Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL PEIXOTO PEREIRA | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL ACIDENTE DE VIAÇÃO DANOS PESSOAIS EQUIDADE | ||
| Nº do Documento: | RP202511132215/22.1T8PNF.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A aplicação de critérios de equidade na fixação de indemnizações não exclui a observância do princípio da igualdade, mas a concretização deste exige a uniformização de parâmetros, cumprindo, portanto, não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes, que constituem referência essencial para assegurar a coerência interpretativa e a estabilidade do sistema. II - Justamente para se respeitar a equidade, sempre terá de reconhecer-se que, “cada caso é um caso” e, assim, não pode partir-se apenas e só da comparação simplista entre o grau da incapacidade e a idade da vítima, cabendo ponderar a concreta limitação funcional e a actividade exercida, como o facto de a actividade exercida se prolongar para além ou para lá da idade “normal de reforma” (no que tange agora ao reflexo na actividade laboral). Ora, a dor cervical com alterações degenerativas, quando se atente na actividade profissional de dentista e na posição habitual que lhe corresponde releva de forma distinta e mais grave, em termos do aumento do esforço para o exercício da profissão (com necessidade de analgesia), pese embora o grau de incapacidade. (Sumário da responsabilidade da relatora) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo 2215/22.1T8PNF.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 1
Relatora: Isabel Peixoto Pereira 1ª Adjunta: Manuela Machado 2ºAdjunto: Carlos Carvalho
I.
AA intentou a presente acção, sob a forma de processo comum, contra a Ré, A... Companhia de Seguros, S.A., concluindo pelo pedido desta a pagar-lhe a quantia global de 351.519,09€, sendo-o a título de reparação por Danos Patrimoniais-Lucros cessantes no montante de 334.937,46€, de indemnização por Danos Morais, 15.000,00€ e outros Danos Materiais ascendendo a 1.581,63€, quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Reconduziu-se para fundamentar a pretensão de indemnização à ocorrência de um acidente de viação, pela causação culposa do qual foi responsável o condutor de veículo seguro na Ré, o qual lhe determinou os danos reclamados.
A Ré aceitou a responsabilidade civil emergente do sinistro, impugnando os danos reclamados, quanto à verificação e quanto aos valores liquidados, por exagero.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 40.025,36 pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida dos juros legais contados desde a citação até integral pagamento; bem assim a pagar-lhe a quantia de € 7.500,00, pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescido dos juros legais, contados a partir da data da prolação da sentença mesma; absolvendo a Ré do mais peticionado.
É desta decisão que vem interposto recurso, pela Ré, mediante as seguintes conclusões:
1- No ponto 31 foi dado como provada que no embate foram danificados o computador da Autora, cuja reparação foi de € 67,77, Próteses dentárias que transportava, no valor de € 538,48 e um vídeo projetor, no valor de € 975,38. 2- Ora tal matéria não poderia ter sido dada como provada, uma vez que a Ré, ora recorrente, impugnou especificadamente tais factos na sua contestação (artigos 11, 12 e 13) e nenhuma prova foi feita em audiência de julgamento relativamente a estes factos. 3- Pelo que se pede a alteração dos factos dados como provados, deles se retiram do Ponto 31 e passando tal matéria aos factos não provados, absolvendo-se a Ré do pagamento da quantia de €1.581,63, a que foi condenada na sentença proferida pelo Tribunal “a quo”. 4- De igual modo, não se conforma a Ré com o montante atribuído a título de danos morais no montante de €15.000,00. 5- Quando a jurisprudência é unanime na atribuição de valores substancialmente inferiores a sinistrados com incapacidades superiores e com quantum doloris bem mais elevados. 6- Ac. TR.Guimarães de 27-5-2021 Procº 5911/18.4T8BRG.G1, individuo de 51 anos, com 2 Pontos de incapacidade, um quantum doloris de 3/7 e incapacidade para o trabalho de 96 dias foi-lhe atribuído o montante de €5.000,00 a título de anos morais; 7- Ac. STJ de 14-9-2023 Procº 1974/21.3T8PNF.P1.S1, que atribuí a quantia de € 2.800,00 a um individuo de 22 anos sem incapacidade, mas com Quantum doloris de 2/7 incapacidade para o trabalho 8 dias e cicatriz de bordo arredondado e a outra sinistrada com 22 anos, a quantia de € 20.000,00, com 5 Pontos de incapacidade, dano estético 4/7, quantum doloris 4/7 e incapacidade para o trabalho de 399 dias; 8- Ac STJ de 27-2-2018 que arbitrou a quantia de € 8.000,00 a uma criança de 10 anos que ficou com 3 pontos de incapacidade e teve um quantum doloris de 4/7; 9- Pelo que no caso dos autos, a Autora com 1 ponto de incapacidade, 45 anos de idade e 8 dias de incapacidade para o trabalho, o montante de € 5.000,00, seria justo e equitativo, para compensar a Autora pelos danos morais sofridos. 10- De igual forma, o montante atribuído a título de danos patrimoniais, que a sentença recorrida enquadrou como dano biológico, extravasa em muito os valores atribuídos pela Jurisprudência dos tribunais portugueses. 11- Para atribuição da indemnização aqui peticionada, a título de danos patrimoniais e uma vez que a Autora já tinha sido indemnizada por acidentes de trabalho, quantias que a ora recorrente reembolsou à seguradora de AT, não podendo cumular as duas indemnizações, deve o tribunal avaliar a IPG com que ficou a Autora à luz dos critérios que são prática dos tribunais portugueses, dentro dos critérios de equidade e razoabilidade. 12- Estão aqui em causa apenas e só as limitações com que a Autora, poderá ter ficado decorrentes do acidente dos autos, na sua vida diária, de lazer e social. 13- Ora como resultou da prova produzida, a limitação referida quer pela Autora, quer pela prova testemunhal, no caos dos autos os próprios pais da Autora, foi a de que deixou de praticar Yoga. 14- Não existe uma fórmula para o cálculo da indemnização por dano biológico, são utilizados vários critérios, critérios enunciados na sentença recorrida, que referem os princípios orientadores para o respetivo cálculo e que culminam com o critério da equidade. 15- E tendo em conta os critérios referidos no Ac. da Relação de Lisboa de 6-5-2010, sempre se aceita que a base para a atribuição da indemnização é o rendimento da Autora, a sua idade e as sequelas do acidente e chegados a este valor, o mesmo seja ajustado, ao caso em julgamento, tendo por base o critério da equidade, da justiça e do bom senso. 16- O rendimento anual é de cerca € 109.000,00, a autora terá uma esperança de vida de mais cerca de 35 anos, considerando o 1 ponto de incapacidade e ajustando à sequela resultante – ter deixado de praticar yoga-, considerando ainda a entrega de capital imediata, não se aceita como justa e razoável um valor superior ao montante se € 25.000,00. 17- Ora no caso dos autos tem-se por justo e adequado o montante de € 25.000,00. Em face do alegado, pugna a Ré, aqui recorrente, pela alteração da sentença proferida, pelo tribunal recorrido: absolvendo a ré do pagamento da quantia de € 1.581,63; alterando o valor atribuído a título de danos morais do montante de € 15.000,00 para € 5.000,00, alterando o valor atribuído a título de dano biológico de € 41.000,00 para € 25.000,00.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II. São duas as questões a decidir no recurso:
São os seguintes os factos assentes:
1 - No dia 15 de outubro de 2019, pelas 8h45, ocorreu um embate na A4, KM ..., no sentido Porto Amarante, em que intervieram o veículo ligeiro de passageiros, Tesla ..., de cor ... e com a matricula ..-XE-.., conduzido pela Autora, sua dona e o veículo ligeiro de passageiros, Mercedes, com a matrícula XQ-..-.., conduzido por BB. 2 - A Autora, circulava na A4, no sentido Porto – Amarante e o veículo XQ, circulava na mesma autoestrada e no mesmo sentido. 3 - Enquanto a Autora circulava na sua faixa de rodagem mais à direita, o veículo XQ seguia na faixa de rodagem do lado esquerdo e quando se encontrava a efetuar a ultrapassagem, embateu na lateral esquerda, da parte traseira da viatura da Autora, sem que esta tivesse tempo de reação. 4 - O embate ocorreu na faixa de rodagem onde a Autora circulava, tendo o seu veículo entrado em despiste, indo embater no separador central. 5 - O local do embate é uma reta de autoestrada com duas vias de trânsito em cada faixa de rodagem, boa visibilidade, separador central e um sentido de circulação. 6 - A faixa de rodagem encontrava-se em bom estado de conservação. 7 - Era dia e fazia bom tempo. 8 - Por causa do embate, o veículo da Autora ficou completamente destruído, tendo a aqui Ré considerado perda total. 9 - A Autora ficou encarcerada no seu veículo. 10 - Foi assistida pelo Inem que foi chamado ao local e que a transportou para o Hospital .... 11 - Em consequência do embate, a Autora sofreu traumatismo da coluna cervical e do punho esquerdo. 12 - Foi assistida nos serviços de urgência do Hospital ... onde foi radiografada à coluna cervical e mão, tendo prosseguido com os posteriores tratamentos nos serviços clínicos da Seguradora B..., responsável no âmbito do acidente de trabalho. 13 - Efetuou RX e RMN cervical tendo realizado tratamentos de fisioterapia. 14 - A Autora necessitou de ajudas medicamentosas e de analgésicos. 15 - O período de Défice Funcional Temporário Total é de 8 dias. 16 - O período de Défice Funcional Temporário Parcial é de 92 dias. 17 - O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 8 dias. 18 - O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável num período de 84 dias. 19 - A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 14/01/2020. 20 - Por via das lesões sofridas em virtude do embate, a Autora ficou a padecer de cervicalgia residual pós-traumática, em coluna cervical com alterações degenerativas. 21 - As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 1 ponto, sendo as sequelas compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. 22 - A Autora apresenta um Quantum doloris fixado no grau 2 numa escala de 1 a 7. 23 - Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1 numa escala de 1 a 7. 24 - À data do embate, a Autora detinha a categoria profissional de médica dentista, desempenhando estas funções por conta própria, auferindo um rendimento anual de 109.682,57€. 25 - A Autora nasceu a ../../1974. Na data do acidente tinha 45 anos de idade. 26 - No exercício da sua atividade profissional de médica dentista, necessita de esforços acrescidos para determinadas posturas, por sentir dores na cervical, o que a leva a tomar analgésicos. 27 - O que lhe causa incómodo, mal estar, desgosto e amargura. 28 - A Autora era dinâmica e trabalhadora. 29 - Por causa do embate, a Autora sofre de ansiedade e conduz mais devagar. 30 - Por causa das lesões sofridas com o embate, a Autora deixou de fazer Yoga. 31 - Com o embate foram danificados o computador da Autora cuja reparação foi de € 67,77, Próteses dentárias que transportava, no valor de 538,48€ e um Vídeo Projetor, no valor de € 975,38. 32 - Para além do referido no ponto 31 que A Ré seguradora assumiu até à data da consolidação médico legal das lesões, a responsabilidade inerente a danos materiais advindo do embate, designadamente a perda total da viatura. 33 - A Autora encontrava-se a efetuar o trajeto de casa para o seu consultório em .... 34 - O processo emergente de acidente de trabalho correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Trabalho da Maia – J1, sob o n.º 657/21.9T8MAI. 35 - A Autora recebeu da Seguradora responsável pelo acidente de trabalho o capital de remição no valor de 2.556,27, pela perda da capacidade de ganho (IPP). 36 - O dono do veículo XQ-..-.., à data do embate, mantinha transferida a responsabilidade pelo risco de danos causados a terceiros com a circulação do mesmo para a Ré, por via de um contrato de seguro válido, titulado pela Apólice n.º ...86. * No que se reporta à aquisição da convicção pelo Tribunal quanto ao único facto cujo julgamento vem posto em causa pela Recorrente Ré, consignou-se na sentença: «A factualidade constante do ponto 31 baseou-se nos documentos 4, 5 e 6, juntos na p.i., que aqui se dão por integralmente reproduzidos, na profissão da Autora de médica dentista, em conjugação com as regras da normalidade e da experiência, estando os objetos danificados com o acidente (computador, próteses dentárias e vídeo projetor) diretamente relacionados com a profissão da Autora.».
1.
O julgamento de um facto como provado ou não provado é função da apreciação da prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos probatórios produzidos no processo e atendíveis independentemente da sua proveniência. E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, o julgador poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (artigos 349.º e 351.º). A noção de presunção consta do artigo 349.º: “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência”.[1] Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser relevantes, precisas e concordantes. São relevantes, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são de molde a que a existência de um, por indução, revele, com certeza bastante ou suficiente, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar.[2] A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção.[3] Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza (judiciária), ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. Certo já que a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança. Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões. Isto posto,
Insurge-se a Ré contra a prova do facto sob 31, louvando-se na insuficiência dos documentos convocados a justificar a verificação mesma do dano, porquanto ausente prova directa de que aqueles bens e equipamentos tivessem ficado danificados, avariados ou inutilizados. Desde logo, como resulta do segmento que se transcreveu, não foi só e apenas ao teor dos documentos que a M.ma Juiz se ateve para justificar a aquisição probatória bastante ou suficiente daquele dano patrimonial emergente… Com efeito, mais e bem se reconduziu à ligação “lógica/utilitária/funcional” entre os equipamentos e bens invocadamente danificados e a actividade profissional da Autora, o que ganha maior relevo quando se atente no facto havido como provado de que o sinistro ocorreu numa ocasião em que a Autora se deslocava para o trabalho, em termos de as regras ou juízos de normalidade tornarem provável (estatística e naturalisticamente) e, consequentemente, digno de crédito não apenas que tais equipamentos fossem transportados no veículo na ocasião, como que o acidente, para mais com a gravidade que assumiu (assim implicada pelos danos no veículo que determinaram a sua “perda total”, como o encarceramento da Autora) os tenha avariado/danificado ou destruído. Em causa um juízo de inferência perfeitamente racional e admissível, sendo certo que a ocasião temporal em que foi satisfeito o preço de compostura do computador, como o preço de variado material ortodôntico e da aquisição de projector, nos termos da documentação referida na sentença e junta à petição inicial, na proximidade temporal da ocasião em que a Autora retomou a plena e total capacidade para o exercício da actividade profissional mais corrobora perifericamente o juízo de pertinência da documentação ao reclamado dano. Acresce, de forma indiciária também, mas não escamoteável, que logo aquando do preenchimento da participação amigável de acidente junta bem assim com a petição inicial a Autora fez consignar que o acidente implicou “danos em objectos pessoais e da actividade profissional”. Por seu turno, bem assim os reclamou à Ré, para lá ou para além do veículo, em termos de esta longínqua reclamação e coerência na identificação do dano se constituir também como um facto de corroboração periférica da realidade do prejuízo havido como provado. Indícios pois, lógicos, precisos e concordantes. Bastantes.
Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 23-02-2023, proc. n.º 30/21.9T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt: «[…] Os artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil mandam que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova. Todavia, não existe entre nós norma ordinária ou constitucional que se pronuncie sobre o que deve ser entendido por dúvida, rectius, por dúvida relevante para fazer operar essa consequência. A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade. Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível. Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção. Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam.» Se a prova reclamasse a certeza absoluta a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça (cf. Prof. Antunes Varela na RLJ 116/339). Importa considerar que a formação da convicção do juiz e a criação do espírito no julgador de que determinado facto ocorreu e de determinado modo, “se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida. Neste sentido Manuel Tomé Soares Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no processo Civil, Revista do CEJ, Dossier temático Prova, Ciência e Justiça - Estudos Apontamentos, Vida do CEJ, Número 3º, 2º Semestre, 2005, pp. 158 e 159. Ensina ainda o prof. Castro Mendes “a convicção humana é uma convicção de probabilidade”; de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente”. Ora, ao contrário do que pretende a Recorrente, perfeitamente justificado o juízo de probabilidade qualificada na sentença, que mais resulta confirmado e até ampliado como antecede.
Improcedente, pois, nessa parte o recurso, mantendo-se o ponto da matéria de facto posto em causa.
Para a melhor reapreciação dos danos e sua quantificação no caso concreto, há que ter em mente alguns conceitos gerais relativos à catalogação de danos, em especial, os conceitos e posicionamento do dano corporal, dano biológico, afetação da capacidade de ganho, e dano de natureza não patrimonial. Como pano de fundo, tenhamos presente o regime da obrigação de indemnizar constante dos artigos 562.º a 564.º, 566.º e 570.º do CC. Tradicionalmente, os danos subsumem-se numa das seguintes categorias jurídicas: danos patrimoniais, ou de natureza patrimonial, e danos não patrimoniais, ou de natureza não patrimonial (também designados, danos morais, embora, de acordo com certa nomenclatura, os morais também sejam tidos apenas como uma parcela dos não patrimoniais). Na presente apelação estão em causa danos de ambas as naturezas. Nos danos patrimoniais, distingue-se o dano emergente e o lucro cessante ou, nas expressões do artigo 564.º, n.º 1, do CC, o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. O dano emergente compreende o prejuízo causado nos bens ou direitos existentes na titularidade do lesado à data da lesão; o lucro cessante, os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas que ainda não tinha na sua titularidade à data da lesão. De há uns anos a esta parte tem sido trabalhada a noção de dano corporal, que, de acordo com certa terminologia, e sobretudo numa fase inicial, também foi designado por dano biológico. O dano corporal (ou dano biológico, sinónimos de acordo com certa nomenclatura) designa lesões na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica. Trata-se de um dano real ou dano-evento, pelo que se situa num patamar mais elevado e a montante dos danos-consequência, sendo estes últimos que são suscetíveis de se reconduzir às categorias antes referidas. Sobre o conceito de dano corporal (ou biológico, quando sinónimos) no direito português, nomeadamente sobre a sua adopção pela jurisprudência, v. Maria da Graça Trigo, «Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português», ROA, Ano 72, I (jan.-mar. de 2012), pp. 147-178. A autora defende e conclui que «O dano biológico [conceito que ali utiliza como sinónimo de dano corporal], sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais» (p. 177, ênfases e frase entre parênteses rectos nossos). Como dano-evento que é, do dano corporal podem decorrer danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais, podendo os primeiros assumir feição de danos emergentes ou de lucros cessantes. O dano corporal pode, portanto, refletir-se de várias maneiras na esfera patrimonial do lesado, nomeadamente: pode provocar perdas diretas de retribuição; pode provocar uma diminuição efetiva, mas indireta, da remuneração porque o lesado produzirá menos e, por via disso, receberá menos; pode, alternativamente, sem provocar perda efetiva de remuneração (pelo menos imediata e face à relação laboral ou profissional vigente), impor ao lesado um esforço acrescido para manter o nível de produtividade anterior ao dano. Para além destas situações, em conjunto com alguma delas ou isoladamente, o dano corporal pode causar ao lesado dificuldades acrescidas em actos correntes do dia-a-dia. É relativamente a esta decorrência que se tem colocado a questão de saber se se trata de dano patrimonial ou de dano não patrimonial. Como quer que se entenda, o dano corporal pode ter também, e normalmente tem, (outros) reflexos não patrimoniais. Com o tempo, tem vindo a reservar-se a expressão dano corporal para o acima referido dano real ou dano-evento e a designar-se por dano biológico uma das suas possíveis decorrências. É claramente essa a terminologia adotada na Portaria 377/2008, de 26 de maio – que regulamenta o DL 291/2007, de 21 de agosto, que, por sua vez, aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com as alterações introduzidas pela Portaria 679/2009, de 25 de junho. Esta portaria designa por dano corporal o dano real ou dano-evento ao qual destinámos até agora indiferentemente as expressões “dano corporal” e “dano biológico”; e destina a expressão “dano biológico” para um dos danos-consequência do dano corporal[4]. Na Portaria 377/2008, o “dano biológico” é, pois, um dano-consequência do “dano corporal”; consiste no dano pela ofensa à integridade física e psíquica, de que resulte ou não perda da capacidade de ganho[5]. Esta acepção corresponde essencialmente àquela que se afigura ser atualmente predominante na jurisprudência do STJ: “dano biológico” enquanto consequência patrimonial da incapacidade geral ou funcional do lesado (assim se conclui no Ac. do STJ de 24/02/2022, proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Cons. Maria da Graça Trigo). Apesar de a Portaria ser conceptualmente robusta, os valores de indemnização a que se chega através da sua aplicação, designadamente por dano biológico (artigos 3.º, alínea b), 8.º e anexo IV), são francamente reduzidos e, nessa medida, ponderados apenas como mínimo irredutível – v. Ac. do TRL de 12/09/2017, proc. 3310/11.8TBALM.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa). A própria Portaria, em sede preambular, frisa que o seu objetivo não é a fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas, nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do DL 291/2007, de 21 de agosto, o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda uma avaliação, tão objetiva quanto possível, pela autoridade de supervisão, da razoabilidade das propostas apresentadas. Os critérios e soluções da Portaria destinam-se, portanto, expressa e diretamente a um âmbito de aplicação extrajudicial: determinação do conteúdo mínimo, por categorias de danos, da proposta que a seguradora deve oferecer no âmbito da regularização do sinistro.
Desde logo, não assiste razão à recorrente quando tem por indemnizável apenas em sede de dano patrimonial corporal o reflexo do dano biológico nas demais actividades da Autora, com exclusão da actividade profissional, reconduzindo-se já à indemnização atribuída em sede de acidente de trabalho. De resto, não foi e bem o caminho seguido na sentença recorrida, de acordo aliás com a quase unanimidade da jurisprudência portuguesa quanto a essa questão. Vejamos, desde logo, os factos mais relevantes para o arbitramento desta indemnização, mantendo-se os respectivos pontos da matéria assente: 9 - A Autora ficou encarcerada no seu veículo. 10 - Foi assistida pelo Inem que foi chamado ao local e que a transportou para o Hospital .... 11 - Em consequência do embate, a Autora sofreu traumatismo da coluna cervical e do punho esquerdo. 12 - Foi assistida nos serviços de urgência do Hospital ... onde foi radiografada à coluna cervical e mão, tendo prosseguido com os posteriores tratamentos nos serviços clínicos da Seguradora B..., responsável no âmbito do acidente de trabalho. 13 - Efetuou RX e RMN cervical tendo realizado tratamentos de fisioterapia. 14 - A Autora necessitou de ajudas medicamentosas e de analgésicos. 15 - O período de Défice Funcional Temporário Total é de 8 dias. 16 - O período de Défice Funcional Temporário Parcial é de 92 dias. 17 - O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 8 dias. 18 - O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável num período de 84 dias. 19 - A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 14/01/2020. 20 - Por via das lesões sofridas em virtude do embate, a Autora ficou a padecer de cervicalgia residual pós-traumática, em coluna cervical com alterações degenerativas. 21 - As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 1 ponto, sendo as sequelas compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares. 22 - A Autora apresenta um Quantum doloris fixado no grau 2 numa escala de 1 a 7. 23 - Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1 numa escala de 1 a 7. 24 - À data do embate, a Autora detinha a categoria profissional de médica dentista, desempenhando estas funções por conta própria, auferindo um rendimento anual de 109.682,57€. 25 - A Autora nasceu a ../../1974. Na data do acidente tinha 45 anos de idade. 26 - No exercício da sua atividade profissional de médica dentista, necessita de esforços acrescidos para determinadas posturas, por sentir dores na cervical, o que a leva a tomar analgésicos. 27 - O que lhe causa incómodo, mal estar, desgosto e amargura. 28 - A Autora era dinâmica e trabalhadora. 29 - Por causa do embate, a Autora sofre de ansiedade e conduz mais devagar. 30 - Por causa das lesões sofridas com o embate, a Autora deixou de fazer Yoga. Os factos agora listados serão exactamente a atender em sede de indemnização por danos de natureza não patrimonial na medida em que se reportam ou originam também danos dessa natureza. Os mesmos factos, porém, também têm repercussão patrimonial, pelos esforços acrescidos que demandam em praticamente todas as atividades, seja de lazer, trabalho ou outras. A incapacidade permanente constitui um dano patrimonial indemnizável, quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer dela resulte apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar, físico ou/e psíquico, para obter o mesmo resultado. Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho. Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo lesado está o julgador subordinado a critérios de equidade, que pondere, todavia, a situação económica do lesado e do obrigado à reparação, a intensidade do grau de culpa do lesante, e extensão e natureza das lesões sofridas pelo titular do direito à indemnização, considerando, como ponto de equilíbrio, as próprias finalidades prosseguidas pela indemnização por este tipo de danos. Por outras palavras, o dano biológico enquanto dano-evento, integrado por uma lesão de bens eminentemente pessoais, concretamente, da saúde, coloca a ênfase num aspeto importante: tratando-se de uma incapacidade funcional ou fisiológica que se centra, em primeira linha, na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços, por parte do lesado, traduz-se numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das atividades pessoais, em geral, e numa consequente e, igualmente, previsível maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando (ou podia desempenhar), com regularidade[6]. Este enquadramento permite valorizar o dano biológico em lesados que não entraram ainda no mercado de trabalho ou que, por via da idade ou de outras vicissitudes, não exercem uma atividade profissional. O dano em causa é entendido como tendo um cariz dinâmico compreendendo vários fatores, sejam atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais[7], tanto mais que se traduz numa “diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre”[8]. Por outras palavras, o dano biológico reflete a afetação da potencialidade física do lesado determinando uma irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará, com perda de qualidade de vida. [Aqui se consigna que o recurso a jurisprudência já longínqua no tempo visa reforçar a noção acima de estar em causa na fixação equitativa da indemnização um complexo de conceitos, noções ou aquisições sedimentadas e fundamentadas ao longo do tempo pela jurisprudência, mormente dos tribunais superiores.] Mais do que a respectiva qualificação — como dano patrimonial, não patrimonial ou como um tertium genus —, o que verdadeiramente se revela complexo é atribuir a soma justa tendente a ressarcir um dano que, na jurisprudência dos tribunais superiores, é tratado de modo díspar. Quando esteja em causa uma incapacidade que não implique abandono da profissão ou perda de capacidade de ganho, mas antes acréscimo dos esforços para o desempenho das mesmas tarefas profissionais, as indemnizações arbitradas divergem substancialmente, apesar de a esmagadora maioria das mesmas recorrer ao mesmo tipo de cálculo e de todas elas se socorrerem da equidade, com a consequente desigualdade no tratamento dos titulares do direito a uma indemnização. Como se refere no Ac. do STJ de 26.01.2012 (na base de dados da dgsi), «[o] conceito de “dano biológico” “dano à pessoa”, “dano à saúde”, “dano corporal” ou ainda “dano à integridade psicofísica” (…) emergiu, com particular relevância, com a sentença 184/86 do Tribunal Constitucional italiano, o qual, em interpretação dos artigos 32.º da Constituição e 2043.º do Código Civil [italiano], o considerou como um tertium genus a demandar indemnização por si, independentemente dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que lhe estejam associados». Essa construção veio a ter tradução legislativa em Itália, sendo que, em Portugal, onde os danos estão codificados como patrimoniais ou não patrimoniais, a jurisprudência foi seguindo um caminho onde, apesar de se ir firmando a ideia da ressarcibilidade do dano biológico independentemente da sua repercussão ou não na capacidade de ganho, não chegou a uma qualificação unânime. Assim se afirma no Ac. do TRL de 22.11.2016 que «(…) inexiste um consenso sobre a categoria em que deve ser inserido e, consequentemente, ressarcido, o dano biológico. Enquanto uma parte da jurisprudência (talvez maioritária) o configura como dano patrimonial, muitas vezes reconduzido ao dano patrimonial futuro; outra parte admite que pode ser indemnizado como dano patrimonial ou compensado como dano não patrimonial, segundo uma análise casuística. Assim, em função das consequências da lesão (entre patrimoniais e não patrimoniais) variará também o próprio dano biológico. Existe também uma terceira posição que o qualifica como dano base ou dano- -evento que deve ser ressarcido autonomamente». Ainda assim, com excepção da corrente que defende que a ofensa à integridade física e psíquica da vítima, quando dela não resulte perda da capacidade de ganho, apenas tem expressão nos danos não patrimoniais[9], para as demais correntes, este dano, na vertente patrimonial, deve ser calculado como se de um dano patrimonial futuro se tratasse: há uma perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, nisso consistindo o prejuízo a indemnizar. Sufraga-se, a exemplo do Ac. do TRL de 22.11.2016, na base de dados da dgsi, o pressuposto de que «(…) o dano biológico constitui uma lesão da integridade psicofísica, susceptível de avaliação médico- -legal e de compensação, estando a integridade psicofísica tutelada directamente no artigo 25.º, n.º 1, da Constituição («a integridade moral e física das pessoas é inviolável») e no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil». Assume-se, como naquele mesmo Acórdão, que o dano consiste «[n]uma incapacidade funcional ou fisiológica que se centra, em primeira linha, na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços por parte do lesado, o que se traduz numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das actividades pessoais em geral, e numa consequente e, igualmente previsível, maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando com regularidade». Reconhece-se que tal dano tem expressão patrimonial, por se admitir que a respectiva integração no dano não patrimonial tende à subvalorização do mesmo: é a avaliação médico-legal e o respectivo enquadramento tabelar que fornecem a base para que a jurisprudência possa partir de elementos objectivos para a determinação do valor da indemnização. Reportar o dano da afectação psicofísica à categoria de dano não patrimonial, a mais de desconsiderar que a capacidade de obter rendimento, que fica prejudicada, constitui um dano de natureza patrimonial, acrescenta nas mãos do julgador o encargo de materializar o que não é material, aumentando a álea e, com isso, a potencial desigualdade entre lesados[10]. Quanto à “desconsideração” da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, aqui nos remetemos para o que já se adiantou, quanto à sua ponderação na decisão recorrida, sendo que valem nesta sede, até por maioria de razão, as exactas considerações acima quanto ao papel ou relevo da Portaria, a que mais se aludirá, no confronto já com outros factores a atender. Quanto à quantificação deste dano, sublinha-se no Ac. do TRP de 30.09.2014 (no mesmo lugar) que tal «(…) constitui uma espinhosa tarefa (…). A percepção das dificuldades e, mais do que isso, a apreciação crítica da diversidade dos resultados decorrente do recurso a critérios rodeados de elevada dose de subjectividade levou a que em alguns sistemas se tenha avançado para a introdução de outros potenciadores de maior objectividade. Assim aconteceu, por exemplo, em Espanha, com a introdução de medidas de “baremacion”, nos termos da Ley n.º 30/1995, de 8-11, vinculativas para os tribunais. Ainda que sem o mesmo valor vinculativo, é um tal sistema assente em “barémes” que se encontra implantado em França (…). É de reconhecer também o esforço do legislador português no sentido da uniformização de critérios de cálculo e defesa do interesse das vítimas de acidentes de viação, designadamente através da publicação de vários diplomas, como sejam o Decreto-Lei n.º 83/2006, de 3 de Maio, o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, o Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro — que introduziu na ordem jurídica portuguesa a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil —, a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, que, complementando-o, estabeleceu os valores orientadores de proposta razoável para indemnização do dano corporal resultante de acidente de automóvel e a Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, que, além do mais, veio actualizar os valores daqueloutra, de acordo com o índice de preços ao consumidor de 2008». No que concerne aos fatores a ponderar no respetivo cálculo, com vista à maior uniformidade na sua quantificação, têm sido apontados os seguintes[11]: - a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida; - no cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável; - os métodos matemáticos e/ou as tabelas financeiras utilizados para apurar a indemnização são apenas um instrumento de auxílio, meramente indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação que se impõe fundada na equidade; - deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, permitindo ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, pelo que há que considerar esses proveitos introduzindo um desconto no valor encontrado; - deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa do lesado, a respetiva esperança média de vida do lesado, enquanto “pessoa” e “cidadão”, que vive para além do tempo da reforma[12]; - a idade do lesado; - o grau de défice funcional permanente; - as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou atividade económica alternativa, aferidas, em regra, pelas suas qualificações. A utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, sendo que a prossecução desse princípio implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente incompatível com as circunstâncias do caso (Acórdão do STJ, de 4 de junho de 2015, acessível em www.dgsi.pt). Ora “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vetores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha reta à efetiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição” (Acórdão do STJ, de 21 de fevereiro de 2013, acessível em www.dgsi.pt), cumprindo não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes (Ac. do STJ, de 4 de junho de 2015, acessível em www.dgsi.pt). Quanto a estas, justamente para se respeitar a equidade, sempre terá de reconhecer-se que, “cada caso é um caso” e, assim, não pode partir-se apenas e só da comparação simplista entre o grau da incapacidade e a idade da vítima, cabendo ponderar a concreta limitação funcional e a actividade exercida, como o facto de a actividade exercida se prolongar para além ou para lá da idade “normal de reforma” (no que tange agora ao reflexo na actividdae laboral). Ora, a dor cervical com alterações degenerativas, quando se atente na actividade profissional de dentista e na posição habitual que lhe corresponde releva de forma distinta e mais grave, em termos do aumento do esforço para o exercício da profissão, pese embora o grau de incapacidade. Considerando, pois, as descritas circunstâncias da autora – idade, longos anos de actividade pela frente, natureza da lesão que afecta a cervical, com a necessidade de analgesia, também para trabalhar–, como os demais esforços acrescidos noutras actividades com reflexo patrimonial (v.g. o exercício da condução ou tarefas domésticas), não se tem por desrazoável ou excessiva a arbitrada indemnização. Quanto aos termos, finalmente, da não cumulação de indemnizações de acidente de trabalho e de viação, aqui nos reconduzimos ao decidido no Acórdão do STJ de 11.12.2012, relatado eximiamente por Lopes do Rego, o qual sintetiza o enquadramento jurídico da questão decidenda. Assim: «As indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto. Constitui entendimento uniforme e reiterado o de que as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto. Por outro lado, não é controvertida a conclusão segundo a qual a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado. Desta fisionomia essencial do concurso ou concorrência de responsabilidades (que não envolve um concurso ou acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) pode extrair-se a conclusão que este figurino normativo preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, já que: - no plano das relações externas, o lesado/sinistrado pode exigir alternativamente a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações; - no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos obrigados a indemnizar o responsável definitivo pelos danos causados, conduz a que tenha de se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou respectiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, directa ou indirectamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente. Têm sido, todavia, acentuadas algumas particularidades ou aspectos específicos e peculiares desta relação de solidariedade imprópria. Assim: - no que toca ao regime das relações externas, acentua-se que (ao contrário do que ocorre na normal solidariedade obrigacional – art. 523º do CC ) o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente de viação: é que, se a indemnização paga pelo detentor ou condutor do veículo extingue efectivamente a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não será exacto, na medida em que a indemnização paga por esta entidade não extinguiria a obrigação a cargo do responsável pela circulação do veiculo que causou o acidente (cfr., por exemplo, o Ac. de 19/10)10, proferido pelo STJ no P. 696/07.2TBMTS.P1.S1); e daí que se qualifique como sub-rogação legal (e não como direito de regresso ) o fenómeno da sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, referentemente à parcela da indemnização que tiver satisfeito (cfr. Acs. de 9/3/10, proferido pelo STJ no P. 2270/04.6TBVLG.P1.S1, e de 11/1/01, proferido no P. 4760/07.0TBBRG.G1.S1); - no plano das relações internas, tem sido acentuado que o quadro normativo aplicável é o que resulta estritamente do disposto na lei dos acidentes de trabalho em vigor (actualmente, o art. 31º da Lei 100/97), sendo esse direito ao reembolso do responsável laboral efectivado necessariamente por uma de três formas: - substituindo-se ao lesado na propositura da acção indemnizatória contra os responsáveis civis, se lhe pagou a indemnização devida pelo sinistro laboral e o lesado não curou de os demandar no prazo de 1 ano a contar da data do acidente; - intervindo como parte principal na causa em que o sinistrado exerce o seu direito ao ressarcimento no plano da responsabilidade por factos ilícitos, aí efectivando o direito de regresso ou reembolso pelas quantias já pagas; - exercendo o direito ao reembolso contra o próprio lesado, caso este tenha recebido (em processo em que não haja tido lugar a referida intervenção principal) indemnização que represente duplicação da que lhe tinha sido outorgada em consequência do acidente laboral.» Desde logo, a lesada não omitiu o recebimento de indemnização decorrente do acidente laboral: bem pelo contrário, refere explicitamente tal recebimento, peticionando que lhe seja arbitrada quantia que parece representar uma indemnização adicional à emergente do sinistro laboral, logicamente reportada ao ressarcimento de danos que se não pudessem ter por incluídos ou contemplados no capital de remição que reconhece ter sido recebido. Assim é que à petição inicial, como acto jurídico não negocial se aplicam, por força do artigo 295º do CC, os critérios da interpretação do negócio jurídico e, desde logo, a teoria da impressão do destinatário. Bem assim quanto à sentença recorrida. Ora, por força do princípio dispositivo – que implica a congruência entre a petição e a sentença – não se concebe atribuir esta ao lesado uma indemnização global que compreendesse os danos já ressarcidos no procedimento por acidente de trabalho. É de resto expressa a sentença recorrida que, caso concreto (a mais de considerar equitativamente um “desconto” na indemnização arbitrada) não se reconduz na indemnização a uma perda de rendimentos provenientes do trabalho habitual, mas antes a uma maior penosidade deste e a uma expectável não progressão na carreira e consequente aumento de rendimentos (no que concerne directamente ao plano laboral da afectação, sendo que outros domínios, com dimensão imediatamente patrimonial foram ademais ressaltados). Não pode efectivamente concluir-se que a quantia arbitrada à lesada a título (também) de ressarcimento do dano patrimonial futuro represente uma duplicação da indemnização consubstanciada no recebimento do capital de remição: analisando a linha argumentativa nela expendida, e, decisivamente, a que antecede, tem de concluir-se que o valor pecuniário arbitrado não tem como função e finalidade a compensação das perdas salariais decorrentes do grau de incapacidade laboral fixado ao sinistrado no procedimento de acidente de trabalho, mas antes a compensação do dano biológico inevitavelmente associado às sequelas das lesões sofridas – e nessa medida, totalmente autónomo e diferenciado da problemática das referidas perdas salariais. Saliente-se, em apoio desta interpretação, em reforço do entendimento segundo o qual no valor arbitrado ao lesado se não mostram compreendidas as perdas salariais, ressarcidas através da entrega do capital de remição, mas apenas o dito dano biológico, por as sequelas das lesões sofridas implicarem esforços ou sacrifícios acrescidos, não apenas no exercício de tarefas laborais, mas também na vida pessoal, atenta a diversidade dos danos contemplados que, na verdade, o dano que a indemnização acima fixada visa ressarcir não é um dano laboral, mas um dano de natureza geral, ou seja, o que corresponde à denominada incapacidade permanente geral, correspondente à afectação definitiva da capacidade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, a qual não tem sequer expressão em termos de incapacidade para o trabalho habitual, apenas exigindo ao autor esforços acrescidos nesse domínio. Esta interpretação conduz a que se não tenha por demonstrada a acumulação real de indemnizações referentes a um mesmo dano, já que se verifica estar em causa não o dano consubstanciado na perda de rendimentos salariais decorrente do grau de incapacidade fixado ao sinistrado no processo de acidente de trabalho (compensado pela entrega do capital de remição e sempre atendido equitativamente, em sede de redução, como caracterizado na sentença), mas antes o dano biológico decorrente das sequelas das lesões sofridas, perspectivado não como fonte de uma perda de rendimentos laborais, mas antes como diminuição global das capacidades gerais do lesado, envolvendo uma verdadeira capitis deminutio para a realização de quaisquer tarefas, que passam a exigir-lhe um esforço acrescido, compensado precisamente com o arbitramento desta indemnização. Voltando ao Acórdão do STJ, que vimos seguindo de muito perto, «São de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.» Por isso que, em conclusão, se entende ser de manter, nessa parte, a arbitrada indemnização. Quanto agora especificamente aos danos de natureza não patrimonial, na fixação da indemnização respetiva, devem ser atendidos os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º, n.º 1, do CC. Estão aqui em causa todos os danos de natureza não patrimonial reconduzíveis ao teor do citado artigo, incluindo aqueles que decorrem do dano corporal. Não sendo os danos não patrimoniais suscetíveis de quantificação, o seu ressarcimento tem uma função essencialmente compensatória: permitir ao lesado dispor de uma soma de dinheiro que lhe permita adquirir bens ou serviços que lhe deem alguma satisfação, compensando, ainda que sofrivelmente, o mal padecido. O montante pecuniário será fixado com recurso à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente (que, no caso, foi enorme – factos 1 a 7), a sua situação económica e a do lesado, e as demais circunstâncias do caso (artigo 494.º, ex vi do artigo 496.º, n.º 4, ambos do CC). Como, de há muito e reiteradamente, tem sido afirmado nas decisões dos tribunais superiores, a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser meramente simbólica, sob pena de não se mostrar adequada aos fins a que se destina – atenuação da dor sofrida pelo lesado e reprovação da conduta do agente – v. a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ de 10/05/2017, proc. 131/14.0GBBAO.P1.S1 (Gabriel Catarino), de 25/11/2009, proc. 397/03.0GEBNV.S1 (Raul Borges), este com extensa citação de acórdãos do STJ sobre o tema, e de 18/12/2007, proc. 07B3715 (Santos Bernardino). No que respeita aos danos não patrimoniais, importa referir que o Tribunal tem, diferentemente da avaliação dos danos patrimoniais, não que verificar "quanto as coisas valem", mas sim que encontrar "o quantum necessário para obter aquelas satisfações que constituem a reparação indirecta" possível (Galvão Telles, Direito das Obrigações, pag. 377). O prejuízo, na sua materialidade, não desaparece, mas é economicamente compensado ou, pelo menos, contrabalançado: o dinheiro não tem a virtualidade de apagar o dano, mas pode este ser contrabalançado, "mediante uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano" - Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, nº 1, 1º ano, APADAC, pag. 20). Como se diz no Ac. STJ 16/04/1991 (BMJ 406-618, Cura Mariano), o art. 496º, do CC, fixou "não uma concepção materialista da vida, mas um critério que consiste que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegrias ou satisfações que, de algum modo, contrabalancem as dores, desilusões, desgostos, ou outros sofrimentos que o ofensor tenha provocado". Tudo isto é conseguido através dos juízos de equidade referidos no art. 496, nº 3, CC, o que, evidentemente "importará uma certa dificuldade de cálculo" (Ac. cit., pag. 621), mas que não poderá servir de desculpa para uma falta de decisão: é um risco assumido pelo sistema judicial. O Ac. STJ de 25 de Novembro de 2009 (in http://www.dgsi.pt/ processo nº 397/03.0GEBNV.S1) elenca, exaustivamente, as seguintes componentes do dano não patrimonial: - o chamado quantum (pretium) doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico; - o “dano estético” (pretium pulchritudinis), que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; - o “prejuízo de distracção ou passatempo”, caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, vg., com renúncia a atividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas; - o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra na “alegria de viver”; - o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida; os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; - o prejuízo juvenil “pretium juventutis”, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida, privando a criança das alegrias próprias da sua idade; - o “prejuízo sexual”, consistente nas mutilações, impotência ou dificuldades, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais; - o “prejuízo da autossuficiência”, caracterizado pela necessidade de assistência duma terceira pessoa para os atos correntes da vida diária, decorrente da impossibilidade caminhar, de se vestir, de se alimentar. No caso dos autos, temos que, como danos não patrimoniais, surgem, decisivamente: o Quantum Doloris, fixável no grau 2/7; o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 1 ponto; a Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 1/7; o lapso de tempo de incapacidade funcional parcial e a necessidade de tratamentos de fisioterapia e de analgesia para o futuro, bem assim. Também a circunstância do encarceramento. A compensação pelos danos de natureza não patrimonial tem de atender, passe a tautologia, aos efetivos danos com essa natureza. Não nos devemos impressionar com a baixa percentagem de “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica”, que foi fixada atendendo apenas a categorias tabelares genéricas relacionadas com aspetos mecânicos e/ou palpáveis do corpo, sem atenção à repercussão dos indicados males na vida diária e no bem-estar da autora, e sem atenção ao sofrimento, passado ou futuro. A mesma percentagem de “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” (1 ponto) e as lesões reconduzíveis às mesmas categorias e pontos podem ter consequências diferentes em pessoas diferentes. Basta que num caso a actividade profissional exija, como sucede, maior mobilização cervical, sendo-o noutras situações (apresentador de televisão, por exemplo) despicienda. Também as circunstâncias de vida e as formas de encarar os revezes são muito díspares. Tudo ponderado, concluímos que, novamente, não peca por exagero a indemnização arbitrada, que se mantém.
III. Nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. Notifique.
Porto, 13 de Novembro de 2025 Isabel Peixoto Pereira Manuela Machado Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
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