Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24/21.4T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS CUNHA RODRIGUES CARVALHO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
USUCAPIÃO
PRESUNÇÃO DA INSCRIÇÃO NO REGISTO PREDIAL
Nº do Documento: RP2025111324/21.4T8AMT.P1
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Invocada uma forma de aquisição derivada (por ex. a compra e venda ou a doação), formas não constitutivas do direito de propriedade, mas, apenas, translativas desse direito, é exigível a prova de tal direito na esfera jurídica do transmitente.
II - Invocado como título do direito de propriedade uma forma de aquisição originária, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas é exigível a prova do facto donde tal direito emerge.
III - O art.º 7º do Código Registo Predial CRP, na parte em que se refere ao objecto, só faz presumir que o facto inscrito incide sobre a coisa identificada na descrição, mas já não as respectivas características, nomeadamente áreas e confrontações.

(Sumário da responsabilidade do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 24/21.4T8AMT.P1

Apelante: AA

Apelada: BB


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA e esposa CC, NIF ...06 e ....85, residentes em Rue ..., na Suíça, intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, residente em Rua ..., ..., ... ..., onde concluem pedindo a procedência da acção e, em consequência:

A) declarar-se os Autores únicos e legítimos proprietários do prédio rústico, identificado em 1º e 2º da p.i.;

B) condenar-se a Ré a reconhecer tal direito de propriedade dos Autores sobre toda a extensão do prédio rústico identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial, com a configuração constante dos documentos nº3 e nº8 juntos com a petição inicial, abstendo-se de praticar quaisquer actos turbadores do exercício do mesmo.

Para tanto, alegam, em síntese, a propriedade de um prédio rústico melhor descrito no artigo 1.º da petição inicial, invocando para o efeito a aquisição derivada por via de compra e venda escriturada a 20.4.1994, igualmente invocando a presunção registral e a respectiva aquisição originária por via da usucapião.

Mais alegaram que, ao contrário do que consta nos documentos, o referido prédio de sua propriedade não tem 22.400,00 m2 mas sim 14.322,00 m2, e que alguém, a mando da Ré, colocou marcos em pontos diversos do prédio reivindicado, também se procedendo à terraplanagem de uma parte integrante do mesmo, numa área de 8.700 m2.


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Regularmente citada, veio a Ré oferecer a sua contestação, invocando a ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade da Ré e, bem assim, impugnando os factos alegados pelos Autores.


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Após convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, a que os autores acederam juntando petição inicial aperfeiçoada, foi proferido despacho saneador – no âmbito do qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva arguida pela Ré – e o despacho a que alude o art.596.º CPC.


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Em virtude do falecimento da Autora CC, foram julgados habilitados os herdeiros desta, conforme decisão proferida no apenso.


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Realizou-se a audiência final, tendo-se a final decidido:

«Em face do exposto, julga-se a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a Ré BB dos pedidos formulados pelos Autores.

(….)


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Do assim decidido interpôs-se recurso de apelação, oferecendo-se alegações e formulando-se as seguintes CONCLUSÕES:

1- O Tribunal Recorrido fez uma incorreta valoração da prova documental junta aos autos, designadamente da escritura pública de compra evenda outorgada a 20 deAbril de 1994 no Cartório Notarial de Amarante.

2- Sendo a escritura pública um documento com força pública plena quanto aos factos nela constantes, e não tendo sido feita prova de que a referida escritura de compra e venda foi anulada, por erro, esta mantém a sua validade e eficácia, ficando intocados os efeitos translativos da propriedade por ela veiculados.

3- Da matéria de facto provada, também não resulta qualquer facto que permita afastar a presunção legal consagrada no artigo 7º do Código do Registo Predial, de que os Autores são proprietários do identificado prédio.

4- Assim sendo, através da referida escritura pública de compra e venda, a Recorrida transferiu a posse do prédio aí identificado para os Recorrentes, ou seja, o prédio rústico, denominado “...”, com a área de 22.400 m2, sito no Lugar ..., da freguesia ... (...), no concelho de Amarante, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº ...64 e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...09.

5- Assim sendo, impunha-se que o Tribunal Recorrido não só desse como provada, como efetivamente deu, a matéria constante dos pontos 1 e 2 da matéria de facto dada como provada, mas que também tivesse concluído que os Recorrentes são donos e legítimos proprietários do prédio aí identificado, julgando como procedente a alínea a) do pedido formulado pelos Recorrentes na alínea a) do pedido.

6- Da força probatória plena decorrente da referida escritura pública de compra e venda também resulta que não se pode aceitar a versão alegada pela Recorrida na sua contestação e nas suas declarações prestadas na audiência de julgamento, realizada no dia 29 de Novembro de 2023, cujas declarações foram registadas em formato digital com início às 10h42 e termo pelas 11h14, de que o prédio que efetivamente consta da escritura pública, nomeadamente no que se refere à sua identificação (dimensão) não corresponde ao prédio que pretendia efetivamente vender aos Recorrentes, tendo-lhe sido atribuído erradamente o artigo matricial ...09 da freguesia ..., o qual nunca lhe pertenceu, e que pertencia, à data da escritura a DD (minutos 8:10 a 8:25; 9:05 a 9:15; 9:50 a 9:59 e 24: 22 a27:39).

7- Com efeito, não tendo sido feita prova de que a referida escritura de compra e venda foi anulada, por erro, esta mantém a sua validade e eficácia, ficando intocadas as declarações que a Recorrida aí fez, pelo que não pode a mesma vir agora alegar ter-se tratado de um erro.

8- Atento o exposto, é forçoso concluir-se que a Recorrida tinha perfeitamente conhecimento de que, através da referida escritura pública de compra e venda, vendeu ao Recorrente e à sua falecida esposa o prédio aí identificado, ou seja, o prédio rústico, denominado “...”, sito no Lugar ..., da freguesia ... (...), no concelho de Amarante, com a área de 22.400m2, descritona Conservatória doregisto Predial sob onº...64 einscrito narespetiva matriz sob o artigo ...09.

9- E sabia perfeitamente qual a sua localização, confrontações e delimitação, facto que, aliás também decorre do seu depoimento na parte que supra se identificou (minuto 9:05 a 9:15 e 18:39 a 19:17) e (minutos 19:30 a 19:58), bem como do depoimento prestado pelo Recorrente (minutos 9:10 a 11:06) e (minutos 30:20 a 31:29).

10- Os Autores, no artigo 1º da petição inicial, alegaram que as confrontações do prédio são as seguintes: sul e poente com Rua ... e outro, norte e nascente com estradão, as quais, na ótica do Recorrente, correspondem às confrontações do prédio constantes da certidão predial e matricial, e resultaram provadas, pelas razões supra alegadas, designadamente pela análise e confronto dos dois levantamentos topográficos juntos pelo Recorrente (documento n.º 3 e 8 junto com a PI) e do levantamento topográfico e uma fotografia satélite, retirada do google maps juntos pela Recorrida (doc. n.º 8 e 9 juntos com a contestação).

11- Acresce que os referidos documentos foram exibidos às testemunhas indicadas pelo Recorrente, EE, FF, e GG, e estas não tiveram dificuldade em identificar o prédio do Recorrente, a sua delimitação e confrontações, comofacilmente se percebepela análise dos seusdepoimentos nas partesquesupra se indicaram.

12- Também o Recorrente, no seu depoimento, que supra se identificou, esclareceu ao Tribunal as suas confrontações e a sua delimitação.

13- Do conjunto dos documentos que supra se referiram e dos depoimentos prestados pelas identificadas testemunhas, apenas resulta a dúvida quanto ao limite do prédio do Recorrente, do lado norte, na medida em que o levantamento topográfico junto aos autos pelo Recorrente, nessa parte, não representa o limite correto do prédio. Porém, todos os outros lados estão bem definidos, sendo indiscutível que do seu lado sul e poente o mesmo confronta com caminho público, designadamente a Rua ....

14- Porém, tal facto não impedia o Tribunal de se convencer acerca da localização e delimitação do prédio, na medida em que, quer a testemunha FF, quer o Recorrente explicaram objetivamente a razão subjacente a esse erro e ambos afirmaram que a área correta do prédio seria a constante do registo, uma vez que o seu limite norte fica para além daquele que consta no levantamento topográfico.

15- Do confronto de todos estes levantamentos topográficos e fotografia satélite, bem como do depoimento das testemunhas FF, EE e GG, nas partes dos seus depoimentos que supra se indicaram, facilmente se conclui também que foi no prédio do Recorrente que a Recorrida colocou os marcos e procedeu à terraplanagem.

16- Por fim, do depoimento prestado pelas testemunhas FF, EE e GG, nas partes dos seus depoimentos que supra se indicaram, também resultam provados os pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto não provada.

17- De tudo o exposto decorre que a matéria de facto dada como provada no ponto 3 da matéria de facto provada e nos pontos 1, 2, 3 e 4 da matéria de facto não provada foi incorretamente julgada.

18- Face ao alegado, o ponto 3 da matéria de facto deve passar a ter a seguinte redação: “Realização, pela Ré, deterraplanagens no prédio dos Autores identificado no ponto 1 e 2 da matéria de facto provada, com a colocação de, pelo menos, 4 marcos.”

19- Deve ainda ser acrescentado um outro ponto à matéria de facto provada, com a seguinte redação: “O prédio identificado em 1 e 2 da matéria de facto provada tem a localização e delimitação constante do levantamento topográfico junto com a PI sob o doc. n.º 3, com exceção da sua delimitação a norte, porquanto aí apenas está representada parte desse prédio, numa extensão de apenas 14.322 m2.”

20- Por sua vez, os pontos 1, 2, 3 e 4 da matéria de facto não provada, devem ser dados como provados.

21- Com a alteração da matéria de facto nos termos alegados, impõe-se que a ação seja julgada procedente.


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Foram apresentadas contra-alegações

1. A Sentença ora em recurso é um raro exemplo de concisão, clareza e saber. Na verdade,

2. A Mm.ª Juiz a quo, nestes Autos limitou-se a fazer a subsunção dos factos apurados em sede de audiência de discussão e julgamento e na Lei.

3. A Douta sentença ora em recurso prestigiou os Tribunais e valores como os da Certeza e Segurança jurídicas. De facto,

4. Os Autores, ora Recorrentes, não lograram fazer prova de todos os factos por si alegados, não tendo provado, nomeadamente, a aquisição originária (usucapião) da parcela de terreno em litigio, nem a colocação de marcos e terraplanagem da mesma por parte da Ré.

5. A Mm.ª Juiz a quo fundamentou a sua convicção na análise critica e conjugada dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos das testemunhas arroladas pelas partes.

6. Ao abrigo do Principio da Livre Apreciação da Prova (art.º 655.º CPC), a M.ma Juiz a quo apreciou os depoimentos das testemunhas e os documentos juntos aos autos tendo considerando, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não provadas as Alegações da Recorrente. Pelo que,

7. Ao julgar a acção totalmente improcedente mais não fez do que consagrar os mais elementares princípios e valores da Certeza e Segurança Jurídica que, obrigatoriamente, se traduzem numa decisão Justa.


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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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Foram colhidos os vistos legais.


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II.

O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:

1. Encontra-se registado a favor dos Autores, sob a Ap. ...3 de 1994/05/02, a aquisição por compra do prédio rústico denominado “...”, sito no Lugar ..., ... (...), no concelho de Amarante, com a área de 22.400 m2, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº ...64 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...09, com as seguintes confrontações: Norte e Nascente com Estradão, Sul com HH e Poente com Estrada.

2. Tal prédio foi adquirido pelos Autores por compra a BB, titulada por Escritura de Compra e Venda outorgada a 20 de Abril de 1994, no Cartório Notarial de Amarante.

3. Realização, pela Ré, de terraplanagens num determinado terreno, com a colocação de pelo menos quatro marcos.

E deu como não provados os seguintes factos:

1. Por si e antepossuidores, os Autores são legítimos e idóneos possuidores, já que há mais de 15, 20, 30 e até 50 anos, vêm colhendo e fruindo de todas as utilidades proporcionadas pelo prédio adquirido pelos Autores por compra a BB.

2. Nomeadamente zelando pela sua manutenção, vedando-o, pagando as respectivas contribuições e impostos, em suma, retirando do referido prédio todas as suas utilidades, em termos de verdadeiros proprietários.

3. Em tudo se comportando como legítimos proprietários desse terreno e praticando actos próprios dos mesmos, agindo com o animus correspondente ao direito de propriedade, para além de deterem o respectivo corpus.

4. A Ré colocou 4 marcos/esteios em 4 pontos diferentes do prédio dos Autores, tendo sido terraplanado uma parte integrante do mesmo, numa área de 8.700 m2.


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III.

É consabido que resulta dos art.635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[1], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.

Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar as seguintes questões:

1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

a. pretendem-se provados os seguintes factos: ponto 1-4 dos dados por não provados;

b. pretende-se que o ponto 3 dos factos dados por provados seja assente com o seguinte: “Realização, pela Ré, deterraplanagens no prédio dos Autores identificado no ponto 1 e 2 da matéria de facto provada, com a colocação de, pelo menos, 4 marcos.”

2. Ampliação da matéria de facto

Pretende-se assente o seguinte facto O prédio identificado em 1 e 2 da matéria de facto provada tem a localização e delimitação constante do levantamento topográfico junto com a PI sob o doc. n.º 3, com exceção da sua delimitação a norte, porquanto aí apenas está representada parte desse prédio, numa extensão de apenas 14.322 m2.”

3. A alterar-se a matéria de facto, o conhecimento se a mesma é de molde a reconhecer que o local de intervenção pela R. ocorreu em área integrante do terreno propriedade dos AA..


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1. Da impugnação da decisão da matéria de facto.

Antes de mais, importa algum enquadramento em que termos se deve laborar na impugnação da matéria de facto e os moldes em que a mesma é atendível.

Acompanhando o que se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 5.12.24 e proferido no processo 245/22.2T8PRD-C.P1[2], diremos:

«O presente recurso versa sobre o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.

Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.

De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1º instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.

Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.

Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.

Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.

Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).

A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.

O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).

Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.

Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);

.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b);

.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).

Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.

O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).

Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.

Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.

Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.

A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).

O seu fim último é, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.

Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).»

A benefício da decisão que se impõe, importa também afirmar o seguinte, transcrevendo o escrito no Ac. da Relação de Guimarães de 2.11.27[3]:

«(…) o âmbito de apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).

Por fim chamar à colação o referido no Ac. da R.P. de 6.3.25[4]:

«Note-se que a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.

Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.

Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.

Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.

A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade


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Pretende-se provada a seguinte matéria:

«1. Por si e antepossuidores, os Autores são legítimos e idóneos possuidores, já que há mais de 15, 20, 30 e até 50 anos, vêm colhendo e fruindo de todas as utilidades proporcionadas pelo prédio adquirido pelos Autores por compra a BB.

2. Nomeadamente zelando pela sua manutenção, vedando-o, pagando as respectivas contribuições e impostos, em suma, retirando do referido prédio todas as suas utilidades, em termos de verdadeiros proprietários.

3. Em tudo se comportando como legítimos proprietários desse terreno e praticando actos próprios dos mesmos, agindo com o animus correspondente ao direito de propriedade, para além de deterem o respectivo corpus.

4. A Ré colocou 4 marcos/esteios em 4 pontos diferentes do prédio dos Autores, tendo sido terraplanado uma parte integrante do mesmo, numa área de 8.700 m2.»

Fundamentou o tribunal a quo nos seguintes termos:

«Quanto aos factos não provados elencados sob os nºs 1 a 3 assim foram entendidos porque nenhuma prova foi feita no sentido dos mesmos, sendo que as testemunhas indicadas pelos Autores apenas afirmaram que o pai do autor sempre cuidou das terras da D. BB pois era o caseiro e era nessa qualidade que tratava das terras, e os documentos juntos pelos Autores para demonstração do alegado (docs 5, 6 e 7) por si só não têm a virtualidade de demonstrarem a alegada aquisição do prédio identificado em 1. por via da usucapião, desde logo porque se referem apenas aos anos de 2009, 2010 e 2019 e porque não se mostra alegada nem, como tal, demostrada a necessária inversão do título da posse, sendo certo que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título (cfr. artigo 1290º do CC).

Quanto aos factos elencados no ponto 4 dos factos não provados, assim foi entendido porquanto nenhuma prova foi feita de que os marcos tenham sido colocados no terreno dos autores identificado no ponto 1 da matéria provada e de que a terraplanagem tenha sido feita numa parte integrante do mesmo. Com efeito, são os próprios Autores que alegam na petição inicial que o prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Amarante sob o nº ...64, e registado em seu nome tem a área de 14.322,00 m2, não obstante dos documentos constar 22.400 m2. Pelo que, a ser assim, por um lado não conseguiram demonstrar qual a localização exata desse prédio, já que desde logo não alegaram nem demonstraram quais as suas confrontações e, por outro lado, não resulta minimamente demonstrado que foi efectivamente no seu terreno que a Ré colocou os marcos e procedeu à terraplanagem.

Ora, a tese dos AA., neste particular, não encontrou respaldo no que resultou da instrução da causa, não tendo resultado minimamente demonstrado que a ré tenha de alguma forma ocupado o prédio dos AA. e, muito menos, que parte do mesmo ocupou.

Dizer antes de mais que o interesse em assentar a matéria atrás identificados sob os pontos 1-3 é absolutamente relativo, digamos até desnecessária, uma vez que está provado o registo do imóvel em causa em nome os AA., nessa medida beneficiando da presunção a que alude o art.º7 do CRP.

De resto, na forma como está alegada e resultou não provada a matéria em causa, é em parte relevante conclusiva[5], nessa medida insusceptível de ser objecto de assentamento.

Na ausência do pregresso art.º 646.º, n.º 4, do CPC[6], no actual CPC, se tivesse a primeira instância relevado como provada tal matéria a consequência seria dar-se as proposições conclusivas em causa à decisão de direito como imprestáveis, inúteis ou irrelevantes[7].

Defendendo-se como não escrita tais proposições, refere o Ac. STJ de 18.Set.2025, proc.2234/24.3T8PRT.P1.S1:

«Como sabemos, a matéria de facto incluída na sentença "não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a
aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica", neste sentido, Miguel
Teixeira de Sousa, in, Estudos sobre o Processo Civil, Lex, 1997, página 312, pelo que, as
questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não
escritas, pois, embora o atual Código de Processo Civil não contenha norma correspondente
à do art. 646° n.° 4, 1ª parte, do anterior Código de Processo Civil, chegamos à mesma
conclusão, interpretando a contrario sensu o atual art.° 607° n.° 4 do Código de processo
civil, segundo o qual, na fundamentação da sentença o juiz declara os factos que julga
provados.

Assim sendo, conquanto esteja "afastada a rigidez na seleção estrita das
questões de facto nos quesitos, não pode, o Juiz no novo modelo processual, ignorar a
demarcação técnica entre questões de facto e de direito", neste sentido, entre muitos, o
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2017, proferido no âmbito
do Processo n.° 809/10.7TBLMG.C1.S1, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de maio de 2023, proferido no âmbito do Processo n.° 22773/19.7T8PRT.P1.S1, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de junho de 2025, proferido no âmbito do Processo n.° 1152/23.7T8CTB.C1.S1.

São de afastar na decisão de facto expressões de conteúdo puramente
valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de
influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão
de direito essencial
.

Conquanto só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a
seleção da matéria de facto relevante para a decisão "o que importa não poderem aí figurar
nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria
já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste
", neste
sentido, Anselmo de Castro, in, Direito Processual Civil Declaratório, III, páginas 268 e 269, são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados
na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio
objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido,
conteúdo ou limites objeto de disputa das partes, neste sentido, Anselmo de Castro, ibidem.»

De todo modo, ainda que a matéria em causa fosse «prestável», importa considerar que verdadeiramente estruturante para o sentido da decisão é a matéria constante do ponto 4 dos factos dados como não provados[8], ou a alteração pretendida ao ponto 3 dos factos provados[9], eventualmente aqueloutra que se deseja seleccionada e provada[10], e na medida que com ela se possa concluir que os actos da R., e cuja abstenção se deseja, ocorreram em parcela do prédio identificado no ponto 1 dos factos provados, nalgum ponto do seu perímetro.

É de resto isso mesmo que resulta da motivação da decisão do recorrida quando se refere:« Quanto aos factos elencados no ponto 4 dos factos não provados, assim foi entendido porquanto nenhuma prova foi feita de que os marcos tenham sido colocados no terreno dos autores identificado no ponto 1 da matéria provada e de que a terraplanagem tenha sido feita numa parte integrante do mesmo. (…)»

Em face disto, desprezível ou nenhum relevo, face ao registo do imóvel identificado no ponto 1 dos factos dados como provados[11] e a presunção que deriva do artº7 do CRP tem a matéria em causa a benefício da decisão.

Teria relevo se, alegada em termos de assim poder ser aproveitada, se trouxesse factualidade, ante a natureza da presunção a que se aludiu, identificasse parcela concreta sobre a qual foram praticados os actos que à Ré se censuram, e sobre essa porção se quisesse ver reconhecida a aquisição por via da aquisição prescritiva, nomeadamente como parte integrante do prédio id. no ponto 1. dos factos assentes.

Para isso de nada serve a escritura pública invocada pelos AA, de resto assente sob o ponto 2 dos factos provados.

Conclui-se no recurso nos seguintes termos:

6. - Da força probatória plena decorrente da referida escritura pública de compra e venda também resulta que não se pode aceitar a versão alegada pela Recorrida na sua contestação e nas suas declarações prestadas na audiência de julgamento, realizada no dia 29 de Novembro de 2023, (…), de que o prédio que efetivamente consta da escritura pública, nomeadamente no que se refere à sua identificação (dimensão) não corresponde ao prédio que pretendia efetivamente vender aos Recorrentes (….)».

7- Com efeito, não tendo sido feita prova de que a referida escritura de compra e venda foi anulada, por erro, esta mantém a sua validade e eficácia, ficando intocadas as declarações que a Recorrida aí fez, pelo que não pode a mesma vir agora alegar ter-se tratado de um erro.

8- Atento o exposto, é forçoso concluir-se que a Recorrida tinha perfeitamente conhecimento de que, através da referida escritura pública de compra e venda, vendeu ao Recorrente e à sua falecida esposa o prédio aí identificado, ou seja, o prédio rústico, denominado “...”, sito no Lugar ..., da freguesia ... (...), no concelho de Amarante, com a área de 22.400m2, descritona Conservatória doregisto Predial sob onº...64 einscrito narespetiva matriz sob o artigo ...09.

9- E sabia perfeitamente qual a sua localização, confrontações e delimitação (….).»

Não corroboramos essa perspectiva.

A invocação da escritura e seu conteúdo[12] não tem a vocação de com ela se lograr o reconhecimento da propriedade do quer que seja, por maioria de razão dos seus contornos físicos, incluindo dimensão e confrontações.

Apela-se à vocação da escritura pública de compra e venda através da qual a recorrida transferiu a propriedade do prédio rústico identificado como «...”, com a área de 22.400 m2, sito no Lugar ..., da freguesia ... (...), no concelho de Amarante, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº ...64 e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...09 (também da presunção que deriva do art.º7 do CRP) para se dar por assente que o prédio em causa, quanto às suas dimensões, limites e confrontações corresponde ao que talqualmente se alegou na p.i.

A escritura de compra e venda titula uma forma de aquisição derivada que, não constituindo originariamente o direito, serve apenas de veículo ou instrumento à transmissão do que se declara transmitir e na medida que tal realidade exista na esfera jurídica do vendedor: diremos que o comprador adquire o direito de alguém que já o tinha; há continuidade entre o direito do transmitente e o do adquirente; o transmitente transfere o seu direito (não cria um novo)[13].

Nos termos do art.º 1316º do CC o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.

A aquisição da propriedade por ocupação, acessão ou usucapião, são‚ como sabemos, consideradas formas de aquisição originária, todas as restantes sendo derivadas.

Por conseguinte lançando-se mão da aquisição do direito de propriedade, invocando para o efeito um contrato de compra e venda, e tratando-se de uma aquisição derivada, ter-se-ia de provar as sucessivas transmissões dos antecessores até à aquisição originária.

«[S]e o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião, ou a acessão, apenas precisa provar o facto de que emerge o seu direito.

Se a aquisição é derivada, não basta provar, por ex., que comprou a coisa, ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda, nem a doação são constitutivas do direito de propriedade, mas, apenas, translativas desse direito. É preciso, pois, provar que tal direito já existia no transmitente».[14]

Apoda-se a mesma de «prova diabólica».

Também, Manuel Salvador assim entende: «Supor, porém, que pelo facto de se ter um título, o alienante é‚ legítimo, é inaceitável dada a regra fundamental da aquisição derivada: a legitimidade de o antecessor ter sido o verdadeiro titular e sucessivamente. O título é uma simples presunção nominis, mais frágil que a presunção legal de posse.»[15]

Tudo isto, pois, para afirmar que a escritura invocada no recurso e dada por assente, quando muito, funcionaria como adjuvante à definição do quid sobre o qual se praticaram actos de posse e com vista à definição dos termos e dimensão da realidade sobre a qual se operaria a usucapião, igualmente, considerando a natureza da presunção prevista no art.º7 do CRP em vista a concluir-se que os actos da R. incidiram sobre o direito que é seu objecto.

Afastada a relevância pretendida da citada escritura, importa conhecer dos termos em que a presunção prevista no art.º 7.º do CRP, invocada de facto, deve ser perspectivada para, depois, nos centrarmos na prova (ou não) de a R. praticou actos em propriedade dos autores, ou seja, no prédio em seu nome registada.

Falámos da incontornável dificuldade da prova do direito no quadro da aquisição derivada.

Todavia essa dificuldade de provar a propriedade está mitigado por vários modos de a suprir.

Releva, a par da usucapião, a presunção da titularidade do direito de propriedade derivada da posse - cfr. artigo 1268º, nº1 do C.C. -, outrossim a presunção prevista no art.º 7.º do CRP

A propósito desta presunção, refere o Prof. Manuel Rodrigues que o registo definitivo de qualquer direito a favor de uma pessoa constitui a presunção jurídica de que o mesmo direito lhe pertence, sendo certo que quem tem uma presunção, escusa de provar o facto que nela se funda, por força do nº1 do artº 350º do CC[16]

Para conseguir a elisão da presunção legal derivada do registo, há que provar e para isso alegar os factos demonstrativos de que a titularidade da propriedade inscrita não corresponde à verdade, e tal ónus incumbe ao impugnante do registo ou de quem deseja retira-lhe eficácia.

O artº 7º do CRP determina que “o registo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

No que concerne ao efeito jurídico presumido, confere-se-lhe, portanto, um alcance triplo:

- a existência do direito que emerge do facto jurídico inscrito;

- a titularidade desse direito na esfera do beneficiário inscrito;

- o objecto e conteúdo dos direitos, ónus ou encargos, nos precisos termos definidos no registo[17].

O objecto do registo compreende a realidade material do prédio sobre que recai a inscrição, configurada através da descrição predial - artº 68 e 82 do CRP - incluindo também as respectivas confrontações.

Porém a presunção derivada do artº 7º do CRP não se estende à verdade material das confrontações do prédio e à área constante da descrição.

“Não há, face ao artº 8º (actual 7º) do CRP qualquer presunção de verdade material das confrontações constantes da descrição do prédio registado. Bem se compreenderá isso, aliás, sabido que as descrições registrais têm exclusivamente por fim a identificação física do prédio a que respeitam os factos inscritos e não constituem, evidentemente, um facto inscrito e por conseguinte, beneficiário da sua presunção legal[18].

O registo (artº 1º do CRP) tem por finalidade publicitar a situação jurídica dos prédios, a qual decorrerá dos factos jurídicos constitutivos, modificativos ou extintivos dos direitos, ónus ou encargos a eles respeitantes. São, pois, estes factos o objecto do registo - cfr. artº2 e 3º do CRP - e que serão definidos através dos actos de inscrição - cfr. artº 91º e segts do CRP - com os conteúdos exigidos pelos artº 93º e segts do CRP.

Todavia a base do registo assenta na descrição, a qual visando identificar material, económica e fiscalmente o prédio, tem por objecto a própria realidade da coisa e não os factos que lhe digam respeito. Acresce que a descrição está elaborada de harmonia com as inscrições da matriz predial, nos termos do artº 28º e segts do CRP, sendo certo que estas se efectuam com base na declaração do próprio interessado.

Assim, considerando que não está instituído entre nós um registo de base topográfica ou cadastral, garantindo a fiabilidade das confrontações[19] -, não há como contornar a conclusão de que a presunção do artº 7º do CRP, na parte em que se refere ao objecto, só faz presumir que o facto inscrito incide sobre a coisa identificada na descrição, mas já não quanto às respectivas características, nomeadamente áreas e confrontações.

Tudo isto para dizer, pois, que o que releva para decisão é tão só a matéria constante do ponto 4 dos factos dados como não provados, ou a alteração pretendida ao ponto 3 dos factos provados, matéria com os mesmos contornos, eventualmente aqueloutra que se deseja seleccionada e provada[20], e na medida que com ela se possa concluir que os actos da R., e cuja abstenção se deseja, ocorreram em parcela do prédio identificado no ponto 1 dos factos provados, nalgum ponto do seu perímetro.

Provado que os actos da R. foram praticados no prédio que se identifica no ponto 1 dos factos provados, concluir-se-á que foi no prédio, que, registado a favor dos AA., são presumidamente sua propriedade.

Toda a restante matéria que se deseja considerada não será conhecida.

Como atrás se referiu, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, a mesma não revelar relevância jurídica, tudo sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.

Em face disto, vejamos, pois, se se logrou provar o que releva, ou seja, que os factos imputados à R. ocorreram no prédio registado em nome dos AA.

Apela-se para o efeito ao teor da escritura publica assente: escritura pública de compra e venda outorgada a 20 de Abril de 1994 no Cartório Notarial de Amarante.

Já arredámos a importância da mesma, reduzida à função meramente instrumental, não valendo a argumentação de tratar-se de documento autêntico, assim atestando plenamente o declarado pelos interveniente e na medida que percepcionados por entidade com fé pública e como tal exarado.

De facto, não está em causa o que declararam os intervenientes no citado instrumento. Está em causa que da declaração da R., vendedora na citada escritura, resulte que o prédio que declarou vender comportava o espaço onde praticou os actos que se pretendem censurados

Não obstante, ao contrário do que dela se pretende retirar, resulta da escritura e do registo uma área aquém da que resulta do levantamento topográfico junto pelos AA com a p.i. como doc.3, de resto documento naturalmente para ser lido com relevante cuidado e confrontado com outros elementos por apresentado por quem nele tem interesse e o encomendou (gabinete da testemunha FF)[21].

Um elemento, pois, em desabono da pretensão do recorrente, no caso até de rigor absolutamente duvidoso em face do que se alega no corpo das alegações e se mostra rigoroso em relação ao declarado pela responsável do gabinete que elaborou o levantamento, FF: «Do depoimento desta testemunha resulta que, não obstante o levantamento topográfico representar o prédio com a área de apenas 14.322 m2, admite que possa ter uma área superior, designadamente os 22.400 m2 constantes do registo, uma vez que, na altura em que o fez, não lhe interessava apurar a sua área com rigor e o prédio era muito denso.»

De certa forma o recorrente reconhece a perturbação provocada pela dessintonia assinalada, nessa medida um passo atrás na prova que lhe cabia fazer[22], quando afirma: «No entender do Recorrente, o facto da área do prédio constante do registo não corresponder à área do prédio constante do levantamento topográfico, não impedia o Tribunal de se convencer acerca da localização e delimitação do prédio, na medida em que, quer a testemunha FF, quer o Recorrente explicaram objetivamente a razão subjacente a esse erro e ambos afirmaram que área correta do prédio seria a constante do registo, uma vez que o seu limite norte fica para além daquele que consta no levantamento topográfico.

A propósito das confrontações, cumpre ainda dizer que, ainda que se possa admitir que possa haver alguma confusão na identificação das confrontações do prédio, quer no registo, quer nos articulados, em comparação com os pontos cardeais identificados em todos os levantamentos topográficos juntos aos autos, este aspeto não impedia que o Tribunal se convencesse das confrontações corretas do prédio. Para o efeito, bastaria confrontar cada uma das referidas testemunhas com tais documentos, aquando do seu depoimento, o que foi feito, porquanto decorre das regras da experiência comum que é frequente esta confusão, uma vez que, de uma maneira geral, as pessoas têm dificuldade em identificar os pontos cardeais, principalmente quando se trata de prédios mais antigos.»

Ouvimos todas as declarações das testemunhas convocadas pelo recorrente[23] e recorrida[24], os depoimentos assinalados, «jogámos» com a razão de ciência respectiva e a proximidade que as testemunhas apresentam com as partes (assim ajuizando do respectivo e eventual comprometimento com dada versão: em abono da pretensão do recorrente releva o depoimento da testemunha EE, sua irmã, e da testemunha GG, seu cunhado[25] / em abono da versão oposto releva o testemunho da filha da apelada, II, também do seu companheiro JJ), relativizámos os depoimentos de parte[26], confrontámos os documentos juntos[27] e, sem a inestimável imediação, com testemunhas a indicar no levantamento topográfico e mapas os locais onde reconhecem como terrenos pertencente ao prédio inscrito no nome dos AA e o local onde a R. praticou os actos que se lhe censuram, não lográmos, no mínimo, ultrapassar a dúvida quanto à «afirmação factual» do recorrente – art.º414.º, do CPC. [28]

Porque, como atrás se afirmou, «a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância», não encontramos arrimo para alterar a matéria de facto quando ao ponto 4 dos não provados, ponto 3 dos provados, igualmente quanto ao que se pretendia aditado.

De facto, como atrás referido, «[e]m caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).

Improcede, pois, o recurso quanto à impugnação da matéria de facto e aditamento pugnado.


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3. A alterar-se a matéria de facto, o conhecimento se a mesma é de molde a reconhecer que o local de intervenção pela R. ocorreu em área integrante do do terreno propriedade dos AA..

Decorre do que antecede que a matéria de facto permanece intocada, nessa medida não se encontrando lastro factual que permita reconhecer que os AA são proprietários do espaço onde a R. praticou os actos supra assentes.

Quando muito, com arrimo no art.º7 do CRP, reconhecer-se-ia a propriedade do imóvel descrito na Conservatória de Registo predial sob o ...64.º mas nunca com a extensão que na descrição se exarou: 22.400 m2.[29]

Todavia não está em causa essa propriedade mas tão só um espaço que o recorrente entende pertencer ao prédio registado em seu nome e da falecida esposa.

Na economia da pretensão do recorrente releva que o reconhecimento do pedido a), abarcando o espaço onde foram praticados os actos assinalados em 3 dos factos provados, seja estribo para dar procedência ao pedido b), concretamente a condenação a R. a abster-se da prática dos actos que se lhe imputam como praticados no respectivo prédio.

Em face disto, nada se impõe alterar da decisão recorrida, assim se mantendo a mesma por improcedente o recurso.


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IV.

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto, assim se mantendo a decisão recorrida.

As custas ficarão a cargo do Recorrente.


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Porto, 13/11/2025.

Carlos Cunha Rodrigues de Carvalho

António Carneiro da Silva

Francisca Mota Vieira

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[1] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[2] Do qual fomos adjunto.
[3] Proc.501/12.8TBCBC.G1
[4] Ac. da R.P. de 6.3.25, Processo n.º 1743/22.3T8AVR.P1., do qual fomos adjunto.

[5] Veja-se o que se alega, e que vai para além do que sacramentalmente usa alegar-se «1. (…) os Autores são legítimos e idóneos possuidores (….) vêm colhendo e fruindo de todas as utilidades proporcionadas pelo prédio (…..).

2. Nomeadamente zelando pela sua manutenção (…), em suma, retirando do referido prédio todas as suas utilidades, em termos de verdadeiros proprietários.

3.(…) agindo com o animus correspondente ao direito de propriedade, para além de deterem o respectivo corpus.
[6] Sancionando o vício de inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto, dando-se por “não escritos” tais enunciados.
Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto) Paulo Ramos de Faria, Julgar Online, novembro de 2017, p.5: «Vemo-nos agora órfãos da norma anteriormente presente no art. 646.º, n.º 4, do CPC, sendo obrigados de enfrentar o vício de contaminação da pronúncia de facto por juízos de direito sem qualquer enunciado que o preveja expressamente.»

[7] Paulo Faria, artigo cit., p.11 e 12: «Respondendo à questão que nos ocupa, concluímos dizendo que é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto.

Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas.
[8] Ele próprio conclusivo por identificar o local onde se colocaram 4 marcos/esteios como o prédio dos autoresA Ré colocou 4 marcos/esteios em 4 pontos diferentes do prédio dos Autores, tendo sido terraplanado uma parte integrante do mesmo, numa área de 8.700 m2»), ou seja, querendo-se já reconhecido na decisão de facto aquilo que, com base em material factual assente, se deverá concluir na subsunção jurídica, ou seja, em sede de direito:
«(…) só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a
seleção da matéria de facto relevante para a decisão, o que importa não poderem aí figurar
nos termos gerais e abstratos o que descreve a norma legal. Doutra forma envolver-se-ia na selecção factual a
 «valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste".
Não obstante facilmente se expurgará essa conclusão se, provado o que ali se diz, formulando-se o seguinte facto: «A Ré colocou 4 marcos/esteios em 4 pontos diferentes no prédio id. no ponto 1 (claro está, dos provados), tendo sido terraplanado uma parte integrante do mesmo, numa área de 8.700 m2»

[9] Padecendo da mesma patologia na nota anterior assinalada.

 Pretende-se que o ponto 3 dos factos dados por provados seja assente com o seguinte: “Realização, pela Ré, deterraplanagens no prédio dos Autores identificado no ponto 1 e 2 da matéria de facto provada, com a colocação de, pelo menos, 4 marcos.”
[10] “O prédio identificado em 1 e 2 da matéria de facto provada tem a localização e delimitação constante do levantamento topográfico junto com a PI sob o doc. n.º 3, com exceção da sua delimitação a norte, porquanto aí apenas está representada parte desse prédio, numa extensão de apenas 14.322 m2.”

[11] «Encontra-se registado a favor dos Autores, sob a Ap. ...3 de 1994/05/02, a aquisição por compra do prédio rústico denominado “...”, sito no Lugar ..., ... (...), no concelho de Amarante, com a área de 22.400 m2, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº ...64 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...09, com as seguintes confrontações: Norte e Nascente com Estradão, Sul com HH e Poente com Estrada.»

[12] Dizer no entanto, que a força probatória do documento autêntico (como o é a escritura pública – art.º369 do CC) cobre o que nela se declara como tendo acontecido na presença do documentador (artº371 nº1, 2ª parte, do CC), como faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador (art. 371º, nº 1, 1ª parte, do CC).

 Não obstante a EP não faz prova plena da realidade do que nela se exarou, do que constitui objecto de declarações, por exemplo, que é verdade o que a R. declarou quando afirma: “Mais declara a vendedora que não possui prédios rústicos contíguos ao denominado “....”

Quando muito reconhecer-se-ia nesta declaração uma confissão art.º357.º, n.º1, e 358.º, n.º2 do CC), e na medida que desfavorável à declarante, assim permitindo relevar tal dado na conjugação com a restante prova por forma a concluir que a venda abarcou certo espaço físico, e os actos neles praticados pelos AA relevavam de animus possidendi..

Não é o caso.

No contexto, com aquela declaração não se crê reconhecer-se que o local onde a R. praticou os factos que lhe são imputados corresponde a terreno vendidos aos AA.
[13] Na expressão latina: «nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet.»
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, C.C.Anot., III Vol., comentário ao Art.1311º.
[15] Manuel Salvador, Suplemento aos Elementos da Reivindicação, pág.66.

[16] RLJ, ano 54, p. 179.
[17] Cfr. sobre este triplo alcance, Ac. Rel. Ev., de 4.10.77, in CJ, ano II, pág 907.
[18] Ac. supra citado.
Também neste sentido, por todos, Ac. Relação de Coimbra, de 11.5.82, CJ, ano VII, T.III, pág.28 e segts / Ac. Rel. Porto, de 27.06.89, CJ, ano XVI, T.III, pág. 224 e segts / Ac. da Rel. do Porto, de 16.09.91, CJ, ano XVI, T.IV, págs. 249 e segts.
[19] O sistema de Informação Cadastral Simplificado e a plataforma BUPi está a caminhar para uma maior correspondência entre o registo predial e o cadastro geométrico, mas ainda numa fase muito aquém de permitir fazer estender a presunção legal sobre áreas e limites.

[20] «O prédio identificado em 1 e 2 da matéria de facto provada tem a localização e delimitação constante do levantamento topográfico junto com a PI sob o doc. n.º 3, com exceção da sua delimitação a norte, porquanto aí apenas está representada parte desse prédio, numa extensão de apenas 14.322 m2.”

[21] Sabemos da experiência comum que os levantamentos topográficos relevam documentos registrais, matrizes fiscais, mas também declarações de quem os encomendam. No caso diz a recorrente, com rigor: «Nos minutos 8:03 a 8:04 a testemunha refere que foi o Recorrente e também o cunhado, que vive em frente ao terreno, quem lhe mostrou o terreno.»
[22] Que o pedaço de terreno onde a R. praticou os actos que se lhe imputam foi-lhes vendido e neles se praticaram os actos de posse com os exigidos caracteres e tempo para que, preenchendo-se com a posse a «brecha dominial», se fizesse ascender a mesma à juridicidade, no caso à propriedade.

[23] Adiante-se desde já que, na relação com quem lhe encomendou o levantamento topográfico e indicou os limites do prédio, mostra-se sobremaneira comprometida a pretensão do recorrente quando se releva o que é afirmado pela testemunha FF: «Olhe ó Sr.ª Dr.ª Juíza posso fazer uma observação? Porque é assim, porque antigamente este terreno não prestava para nada porque isto era reserva ecológica portanto nunca ninguém se preocupou com nada. A partir do momento em que isto, que esta faixa passou a zona urbana o terreno ficou valorizado, dá para construir em banda, etc.. etc… a partir já houve marcos ….» - [00:28:18], ou seja, a «cousa» tornou-se apetecível para ambas as partes.

[24] Testemunha KK, infirmando a versão das testemunhas apresentadas pelo apelante, atesta que o terreno em causa é da apelada. Vide segmento indicado nas contra-alegações: «(…) a empresa onde trabalha teve interesse em comprar o terreno e que, por essa razão, foi ver o terreno, a sua localização, bem como, os respetivos documentos, e que sabe o terreno pertencia à Recorrida.» -[Cfr. minutos 00:05:15 a 00:05:21 do registo digital Dia 29-11-2023 inicio 11:30; fim 11:44].

No mesmo registo, testemunha JJ – companheiro da filha da recorrida.

[25] Depoimentos que não são de molde a deles retirar a certeza necessária quanto à matéria em causa, depoimentos muito na base do que o recorrente lhes disse, pouco consistentes e comprometidos com dada versão. Dizer ainda que a identificação que se faz em fotos e levantamentos em nada nos serve por não visualizarmos a sinalização.

Do depoimento da testemunha EE retira-se que o irmão vedou parte de certo terreno, mas aparentemente não abarcou a totalidade do terreno que se arroga dono, igualmente que, se constatou a prática dos actos que se imputa à R., sintomaticamente não os comunicou ao apelante, dado este pouco consentâneo na perspectiva que se tem da normalidade das «cousas»: a comunicação impunha-se.

Da testemunha GG consta-se, igualmente,  na relação com os demais elementos recolhidos, ainda que subtilmente («se está tudo registado e tudo escriturado, não sei »), algum comprometimento com a sorte da acção, e uma afirmação pouco abonatório ao rigor do seu depoimento: de que sabe o que sabe com base no que lhe foi afirmado «por ele».

Paradigmática, em contexto de troca de argumentos com a apelada, a autorização que lhe foi concedida pela Recorrida para cortar árvores no terreno apesar e de lhe afirmar que os terrenos onde estavam eram do apelante.
[26] Na medida que não confessórios relevam no que afirmam na conjugação relevante com a demais prova corroboradora.

- A R., grosso modo, afirma a sua propriedade sobre a parcela de terreno em disputa, que não a vendeu ao apelante (…..). Desse depoimento não se retira nada que abone à pretensão do recorrente.

- O depoimento do apelante, na conjugação com a demais prova, como se impõe, nenhuma luz traz que corrobore a sua pretensão. De resto é comprometedora a sua versão ao afirmar que comprou 22.400 mº2 não obstante o levantamento topográfico que apresentou identificar a área de 14.000 m2. Justifica essa incongruência com o argumento de se tratar de erro técnico de quem fez o levantamento referido.
[27] O julgamento no local ou a sua prévia inspeção nestas matérias é, na maioria das situações, essencial.
[28] Como supra se referiu, «[a]realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade
[29] Remete-se nesta sede o que, no tratamento da impugnação de facto, a propósito se escreveu quanto à natureza da presunção a que alude o art.º7 do CRP.