constante de fls. 737, retratando a imagem de um veículo automóvel de marca Peugeot, acompanhado de uma legenda, nenhuma utilidade evidenciava para o esclarecimento dos factos em discussão no processo, como bem faz notar a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer.

O tribunal a quo dispôs de um conjunto alargado de prova de diversa proveniência (pericial, testemunhal e documental) e o recorrente não evidenciou, nas pretensões formuladas, a relevância e imprescindibilidade dos elementos e diligências probatórios requeridos.

Mostrando-se tais documentos alheios ou, pelo menos, laterais ao objeto do processo, o tribunal a quo indeferiu a respetiva junção aos autos, não se vendo razão válida para discordar da decisão recorrida.

Afigura-se, assim, inteiramente correta a decisão do tribunal de primeira instância, não só porque o juízo sobre a necessidade da prova compete unicamente ao tribunal – e este, no seu prudente arbítrio, considerou desnecessários os referidos elementos para apreciar e decidir a causa -, mas também porque se mostrava evidente que a prova pretendida pelo recorrente era irrelevante e supérflua, pelo que nenhum contributo verdadeiramente útil poderia trazer para a discussão da causa.

Por fim, nenhum constrangimento à defesa do arguido/recorrente foi cometido, diversamente do que o mesmo alega, dado que o princípio da investigação não é ilimitado, estando condicionado pelo princípio da necessidade. Assim, se o direito de defesa se pode concretizar no peticionar de produção de um meio de prova, dele não resulta o automatismo da sua produção, como é observado no acórdão do TRE de 21/3/2017, já citado (cf. nota 4).

Nenhuma censura merece, assim, a decisão do tribunal a quo, improcedendo o presente recurso interlocutório apresentado pelo arguido.


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2) Recurso que teve por objeto o despacho proferido no âmbito da sessão de audiência de julgamento realizada em 21/10/2024 (cf. fls. 1054/1055).

Invoca o arguido/recorrente que, na sequência da comunicação de alteração não substancial dos factos constantes da acusação, apresentou defesa relativamente aos factos novos e requereu a produção de prova, «a qual se destinava a mostrar que, também na nova janela temporal agora aberta, de surpresa, pelo Tribunal, o arguido tinha estado a trabalhar pelo que não poderia ter praticado, também nesses dias, os factos de que primeiramente tinha sido acusado de praticar apenas na tarde de 29.04.2023».

O tribunal a quo proferiu despacho, no âmbito da audiência de julgamento realizada no dia 21/10/2024 [6], a indeferir a prova documental e testemunhal indicada pelo arguido, com o fundamento de que, em síntese, quanto ao documento por ele apresentado com o seu requerimento (constante de fls. 1050), não era possível confirmar a sua fidedignidade, e quanto à audição da testemunha CC, tendo sido já inquirida na audiência de julgamento, não era previsível que alterasse a versão dos factos então transmitida, mostrando-se, de qualquer modo, na perspetiva do tribunal, um e outro meio de prova incapaz de abalar a convicção firmada em face da prova já produzida.

Ora, não se vê fundamento válido para alterar a decisão recorrida, tanto mais que o recorrente não é capaz de demonstrar a relevância e imprescindibilidade dos elementos probatórios atrás indicados.

É de notar, quanto à prova documental oferecida pelo recorrente, que do seu teor não é possível concluir pela impossibilidade de os factos terem ocorrido nos moldes relatados pela ofendida – realidade que o recorrente pretendia demonstrar com base em tais elementos. Com efeito, o documento em apreço não faz qualquer referência ao dia 29 de abril (o que permite colocar a hipótese de o recorrente nesse dia não ter trabalhado) e, quanto ao dia 28, nele indicado, o horário de saída referenciado é o de 18.35 horas, permitindo-nos concluir que, ainda que este meio de prova devesse ser considerado fidedigno, de modo nenhum era capaz de contrariar a realidade que o tribunal considerou demonstrada no ponto 3) da matéria de facto provada incluída na sentença recorrida.

Deste modo, e apelando ao que atrás já deixamos escrito a propósito do enquadramento do princípio da investigação oficiosa, consagrado no art.º 340º do Código de Processo Penal, e, em particular, da sua articulação com o princípio da necessidade, nenhuma razão válida encontramos para discordar da decisão do tribunal a quo e revogar o despacho recorrido.

Improcede, por conseguinte, o presente recurso apresentado pelo arguido.


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B) Recurso da sentença.

I) Nulidade da sentença por omissão e excesso de pronúncia.

Considera o recorrente que o tribunal de primeira instância não se pronunciou, como devia, sobre as questões relacionadas com a sua condição neurológica e respetivas consequências, omitindo a sua inclusão na matéria de facto provada ou não provada, o mesmo tendo sucedido com a dinâmica da relação com a ofendida, que esta caraterizou como «boa», acrescentando que, quando não bebia, o arguido/recorrente era «uma joia».

Argumenta, por outro lado, que o tribunal a quo excedeu o seu poder cogniscitivo, incluindo na matéria de facto provada determinados factos de que não podia conhecer (os constantes dos pontos 35 e 36 da matéria de facto provada), já que não constavam nem da acusação, nem da matéria factual integrada no despacho de «alteração não substancial dos factos da acusação», oportunamente comunicada aos sujeitos processuais.

Vejamos se lhe assiste razão.

Estipula o artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Deste modo, a sentença é nula, designadamente, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre factos concretos da acusação, da pronúncia ou da contestação que sejam relevantes para a boa decisão da causa.

Assim, como é assinalado no acórdão deste TRP, de 27/5/2020 [7], é pressuposto da completude de qualquer sentença que a mesma tenha, desde logo, a indicação, isto é, a descrição/enumeração dos factos provados e não provados, sendo igualmente pacífico que tais factos são os que constam da acusação ou pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização civil e ainda os que resultarem da discussão da causa, conforme sobressai do teor do art.º 368.º do CPP.

Com efeito, este preceito, sob a epígrafe “Questão da culpabilidade”, determina que na deliberação, que é realizada após o encerramento da discussão:

«1 - O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.

2 - Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:

a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;

b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;

c) Se o arguido atuou com culpa;

d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;

e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;

f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.

3 - Em seguida, o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior».

Decorre, assim, desta norma que não são quaisquer factos provenientes da acusação/pronúncia, da defesa, do pedido de indemnização civil ou da produção de prova em julgamento que importa verter entre os provados e não provados a enumerar na sentença mas apenas aqueles que são relevantes, isto é, essenciais para a definição dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime e do tipo de participação do agente, para a determinação da respetiva culpa, para a verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, para a verificação dos pressupostos de punibilidade ou de aplicação de medida de segurança, bem como dos de arbitramento da indemnização civil e, finalmente, de acordo com o preceituado no art.º 369.º do CPP, os atinentes à determinação da sanção, sendo de realçar os relativos aos antecedentes criminais do arguido, à personalidade do arguido e ao seu enquadramento social, posto todos eles influenciarem e serem determinantes da escolha e medida concreta da pena a encontrar pelo Tribunal.

Como se adverte no mencionado acórdão do TRP datado de 27/5/2020, de fora da apontada obrigação de enumeração dos factos provados e não provados ficam todos aqueles que são acessórios ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido e, bem assim, aqueles que se mostram prejudicados com a solução dada a outros, por apenas os contrariarem, ou seja, representarem mera infirmação, negação, de outros já constantes do elenco dos factos provados ou não provados. Entendimento diverso quanto a esta última situação levaria à obrigação de realização de trabalho duplicado e até com sentido jurídico pouco rigoroso, por apelar à comprovação de factos negativos [8].

Neste sentido, veja-se, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2011 [9], onde se consignou:

«II. A jurisprudência do STJ firmou-se, de há muito, no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efetivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.

III - Todavia o que importa é que os factos sejam relevantes para a decisão da causa. E relevantes serão todos os factos essenciais à caracterização do crime ou integradores de causas de exclusão».

Também o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/10/2012 [10], que firmou o entendimento de que: «I. A vinculação temática funciona num duplo sentido: impede o tribunal de conhecer para lá do facto e obriga-o a pronunciar-se até ao limite do facto, sendo este o narrado pelo Ministério Público na acusação, pela defesa na contestação, bem como o que resultar da discussão da causa com relevância para a decisão. II. Se os factos alegados pela defesa representam apenas a versão negativa dos factos provados, é dispensável o tratamento expresso destes factos negativos».

Importante é que o Tribunal elenque todos os factos, provados e não provados, revelantes para a apreciação das questões enunciadas nos arts. 368.º e 369.º do CPP, independentemente de terem proveniência da acusação/pronúncia, da defesa, do pedido de indemnização civil ou da discussão da causa, devendo o segmento seguinte da sentença, a motivação, com o exame crítico das provas, revelar que foram apreciadas todas as perspetivas apresentadas [11].

Ora, assim sendo, podemos desde já concluir que a caraterização do relacionamento com o arguido e da sua personalidade efetuada pela ofendida - «boa», sendo o arguido «uma joia, quando não estava embriagado» -, não constituindo sequer um facto, mas antes a reprodução de um juízo de valor por ela verbalizado, não tinha de ser, como não foi, incluído no elenco dos factos provados. Para além de não constar da acusação, da contestação ou do pedido de indemnização, mostra-se patente o seu caráter, se não irrelevante, pelo menos acessório na configuração do «thema decidendum».

Quanto à temática relacionada com a condição neurológica do arguido/recorrente e respetivas consequências, o recorrente não indica quais eram os factos que, na sua opinião, deveriam ter sido incluídos na matéria de facto provada ou não provada.

Ora, sendo certo que tal matéria não constava da contestação apresentada pelo arguido, surgindo apenas aflorada na acusação [12], o tribunal tomou em consideração o que resultava dos relatórios periciais e do relatório social elaborado pela DGRS na descrição da matéria de facto provada (cf. os pontos 37), 38) e 39) h. e i.), assinalando, quanto aos primeiros: a - descrição contida nas conclusões do relatório elaborado na sequência da perícia médico-legal de psicologia (segue transcrição do segmento com particular relevo para a questão que agora nos ocupa): «[…] Após o acidente de viação refere dificuldades ao nível da memória e concentração, bem como o desenvolvimento de epilepsia para o qual se encontra medicado. Evidencia queixas ao nível do sono, com despertares noturnos e ao nível do humor (sentimento de ansiedade). Face ao mencionado, de acordo com a avaliação, o examinando evidencia algumas características, tais como, imaturidade psicoafectiva, dificuldade no controlo dos impulsos, impulsividade, baixas estratégias de coping, dificuldade em lidar com a frustração, comportamentos de risco, que podem influenciar o seu comportamento e funcionamento psicológico. No entanto, não nos é possível concluir de forma clara, se as características mencionadas representam alterações ao nível da personalidade, ou se poderão ser uma manifestação do diagnóstico de que padece, podendo influenciar diretamente sua personalidade e comportamento»; b – conclusões contidas no relatório de perícia psiquiátrica forense: «Do ponto de vista psiquiátrico, o examinado padece de Perturbação secundária do controlo de impulsos (6E66, CID-11), síndrome caracterizada pela presença de sintomas proeminentes característicos de Transtornos de Controle de Impulsos ou Transtornos Devidos a Comportamentos Aditivos (por exemplo, surtos de comportamentos agressivos) que são uma consequência fisiopatológica direta de uma condição de saúde não classificada em transtornos mentais e comportamentais. No caso do examinado, está bem documentada neuroimagiologicamente a afetação de áreas cerebrais diretamente relacionadas com o controlo de impulsos (RM cerebral: múltiplas lesões focais com hipossinal em T2* interessando a interface cortico-subcortical dos hemisférios cerebrais, sobretudo nas regiões frontais, temporais e parietais, mas também o corpo caloso, sugerindo hemorragias petequiais não recentes, em provável contexto de lesão axonal difusa, corroborando a informação clínica. Lesão encefaloclástica cortico-subcortical frontobasal esquerda provável sequela de lesão traumática. Não há captações anómalas do produto de contraste, intraparenquimatosas ou meníngeas. Não se identificam coleções hemorrágicas recentes, intra ou extra-axiais. As restantes vias de circulação de líquor estão permeáveis, definindo-se discreta redução do volume encefálico). O consumo de tóxicos (álcool ou outras substâncias psicoativas) agrava esta incapacidade de controlo de impulsos e o baixo limiar de tolerância à frustração, propiciando a adoção de comportamentos explosivos de hetero e/ou auto agressividade».

E, já no âmbito da motivação da decisão de facto, procedendo a uma análise crítica e conjugada da prova, o tribunal a quo salientou a conclusão a que chegou quanto à questão da imputabilidade do arguido e, por isso, à possibilidade de lhe poder ser dirigido um juízo de censura jurídico-penal, nos seguintes moldes (com destaques nossos): «Por outro lado, recorrendo ao teor do relatório social de folhas 420 a 422, do relatório pericial de psicologia, junto a folhas 528 a 531, 877 a 881, 883 a 887 e 909 a 913 e do relatório pericial de psiquiatria, junto a folhas 889 a 895/898 a 904, valendo cada um deles, in totum, como uma avaliação objetiva, isenta e especializada sobre a matéria analisada por cada um dos Sr.ºs Peritos Médicos que respetivamente os subscreveram (à luz do disposto no artigo 163.º, do Código de Processo Penal e 388.º, do Código Civil), o tribunal não ficou com qualquer dúvida quanto à imputabilidade do arguido e, em particular, à sua capacidade plena para, nas descritas ocasiões, ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo o que estava a fazer e a quem, querendo atuar desse modo, pese embora também conhecer o caráter ilícito e proibido dessa sua atuação. Na verdade, o teor do referido relatório de psicologia foi presencialmente esclarecido pela Dr.ª HHH, que o elaborou e que prestou esses esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, fazendo-o de uma forma completamente isenta, imparcial e esclarecedora, frisando que examinou o arguido, concluindo que o mesmo era uma pessoa imatura, com dificuldades em gerir os seus problemas e emoções, adotando, por via disso, comportamentos inadequados (potenciados pelo consumo do álcool e/drogas) não possuindo, porém, elementos para que pudesse afirmar se o mesmo padecia de alterações de personalidade ou se essas mudanças comportamentais foram provocadas pelo traumatismo craniano que aquele sofreu no acidente de viação, conclusão essa que, contudo, foi obtida através dos esclarecimentos prestados pelo Dr.º III, subscritor do aludido relatório de psiquiatria, o qual de modo completamente exemplar, concluiu no sentido de o arguido ter uma agressividade e falta de controlo de impulsos “que são dele” (sic), em resultado do traumatismo craniano que sofreu, precisamente por lhe ter afetado as áreas cerebrais que aumentam a probabilidade de agressividade nos seus comportamentos (não tem o “travão normal” (sic) que qualquer pessoa teria precisamente por causa do traumatismo que sofreu) e que, não sendo uma consequência necessária, pode ser potenciada pelo consumo de álcool e drogas, mais admitindo que, mantendo acompanhamento médico e abstinente quanto à ingestão dessas substâncias, o risco de o mesmo adotar comportamentos violentos ficava diminuído, mais acrescentando que o meio prisional não era, do ponto de vista médico, aconselhável para alcançar essa estabilização. Não teve qualquer hesitação em afirmar que o arguido era uma pessoa imputável, sabendo perfeitamente comportar-se e distinguir o bem e o mal, assim como tinha os meios e capacidades para resistir ao álcool e como tal tomar a decisão de não beber, mas depois de o fazer, ficava afetada a sua “noção crítica” (sic), sendo a natureza dos atos assumidos totalmente variável consoante o circunstancialismo exterior. Diga-se, igualmente, que o teor de tais relatórios e respetivas conclusões médico-periciais, a par dos esclarecimentos prestados nos moldes ora descritos, não foram minimamente contrariados pelo teor dos registos clínicos juntos a folhas 366 a 369, bem como do parecer clínico de folhas 487, 488, da declaração médica de folhas 580 e 597, dos pareceres médicos de folhas 802 a 806, 807 a 813 (estes sustentados em consultas efetuadas a pedido do arguido e a título particular, já na pendência destes autos) nem tão pouco pelo depoimento prestado pelo Dr.º HH, o qual se identificou como psiquiatra (no Hospital ...), esclarecendo, pois, que observou o arguido, a pedido do pai deste (que o procurou em abril de 2024, contando-lhe a história do arguido), e não a solicitação do Tribunal, mais explicando que o arguido teve duas fases, uma antes do acidente e outra depois do acidente, o qual lhe deixou várias sequelas, incluindo ao nível da memória, potenciado pelo consumo do álcool ao qual recorreu como “anestesia” pela angústia que passou depois desse evento traumático, reconhecendo, porém, que considerava o arguido imputável, além de ter total consciência de que o consumo do álcool e/ou droga o tornava uma pessoa “perigosa” (sic).

Pelo que, e sem olvidar que o tribunal, ao tomar as declarações do arguido em plena audiência de julgamento, não teve qualquer hesitação em concluir que o arguido tinha plena consciência do que fez (embora zero juízo crítico, já que negou todas as acusações), então, tudo conjugado entre si e tendo por referência a factualidade objetivamente descrita nos pontos 1.º a 25.º supra, foi possível chegar à demonstração do aspeto subjetivo da atuação do arguido, ponderando-se precisamente o seu iter criminis, ou seja, a ação objetivamente apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, da qual se extrai a intenção do mesmo, sendo certo que, face ao supra explanado, não foi produzida qualquer prova suscetível de contrariar tal entendimento, anotando-se, assim, que o arguido atuou da forma livre e consciente, não sendo o mesmo, na ocasião, inimputável nem tendo a sua imputabilidade diminuída designadamente por força da sua dependência alcoólica/de estupefacientes ou, ainda, derivado do traumatismo craniano que sofreu no acidente de viação de que foi vítima. De resto, e volta-se a frisar, atenta a forma como o arguido se expressou quando confrontado com cada um dos factos descritos na acusação e, pese embora os negar, foi reveladora de que o mesmo bem sabia o que fazia e fez, querendo atuar daquela concreta forma».

Não foi, assim, cometida qualquer nulidade por omissão de pronúncia, tendo o tribunal incluído na matéria de facto que considerou provada, com base nos meios de prova indicados, em particular nas conclusões contidas nos relatórios de perícia médico-legais, complementadas pelos esclarecimentos prestados pelos peritos na audiência de julgamento, o circunstancialismo fáctico deles resultante, relacionado com a condição neuropsicológica do recorrente e respetivas consequências ao nível do juízo de culpa jurídico-penal.

Já quanto ao «excesso de pronúncia» apontado pelo recorrente à sentença recorrida, também é manifesto que não se verifica. Os factos descritos no ponto 35) da matéria de facto provada [«Também como consequência direta e necessária da sobredita atuação do arguido, a assistente sentiu medo, inquietação, além de ter vivido um estado de ansiedade, de nervos, angústia, pânico, insegurança e irritação e, ademais, sentiu-se ofendida na sua honra, consideração, bom nome e reputação»] derivam da alegação contida no pedido de indemnização civil formulado pela assistente BB (cf. os pontos 39, 40, 42, 44 e 45 do referido articulado), resultando os constantes do ponto 36) da factualidade descrita no artigo 5º da acusação, articulada com o conteúdo do relatório médico junto de fls. 583.

Constando, assim, tais factos do despacho de acusação e do pedido de indemnização civil formulado pela ofendida e afigurando-se inequivocamente revelantes para a apreciação das questões enunciadas nos arts. 368.º e 369.º do CPP, é evidente que o tribunal a quo não podia deixar de pronunciar-se quanto aos mesmos, incluindo-os no elenco dos factos provados ou não provados, nenhuma censura, pois, lhe podendo ser dirigida.

Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso, não se descortinando qualquer omissão ou excesso de pronúncia suscetível de determinar a nulidade da sentença recorrida.


*

II) Impugnação da matéria de facto - vícios decisórios e erro de julgamento; violação do princípio “in dubio pro reo”.

O recorrente impugna a matéria de facto constante dos pontos 3, 4), 5) e 6), 8), 9), 10), 11), 12), 13, 14), 15), 16), 17) e 18), que considera ter sido erradamente julgada, devendo passar a integrar o elenco da factualidade não provada. Sustenta, ainda, que a decisão recorrida enferma do vício de «contradição insanável» previsto no artigo 410.º, n.º 2, b), do CPP, reportado aos factos elencados na matéria de facto provada sob os pontos 32), 33) e 29).

Vejamos se lhe assiste razão.

Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).

A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:

- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;

- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.

A primeira modalidade de impugnação, que integra o chamado recurso de «revista ampliada», trata-se de uma intervenção restrita, já que apenas admissível no tocante às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º e evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.

O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [13].

Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

Por forma a evidenciar a «contradição insanável» que considera afetar a matéria de facto constante dos pontos 32) e 33) argumenta o recorrente que, «se na lógica da acusação tais factos faziam sentido uma vez que decorriam logicamente da matéria de facto levada aos arts 32 a 38 da própria acusação, a partir do momento em que a Mma Juiz dá como não provada a matéria daqueles arts 32 a 38 da acusação (factos dados como não provados pelas als l) a s) da sentença) e atenta toda a demais matéria de facto dada como provada, não há como sustentar a tese da “perseguição” da qual decorrem todas as demais factualidades levadas aos arts 32 e 33 dos factos dados como provados».

Já por referência ao ponto 29) da matéria de facto provada alega que, «Tendo a Mma Juiz dado como não provado que a relação entre arguido e assistente fosse análoga à dos cônjuges (facto da al. a) dos “não provados), e que apenas por vezes partilhavam a habitação sita na Rua ..., propriedade do pai do arguido (facto 1 dos provados), mostra-se contraditório o facto levado a 29 dos dados como provados, de que alguns dos factos supra descritos teriam sido praticados na residência comum do casal. Quer porque arguido e assistente nunca constituíram um casal (=cônjuges), nem algo análogo; Quer também porque não tinham residência comum».

O vício decisório, previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, abrange, na verdade, dois vícios distintos:

- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [14].

Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

É de notar, porém, que a contradição ali postulada é só aquela que se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento, como é salientado no acórdão do TRL de 21/5/2015 [15].

O tribunal a quo considerou provados e não provados os seguintes factos, com relevo para a apreciação e decisão da questão que nos ocupa:

Factos provados:

32) Perseguindo-a da forma que se descreveu, o arguido quis, como conseguiu, invadir a esfera de privacidade da assistente, donde resultou um dano à sua integridade psicológica e emocional e restrição à sua liberdade de locomoção, ficando, por isso, psicologicamente afetada pelos atos de que foi vítima, o que, tudo junto, provocou estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores do arguido;

33.º Com tal comportamento abusivo, agiu o arguido com o objetivo de manter a assistente sob domínio, cujo sossego e sentimento de segurança e, em geral, a sua saúde psíquica foram fortemente atingidos e neste contexto de tensão e violência iminente, esta acabou por viver submergida pela ansiedade e pelo medo;

Factos não provados:

l) Que desde o dia 20 de janeiro de 2024, que o arguido, do interior do Estabelecimento Prisional onde se encontra preso preventivamente, tivesse vindo a contactar a assistente, desta forma a perturbando;

m) Que nesse dia 20 de janeiro de 2024, pelas 14 horas e 01 minutos, o arguido telefonasse à assistente através do n.º ... e durante essa chamada, que durou 14 (catorze) segundos, tivesse imitado imitou o som do riso e desligasse;

n) Que pelas 14 horas e 04 minutos, desse mesmo dia, o arguido voltasse a telefonar à assistente, através do mesmo número de telefone fixo, dizendo-lhe, em tom sério: “vou-te matar”, chamada que durou 8 (oito) segundos;

o) Que ainda no mesmo dia, pelas 20 horas e 13 minutos, o arguido voltasse a telefonar à assistente, através do mesmo número de telefone fixo, chamada que durou 32 (trinta e dois) segundos, em que o arguido voltasse a imitar o som do riso e desligou;

p) Que no dia 21 de janeiro de 2024, pelas 14 horas, via Instagram do seu perfil: "...", o arguido, através de mensagem e áudios, tivesse até efetuado uma chamada, que se iniciou pelas 14 horas e 42 minutos e terminou pelas 14 horas e 59 minutos, contactando o pai do filho da assistente, identificado como MM, residente em França, dizendo-lhe, para além do demais, que não estava arrependido de ter batido na assistente e que o voltaria a fazer;

q) Que no passado dia 25 de janeiro de 2024, pelas 13 horas e 44 minutos, o arguido telefonasse à assistente através do n.º ..., mantendo-se calado e desligando a chamada, logo de seguida;

r) Que o arguido tivesse remetido à assistente, nas descritas circunstâncias, mensagens através de correio eletrónico e/ou das redes sociais;

s) Que por força do descrito em l) a r) supra a assistente vivesse num constante medo pela sua própria vida, atenta a perseguição do arguido, que mesmo privado da liberdade, manteve-a pela via dessas ligações telefónicas e mensagens, correio eletrónico e redes sociais.

Com relevo para a análise da questão suscitada pelo recorrente importa ainda assinalar que o tribunal a quo considerou ter ficado provado que, no dia 27 de maio de 2023, a assistente, fugindo do arguido que estava alcoolizado e tinha tentado agredi-la, refugiou-se na casa de sua mãe, após ter pedido ajuda à amiga JJ, local onde, horas mais tarde, veio a ser procurada pelo arguido e, perante a recusa de acompanhá-lo para casa (recusa reiterada pela sua mãe), foi por ele agredida com murros e bofetadas, apenas cessando as agressões por força da intervenção da mãe da assistente e da testemunha KK, vizinho que entretanto ali havia comparecido, tendo o arguido sido conduzido para o exterior da residência pelo seu amigo (cf. os pontos 7 a 16).

Além disso, o tribunal considerou provado no ponto 13) que, «nessa altura, o arguido enviou seis ficheiros de áudio à assistente, apodando-a de “puta e vaca”, dizendo-lhe ainda que “era uma merda” e que era uma má mãe para o seu filho» - factos que precederam a deslocação do arguido/recorrente à mãe da assistente.

Na motivação da decisão de facto, após proceder a uma análise crítica exaustiva dos meios de prova, o tribunal concluiu que «Conciliando toda a prova acima enumerada, o tribunal não teve qualquer dúvida em considerar como provados os factos descritos nos pontos 1.º a 26.º supra», pronunciando-se quanto à decisão tomada relativamente aos factos contidos nas alíneas l) a s) nos seguintes moldes: «Quanto à não prova dos factos descritos em l) a r) supra e, porque umbilicalmente ligados a estes, os factos referidos em s) supra (reportado, portanto, aos supostos danos provocados por aqueles factos, que não se provaram) diga-se que a assistente, como é evidente, não os confirmou, em sede de declarações para memória futura, pois que à data em que estas foram prestadas, supostamente aqueles ainda não tinham ocorrido. Não se considerou necessária, como vimos, a sua reinquirição em sede de julgamento a fim de lhe tomar declarações quanto a essa factualidade, precisamente porque, face ao teor da restante prova produzida, mesmo que a assistente viesse dizer que ficou “convencida” de que tinha sido o arguido a efetuar esses supostos telefonemas, tal não iria ser bastante para dar esses factos como provados. Desde logo, atente-se que os prints de folhas 448, 449, 450, 451, 453, 454 e 455 foram juntos pela assistente, logo, à partida extraídos do seu telemóvel e se é certo que neles são detetáveis vários números de telefone/telemóveis, já a identificação da suposta proveniência de cada um deles, foi dada pela própria assistente, ou seja, foi esta que, por exemplo, identificou o “...”, em circunstâncias e por motivos que se desconhece, tanto mais que a referida testemunha DDD, ainda que forma completamente nebulosa e evasiva, negou que esses contactos pertencessem ao arguido e que tivesse sido, através de algum deles, contactada por aquele, desde que o arguido foi detido, mais acrescentado que as mensagens cujos prints constavam de folhas 951 a 957 e 966 mais não eram do que uma armadilha que fizera à assistente para ver se a apanhava a mentir, para poder ajudar o arguido. Obtidas as informações prestadas pelas operadoras telefónicas, conforme folhas 975, 977, 978, 979, 980, 981 a 983, 994, 996 a 1000, além de não terem confirmado qualquer ligação desses números ao aqui arguido, permitiram identificar o titular do n.º ..., tratando-se de FFF, o qual, inquirido em sede de audiência de julgamento, veio dizer que conhecia muito bem a assistente, pois foi companheiro da mãe dela e que nunca lhe ligou daquele número, não conseguindo, porém, esclarecer como é que esse número aparecia nos registos telefónicos do telemóvel da assistente, não deixando, porém, de ser curioso que a assistente chegou a ligar para esse número, no dia 20 de janeiro de 2024, como se mostra documentado a folhas 999, pois que, segundo a informação prestada pela própria, a folhas 13, o seu n.º de telemóvel era o ....... Acresce dizer que o arguido negou perentoriamente que tivesse acesso a telemóveis, dentro da prisão, o que resto foi apurado em sede de procedimento disciplinar de que foi alvo e cuja decisão (cópia) consta de folhas 864 a 867, ali se concluindo não ter ficado demonstrado que tivesse ocorrido esse uso de telemóveis ou outros de meios de comunicação. E perante estes dados objetivos, claramente que aquilo que as testemunhas SS e TT disseram a propósito dos telefonemas que a assistente recebeu, quando estava na companhia delas, no parque, não se mostrou bastante para fazer prova de que tinha sido o arguido a efetuar esses contactos. Na verdade, nem uma nem outra identificou a voz do arguido, a primeira, porque não ouviu bem e a segunda, porque nem sequer conhecia a voz daquele, atestando apenas que tinha sido a assistente a afirmar que estava convencida de que tinha sido o arguido, o que, como é evidente, desprovido de qualquer outro suporte probatório, não foi suficiente para o Tribunal considerar como provados tais factos, razão pela qual, e em última instância, por força do denominado princípio do in dubio pro reo, foram dados como não provados […]».

Deste modo, e embora a «perseguição» feita pelo arguido à ofendida, descrita na acusação, não tivesse ficado demonstrada em toda a sua dimensão, a verdade é que não pode deixar de ser assim caraterizada a situação descrita na factualidade atrás referenciada, ocorrida no dia 27 de maio de 2023, que o tribunal a quo considerou demonstrada, justificando a inclusão dos pontos 32) e 33) no elenco da factualidade provada (sendo certo, aliás, que o ponto 33) é mais amplo, reportando-se a toda a panóplia de comportamentos abusivos assumidos pelo arguido/recorrente descritos na factualidade provada).

Não se verifica, assim, qualquer contradição entre os descritos segmentos factuais e matéria de facto não provada, ou entre aqueles e a fundamentação da decisão de facto (o «exame crítico da prova») constante da sentença recorrida, suscetível de integrar o vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, b), do CPP. Com efeito, a contradição ali postulada é só aquela que se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento, como é salientado no acórdão do TRL de 21/5/2015, o que, no presente caso, não se verifica, revelando-se a inclusão dos pontos 32) e 33) no elenco da factualidade provada (e, bem assim, do ponto 30) harmónica com a decisão na sua totalidade.

Vejamos, agora, o enquadramento do ponto 29) da matéria de facto provada - «O arguido bem sabia que praticou os factos supra descritos, alguns na residência comum do casal e, outros, na presença do filho menor daquela, circunstância essa que coartava as possibilidades de defesa e/ou fuga da assistente e lhe infligia um maior sentimento de intranquilidade, insegurança e vulnerabilidade e, não obstante esse conhecimento, quis agir do modo supra descrito» -, que o recorrente considera padecer de igual vício de «contradição insanável», tendo por referência a matéria factual elencada pelo tribunal a quo no ponto 1) dos factos provados e na alínea a) dos factos não provados.

Um e outro são do seguinte teor:

Ponto 1): «O arguido e a assistente BB mantiveram um relacionamento amoroso estável e regular, com projetos de futuro e com sentimentos de afetividade, convivência, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade e cooperação mútua desde fevereiro de 2023, tendo inclusivamente partilhado, por vezes, a habitação sita na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, ..., Paredes, a qual era pertencente dos pais do arguido».

Alínea a): «Que a relação aludida em 1.º supra fosse análoga à dos cônjuges».

Reportando-se ao tipo de relacionamento mantido entre o arguido e a assistente escreveu o tribunal a quo na sentença recorrida o seguinte: «Uma nota quanto ao tipo de relação assumida pelo arguido e pela assistente. Se é verdade que o primeiro caraterizou-a como fortuita e de cariz sexual, ao passo que a assistente referiu ter vivido uma relação amorosa séria e com coabitação com o arguido, a verdade é que, atendendo ao contexto em que a mesma se iniciou, à sua duração, ao facto de a assistente também ter um filho menor de outra relação que inclusivamente ficava aos cuidados da sua mãe, levou a que o Tribunal não a considerasse como sendo, à data, uma relação análoga à dos cônjuges (porque esta pressupunha um “plus” não confirmado pela própria assistente, nem pelas testemunhas JJ, SS e TT) – daí o facto dado como não provado em a) supra, mas também não a caraterizasse como meramente fortuita ou apenas de cariz sexual (como os amigos e familiares do arguido a catalogaram), mas sim como uma relação de namoro, com sentimentos de amor recíprocos, incluindo coabitação – daí o facto dado como provado em 1.º supra, como de resto o arguido deixou transparecer (quer ao admitir que a assistente dormia no seu apartamento, passava-lhe a roupa, tinha até as suas palavras passe das redes sociais, tinha o telemóvel do seu pai, do seu funcionário OO, que inclusivamente chegou a dar-lhe boleia, que festejasse os anos do filho dela no seu apartamento, que ali tivesse a sua roupa), assim como as próprias testemunhas CC, PP e XX o deixaram escapar, além da própria FF, a qual acabou mesmo por reconhecer que se constava que aqueles dois mantinham uma relação, não merecendo qualquer crédito aquilo que foi dito pelas testemunhas BBB e DDD a esse propósito, pois que, manifestamente em tom de “troça” pretenderam passar a ideia de que a assistente era apenas mais uma de muitas outras “amigas coloridas” do arguido».

Nenhuma contradição e muito menos insanável ostenta, assim, o ponto 29) dos factos provados, não só porque o relacionamento pressuposto pelo tipo objetivo do crime de violência doméstica não carece de ter natureza «conjugal» (formal ou apenas materialmente, como sucede com as «relações análogas aos dos cônjuges»), podendo consubstanciar-se num relacionamento de «namoro» (cf. o art.º 152.º, n.º 1, b), do Código Penal), como também o conceito de domicílio comum utilizado pelo legislador (cf. o n.º 2, alínea a), do art.º 152.º), deve ser entendido como o local onde, de algum modo, com maior ou menor intensidade, mais ou menos frequência, se estabelece um laço entre o agressor e a vítima.

Na verdade, o que a lei visa punir com agravação da sanção ali prevista são as agressões cometidas no local onde se criou – forte ou fraco, consoante as idiossincrasias do espírito humano – um projeto comum de duas pessoas, num lugar que é de ambos, onde as mesmas se relacionavam com algum grau de estabilidade, como namorados, amantes ou cônjuges, mas, em qualquer caso, com aquele nível de privacidade e intimidade, que torna a agressão posterior mais censurável e, por isso, a merecer mais severa sanção, como é salientado no acórdão do TRE de 25/6/2013[16].

Inexistindo «contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão» ou qualquer outro vício decisório que se evidencie a partir da simples leitura da decisão recorrida [17], a alteração da matéria de facto pretendida pelo recorrente apenas poderá decorrer da constatação de um «erro de julgamento», caso exista.

Relativamente a esta modalidade de impugnação da matéria de facto, o legislador onera o recorrente com o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão [18].

O ónus de especificação deve, assim, ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não «por atacado», impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado [19].

Havendo gravação das provas, tais especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal).

Tais imposições legais fundam-se na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico [20].

O ónus de impugnação especificada foi observado pelo recorrente de forma que ainda consideramos suficientemente adequada, pelo que importa analisar as razões de discordância enunciadas quanto à decisão sobre a matéria de facto reportada aos segmentos atrás identificados.

Ora, porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância [21], faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, a reapreciação deve ser particularmente cuidadosa, não podendo o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido [22]. Deste modo, e embora se imponha ao tribunal de recurso que se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo» [23], a natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações, constitui uma importante limitação a considerar na sindicância da matéria de facto no âmbito da impugnação ampla, como se faz notar no acórdão do STJ de 12/6/2008 [24].

Com efeito, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham [25]decisão diversa da recorrida [26].

E isto porque, neste âmbito, rege o princípio da livre apreciação da prova [27], significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [28]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [29].

Da análise da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais considerou demonstrados os factos constantes do despacho de acusação e impugnados pelo recorrente. Com efeito, analisada a decisão recorrida, verificamos que nela o tribunal expressou fundamentadamente, procedendo a uma análise crítica da prova de forma exaustiva, um juízo positivo sobre a credibilidade dos meios de prova atrás assinalados (o conteúdo da prova documental e pericial disponível no processo, em conjugação com as declarações para memória futura prestadas pela assistente BB e os depoimentos de algumas das testemunhas inquiridas - em particular, pelas testemunhas QQ – militar da GNR -, JJ, SS – respetivamente, amiga e mãe da assistente – e KK – vizinho da mãe da assistente) e negativo sobre a credibilidade e verossimilhança das declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento, esclarecendo que a prova produzida demonstrava, para além de qualquer dúvida razoável, não só que o arguido assumiu os comportamentos descritos na matéria de facto provada, agredindo, insultando e coagindo a ofendida, nos contextos e circunstancialismos ali descritos, mas também que esses comportamentos foram por si empreendidos de forma livre, deliberada e consciente, com total indiferença pelos deveres de respeito e cooperação devidos para com a assistente e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência e à intimidação, apesar de saber que todos os seus comportamentos eram proibidos e punidos pela lei penal.

O recorrente, por seu turno, embora com referenciação e/ou transcrição de depoimentos, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de 1ª instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na sentença recorrida, sendo da análise conjugada das declarações e dos depoimentos das aludidas testemunhas, com a prova perícia e documental contida no processo - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção [30].

Na verdade, o que ressalta da motivação do recurso é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento, e não como um instrumento de substituição da convicção do tribunal de primeira instância, alicerçada no princípio da livre apreciação da prova.

Ora, os elementos de prova que o recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal (fundamentalmente, excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas por si indicadas - CC, DD; EE, FF) não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida - como se exigiria, para se reconhecer a ocorrência de um erro de julgamento -, expressando unicamente a diversa leitura (naturalmente interessada e subjetiva) que o recorrente faz da prova e pretende sobrepor à convicção manifestada pelo tribunal de primeira instância na decisão recorrida.

É certo que da análise da decisão recorrida facilmente se constata que o tribunal baseou a sua convicção fundamentalmente nas declarações prestadas pela ofendida, mas sem que tal constitua algum problema sob o ponto de vista processual. Com efeito, não há obstáculo legal à valoração em audiência de julgamento das declarações do assistente e demandante civil – ou simplesmente do «ofendido», enquanto testemunha - e a que, no âmbito da imediação e da oralidade, o tribunal a quo possa racionalmente fundamentar os factos dados como provados com base nas suas declarações, em especial quando confirmadas por outros elementos probatórios, derivados de provas diretas e indiretas, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência comum.

De resto, como é justamente salientado no acórdão do TRL, de 22/11/2017 [31], nos crimes de violência doméstica, muitas vezes, o único elemento de prova existente resume-se às declarações da própria ofendida, e de alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.

Ora, como o tribunal a quo fez notar na sentença recorrida, as declarações prestadas pela ofendida revelaram-se credíveis, não só pela forma como as prestou, mas também porque foram, pelo menos parcialmente, corroboradas por outros elementos probatórios consistentes, inclusive de natureza pericial. Já os meios de prova indicados pelo recorrente, revelando, em grande medida, falta de credibilidade – denotando as testemunhas arroladas pelo arguido e indicadas no recurso narrativas claramente ensaiadas, com o propósito de o beneficiar, como assinalou o tribunal a quo – de forma nenhuma permitem sustentar um erro de julgamento, por imporem decisão diversa da recorrida.

Assim, e começando pelos factos contidos nos pontos 3), 4), 5) e 6), que suscitam a divergência do recorrente, verificamos que os depoimentos das testemunhas indicadas para contrariar a factualidade ali firmada (CC e DD), limitam-se a afirmar que o arguido/recorrente esteve na sua companhia no dia 29 de abril de 2023, «o dia todo», por ocasião de uma «mudança» de uns móveis, pretendendo, assim, o recorrente demonstrar que era impossível que na tarde do dia 29 pudesse ter agredido a assistente.

Contudo, o tribunal a quo, apoiando-se nas declarações da ofendida (que relatou o episódio, juntando uma fotografia que evidencia um hematoma na testa), apenas considerou provado que tal agressão ocorreu em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre os dias 27 e 29 de abril de 2023, durante a tarde, pelo que aqueles depoimentos, ainda que pudessem ser reputados credíveis, não seriam suscetíveis, por si sós, de contrariar as conclusões a que chegou o tribunal sobre esta matéria.

Quanto ao conjunto de factos elencados nos pontos 8) a 18), igualmente impugnados, indica o recorrente segmentos dos depoimentos das testemunhas EE e FF, na tentativa de demonstrar que o recorrente não podia ter estado, naquele dia, no apartamento com a assistente e depois na casa da mãe dela, perpetrando as agressões descritas naqueles segmentos da matéria de facto. Contudo, e como assinala o tribunal a quo, aqueles factos foram narrados de forma escorreita e convincente pela assistente e pelas testemunhas JJ e SS, que deles tomaram conhecimento (no todo ou em parte) porque os presenciaram, às quais se juntou a testemunha KK, a qual, não tendo qualquer interesse no desfecho dos autos – diversamente do que ocorreu com as testemunhas EE e FF, as quais manifestamente pretenderam arranjar um «álibi» ao arguido - contou espontaneamente aquilo que viu e ouviu, o que fez de forma coincidente com o relato daquelas duas, e se é certo que não logrou identificar o arguido, não teve qualquer dúvida em dizer que, na altura, foi-lhe dito que se tratava do namorado da assistente, o qual estava acompanhado por um amigo - logo, conjugando com o que foi dito pela assistente, pela SS e pela JJ, dúvidas não se suscitaram quanto à sua identificação como sendo o arguido, acompanhado pela testemunha OO, como bem concluiu e explicou o tribunal de primeira instância.

É de notar que, quanto a este episódio, a veracidade do relato efetuado pela assistente e pelas testemunhas mostra-se reforçado pela circunstância de no local ter comparecido a GNR, pelas 00h10minutos do dia 28 de maio, alertada pela ocorrência de um episódio de violência, apresentando-se no local a ofendida BB, que logo relatou ter sido agredida pelo namorado «AA» (cf. o auto de notícia constante de fls. 147/152 dos autos).

Não se verificando que os meios de prova indicados pelo recorrente efetivamente impunham «decisão diversa da recorrida», relativamente à matéria de facto impugnada (bem pelo contraário), resta, por fim, assinalar que não se evidencia que o tribunal desrespeitou o princípio in dubio pro reo.

Com efeito, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência [32], o princípio «in dubio pro reo» configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel [33] sobre a verificação, ou não, de determinado facto decisivo para a decisão da causa -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Deste modo, violação do princípio “in dubio pro reo” ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.[34]

O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como “standard” de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [35]. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção [36].

Ora, a leitura da decisão recorrida evidencia claramente que o tribunal a quo não teve qualquer dúvida sobre a realidade dos factos que considerou demonstrados. De resto, nem tal dúvida poderia ser legitimamente equacionada em face da certeza e segurança da prova produzida, sendo manifestamente insuficiente para provocar a dúvida razoável a circunstância de o arguido ter negado a prática do crime ou de existirem, eventualmente, imprecisões nos relatos efetuados pelas testemunhas, desde que, naturalmente, tais incompatibilidades não sejam importantes e de molde a colocar em crise a consistência e credibilidade da descrição dos factos.

Já a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. [37] Com efeito, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).

Não merece, assim, censura a convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que, como vimos, o tribunal de primeira instância não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem tal dúvida se evidencia) [38].

Desta forma, e como é observado no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [39],«Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente».


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III) Preenchimento do tipo de ilícito objetivo do crime de violência doméstica.

Discordando da subsunção dos factos provados ao tipo de ilícito (e de culpa) do crime de violência doméstica argumenta o recorrente que «mesmo que se mantenha toda a matéria de facto dada por provada, apenas podemos constatar a existência de 3 episódios de agressões físicas, 2 deles acompanhados por injúrias que, atento o meio em que arguido e ofendida se inserem e se relacionam não poderão deixar de ser consideradas como corriqueiras, no sentido de não terem uma carga especialmente injuriosa ou ofensiva. E nada mais.

O que, dito de outro modo, significa que, no presente caso, nada vemos que permita ultrapassar a fronteira das ofensas à integridade física simples e das injúrias para alçar todo um patamar de gravidade que permita fazer integrar a conduta na violência doméstica. Nada, nos factos dados como provados permite fazer perceber que o arguido fosse cruel com a ofendida, que a maltratasse, que a desrespeitasse, que a menosprezasse, que a humilhasse, que a coisificasse, que contra ela praticasse violência sexual, ou económica, ou emocional; nada indicia uma situação de desrespeito pela pessoa da vítima; de tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima».

As considerações do recorrente, para além de serem juridicamente erradas, afiguram-se sociologicamente desadequadas.

Vejamos.

O art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, sob o título “violência doméstica”, estabelece que «1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos».

O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental [40].

Como diz André Lamas Leite (in “A violência relacional íntima”, Revista Julgar nº 12, Set-Dez. 2010, páginas 23/66), identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que «é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-ativa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante».

Daí que, como observa este autor, «o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» [41].

Essa especial relação de afeto e de confiança própria da relação de proximidade existencial entre o agressor e a vítima fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, «que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante» [42].

Entre a multidão de ações que podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e, em regra, também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, para além empurrões, arrastões, apertões de braços ou puxões de cabelos, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.

Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação (ou de partes dela), as privações de liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. [43]

Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos atos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de maus tratos para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica.

Embora sendo predominante, a reiteração dos maus tratos – configurando casos de microviolência continuada, em que a opressão de um dos (ex) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica, que, apesar da sua baixa intensidade, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, até casos extremos, de verdadeiro terror doméstico – não é obrigatória.

Como salienta Inês Ferreira Leite (estudo citado, pág. 19), «O legislador de 2007, ao qualificar a reiteração como elemento típico possível, mas não obrigatoriamente exigível, terá tido em vista o contexto social e judiciário da violência doméstica, visando acautelar o sucesso do processo penal ainda que não se consigam individualizar vários eventos concretos de violência saliente. Ainda assim se justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, desde que subjacente a um evento concreto de violência (de qualquer tipo, e ainda que não tenha extrema gravidade), se encontre – de modo demonstrável, através da prova indiciária, em julgamento – o tal ambiente global de intimidação, menorização, subalternização, a partir de um contexto de imparidade e dependência, que caracterizam o tipo social da violência doméstica».

Coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2010 (disponível em www.dgsi.pt), que «basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado.
Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto
pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária».

É de salientar, ainda, que estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.[44]

Em suma, o bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é, assim, a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. Sempre que nas condições de proximidade existencial previstas no art.º 152.º se mostre preenchido um tipo incriminador do Código Penal relacionado com a saúde e integridade pessoal, nomeadamente as ofensas à integridade física, injúrias, sequestro ou ameaças, forçosamente preenchido estará também o tipo de ilícito da violência doméstica.

A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Por outro lado, não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor.

Com efeito, e para além do mais, podem existir maus tratos físicos e psíquicos típicos do art.º 152.º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente e o tipo sociológico prevalente das situações de violência doméstica). Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de “subjugação”.

Não são, assim, exigíveis quaisquer elementos adicionais, nomeadamente o objetivo ou intenção de exercer domínio sobre a vítima, ou de achincalhar, ou de degradar a pessoa ou a sua dignidade, esses sucedâneos disfarçados da antiga malvadez ou egoísmo consagrados no tipo incriminador do artigo 153º do Código Penal de 1982, abandonados pelo legislador em 1995 por força de uma nova tomada de consciência da gravidade e extensão do fenómeno da violência doméstica e da necessidade de reforço efetivo da sua prevenção [45].

Como exemplarmente se afirma no acórdão do TRC, de 22/9/2021 [46], condensando tudo o que acabámos de expor:

«I - O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação, de sequestro, de importunação sexual, de coação sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra.

II - A estrutura típica do crime p. e p. no artigo 152.o do CP não exige a verificação de qualquer relação de dependência ou de domínio exercida pelo autor desse ilícito sobre a vítima.

III – A opção pelo tipo do artigo 152.º, em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente bens jurídicos por aquele atingidos, impõe a ocorrência de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime de violência doméstica ser indissociável da relação presente ou passada prevista no normativo indicado. Se é possível estabelecer o nexo entre os maus-tratos e a relação presente ou pretérita, ocorre violência doméstica; se, pelo contrário, esse nexo não pode ser estabelecido, a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objetivamente representa».

O crime de violência doméstica não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal.

No presente caso, ficaram inequivocamente demonstrados comportamentos (insultos, humilhações, ameaças e outros constrangimentos da autonomia e liberdade da pessoa da vítima – que mantinha uma relação de namoro com o arguido -, para além de agressões físicas) suscetíveis de integrarem o tipo de crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado.

Deste modo, assumindo particular danosidade social e denotando o especial desvalor de ação pressuposto pelo crime de violência doméstica, justificava-se inequivocamente a sua autonomização face aos outros tipos de ilícito (designadamente, injúria e ofensa à integridade física) com os quais se encontra numa relação de concurso aparente [47], tal como entendeu o tribunal de primeira instância.

Improcede, por conseguinte, o presente fundamento do recurso, nenhuma censura nos merecendo, também quanto a este aspeto, a (muitíssimo bem fundamentada, aliás) sentença recorrida.


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IV) Medida concreta da pena e possibilidade de suspensão da respetiva execução.

Discorda o recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada – e que o tribunal a quo, numa moldura abstrata de 2 a 5 anos, decidiu fixar em 3 anos e 10 meses -, reputando-a de desproporcionada e excessiva, designadamente em face da «medida da culpa» apurada. Argumenta, para tanto, que a grave condição neurológica de que «ficou a padecer na sequência do gravíssimo acidente de viação que sofreu em 2019 afeta drasticamente o seu comportamento e a capacidade de entender e querer», «tornando-o, sem culpa sua mais agressivo. E se é verdade que essa agressividade se potencia sempre que o arguido bebe, é verdade também, como deixou claramente o Sr Perito Psiquiatra nomeado pelo INML que o arguido não tem controlo sobre os impulsos que o fazem beber ou continuar a beber para lá do que outra pessoa o faria, por lhe faltarem os filtros ou a consciência do seu estado, muitas vezes com falta de consciência, a posteriori, do que de facto possa ter feito».

Conclui que «tal alteração comportamental é consequência de acidente e, portanto, sem culpa sua».

Vejamos se lhe assiste razão.

O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente AA com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição parcial da sentença recorrida):

«[…] Em jeito de conclusão, podemos, assim, afirmar que a culpa do arguido fixa o limite máximo da pena, enquanto o seu limite mínimo é determinado pelas exigências de prevenção geral, ao passo que a prevenção especial justificará a fixação, dentro dos limites expostos, do quantum da pena, porquanto a pena terá de se assumir como a sanção adequada e proporcionada aos factos e ao agente.

Além disso, terá em vista a satisfação das suas funções de prevenção e ressocialização do agente, procurando evitar que outros cometam infrações semelhantes.

De acordo com o exposto, a determinação da medida da pena desenvolve-se em três fases: primeiro, determina-se a moldura penal (medida legal ou abstrata da pena) aplicável ao caso, depois, dentro daquela moldura legal, determina-se a medida concreta da pena que vai se aplicar, e, finalmente, o juiz escolhe a espécie de pena que efetivamente deve ser cumprida, de entre as penas postas à sua disposição no caso, através dos mecanismos das penas alternativas ou das penas de substituição.

Desta forma, considerando a moldura penal abstrata da pena de prisão aqui em causa, há que aplicar os critérios fixados no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, que consagra a teoria da margem de liberdade na perspetiva dos fatores concretos da medida da pena relativos à execução do facto, prevendo assim as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, relativas à ilicitude (grau de violação ou perigo de violação do interesse ofendido, número de interesses ofendidos e suas consequências; eficácia dos meios de agressão utilizados), à culpa (grau de violação dos deveres impostos ao agente, grau de intensidade da vontade criminosa, sentimentos manifestados no cometimento do crime, fins ou motivos determinantes, conduta anterior e posterior, personalidade do agente), e à influência da pena sobre o agente (condições pessoais do agente e situação económica).

No que diz respeito às circunstâncias que são enunciadas no n.º 2, do referido preceito legal, há que ter ainda em consideração aquilo que a doutrina considera como a sua ambivalência, o que significa, portanto, que, por um lado, algumas das circunstâncias em análise podem relevar não só para a culpa, como também para a prevenção, e por outro, que o mesmo elemento, quando duplamente relevante, pode ter significado antinómico, consoante seja valorado para efeitos de culpa ou de prevenção.

Nesse conspecto, e vertendo à situação dos autos, quanto ao grau de ilicitude da conduta do arguido, podemos afirmar que o mesmo se revela elevado, atendendo ao próprio modo de execução e a natureza dos atos praticados, destacando-se, pela sua gravidade, o episódio ocorrido em 12 de agosto de 2023, ao desferir-lhe murros na cara e na cabeça, em número não concretamente apurado, não tendo sequer parado essa conduta mesmo quando a assistente lhe pediu para o fazer, por estar a ter um ataque de ansiedade, tudo isso acompanhado de insultos, ao ponto de a G.N.R. ter sido chamada ao local.

Mas se é verdade que a conduta do arguido (conforme temporalmente delimitada pela acusação e resultou demonstrada), perdurou por um período temporal relativamente curto (fevereiro a agosto de 2023) e se traduziu em quatro episódios temporalmente distintos entre si – em data não concretamente apurada, seguramente situada entre o dia 27 e 29 de abril de 2023, durante a tarde; 27 de maio de 2023, pelas 21 horas e depois por volta das 00 horas e 12 de agosto de 2023, pelas 16 horas), também não é menos inequívoco que a mesma apenas cessou não por ato voluntário do arguido (ou seja, não por este ter repensado a sua atuação, decidindo mudar o seu comportamento, adotando-o às mais elementares regras jurídico-penais), mas sim porque foi “obrigado” a isso, ao ser detido e sujeito à medida de coação de preso preventiva, a qual se manteve até à presente data.

Também com pendor negativo apresentam-se as consequências da conduta delituosa do arguido na vítima, pois que, sem terem sido produzidas sequelas e/ou consequências permanentes, aquela sofreu, para além de fenómenos dolorosos, escoriações dispersas no braço esquerdo e região cervical direita, equimose e hematoma supra-orbitário no olho direito; no membro superior esquerdo: sem desnivelamento da cintura escapular, sem evidência de atrofia muscular e sem diminuição da força muscular na abdução do ombro e na preensão da mão que lhe determinaram 8 (oito) dias de doença, para as quais teve a necessidade de receber assistência hospitalar no Hospital ....

Além disso, a assistente sentiu medo, inquietação, além de ter vivido um estado de ansiedade, de nervos, angústia, pânico, insegurança e irritação, mais se sentindo ofendida na sua honra, consideração, bom nome e reputação, apresentando, em agosto de 2023, um quadro depressivo/ansiedade (descontrolado), com toma diária de antidepressivos.

De salientar ainda que o facto de certos episódios em apreço terem ocorrido no interior da residência que o casal, por vezes, partilhava, outros na presença do filho menor da assistente e, ainda outros, no interior da residência da mãe da assistente, onde esta se encontrava refugiada após ter sido agredida pelo arguido, já foi devidamente valorado, aquando da agravação do mínimo legal da pena abstrata decorrente da própria lei, conforme consta do citado n.º 2, do artigo 152.º.

Outrossim, com cariz agravante, é de valorar ainda o facto de o arguido ter atuado com dolo direto, que é a modalidade mais intensa de culpa.

A culpa com que o arguido atuou é, no entanto, e de certa forma, atenuada pela circunstância daquele se encontrar alcoolizado quando perpetrou alguns dos factos supra descritos, pois que, como é sabido o álcool interfere negativamente na capacidade de avaliação e de determinação do agente (sem, contudo, sequer se questionar a sua imputabilidade, como vimos, nem mesmo que esta estivesse diminuída). Contudo, se por um lado, esse fator atenua a culpa com que o arguido agiu, por outro lado, conforme infra se verá, incrementa as exigências de prevenção especial no que caso se fazem sentir, o que deve ser sopesado de forma negativa, tanto mais que o arguido, bem sabendo ser portador de tal dependência, deveria ter evitado esses consumos por forma a afastar a probabilidade de adotar os descritos comportamentos violentos para com a sua então namorada e em relação à qual deveria ter um especial e acrescido dever de respeito, que violou, com a sua atuação, em toda a sua linha.

Há que atentar, ainda, ao facto de o arguido apresentar características de imaturidade psicoafectiva, dificuldade no controlo dos impulsos, impulsividade, baixas estratégias de coping, dificuldade em lidar com a frustração, o que pode influenciar o seu comportamento e funcionamento psicológico, levando-o à adotação de novos comportamentos de risco, idênticos aos praticados nos autos (aliás, a este propósito, e sem prejuízo, de infra o avaliarmos novamente, não podemos deixar de considerar que esta não foi a primeira vez que o arguido praticou um crime de violência doméstica, na pessoa de uma outra vítima (mais concretamente a LL), o que é bem revelador da sua personalidade violenta).

De resto, do ponto de vista psiquiátrico, foi já diagnosticado ao arguido “perturbação secundária do controlo de impulsos” (6E66, CID-11), síndrome caracterizada pela presença de sintomas proeminentes característicos de transtornos de controle de impulsos ou transtornos devidos a comportamentos aditivos (por exemplo, surtos de comportamentos agressivos) que são uma consequência fisiopatológica direta de uma condição de saúde não classificada em transtornos mentais e comportamentais, estando a mesma bem documentada neuroimagiologicamente através da afetação de áreas cerebrais diretamente relacionadas com o controlo de impulsos (RM cerebral: múltiplas lesões focais com hipossinal em T2* interessando a interface cortico-subcortical dos hemisférios cerebrais, sobretudo nas regiões frontais, temporais e parietais, mas também o corpo caloso, sugerindo hemorragias petequiais não recentes, em provável contexto de lesão axonal difusa, decorrente do acidente de viação de que foi vítima quando tinha 20 (vinte) anos de idade, a partir do qual passou também a padecer de epilepsia, sendo certo que o consumo de tóxicos (álcool ou outras substâncias psicoativas) agravou esta incapacidade de controlo de impulsos e o baixo limiar de tolerância à frustração, propiciando a adoção de comportamentos explosivos de hetero e/ou auto agressividade, tudo no sentido de incrementar as exigências de prevenção especial de ressocialização que se fazem notar, precisamente pela forte probabilidade de repetição das mesmas condutas, ainda que na pessoa de uma outra vítima.

Tanto mais que, em sede de julgamento, o arguido não expressou quanto aos factos dados como provados (os quais aliás negou) qualquer tipo de autocensura e arrependimento, evidenciando, ao invés, um discurso revelador de dificuldades para perceber ou identificar os reais danos para as vítimas, bem como reduzida capacidade empática relativamente à vítima (a quem, aliás, ridicularizou e rebaixou, dando conta que apenas mantinha com ela encontros fortuitos de cariz sexual), o que indicia a ausência de interiorização do desvalor de condutas análogas, implicando, por isso, um aumento das exigências de prevenção especial de ressocialização.

Ainda a este propósito, mostra-se essencial fazer alusão ao percurso de vida do arguido, onde se destaca o seu processo de desenvolvimento, o qual decorreu em ..., concelho de Paredes, inserido num agregado familiar constituído pelos progenitores, o pai, empresário, e a mãe empregada numa quinta de fabrico de vinhos (a qual faleceu quando aquele tinha 12 (doze) anos de idade), e uma irmã mais velha, num contexto familiar descrito como securizante. Iniciou o seu percurso escolar em idade regular, tendo concluído o 12.º ano de escolaridade, com registo de um percurso adaptado e bons resultados escolares, seguindo-se a integração no mundo laboral junto do pai, proprietário de uma fábrica de mobiliário, onde trabalhou até à data da sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva, ali auferindo o vencimento mensal aproximado de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). As suas rotinas eram orientadas em função do trabalho que desenvolvia e do convívio com amigos, constituindo-se o pai e irmã como os únicos familiares diretos que possuía, conservando com a última uma relação de distanciamento. Aos 20 (vinte) anos foi vítima de um acidente de viação tendo, nesse âmbito, chegado a estar em coma, do qual resultaram diversas sequelas, como vimos supra, tendo sido no período pós internamento que o arguido e o progenitor situam o início do consumo de álcool e haxixe e consequentemente a assunção dos descritos comportamentos agressivos. No meio social envolvente, o arguido beneficiava de uma imagem social genericamente abonatória, exceto quando sob o efeito do consumo de bebidas alcoólicas, alturas em que alterava radicalmente o seu comportamento, tornando-se agressivo. Aliás, o arguido chegou a recorrer ao Centro de Respostas Integradas ... e, no período que antecedeu a prisão preventiva a que foi sujeito nestes autos, realizou tratamento à problemática do consumo de estupefacientes no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar ..., em ..., assumindo redução do consumo de bebidas alcoólicas, limitando a utilização de estupefacientes a consumos esporádicos de haxixe.

Em ambiente prisional, o arguido assume atividade laboral na carpintaria do estabelecimento prisional e, pese embora afirmar manter-se abstinente do consumo de estupefacientes desde que ali entrou, a verdade é que, em novembro de 2023, foi alvo de sanção disciplinar de repreensão escrita por ter, no seu espaço de alojamento, objeto não permitido (cachimbo artesanal para consumo de estupefacientes).

Resta salientar o teor do certificado de registo criminal do arguido, o qual não pode deixar de ser aqui negativamente valorado, porquanto é demonstrativo de que o mesmo já foi condenado, por um lado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ocorrido em 17 de abril de 2022, tendo-lhe sido aplicada uma pena de multa, além da pena acessória de proibição de conduzir, as quais aliás já se encontram extintas, pelo respetivo cumprimento e, por outro, pela prática de um crime de violência doméstica, de um crime de ameaça agravada, de um crime de injúria e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, cometidos, respetivamente, em 2019, 27 de junho 2021, junho de 2021, 2019 e junho de 2021, tendo-lhe sido aplicada uma pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova e sujeição a deveres (incluindo tratamento médico à sua dependência alcoólica), por sentença prolatada a 04 de maio de 2023 – veja-se que o primeiro episódio ocorrido nos autos ocorreu entre o dia 27 e 29 de abril, ou seja, dias antes da leitura dessa sentença condenatória e, como tal, numa altura em que o julgamento já se encontrava em curso e, não obstante, o arguido voltava a cometer novo crime idêntico, agora na pessoa de uma outra vítima – e transitada em julgado em 05 de junho de 2023 – sendo certo que, já sabendo a pena que lhe tinha sido aplicada e a oportunidade que lhe tinha sido dada para se manter em liberdade, no pressuposto de não cometer novos crimes, o arguido, ignorando tudo isso, numa clara postura de indiferença, praticou, em 27 de maio de 2023 (portanto, antes do trânsito) e 12 de agosto de 2023 (após trânsito), os factos acima descritos, o que, como é manifestamente revelador de que o arguido não foi permeável ao efeito dissuasor dessa pena, com isso aumentando, e muito, as exigências de prevenção especial de ressocialização.

Por fim, importa apelar às necessidades de prevenção geral, as quais são manifestamente elevadas, considerando a (cada vez maior) frequência com que ocorrem crimes de violência doméstica, estando os tribunais portugueses inundados de processos atinentes a este tipo de crime, que tantos danos causam na vítima, mas também reflexamente na sociedade, sendo recorrente verificar-se que a comunidade em que se insere a vítima e o agressor, incluindo os familiares destes, e até a própria vítima, acabam por adotar atitudes desculpabilizantes em relação à conduta do agressor, com não inusitadas consequências nefastas, culminando essas agressões, por vezes, até na própria morte da vítima, importando, por conseguinte, reforçar a crença da comunidade nas normas jurídicas violadas.

Tudo visto e ponderado, e lançando mão dos ensinamentos de KOHLAUSCH, que afirmava que “(…) na determinação da pena o tribunal deve considerar principalmente que meios são necessários para que o réu leve de novo uma vida ordenada e conforme a lei”, considera-se justo, adequado e necessário fazer corresponder uma pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão ao crime de violência doméstica».

Constitui entendimento pacífico que a pena visa finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[48]

Assim, consideração da culpa do agente liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).

O princípio da culpa, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana e objeto de consagração constitucional, tem uma eficácia irradiante sobre o sistema de direito penal ordinário, sujeitando-o à necessidade de fundamentar a responsabilidade penal em apropriados elementos subjetivos e recusando-lhe a possibilidade de instrumentalização da pessoa, designadamente para efeitos de prevenção geral.

No presente caso, ficou provado, como o tribunal reconhece, que do ponto de vista psiquiátrico, foi diagnosticada ao arguido “perturbação secundária do controlo de impulsos” (6E66, CID-11), síndrome caracterizada pela presença de sintomas proeminentes característicos de transtornos de controle de impulsos ou transtornos devidos a comportamentos aditivos (por exemplo, surtos de comportamentos agressivos) que são uma consequência fisiopatológica direta de uma condição de saúde não classificada em transtornos mentais e comportamentais, estando a mesma bem documentada neuroimagiologicamente através da afetação de áreas cerebrais diretamente relacionadas com o controlo de impulsos (como provável decorrência do acidente de viação de que foi vítima quando tinha 20 (vinte) anos de idade, a partir do qual passou também a padecer de epilepsia), sendo certo que o consumo de tóxicos (álcool ou outras substâncias psicoativas) agravou esta incapacidade de controlo de impulsos e o baixo limiar de tolerância à frustração, propiciando a adoção de comportamentos explosivos de hetero e/ou auto agressividade.

E se a imputabilidade do recorrente não se questiona [49], como assinala o tribunal na sentença recorrida, tanto mais que a prova pericial não infirma tal realidade, resta determinar se o referido quadro psiquiátrico (ou psiconeurológico) tem incidência – e em que medida – sobre a culpa do arguido/recorrente.

É certo que o juízo de culpa não prescinde, desde logo, da “capacidade de entender ou querer”, da capacidade para “avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de acordo com essa avaliação” a que se refere o art.º 20.º do Código Penal Português. A possibilidade de se ser objeto dum juízo de censura tem, assim, por pressuposto a capacidade de culpa, de tal modo que só pode ser censurado o facto (ou também a personalidade) assentes numa "atitude interna juridicamente desaprovada", e só quem "alcançou uma determinada idade e não padeça de graves anomalias psíquicas possui o grau mínimo de capacidade de autodeterminação que é exigido pelo ordenamento jurídico para a responsabilidade penal" (cf. Jescheck in "Tratado de Derecho Penal – Parte General", Comares, 2002, pág. 465).

Reconhecendo que, de acordo com a perspetiva científica desenvolvida pelas modernas ciências sociais, uma vontade livre, entendida como liberdade absoluta de autodeterminação no limite do puro arbítrio, não existe nem pode ser configurada, a Suprema Corte italiana optou por definir a ação como livre numa aceção menos pretensiosa e mais realista do termo: a ação será livre — e, enquanto tal, eticamente sindicável — na medida em que o sujeito não sucumba passivamente aos impulsos psicológicos que o impelem a agir de um determinado modo mas consiga exercitar poderes de inibição e de controlo idóneos a consentir-lhe escolhas conscienciosas frente a motivos antagonistas. [50]

Como observa Joana Costa (in Julgar n.º 15, página 81), «na ausência de uma base epistemológica certa, a conclusão ainda hoje porventura mais segura seja a de que as perturbações da personalidade, não obstante incluídas no conceito de anomalia psíquica, não se apresentam, em regra, na ausência de co-morbilidade, com gravidade e consistência suscetíveis de anular ou tornar ineficiente a capacidade de auto-determinação racional no momento do crime — o que poderá justificar a sua problematização no âmbito discussão nos fatores da pena».

E, nessa medida, cremos que o tribunal não ponderou adequadamente, ao nível do juízo de culpa dirigido ao arguido, a limitação decorrente da situação psiconeurológica que o afeta, com a diminuição da capacidade de controlo dos impulsos. É claro, porém, que esta diminuição do juízo de censura fica fortemente mitigada pela circunstância de ter ficado demonstrado que a dificuldade de controlo de impulsos e o baixo limiar de tolerância à frustração, propiciando a adoção de comportamentos explosivos de hetero e/ou auto agressividade, é exponenciada pelo consumo de substâncias tóxicas (álcool e outros psicotrópicos), dependendo este fator do controlo e da vontade do arguido [51]. Como bem assinala o tribunal a quo, sabendo ser portador de tal dependência – e, acrescentamos nós, da referida condição psiconeurológica ou psiquiátrica -, era exigível ao arguido que se tivesse abstido do consumo daquelas substâncias, por forma a reduzir o risco de assumir comportamentos violentos, designadamente para com a sua, então, namorada, em relação à qual tinha um acrescido dever de respeito e proteção [52].

Deste modo, embora se reconheça que são muito elevadas as exigências de prevenção geral e especial verificadas no caso concreto - considerando, por um lado, a frequência com que o crime de violência doméstica é praticado no nosso país, muitas vezes com desfechos trágicos [53], e, por outro, a personalidade denotada pelo arguido (caraterizada por imaturidade psicoafectiva, impulsividade, baixas estratégias de coping e baixa tolerância à frustração), traduzida num incremento de perigosidade, evidenciada, aliás, nos seus antecedentes criminais -, a diminuição do juízo de censura jurídico-penal que lhe pode ser dirigido impõe a consequente redução da pena concretamente aplicada, na medida em que, por muito elevadas que se afigurem as exigências de prevenção, a pena em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa (cf. o art.º 40.º, n.º 2, do CP) [54].

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequada a pena de 3 anos de prisão, procedendo, nesta parte, o recurso.

Resta assinalar que não encontramos motivo para alterar o quantum da indemnização arbitrada pelo tribunal de primeira instância a favor da demandante BB, permanecendo válidas as considerações, com relevo para esta questão, assentes na equidade, constantes da sentença recorrida.


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Analisemos, agora, a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, hipótese que a nossa lei penal expressamente contempla no artigo 50.º.

Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão [55].

Por outro lado, em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.[56]

A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.

Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).

Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 [57] (igualmente disponível em www.dgsi.pt), reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».

No caso concreto, para além de se mostrarem exacerbadas as exigências de prevenção geral associadas a este tipo de criminalidade, constituindo o fenómeno da violência doméstica um autêntico flagelo social [58], o arguido denota uma atitude deficitária ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta e, para além disso, uma personalidade violenta e impulsiva, persistindo o risco de escalar a violência dos seus comportamentos, em meio livre – e, portanto, sem estar condicionado por controlo externo -, tanto mais que tudo indica que permanece por resolver a sua dependência de substância psicoativas.

Assim, não só as elevadas exigências de prevenção especial, mas também as acentuadas exigências de prevenção geral, “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", pelas quais se limita sempre o valor da socialização, impõem, no presente caso, a aplicação de uma pena de prisão efetiva. A comunidade dificilmente compreenderia que alguém que pratica factos da natureza e gravidade dos que o arguido praticou, de forma repetida e revelando uma personalidade violenta e avessa à observância das normas jurídico-penais (incrementando, por isso, o juízo de perigosidade associado à sua personalidade e, consequentemente, de prognose desfavorável relativamente ao seu comportamento futuro), fosse punido com uma pena diversa da pena de prisão, afigurando-se previsível a total ausência de capacidade intimidatória e dissuasora das medidas alternativas previstas na lei.

Mostra-se, assim, necessária a aplicação ao recorrente de uma pena de prisão, em detrimento de uma pena de substituição, por só aquela se mostrar adequada para dissuadir o arguido/recorrente da prática de novos crimes e reforçar a confiança comunitária na validade da norma violada.


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto no seguinte:

1) Negam provimento aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido, confirmando-se os despachos recorridos.

Por cada um dos referidos recursos são devidas custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça respetiva em 3 UC (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).

2) Concedem parcial provimento ao recurso da sentença interposto pelo arguido, reduzindo-se a pena concretamente aplicada para 3 anos de prisão e mantendo-se, no demais decidido, a sentença recorrida.

Não são devidas custas quanto ao recurso da sentença.

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)

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Porto, 19 de fevereiro de 2025.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
Maria dos Prazeres Silva
__________________
[1] As questões que constituem o objeto do recurso serão conhecidas de acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (cf. o artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 4.º do Código de Processo Penal).
[2] É de notar que o recorrente anuncia pretender recorrer, igualmente, da condenação proferida no âmbito da responsabilidade civil e, por isso, do pedido de indemnização, mas não concretiza os fundamentos da sua discordância, limitando-se a alegar, nas conclusões, que «A condenação cível decorre e depende naturalmente da condenação penal, razão pela qual se remete para o recurso da condenação penal as razões de recurso da mesma». Deste modo, a condenação cível apenas será sindicada se, e na medida, em que ocorra alguma alteração relevante quanto à responsabilidade criminal do recorrente.
[3] Relatado pelo Desembargador Jorge Simões Raposo e disponível em www.dgsi.pt.
[4] No mesmo sentido, o acórdão do TRE de 21/3/2017, relatado pelo Desembargador João Gomes de Sousa e disponível em www.dgsi.pt: “O direito à produção da prova está limitado pela sua admissibilidade, relevância jurídica e necessidade (artigos 124º e 340º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal). Se essa concretização é inútil para os autos, o princípio da necessidade impõe que não se admita. Daqui decorre que se o direito de defesa se pode concretizar no peticionar de produção de um meio de prova, dele não resulta o automatismo descontrolado da sua produção.”.
[5] “Comentário ao Código de Processo Penal”, 2016, 2ª ed., p. 1049 - apud acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 7/11/2016, processo n.º 121/15.5T9BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Com o seguinte teor, agora transcrito pelo tribunal de primeira instância: «[…] Ademais, diga-se que o arguido veio requerer a junção de um documento e a inquirição de uma testemunha.
A este propósito, é também de indeferir a pretensão do arguido, por manifestamente irrelevante para a boa decisão da causa, uma vez que a produção dos meios probatórios ora indicados, desde logo porque, quanto ao documento ora apresentado, o mesmo não tem qualquer virtualidade de pôr em causa a convicção assente nas declarações prestadas pela assistente, prestadas em sede de declarações para memória futura e sujeitas à livre apreciação do tribunal por terem cumprido os requisitos legais para o efeito. Acresce dizer que se trata de um documento cuja autoria, data de elaboração e sobretudo fidedignidade dos elementos nele insertos se desconhece e, ainda que se conhecesse, a verdade é que ao estar indiciado que aquele concreto episódio ocorreu em data não concretamente apurada, mas seguramente entre os dias 27 e 29 de abril de 2023, o mesmo nunca teria o condão de fazer prova de que o arguido não esteve com a assistente em nenhum momento contido nesse período temporal.
O mesmo se diga quanto à indicada testemunha, a qual aliás já foi inquirida em sede de audiência de julgamento, não havendo qualquer motivo para voltar a ser reinquirida, na medida em que seguramente iria manter o mesmo discurso já prestado anteriormente e que será objeto de apreciação em sede de sentença no que se refere a credibilidade conferida ou não a essa mesma testemunha.
Na verdade, nenhum desses elementos probatórios iria abalar a convicção deste tribunal já formada em face da prova já produzida, razão pela que se indefere a sua produção, à luz do preceituado no artigo 340.º, n.º 4, alíneas b) e d) do Código de Processo Penal.
Notifique».
[7] Relatado pela Desembargadora Maria Joana Grácio, in www.dgsi.pt.
[8] Assim, sempre que os factos apresentados numa contestação representem mera impugnação, no sentido de negação, dos factos descritos da acusação – aqui se incluindo quer uma negação stricto sensu, desacompanhada de uma narrativa explicativa alternativa à descrição factual da acusação, quer esta última hipótese –, ali não se acrescentando quaisquer outros que respeitem ao grau de culpa do agente, que possam constituir-se como causas de exclusão da ilicitude ou da culpa ou que tenham relevo para a determinação da sanção, não é necessário que sejam inseridos no elenco dos factos não provados se o Tribunal deu como provados todos os factos que constam da acusação e respeitem os elementos constitutivos do crime, à participação do arguido e ao seu grau de culpa, representando aqueles apenas o seu reverso.
[9] Proc. n.º 36/06.8GAPSR.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[10] Proc. n.º 495/11.7GBTBABF.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[11] Também no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/1/2013, Proc. n.º 10/09.2GBODM.E1, acessível in www.dgsi.pt, onde se defendeu que «I - A exigência legal da enumeração na sentença dos factos provados e não provados visa permitir que a decisão, em processo penal, demonstre que o tribunal considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída na acusação, ou na pronúncia, e na contestação ou resultante da discussão da causa e com relevância para a decisão. II - Não se configura, porém, como imposição de inclusão de factos sem relevância para a decisão da causa ou de factos que decorram implicitamente de outros mencionados e/ou os contrariem».
[12] Cf. o ponto 4: «O arguido padece de epilepsia, para a qual toma medicação».
[13] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[14] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[15] Relatado pelo Desembargador Francisco Caramelo, consultável em www.dgsi.pt.
[16] Relatado pelo Desembargador Renato Barroso, consultável em www.dgsi.pt.
[17] Pois a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
[18] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º), e não apenas a permitirem.
[19] Como se observa no acórdão deste TRP, datado de 13/12/2023 (relatado pelo Desembargador José António Rodrigues da Cunha e consultável em www.dgsi.pt), «Questionada a decisão matéria de facto através da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.º 3, do CPP, recai sobre o recorrente o ónus de especificar e individualizar os concretos factos que, em seu entender, se encontram incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Feita tal indicação, deverá ainda explicar a razão pela qual as provas ou os meios de prova que especifica impõem decisão diversa da recorrida. Por exemplo, não basta transcrever excertos de declarações ou de depoimentos e dizer que dali resulta o contrário do decidido. Acresce que o ónus deve ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não por atacado, impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
Porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, não pode o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido. Face a essa limitação, o tribunal de recurso, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, só pode alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem. Isto é, quando a convicção do julgador da primeira instância tiver na sua base erros de tal modo evidentes e óbvios que tornem a decisão inaceitável».
[20] Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, Proc. nº 06P120, (disponível em www.dgsi.pt) com as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal «visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Impõe-se, por isso uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos».
[21] Cf. o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência, de 8/3/2012, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in DR. I Série, n.º 77, de 18.04.2012: «Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª primeira instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo».
[22] Cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, maio de 1999, e Damião da Cunha, in «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37.
[23] “Em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” – cf. o acórdão do STJ de 30/11/2006, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt.
Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
[24] Relatado pelo Conselheiro Raul Borges, já citado.
[25] Como é assinalado no acórdão do TRL de 29/3/2011 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves, consultável em www.dgsi.pt), tem-se entendido que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está.
[26] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[27] Estabelece o art.º 127.º do CPP que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
[28] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[29] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRG de 21/6/2010 (relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso e disponível para consulta em www.dgsi.pt), o prof. Enrico Altavilla já há muito ensinava que "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12.
[30] Como vem sendo salientado pela jurisprudência dos tribunais superiores, dar ou não dar crédito ao que diz um arguido, um ofendido ou uma testemunha é uma questão de convicção, que assenta numa multiplicidade de circunstâncias e fatores que ocorrem no julgamento da primeira instância. Ora, quando a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência (cf. o acórdão do TRC de 13/9/2017, relatado pelo Desembargador Inácio Monteiro, in www.dgsi.pt) – algo que, manifestamente, não sucede no presente caso.
[31] Igualmente disponível em www.dgsi.pt.
[32] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[33] Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
Consta também do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt) o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
[34] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[35] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[36] Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto, o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido. O que, como se viu, não sucede no presente caso.
[37] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[38] Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Na síntese do acórdão do TRL de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[39] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[40] Cf., neste sentido, Nuno Brandão, in “A tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar nº 12 -2010, páginas 14 e 16.
De acordo com Plácido Conde Fernandes, o bem jurídico protegido por este tipo de ilícito é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da ação e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Neste sentido, cf., igualmente, Inês Ferreira Leite, In “Sensibilidade & Bom Senso: Um (breve) percurso interpretativo do tipo legal de violência doméstica à luz do seu tipo social e das abordagens judiciais”, publicado no e-book do CEJ, consultável através deste link: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_VD2019.pdf?fbclid=IwAR3wjTm9ImHSE24tcG7MlhsF709QbfwdYPOyLHN8BaEFIj9H9VQL0ItauJA), páginas 21 e 22.
[41] Artigo citado, pág. 49.
[42] Cf. Ac. TRL, de 31/5/2016, Proc. 249/14.9PAPTS.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
Como se afirma no acórdão proferido por este TRP, no processo n.º 819/22.1GAVCD.P1, «É a relação de proximidade existencial e o especial dever de respeito dela emergente que faz com que as condutas que constituam ofensa a algum desses bens jurídicos por ela unidos preencham o tipo incriminador da violência doméstica, haja ou não reciprocidade, ou relação de dominação e sem que se exija uma especial intenção, intensidade ou reiteração».
[43] Exatamente neste sentido, Nuno Brandão, ob. cit., p. 19.
Os maus tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe “a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar» (cf., neste sentido, o acórdão do TRL de 27/2/2008, relatado pelo Desembargador Carlos Almeida, in www.dgsi.pt).
[44] Neste sentido, cf. Nuno Brandão, estudo citado, páginas 17 e 18.
[45] Cf., neste sentido e a título exemplificativo, os recentes acórdãos deste TRP de 12/6/2024 (Liliana Páris Dias) e de 11/12/2024 (William Themudo Gilman), consultáveis em www.dgsi.pt.
[46] Relatado pelo Desembargador Jorge Jacob, consultável em www.dgsi.pt.
[47] Como observa Maria Elisabete Ferreira, in «Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica» (Julgar Online, Maio de 2017), «o fundamento da agravação da pena reside na especial qualidade do agente, podendo entender-se que o legislador considerou que tais condutas, quando praticadas por agentes ligados às suas vítimas por laços de parentesco, familiaridade, ou convivência próxima, são merecedoras de particular censura, porque colocam em causa não só a simples saúde individual da vítima, mas também, a pacífica convivência familiar, doméstica e para-familiar, um núcleo vivencial de proximidade íntima onde é imprescindível e, in casu, resulta posto em crise o princípio da confiança recíproca».
[48] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt)[48], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa”.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[49] É de notar que o sistema jurídico português não confere relevância autónoma à figura da «imputabilidade diminuída» (diversamente do que sucede com a lei Italiana, como nos dá conta Joana Costa, no estudo publicado na Julgar n.º 15) e, esta, quando casuisticamente reconhecida, não conduz necessariamente a uma diminuição da pena. Como é assinalado no acórdão do STJ de 7/2/2018 (relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt), «É incontestável que à imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave».
[50] Cf. Joana Costa, no estudo intitulado «A relevância jurídico-penal das perturbações da personalidade no contexto da inimputabilidade», publicado em Julgar, n.º 15, página 69.
[51] Diversamente do que invoca o recorrente, não ficou demonstrado que o arguido não tem controlo sobre os impulsos que o fazem beber, para além do que normalmente sucede com pessoas que padecem deste tipo de dependências.
[52] Segundo a jurisprudência fixada pela Suprema Corte italiana, as perturbações da personalidade — que, segundo o DSM-IV-TR, se caracterizam já por serem inflexíveis e não adaptativas — apenas poderão adquirir relevância para efeitos de inimputabilidade quando se relevarem com consistência, intensidade, relevância e gravidade tais que se tornem suscetíveis de incidir em concreto sobre a capacidade intelectiva ou volitiva do sujeito agente de um crime. Deve tratar-se, deste ponto de vista, de uma perturbação da personalidade idónea “a determinar — e que efetivamente haja determinado — uma situação de um acesso psíquico incontrolável e não gerível (totalmente ou em grande medida) que, sem culpa, torne o agente incapaz de exercitar o devido controlo sobre os próprios atos e, consequentemente, de direcioná-los, de perceber o desvalor social do facto e de determinar-se de forma autónoma e livre”.
A limitação da relevância normativa das perturbações da personalidade aos casos em que estas se apresentem com a gravidade e consistência necessárias a bloquear os mecanismos de contra-motivação do sujeito afetado, impedindo-o assim de responder de maneira crítica aos estímulos internos, corresponde inteiramente aos termos em que é possível atribuir-lhes significado no contexto do estabelecimento da inimputabilidade segundo o ordenamento jurídico-penal português. Com efeito, somente naquelas hipóteses tenderá a ser possível a verificação do pressuposto consistente na incapacidade do agente para, no momento da prática do facto, se determinar de acordo com a avaliação que haja feito da respetiva ilicitude (art. 20.º, n.º 1, do Código Penal). – cf. Joana Costa, texto citado, página 74.
[53] Segundo dados divulgados pela Procuradoria-Geral da República, só no primeiro semestre do ano de 2024, morreram vítimas de violência doméstica 10 mulheres e 2 homens.
[54] Cf. o acórdão do STJ de 30/3/2017, relatado pelo Conselheiro Souto de Moura.
[55] Como refere Anabela Miranda Rodrigues [In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.], o Código Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
[56] Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, a socialização não pode sobrelevar a prevenção. Embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
[57] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg.
[58] De acordo com os dados divulgados pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG)/Portal da Violência Doméstica (consultável em https://www.cig.gov.pt/2024/01/dados-oficiais-relativos-a-violencia-domestica-em-portugal-4o-trimestre-de-2023/), em 2023 foram participados 30279 crimes de violência doméstica, tendo sido registadas, no ano de 2022, 30389 participações. No ano de 2023 registaram-se 22 homicídios voluntários em contexto de Violência Doméstica (17 mulheres, 2 crianças e 3 homens). Em 2022 ocorreram 28 homicídios (24 mulheres, 4 crianças). E só no primeiro semestre de 2024, como já fizemos notar, registaram-se 12 mortes em contexto de violência doméstica (10 mulheres e 2 homens).