Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
89524/22.4YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: EMPREITADA
DEFEITOS DA OBRA
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP2024052089524/22.4YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Através dos fundamentos constantes da decisão quanto à matéria de facto o Tribunal da Relação vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância e perante a prova produzida, vai formar a sua própria convicção, o que pode conduzir à alteração da decisão de facto.
II - A exceção de não cumprimento não extingue a obrigação, mas suspende a sua exigibilidade.
III - Num contrato bilateral a ideia de proporcionalidade, no sentido de preservar o equilíbrio entre as prestações sinalagmáticas, impede que se recuse o cumprimento da totalidade da prestação, quando está em causa um incumprimento da outra parte que reveste um caráter ínfimo na economia do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Empreitada-RMF-89524/22.4YIPRT.P1

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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório

Na presente ação que segue a forma prevista no DL 269/98 de 01de setembro (superior à alçada de 1ª instância), a qual se iniciou como procedimento de injunção, em que figuram como:

-AUTOR: AA, com domicílio na Rua ... - ..., NIF ...; e

- RÉUS: BB e CC, com domicílio na Travessa ..., ..., Vila Nova de Gaia.

veio o autor pedir a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 5.076,95, quantia acrescida dos correspondentes juros de mora vencidos (€ 571,81) e vincendos, e de € 500,00 a título de outras quantias.

Alegou para o efeito e em síntese, que em 02 de abril de 2021 celebrou com os réus um contrato de fornecimento de bens ou serviços, o qual se refere ao período de 02-04-2021 a 31-05-2021.

Mais alegou a falta de pagamento pelos requeridos (marido e mulher), ao requerente, de fornecimentos de bens e serviços, requisitados pelos requeridos e que deram origem à emissão das seguintes faturas:

- Fatura nº …, datada de 02/04/2021, vencida no mesmo dia, no valor global de € 4.261,95 (IVA incluído); e

- Fatura nº FT …, datada de 31/05/2021, vencida no mesmo dia, no valor global de € 815,00 (IVA incluído).

As faturas advêm da celebração e cumprimento de um contrato de empreitada, referente à realização e conclusão de obras em ..., ..., correspondente a trabalhos de construção civil para os quais a requerente se encontra habilitada.

As faturas foram aceites pelos requeridos e são referentes à suprarreferida empreitada de construção civil e uso, fornecimento, aplicação e montagem de materiais conexos para construção civil, bem como, trabalhos e materiais extra, tendo sido tudo requisitado pelos requeridos.

Interpelados para cumprir, por várias ocasiões, os requeridos não liquidaram o valor ora peticionado, escudando-se em múltiplas e variadas justificações não devidamente fundamentadas e comprovadas.


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Os réus deduziram oposição, defendendo-se por exceção.

Alegaram para o efeito e em síntese que o requerente realizou obras na casa dos Requeridos, sita em ....

Mais alegaram que o requerente apresentou um orçamento no montante de 6.930,00€, tendo então recebido em dinheiro 50%, ou seja, 3.465,00€, conforme declaração por ele emitida. Posteriormente esse valor baixou para o que consta das faturas, ou seja, 5.076,95€, mas nada mais pagaram ao autor-requerente.

Alegaram que o autor executou os trabalhos em Fevereiro, mas deixou-os com defeitos, os quais foram reclamados pelos réus logo de seguida, mas o autor recusou-se a reparar os defeitos.

A obra em causa consistia no restauro de uma casa em que tudo o resto foi feito com cuidado, pois destina-se a alojamento local de luxo na ....

Enunciaram as seguintes deficiências na obra:

- por toda a casa os rodapés tinham (em média) 5 cm de altura em vez de 8 cm, tinham diferentes alturas em diferentes sítios, tinham acabamentos com diferentes tonalidades, alguns estavam mal colocados e outros ficaram mesmo descolados;

- por toda a casa ficaram aros das portas mal colocados, com aberturas/espaços de mais de 1 cm entre o aro e a parede;

- as portas de correr dos guarda-fatos ficaram com muito espaço relativamente às juntas de correr, o que faz com que saltem fora das juntas.

- a porta duma casa de banho foi mal colocada e não fecha.

- por toda a casa há frisos dos tetos mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.

Trata-se de deficiências que estão à vista, que o autor não quis corrigir, e a contratação de novo carpinteiro para fazer essas correções será mais dispendiosa que o que falta pagar-lhe. Alegaram, por fim, que face à posição assumida pelo Requerente não se justifica dar-lhe agora a possibilidade de corrigir os defeitos, salvo se outro for o entendimento do tribunal sobre a questão.

Termina por pedir que se julgue improcedente o pedido.


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Proferiu-se despacho que julgou incompetente em razão do território o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Celorico da Beira e ordenou a remessa dos autos ao competente Tribunal Judicial em Vila Nova de Gaia, despacho que mereceu o acordo das partes.

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Recebidos os autos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2, proferiu-se despacho que convidou o autor a pronunciar-se sobre a matéria da exceção.

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O Autor não se pronunciou.

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As partes a convite do tribunal apresentaram os requerimentos de prova.

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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância de todas as formalidades legais.

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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

“Em face do exposto, decido julgar a presente ação inteiramente improcedente e, em consequência:

a) Absolvo os réus dos pedidos formulados;

b) Condeno o autor no pagamento das custas processuais, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil”.


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O Autor veio interpor recurso da sentença.

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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:

1. Através do presente recurso, o recorrente pretende colocar em crise todo o conteúdo da Sentença emanada em 14 de Setembro de 2020.

2. Desde logo, a Sentença recorrida refere que o A. “admitiu”, vários factos, em sede de depoimento e declarações de parte, contudo, tal alegada confissão, não foi reduzida a escrito, conforme dispõe o art.º 466º, nº 2 do CPC.

3. Verificando a ata de audiência de discussão e julgamento não foi dado cumprimento a tal normativo, razão pela qual, as declarações do A. não podem constituir força probatória contra o mesmo.

4. Há, assim, violação dos arts. 466º, nº 2 e 463º, nº 3 do CPC.

5. Sem prescindir e salvo melhor opinião, existiu uma errada apreciação da prova produzida em audiência de discussão julgamento, bem como, uma inadequada interpretação da mesma, que levou à improcedência total da ação instaurada pelo recorrente, com clara violação e incorreta aplicação dos critérios do ónus da prova.

6. Além disso e com efeito, na douta sentença recorrida não se fez correta interpretação do disposto no artigo 342º do CC, norma que foi violada.

7. A ter-se em conta o declarado pelo A., quanto mais não seja, nos termos do art.º 358º, nº 4 do CC, e devidamente auscultado o seu depoimento (Gravado digitalmente de 00:00:01 a 00:15:12., em 07-09-2023).

8. Desde logo, do orçamento apresentado e aceite pelos RR não resultam incluídos os rodapés e o envernizamento.

9. Tal como não se provou que tenha sido o A. a contratar subempreiteiro para os rodapés e que lhe tenha pago, aliás, pelo contrário.

10. O A. referiu que reparou os defeitos que lhe foram sendo comunicados pelos RR.

11. Tal como referiu que a obra não foi acabada e que não mais os RR permitiram a sua entrada em obra.

12. Referiu também que os alegados defeitos provinham de humidades decorrentes de defeitos da obra referentes a outras artes.

13. Não se compreendendo a dúvida da sentença quanto a tal, dado que, quando há humidades a madeira mancha e dilata e quando a madeira seca acaba por encolher, sendo que depois de dilatar e encolher vão acabar por ocorrer aberturas (isso mesmo acontece, em formato menos grave, no chão em madeira das “nossas” casas não sendo de todo aconselhável utilizar esfregonas encharcadas para evitar fendas entre as peças de madeira).

14. Acresce, que as fotos estão repetidas (tiradas de mais do uma posição) quanto ao mesmo alegado “defeito”, conforme uma verificação mais atenta pode revelar.

15. A testemunha DD, engenheiro eletrotécnico teve um depoimento quase na totalidade indireto, não sendo suficiente para confirmar defeitos, dado que, o mesmo não precisou quando verificou tais alegados defeitos, se antes ou depois das intervenções mencionadas pelo A. (Gravado digitalmente de 00:00:01 a 00:15:23., em 07-09-2023).

16. Mais se refira que, a aplicação de verniz implica tratamento prévio das madeiras com vista a mitigar impurezas, pequenas imperfeições e uniformização da cor (tonalidade), dado que a madeira é uma matéria-prima que não é uniforme (pois é natural e não produzida em série) e não se provou que tal tratamento e envernizamento decorria do orçamento apresentado pelo Autor.

17. É incompreensível que a sentença recorrida não “compreenda” que as diferentes tonalidades se referem ao facto de se tratar de uma matéria-prima natural (e aí o valor acrescido) e como tal não uniforme, que algumas tonalidades diferentes possam ter advindo da humidade, mas que tal poderia e seria certamente mitigado com o tratamento específico prévio ao envernizamento e com este mesmo e, na dúvida, tal deveria ter sido apurado, aliás, como tudo o resto.

18. Aliás, o próprio A. refere que a obra necessitaria ainda dos acabamentos finais em termos, nomeadamente em termos de emassamento e envernizamento, conforme consta da própria sentença.

19. Ademais, não se vislumbra prova documental de que os alegados defeitos tenham sido devidamente denunciados pelos RR. ao A.

20. Donde resulta que os alegados defeitos excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário?

21. Na verdade, nada se demostrou em julgamento quanto a tal, ou seja:

- não se sabe apurou a verdadeira origem dos alegados defeitos;

- não se apurou o valor de tais defeitos e se se tratam de defeitos puros ou obra inacabada;

- não se apurou se tais alegados defeitos diminuem o valor da obra (inacabada);

- não se apurou que a obra (mesmo inacabada) tenham excluído ou diminuído a sua aptidão para o uso, dado que, está até a ser usada pelos RR que até recebiam visitas do amigo DD.

22. Apurou-se, efetivamente, é que os RR devem ao A., sendo certo que este se mostrou disponível, como sempre o fez, a corrigir e reparar algum defeito que efetivamente provenha do seu trabalho.

23. Ora, mal andou a sentença recorrida ao considerar como factos provados os nºs 4 e 5, os quais deveriam ter sido dados como não provados.

24. A douta sentença recorrida violou, a nosso ver e entre outros, o âmbito e objetivo dos artigos 466º, nº 2 e 463º, nº 3 do CPC, ou sem prescindir, dos artigos 358º, nº 4 do CC e 342º do Código Civil, em todos os seus números.

Termina por pedir o provimento do recurso e a revogação da sentença recorrida, substituindo-se a decisão por outra que condene os RR na totalidade do peticionado.


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Os réus vieram apresentar resposta ao recurso e formularam as seguintes conclusões:

A) O A. não respondeu à matéria de exceção deduzida na oposição – os defeitos da obra -, mesmo notificado pelo Tribunal para o fazer, nem impugnou as fotografias que mais tarde os RR. juntaram para comprovar os defeitos, pelo que se deverá ter essa matéria como assente desde então;

B) O depoimento do A. não necessitava de ser reduzido a escrito, e a ter de o ser o A. devia de imediato ter reclamado;

C) Deve de qualquer forma ser indeferido o pedido de alteração da decisão da matéria de facto também porque o A. não cumpriu o disposto no art.640º, nº2, al. a) do CPC;

D) Sendo certo que a única testemunha, engenheiro e responsável de obra, foi claro na comprovação dos defeitos nas passagens da gravação referidas no ponto IV.

E) O recurso dependia da alteração da matéria provada, pelo que não se justifica.

Termina por pedir que se negue provimento ao recurso e seja mantida a douta sentença recorrida.


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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso –  art. 639º do CPC.

As questões a decidir:

- reapreciação da decisão de facto;

- mérito da causa.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

1. Os réus solicitaram ao autor o fornecimento dos bens e serviços em obra situada em ..., ..., identificados nas seguintes faturas emitidas pela autora:

a. Fatura nº …, datada de 02/04/2021, vencida no mesmo dia, no valor global de € 4.261,95 (IVA incluído); e

b. Fatura nº …, datada de 31/05/2021, vencida no mesmo dia, no valor global de € 815,00 (IVA incluído).

2. Os réus foram interpelados ao pagamento das indicadas faturas.

3. A autora realizou obras na casa dos réus de ....

4. Os réus comunicaram imediatamente à autora a existência dos seguintes defeitos na obra realizada:

a. Os rodapés apresentam alturas diferentes, diferentes tonalidades e alguns estão descolados;

b. Os aros das portas têm aberturas de, pelo menos, um centímetro até à parede;

c. As portas de correr dos guarda-fatos saltam fora das juntas porque ficaram com muito espaço relativamente às corrediças;

d. A porta de uma casa de banho não fecha devido à má colocação;

e. Os frisos dos tetos estão mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.

5. Os rodapés, os aros das portas, as portas de correr, a porta da casa de banho e os frisos aludidos em 4 continuam no estado ali descrito.


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- Factos não provados

- A. A autora suportou € 500,00 com a cobrança da dívida.

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3. O direito

- Reapreciação da decisão de facto -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 18, veio o apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, quanto aos pontos 4 e 5 dos factos provados.

Na resposta ao recurso os apelantes consideram que deve ser rejeitada tal pretensão, por não estarem reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, porque o apelante não indicou em relação a cada depoimento as concretas passagens em que se insere o depoimento das testemunhas que sustenta a alteração, limitando-se a indicar o princípio e o fim da gravação dos depoimentos gravados e disponíveis no sistema Citius.

Cumpre proceder à verificação dos pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.

O art.º 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. […]”

Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso - e motivar o seu recurso – fundamentação - com indicação dos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.

Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Considera-se que a indicação do início e termo dos depoimentos gravados não viola o comando legal que impõe que o recorrente indique com exatidão as passagens da gravação onde constam os meios de prova aí registados (Ac. STJ 08.11.2016, Proc. 2002/12.5TBBCL.G1.S1, www.dgsi.pt).

No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar - depoimento de parte, declarações de parte, prova testemunhal e documental - e decisão que sugere.

Quanto à prova a reapreciar, para além da indicação que consta das conclusões de recurso, na motivação do recurso o apelante tece considerações sobre os depoimentos prestados, motivo pelo qual se considera que funda a impugnação nos depoimentos consignados na gravação pelo que o início e termo da gravação do depoimento preenchem o pressuposto de ordem formal quanto à indicação da prova gravada.

Nos termos do art.º 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.


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Nos termos do art.º 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:

“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[2].

Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].  

Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art.º 396º CC e art.º 607º/5, 1ª parte CPC.

Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[4].  

Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art.º 607º/4 CPC).

Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.

É através dos fundamentos constantes da decisão quanto à matéria de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[5] e formar a sua própria convicção, perante a prova produzida.

Como observa ABRANTES GERALDES: “[s]em embargo da ponderação das circunstâncias que rodearam o julgamento na 1ª instância, em comparação com as que se verificam na Relação, esta deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, portanto, deve introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal”[6].

Ponderando estes aspetos, face aos argumentos apresentados pelo apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto, justifica-se, em parte, alterar a decisão de facto, pelos motivos que se passam a expor.

O apelante impugna a decisão dos pontos 4 e 5 dos factos provados, nos quais se julgou provado:

4. Os réus comunicaram imediatamente à autora a existência dos seguintes defeitos na obra realizada:

a. Os rodapés apresentam alturas diferentes, diferentes tonalidades e alguns estão descolados;

b. Os aros das portas têm aberturas de, pelo menos, um centímetro até à parede;

c. As portas de correr dos guarda-fatos saltam fora das juntas porque ficaram com muito espaço relativamente às corrediças;

d. A porta de uma casa de banho não fecha devido à má colocação;

e. Os frisos dos tetos estão mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.

5. Os rodapés, os aros das portas, as portas de correr, a porta da casa de banho e os frisos aludidos em 4 continuam no estado ali descrito.

Em sede de fundamentação da decisão, justificou-se a decisão nos termos que se passam a transcrever:

“A contratação do autor pelos réus para a realização de obra de carpintaria de interiores na sua casa de ... e a emissão das faturas constituem factos não impugnados pelos réus, devendo os mesmos ser considerados provados.

Aquando da produção da prova, verificou-se apenas divergência quanto ao âmbito dos serviços contratados, tendo o autor deixado bem claro que não foi contratado pelos réus para a colocação dos rodapés, mas sim por um empreiteiro, portanto, em regime de subempreitada, tendo sido pago por esse empreiteiro.

O autor admitiu que os réus lhe reportaram a existência de defeitos na sua obra e que até chegou a fazer algumas reparações, arranjando cortes abertos, emassando frisos dos tetos e substituindo outros, motivo pelo qual a denúncia dos defeitos se encontra demonstrada.

No que respeita à existência dos defeitos propriamente ditos, ainda que se deva excluir da obra encomendada pelos réus ao autor a colocação dos rodapés, o Tribunal ficou inteiramente convencido de que as anomalias acima descritas, respeitantes aos aros das portas, às portas de correr, à porta da casa de banho e aos frisos dos tetos, se verificam e não foram corrigidos pelo autor porque persistem.

Desde logo, porquanto, confrontado com as fotografias juntas aos autos que ilustram as anomalias em causa, a testemunha DD, amigo dos réus e que pernoitou na casa, confirmou os alegados defeitos, tendo asseverado de forma desapaixonada e concretizada, ter observado quanto os réus descrevem, de onde se destacam as juntas não uniformes das ilhargas portas, a porta do guarda-fatos saída da corrediça, a porta da casa de banho e as fendas nos frisos dos tetos. Analisando as fotografias juntas pelos réus que lhe foram exibidas a respeito destas anomalias, confirmou corresponderem ao que no local observou.

Adicionalmente, o réu confirmou que as fotografias que juntou ao processo correspondem à obra do autor e que tudo se mantém, não correspondendo ao nível de acabamento e perfeição que pretendia.

A circunstância mencionada pelo autor de que ele não ficou responsável por aplicar o verniz não contende obsta à conclusão da existência dos apontados defeitos, sendo eles de tal circunstância independentes, até porque, por exemplo, as diferenças fortes de tonalidade que se observam nas fotografias existentes no processo não seriam mitigadas com o verniz. O autor mencionou ainda que os desfasamentos que se verificam seriam corrigidos, emassando as madeiras e os espaços, o que já é responsabilidade de outros. Todavia, curiosamente, antes havia dito que, após reclamação do autor, foi à obra, nomeadamente, emassar frisos, o que contradiz aquelas suas declarações. Todavia, não existindo elementos probatórios suficientes para concluir no sentido de que as paredes da casa estavam efetivamente tortas, a conclusão a tirar é a de que o autor deixou a obra mal acabada, com ilhargas tortas, desfasadas, frisos mal aplicados e com medidas diferentes e espaços exagerados entre peças. Também não colhe a explicação de que os espaços entre peças de madeira se devem a humidades que provocaram o respetivo encolhimento, o que, em si, constitui um contrassenso, já que o efeito deveria ser o contrário, para além de que também inexiste qualquer elemento probatório que sustente essa tese do autor, inexistindo evidência de a casa possuir nível de humidade acima do normal. Já no que respeita às portas com anomalias, o autor nem sequer apresentou qualquer justificação, também em relação a elas não restando qualquer dúvida”.

O apelante sugere a alteração da decisão no sentido de se julgar “não provados” os pontos 4 e 5 dos factos provados e sustenta a alteração na apreciação crítica dos depoimentos prestados pelo autor e depoimento da testemunha DD. Considera que as declarações de parte do autor foram indevidamente valoradas, sendo que no confronto com a prova documental justificam decisão diferente e que o depoimento da testemunha DD, por constituir um depoimento indireto, não se mostra suficiente para confirmar os defeitos.

Na matéria de facto impugnada está em causa apreciar se a obra executada pelo autor apresenta as deficiências que o réu descreve na contestação e se tais deficiências ainda se mantêm.

Cumpre ter presente uma súmula dos depoimentos para melhor compreender as concretas questões suscitadas em matéria de exceção e ainda, por se entender ser de ampliar a decisão de facto, ao abrigo do disposto no art.º 662º/1/2 c) CPC, por se terem omitido da discussão da causa factos essenciais alegados na contestação e que foram objeto de produção de prova.

Em declarações de parte o autor AA referiu que a solicitação dos réus procedeu à colocação de armários roupeiros, aros de portas e posteriormente degraus numa escada, em casa dos réus sita em .... Referiu que também aplicou rodapés e colocou frisos e tetos de madeira. O réu acordou os termos do contrato com o pai do declarante, EE.

Disse, ainda, que os réus pagaram uma parte e agora faltava o resto da fatura e disse também, que “pagaram cerca de metade”.

Esclareceu que arranjou rodapés e tetos que o réu pediu para alterar. Nos rodapés arranjou os cortes abertos. Nos frisos do teto emassou e substituiu outros. Nas portas e armários e nos aros não procedeu a qualquer reparação, por entender que existe uma diferença nas medidas das paredes. “A abertura nos aros à parede não está igual”.

Disse, ainda, que dos trabalhos acordados não constava a aplicação de verniz, nem emassar as madeiras. A obra foi para o sítio sem verniz. O pintor é que faz a aplicação do tapa-poros e envernizamento. Disse que certos carpinteiros fazem esse trabalho, mas o declarante não o faz, como também não faz trabalho de trolha, para corrigir as aberturas entre os aros e a parede.

Referiu que viu o orçamento, mas não se recordar do que lá consta.

Mais referiu que andaram a trabalhar na obra cerca de uma semana, o próprio e dois trabalhadores.

Esclareceu que não foram convencionados trabalhos extras.

Quanto à obra de colocação de rodapés, referiu que o empreiteiro é que tinha de colocar os rodapés e o empreiteiro contratou o autor para executar a obra, em regime de subempreitada. Fez a obra e “faturou ao empreiteiro”, que lhe pagou. Fez o trabalho por ordem do empreiteiro. “Foram eles [referindo-se aos réus e empreiteiro] que se entenderam e por isso, a colocação dos rodapés não consta do orçamento. Referiu, ainda, que os acabamentos nos rodapés não são da sua responsabilidade.

Em relação às diferenças de tonalidades na madeira, disse que são devidas a causa natural, porque a madeira não tem uma mesma coloração.

Exibidas as fotografias, nas quais são visíveis rodapés, disse que o rodapé só ficou nesse estado por ter ocorrido entrada de humidade, porque não ficou como se vê na fotografia. Em relação à fotografia junta como documento 18, disse que foi por efeito da humidade que ficou deformado.

O réu BB, em depoimento de parte, referiu que o autor apresentou um orçamento para a obra que o réu encomendou, a qual consistia em trabalho de carpintaria no interior da habitação. O orçamento que juntou aos autos reproduz o que foi contratado (documento 46, junto em 25 de maio de 2023). O preço que consta do orçamento é € 5000,00 ou € 6 000,00, sem IVA.

Referiu que a estadia do autor e funcionários foi paga pelos réus, mas foi paga à parte e faturada. No orçamento estava contemplado o preço dos trabalhos e materiais a aplicar em obra, ficando a cargo do autor a compra dos materiais. Referiu que apenas comprou o verniz, que não foi aplicado pelo autor, mas pelo empreiteiro/construtor.

Mais referiu que o autor tinha de colocar os rodapés. Confrontado com o orçamento, admitiu que não consta do orçamento.

Disse que pagou parte do preço acordado, mas não soube indicar o montante exato, por ser a sua mulher quem trata desses assuntos. Admitiu ter pago metade em dinheiro, (50%) e disse que não pagaram mais nada, porque a obra apresentava defeitos.

Esclareceu que encomendou a execução de móveis, aros, portas, frisos. Não recebeu as faturas a que se alude nos autos. Contudo, admitiu que a obra foi iniciada e concluída em abril ou maio de 2021. Mandou as fotografias ao autor, a reclamar tudo que estava mal.

Indicou como defeitos: portas que não fecham, fechaduras mal colocadas, rodapés, aros das portas não assenta devidamente e alguns apresentam madeira apodrecida; as juntas estão inacabadas; verifica-se diferente tonalidade na madeira dos rodapés.

Disse ter reclamado, mas não procedeu o autor a qualquer reparação.

Esclareceu, ainda, que havia um problema no teto de madeira e foram reparar. Foi o autor quem procedeu à colocação dos rodapés, porque viu a transportar as madeiras e a trabalhar na colocação.

A testemunha DD, amigo dos réus, referiu que conhece a casa em causa onde se executaram as obras, porque já esteve lá várias vezes, como amigo. Não teve qualquer intervenção na execução das obras.

Referiu que o réu reportava problemas com a execução da obra e quando se deslocou à casa verificou que havia problemas no rodapé e nos aros das portas. “Saltava à vista que não estava bem feito”. Os rodapés apresentavam diferentes tonalidades na madeira e o silicone não estava bem espalhado. O defeito nos rodapés era geral em toda a casa e obriga a reparação. Esclareceu que apesar de exercer a profissão de engenheiro eletrotécnico acompanha trabalhos de construção civil e por isso, pode avaliar a qualidade da obra.

Disse, ainda, que as diferenças de tonalidade não são corrigidas com verniz.

Apontou as seguintes deficiências:

- ilhargas das portas: a envolvente está saliente e as juntas não estão uniformes; há espaços nos aros das portas;

- guarda-fatos – no quarto onde ficou instalado, ao mover uma porta esta saiu do carril, por ser mais pequena;

- porta de casa de banho – no mesmo quarto onde ficou instalado, a porta tinha problemas, que “tinham origem na humidade no chão”;

- frisos nos tetos – verificou umas pequenas fendas.

Referiu que o trabalho estava mal acabado e as deficiências eram visíveis “a olho nu”.

Foram-lhe exibidas as fotografias juntas aos autos e disse identificar algumas deficiências, mas não indicou quais.

Esclareceu, por fim, que não assistiu à celebração do acordo, nem tem conhecimento do preço convencionado e não tem qualquer valor para estimar o custo da reparação. Disse nada saber sobre aplicação de verniz e rodapés, desconhecendo se tais trabalhos estavam englobados na obra a executar pelo autor e apenas tem conhecimento do que viu e o que foi comentado pelos seus amigos.

Analisando a prova.

Começando por apreciar o relevo probatório das declarações de parte do autor, uma vez que para o apelante se revela ser um elemento de prova determinante para sustentar a alteração da decisão de facto.

Nos termos do art.º 466º/1 CPC as partes podem prestar declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

As declarações prestadas são apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se constituírem confissão, como se prevê no art.º 466º/3 CPC.

A parte deve ser admitida a prestar declarações apenas sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto e que sejam instrumentais ou complementares dos alegados.

Daqui resulta que não merece relevo probatório as declarações que assentem em relato de terceira pessoa e ainda, aquela em que a parte se limita a narrar os factos alegados no respetivo articulado.

Como refere FERNANDO PEREIRA RODRIGUES: “[…] também é suposto que a parte ao requerer a prestação das suas declarações não seja apenas para confirmar o que já narrou nos articulados através do seu mandatário. Seria inútil a repetição do que já é do conhecimento do tribunal. Por isso, estarão sobretudo em causa factos instrumentais ou complementares dos alegados de que a parte tenha tido conhecimento direto ou em que interveio pessoalmente e que se mostrem com interesse para a descoberta da verdade”[7].

LEBRE DE FREITAS a propósito do valor probatório das declarações de parte observa:” [a] apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”[8].

O valor probatório das declarações de parte, avaliado livremente pelo tribunal, estará sempre dependente do confronto com os demais elementos de prova.

No caso presente o autor, em declarações de parte, não se limitou a reproduzir os factos que sustentam a sua pretensão. Efetivamente, as declarações prestadas em confronto com outros elementos de prova permitiram clarificar aspetos concretos do processo negocial, em particular, quanto ao âmbito dos trabalhos que estavam compreendidos no acordo celebrado com os réus e de onde se pode extrair que o valor que o autor reclama nesta ação, corresponde a parte do preço devido pela obra por si realizada e que a outra parte já foi paga pelos réus.

Releva neste ponto os documentos juntos pelos réus com a contestação – documentos nº 46 e 47 – e o depoimento prestado pelo réu, que ainda, que não sendo confessório, porque admite factos desfavoráveis, pode ser livremente apreciado pelo tribunal nessa parte.

Com efeito, as declarações prestadas não foram reduzidas a escrito e apenas a confissão judicial escrita tem força probatória plena e o apelante não suscitou a irregularidade de tal procedimento. Sendo, assim, e admitindo que revestissem a natureza de confissão, sempre ficariam sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, como determina o art.º 358º/4 CC.

Por outro lado, interpretando-se o depoimento prestado como o reconhecimento de factos desfavoráveis à pretensão do réu, sempre tal depoimento ficaria sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, face ao disposto no art.º 361º CC.

Sendo assim, nada impede que se considere o depoimento prestado, a ser valorado em confronto com os demais elementos de prova.

O documento 46 tem o seguinte teor:

“A...

[…]

Vimos por este meio dar o nosso melhor orçamento de carpintaria para fazer o seguinte trabalho.

4 - Armários roupeiro em portas de abrir composto por maleiro, barão uma prateleira e um bloco de 3 gavetas tipo tandem rematado com guarnições e portas lisa folheadas a carvalho. Sem verniz.

O custo deste trabalho é de € 2.550€.

5 – Tetos em madeira pinho flandres machiada cor mel com estrutura para fixar.

O custo deste trabalho é de 1 660€.

Portas interiores lisa carvalho com meia-lua em alumínio aros e guarnição em madeira, ferragens em inox. Sem verniz.

4 portas de correr (em cassete fornecida pelo cliente) … 1320€

5 portas de abrir … 1.400€

NB a este orçamento acresce despesas e estadia no local.

Condições de pagamento 40% na adjudicação o restante a combinar.

Orçamento válido por 60 dias.

A estes valores acresce o IVA à taxa em vigor”.

No documento 47 consta uma declaração do autor, na qual declara ter recebido da ré “a quantia de € 3.465,00 equivalente a 50% do orçamento anexado à declaração”.

A fatura ... no montante de € 4 261,95, corresponde precisamente aos restantes 50 % do preço convencionado com IVA, tal como acabaram por admitir o autor e o réu.

Daqui resulta que o valor que o autor vem reclamar não corresponde apenas “ao fornecimento de 9 portas interiores de carvalho e quatro frentes roupeiro”, como consta da fatura ..., no montante de € 4.261,95, antes respeita à parte restante do preço devido pela obra executada e que consta do orçamento junto pelos réus.

O orçamento não contemplava o trabalho de aplicação de verniz, nem a colocação de rodapés.

Convocamos mais uma vez quanto a esta matéria de facto as declarações de parte do autor e o depoimento de parte do réu, que admitiu e confirmou que o “orçamento reproduz o que foi contratado”. No orçamento nada ficou convencionado quanto à colocação de rodapés e aplicação de verniz. Aliás, no orçamento faz-se expressa menção “sem verniz”.

Refira-se, ainda, que a fatura ... não permite ser considerada para este efeito, porque do seu descritivo apenas consta: “despesas referentes a obra de ... acordadas com o senhor BB”.

Nenhuma prova foi produzida para esclarecer em que consistem as alegadas despesas e das declarações de parte do autor decorre que não foram convencionadas obras extras.

Determinado os termos em que foi celebrado o acordo e a obra em causa, cumpre então apreciar face à prova produzida se a mesma apresenta as deficiências indicadas pelos réus.

Na oposição alegaram os réus:

13. Por toda a casa os rodapés tinham (em média) 5 cm de altura em vez de 8 cm, tinham diferentes alturas em diferentes sítios, tinham acabamentos com diferentes tonalidades, alguns estavam mal colocados e outros ficaram mesmo descolados.

14. Também por toda a casa ficaram aros das portas mal colocados, com aberturas/espaços de mais de 1 cm entre o aro e a parede.

15. As portas de correr dos guarda-fatos ficaram com muita espaço relativamente às juntas de correr, o que faz com que saltem fora das juntas.

16. A porta duma casa de banho foi mal colocada e não fecha.

17. Por toda a casa há frisos dos tetos mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes”.

No ponto 4 julgou-se provado:

4. Os réus comunicaram imediatamente à autora a existência dos seguintes defeitos na obra realizada:

a. Os rodapés apresentam alturas diferentes, diferentes tonalidades e alguns estão descolados;

b. Os aros das portas têm aberturas de, pelo menos, um centímetro até à parede;

c. As portas de correr dos guarda-fatos saltam fora das juntas porque ficaram com muito espaço relativamente às corrediças;

d. A porta de uma casa de banho não fecha devido à má colocação;

e. Os frisos dos tetos estão mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.

Em relação às deficiências nos rodapés resulta do depoimento do autor e do depoimento da testemunha DD o que constam do ponto 4 a). O autor considera apenas que depois da reparação efetuada (arranjou cortes abertos) as atuais anomalias têm como causa infiltração de água, o que não foi confirmado por qualquer prova. A testemunha DD indicou que a deficiência resulta do silicone não estar bem espalhado e as peças de madeira apresentarem diferentes tonalidades, depoimento este prestado de forma espontânea e com razão de ciência, porque para além de ter visualizado as deficiências, trabalha na área da construção civil e tem conhecimentos que lhe permitem avaliar da boa execução dos trabalhos.

Contrariamente ao defendido pelo apelante, o depoimento da testemunha não configura um depoimento indireto, sustentado apenas no que os réus lhe transmitiram. A testemunha explicou o que viu, o que fez de forma espontânea e sincera, merecendo credibilidade.

Desta forma, a prova produzida não justifica a alteração sugerida.

Em relação aos aros das portas, o autor assumiu que os aros das portas têm aberturas até à parede, mas considerou que tal circunstância não lhe é imputável, porque constitui trabalho de trolha preencher com massa a abertura entre a parede e o aro.

O depoimento da testemunha DD merece particular relevo, porque viu e observou tais deficiências, nas suas deslocações à casa dos réus, confirmando o que o próprio autor admitiu.

Mantém-se também o ponto 4, alínea b) dos factos provados, porque a prova produzida não justifica a sua alteração.

Quanto aos frisos dos tetos o autor admitiu que procedeu a obras de reparação, porque como referiu emassou uns e substituiu outros. Havia anomalias. O réu admitiu que o autor procedeu à reparação do teto de madeira.

O depoimento da testemunha DD é pouco esclarecedor. A testemunha referiu que eram visíveis umas pequenas fendas e nada mais acrescentou. Nada referiu de concreto a respeito de ser visível em toda a casa frisos dos tetos mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.

Nesta parte suscitam-se dúvidas sobre a efetiva verificação das anomalias indicadas, o que justifica alterar o ponto 4, alínea e), por se mostrar insuficiente a prova produzida, passando para os factos não provados.

O mesmo se diga em relação à porta da casa de banho. A respeito da porta da casa de banho apenas se pode considerar o depoimento da testemunha DD, que referiu que havia humidade no chão e seria essa a causa para não abrir corretamente. Não foi produzida prova que demonstre que a porta não abre devido a má colocação.

Não se produziu qualquer outra prova, o que justifica a alteração do ponto 4, alínea d), no sentido e se julgar não provado.

Em relação às portas de correr dos guarda-fatos a testemunha DD salientou que no quarto onde ficou instalado a porta de correr saltava. Em relação aos outros armários nada referiu.

Por outro lado, as fotografias juntas aos autos (quarenta e cinco no total) para além de repetidas, retratam sob diferentes ângulos a mesma realidade, o que não permite considerar um elemento de prova objetivo e relevante, só por si, para demonstrar as deficiências.

Justifica-se, assim, alterar a resposta ao ponto 4, com eliminação das alíneas d) e e), que passam a constar dos factos não provados e alteração da alínea c), no sentido de considerar que um roupeiro padece da deficiência apontada.

Por fim, quanto ao ponto 5, como decorre do exposto, verifica-se que as anomalias apontadas se mantêm, como resulta do depoimento da testemunha DD. Elimina-se, contudo, a referência a frisos e porta de casa de banho.

Ao abrigo do disposto no art.662º/1/2 c) CPC face à prova produzida justifica-se, ainda, ampliar a decisão de facto no sentido de considerar provados factos essenciais alegados pelos réus no art.º 3º da oposição (“O Requerente apresentou aos Requeridos um orçamento no montante de 6.930,00€, tendo então recebido em dinheiro 50%, ou seja, 3.465,00€, conforme declaração por ele emitida”).

Com efeito, suscitando os réus a exceção de não cumprimento, constitui questão prévia determinar o âmbito das obrigações assumidas pelas partes no contrato e ainda, o preço acordado e que é devido, pois só dessa forma se pode avaliar se existiu incumprimento, o caráter sinalagmático das obrigações e ainda, da proporção entre o incumprimento e a recusa de cumprimento por parte do devedor.

Em conclusão procedem, em parte as conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 18 e defere-se, em parte, a alteração da decisão de facto, na qual se introduzem as seguintes alterações:

a) Factos provados:

4. Os réus comunicaram imediatamente à autora a existência dos seguintes defeitos na obra realizada:

a. Os rodapés apresentam alturas diferentes, diferentes tonalidades e alguns estão descolados;

b. Os aros das portas têm aberturas de, pelo menos, um centímetro até à parede;

c. Uma porta de correr num guarda-fatos salta fora das juntas porque ficaram com muito espaço relativamente às corrediças;

5. Os rodapés, os aros das portas, uma porta de correr, aludidos em 4 continuam no estado ali descrito.

6. O Requerente apresentou aos requeridos um orçamento no montante de 6.930,00€, que foi aceite pelos requeridos e com o seguinte teor

“A...

[…]

Vimos por este meio dar o nosso melhor orçamento de carpintaria para fazer o seguinte trabalho.

4 - Armários roupeiro em portas de abrir composto por maleiro, barão uma prateleira e um bloco de 3 gavetas tipo tandem rematado com guarnições e portas lisa folheadas a carvalho. Sem verniz.

O custo deste trabalho é de € 2 550€.

5 – Tetos em madeira pinho flandres machiada cor mel com estrutura para fixar.

O custo deste trabalho é de 1 660€.

Portas interiores lisa carvalho com meia-lua em alumínio aros e guarnição em madeira, ferragens em inox. Sem verniz.

4 portas de correr (em cassete fornecida pelo cliente) … 1320€

5 portas de abrir … 1.400€

NB a este orçamento acresce despesas e estadia no local.

Condições de pagamento 40% na adjudicação o restante a combinar.

Orçamento válido por 60 dias.

A estes valores acresce o IVA à taxa em vigor”.

7. O autor recebeu da ré a quantia de € 3.465,00 equivalente a 50% do orçamento referenciado no ponto 6.

b) Factos não provados:

- A porta de uma casa de banho não fecha devido à má colocação;

- Os frisos dos tetos estão mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.


-

Na apreciação das restantes questões cumpre ter presente os seguintes factos provados e não provados, com as alterações introduzidas por efeito da reapreciação da decisão de facto, que constam em itálico:

1. Os réus solicitaram ao autor o fornecimento dos bens e serviços em obra situada em ..., ..., identificados nas seguintes faturas emitidas pela autora:

a. Fatura nº FT A21_7, datada de 02/04/2021, vencida no mesmo dia, no valor global de € 4.261,95 (IVA incluído); e

b. Fatura nº FT A21_16, datada de 31/05/2021, vencida no mesmo dia, no valor global de € 815,00 (IVA incluído).

2. Os réus foram interpelados ao pagamento das indicadas faturas.

3. O autor realizou obras na casa dos réus de ....

4. Os réus comunicaram imediatamente à autora a existência dos seguintes defeitos na obra realizada:

a. Os rodapés apresentam alturas diferentes, diferentes tonalidades e alguns estão descolados;

b. Os aros das portas têm aberturas de, pelo menos, um centímetro até à parede;

c. Uma porta de correr num guarda-fatos salta fora das juntas porque ficaram com muito espaço relativamente às corrediças;

5. Os rodapés, os aros das portas, uma porta de correr, aludidos em 4 continuam no estado ali descrito.

6. O Requerente apresentou aos requeridos um orçamento no montante de 6.930,00€, que foi aceite pelos requeridos e com o seguinte teor

“A...

[…]

Vimos por este meio dar o nosso melhor orçamento de carpintaria para fazer o seguinte trabalho.

4 - Armários roupeiro em portas de abrir composto por maleiro, barão uma prateleira e um bloco de 3 gavetas tipo tandem rematado com guarnições e portas lisa folheadas a carvalho. Sem verniz.

O custo deste trabalho é de € 2 550€.

5 – Tetos em madeira pinho flandres machiada cor mel com estrutura para fixar.

O custo deste trabalho é de 1 660€.

Portas interiores lisa carvalho com meia lua em alumínio aros e guarnição em madeira, ferragens em inox. Sem verniz.

4 portas de correr (em cassete fornecida pelo cliente) … 1320€

5 portas de abrir … 1.400€

NB a este orçamento acresce despesas e estadia no local.

Condições de pagamento 40% na adjudicação o restante a combinar.

Orçamento válido por 60 dias.

A estes valores acresce o IVA à taxa em vigor”.

7. O autor recebeu da ré a quantia de € 3 465,00 equivalente a 50% do orçamento referenciado no ponto 6.


-

- Factos não provados

- A. A autora suportou € 500,00 com a cobrança da dívida.

- A porta de uma casa de banho não fecha devido à má colocação;

- Os frisos dos tetos estão mal entalhados, mal colocados e com cores diferentes.


-

- Da responsabilidade dos réus -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 19 a 24, insurge-se o apelante contra a decisão que absolveu os réus do pedido, por entender que não ficou demonstrado o defeito na obra, devendo os réus ao autor o preço, quando além do mais, o autor sempre se mostrou disponível para proceder à reparação dos defeitos.

A sentença julgou procedente a exceção de não cumprimento e absolveu os réus do pedido.

Entendemos que a questão nuclear a apreciar prende-se com a existência ou não de defeitos na obra suscetíveis de justificar a invocação pelo dono da obra da exceção de não cumprimento.

A obra em causa consiste na execução de trabalhos de carpintaria no interior de uma casa de habitação: armários roupeiro, tetos em madeira, portas interiores, portas de correr, portas de abrir, aplicação de aros e guarnição em madeira (pontos 6 e 7 dos factos provados).

 O preço em causa reporta-se ao preço ainda em divida por parte do dono da obra (pontos 1 a) e 6 e 7 dos factos provados).

Desta forma, cumpre ter presente as caraterísticas do contrato de empreitada e em que medida pode o dono da obra fazer uso da exceção de não cumprimento, para suspender a obrigação do pagamento do preço[9].

Em tese geral, o contrato de empreitada consiste no acordo celebrado entre o dono da obra e o empreiteiro no sentido de proceder à realização de uma obra mediante o pagamento de um preço, ou seja, mediante a retribuição em dinheiro[10] - art.º 1207º CC.

No contrato de empreitada existem duas partes: o empreiteiro e o dono da obra.

Constituem obrigações do dono da obra: dar a colaboração necessária, receber a entrega da obra, verificar e aceitar a obra e pagar o preço.

Nas obrigações do empreiteiro, conta-se a obrigação de executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que excluam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato - art.º 1208ºC.C.

Dispõe o art.406º CC que os contratos devem ser pontualmente cumpridos.
O incumprimento do contrato importa a responsabilização do faltoso – art.º 798º e art.º 799º CC.
No caso concreto, reclamando o empreiteiro o pagamento do preço pela obra executada, verifica-se que o dono da obra não logrou provar que cumpriu a obrigação de pagamento do preço.

Para justificar o incumprimento invocou a exceção de não cumprimento, com fundamento em defeitos da obra por parte do empreiteiro.

Se a obra apresentar vícios ou defeitos, haverá em princípio incumprimento do contrato e o empreiteiro torna-se responsável pelo dono da obra. A responsabilidade do empreiteiro rege-se pelos princípios gerais da responsabilidade contratual, pelo que, assenta na culpa do empreiteiro, nos termos do art.º 798º e 799º C.C..

O dono da obra apenas tem o ónus de provar que a obra apresenta vício ou defeito. Assiste ao empreiteiro a faculdade de provar que o vício ou defeito não provém de culpa sua, recaindo o ónus de provar a ausência do nexo de imputação à sua pessoa desse incumprimento, o qual se presume iuris tantum[11].

No entanto, como refere, PEREIRA DE ALMEIDA, “tratando-se de uma obrigação de resultado o empreiteiro só poderá em princípio afastar a sua culpa em quatro casos:

- se o vício for devido a caso fortuito;

- se o defeito resultar de incorreções do projeto fornecido pelo dono da obra;

- se o vício aparecer geralmente em obras da mesma natureza em virtude do estado de avanço da técnica no momento da execução;

- se não for de exigir do empreiteiro uma execução mais perfeita[12].

Se a obra apresentar vícios ou defeitos que excluam ou reduzam o valor dela, o contrato considera-se não cumprido e o dono da obra tem o direito de exigir a eliminação dos defeitos, a redução do preço ou a resolução do contrato e uma indemnização – art.º 1221º a 1223º CC.

Contudo, pode ainda o dono da obra invocar a exceção de não cumprimento – art.º 428º CC.

Dispõe o art.º 428º CC “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.

A exceção visa assegurar mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.

Para que se aplique a exceção é necessário que as obrigações sejam correspetivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra[13].

A exceção de não cumprimento traduz-se no direito que tem qualquer das partes de uma relação sinalagmática de recusar o cumprimento enquanto a outra, por seu turno, não efetue a prestação correspondente a que se encontra vinculada.

A exceção conhecida pelo brocado latino «exceptio non adimpleti contractus» e que, quando reportada ao incumprimento parcial ou defeituoso, é designada por «exceptio non rite adimpleti contractus», encontra-se prevista e regulada, nos arts. 428º a 431º do C.C..

Trata-se de figura que tem o seu campo de aplicação nos contratos sinalagmáticos, permitindo que uma das partes recuse a realização da sua prestação enquanto a outra não cumprir a contraprestação respetiva.

Constitui exceção dilatória de direito material, na medida em que, por um lado, se funda em razões de direito material ou substantivo e, por outro, não exclui definitivamente o direito da parte contra quem é oposta, paralisando-o apenas temporariamente.

O “excipiens” não nega o direito da parte contrária nem põe em causa o dever de cumprir a prestação; pretende tão-só realizar a sua prestação quando o outro contraente levar também a cabo a respetiva contraprestação. E não é de conhecimento oficioso, tendo de ser invocada expressamente pela parte que dela se quer aproveitar.

A exceção justifica-se por razões de boa-fé, de equidade e de justiça, uma vez que visa evitar que uma das partes tire vantagens sem suportar os encargos correlativos. Para que não seja contrária à boa-fé, a «exceptio» só pode operar quando se verifique uma tripla relação entre o incumprimento [total ou parcial, ou defeituoso] do outro contraente e a recusa de cumprimento por parte do excipiente: uma relação de sucessão, uma relação de causalidade e uma relação de proporcionalidade.

A relação de sucessão significa que não pode recusar a prestação, invocando a «exceptio», a parte no contrato que primeiramente caiu em incumprimento. Por outro lado, deve haver um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente. Por fim, a recusa do «excipiens» deve ser equivalente ou proporcionada à inexatidão da contraparte que reclama o cumprimento, de tal modo que, se a falta for de pouca relevância, não será legítimo o recurso à «exceptio».

Esta desempenha uma dupla função: de garantia e de coerção. No primeiro caso, porque permite ao «excipiens» garantir-se com as consequências, presentes ou futuras, do não cumprimento; no segundo, porque constitui também um meio de pressão sobre o inadimplente, já que este só terá direito a haver do outro a contraprestação se e quando cumprir a prestação a seu cargo[14].

Nas situações de execução parcial ou defeituosa da prestação a doutrina aceita igualmente a exceção de incumprimento, ainda que “normalmente ela apenas poderá encontrar-se justificada em termos meramente parciais, os bastantes para operar a repristinação do equilíbrio sinalagmático. Perante um incumprimento que, em termos quantitativos, se apresenta como ínfimo ou perante um defeito ou vício da prestação que não tenha senão uma muito escassa importância, a própria alegação da exceção, ainda que reduzida, poderá aparecer ilegítima.

Interessará, sobretudo, evitar que o exercício da exceção tenda a desviá-la do seu fim, nomeadamente que o excipiente vise aproveitar a inexecução da outra parte como pretexto para se subtrair ele próprio ao cumprimento”[15].

Desta forma, assiste ao dono da obra a faculdade de suspender o pagamento do preço desde que a obrigação não seja de vencimento anterior ao da entrega da obra e que parte do preço, cujo pagamento se recusa, seja proporcional à desvalorização da obra provocada pela existência do defeito (art.º 428º e 762º/2 CC)[16].

A determinação dessa proporcionalidade deve ter como critério de referência aquele que foi indicado para apurar o valor de redução do preço da obra, por defeitos não supridos[17].

Nos termos do art.º 1208º e 1218º CC são considerados defeitos, os vícios que excluam ou reduzam o valor da obra, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato e as desconformidades com o que foi convencionado.

Os vícios em causa “são anomalias objetivas da obra, traduzindo-se em estados patológicos desta, independentemente das características convencionadas”[18], mas apenas relevam como defeitos se excluem ou reduzem o valor da obra ou da sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.

Importa então considerar, para este efeito, o uso normal de mercado e a afetação da coisa ou a sua aptidão segundo um juízo de normalidade ou segundo uma especial finalidade visada pelo dono da obra.

Invocado o defeito para sustentar a exceção de não cumprimento é ainda sobre o dono da obra que recai o ónus da prova desse defeito, nos termos do art.º 342º/2 CC, por constituir um facto impeditivo do direito do empreiteiro. Portanto, o dono da obra tem o ónus da prova do vício e da gravidade, que o vício afeta o uso ou a desvalorização da coisa.

Contudo, apenas os vícios anteriores ao ato de entrega, ainda que se manifestem em momento posterior a essa entrega, são imputáveis ao empreiteiro (art.º 1219º CC, a contrario).

Presumindo-se a culpa do empreiteiro, não cumpre ao dono da obra provar a origem do defeito e por isso se tem entendido que está incluída “na presunção de culpa do art.º 799º/1 CC, a presunção dessa anterioridade”[19].

CURA MARIANO escreve a este respeito: “[c]omo ao dono da obra basta provar a existência do defeito, não lhe competindo provar a sua origem, consequentemente também não lhe pode ser atribuído o ónus de demonstrar a anterioridade desta, relativamente à entrega da obra, cabendo ao empreiteiro ilidir essa presunção, provando que o defeito tem uma origem posterior à entrega, tal como lhe cabe demonstrar as suas causas”[20].

Aplicando o exposto ao caso concreto.

O apelante não impugna o segmento da decisão que qualificou o contrato na categoria de contrato de empreitada e perante os factos provados, afigura-se-nos que este é o correto regime a aplicar ao contrato em causa.

 Apurou-se que concluída a obra os réus recusaram pagar a parte restante do preço convencionado e defenderam-se invocando a exceção de não cumprimento, alegando para o efeito, que o empreiteiro concluiu a obra com defeitos.

Provou-se que o autor e os réus celebraram um acordo que tinha por objeto a execução de trabalhos de carpintaria no interior de uma casa de habitação, fixando como preço global a quantia de € 6930,00, à qual acrescia IVA à taxa legal (ponto 6 dos factos provados).

Os réus procederam ao pagamento de metade do preço - € 3 465,00 (sem IVA) (ponto 7 dos factos provados). Peticiona o autor o pagamento da parte restante do preço, emitindo para o efeito a fatura ..., no montante de € 4261,95 (montante de € 3 465,00, acrescido de IVA) ( ponto 1 a) dos factos provados).

Os réus não lograram provar o pagamento, assistindo por isso ao autor o direito a reclamar o pagamento da parte restante do preço - € 4261,95.

Contudo, em relação à fatura ..., no montante de € 815,00, não logrou o autor a prova da causa da respetiva emissão, ou seja, os factos constitutivos do direito que se arroga, como era seu ónus, nos termos do art.º 342º/1 CC, não lhe assistindo o direito a reclamar tal quantia juntos dos réus.

Desta forma, assiste ao autor o direito ao pagamento do preço no montante de € 4261,95. Os réus não lograram provar o pagamento, facto extintivo da obrigação, como era seu ónus, nos termos do art.º 342º/2 CC e também, não lograram provar para justificar o incumprimento todas as deficiências apontadas à obra.

Com efeito, provou-se que na moradia os rodapés apresentam alturas diferentes, diferentes tonalidades e alguns estão descolados (ponto 4 a) dos factos provados).

Não resulta provado o nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente. Provou-se que existem deficiências na aplicação dos rodapés, mas no contrato celebrado o autor não se obrigou à colocação de rodapés e por isso, não podem os réus invocar o cumprimento defeituoso da prestação imputável ao autor como justificação para suspender o pagamento do preço, porque não existe correspondência entre as obrigações. O cumprimento da obrigação por parte do autor não decorre do concreto contrato celebrado e em análise nestes autos e apenas as obrigações que têm como causa ou fonte o presente contrato podem justificar a suspensão do pagamento do preço.

Apurou-se que os aros das portas têm aberturas de, pelo menos, um centímetro até à parede. Não se provou o número de aros em que se verifica tal situação. Não se provou em que medida tal circunstância interfere com a estabilidade da porta, sendo certo que recaía sobre os réus o ónus da prova de tal matéria, porque só o vício que afeta o uso ou causa a desvalorização da coisa, pode ser considerado deficiência.

Acresce que os réus não alegaram e como tal não provaram o valor ou custo da reparação de tais anomalias, nem requereram a redução do preço.

Também, quanto a tal deficiência não se justifica suspender a obrigação de pagamento do preço.

Com relevo, em sede de exceção de não cumprimento, provou-se que num quarto, a porta colocada no armário não cumpre a função, porque salta fora das juntas. Tal deficiência afeta o uso da coisa e por isso pode considerar-se um defeito.

O incumprimento deficiente da prestação não justifica porém, a suspensão total do pagamento do preço, por não se revelar proporcional à inexatidão da obrigação da contraparte. O incumprimento também não é diminuto, ao ponto de ser desvalorizado, pois o indevido funcionamento de uma porta no armário, importa a inutilização do armário, que tem como função guardar a roupa, mantendo num local fechado, o que não acontece quando a porta se solta das juntas.

Desta forma, justifica-se suspender o pagamento do preço na proporção do respetivo custo, ou seja, no montante de € 330,00, acrescido de IVA (o preço de quatro portas ascendia a € 1320,00).

Neste contexto, procede em parte a exceção, condenando-se os réus no pagamento da quantia de € 4261,95, ficando apenas suspenso o pagamento do preço em relação ao montante de € 405,90 (€ 330,00, acrescido de IVA à taxa de 23%), a efetuar uma vez comprovada a reparação do armário com porta de correr instalado num dos quartos da habitação. O montante exigível ascende a € 3.856,05.

Pelo pagamento do preço nos termos determinados são responsáveis os réus, acrescendo juros ao valor em divida, a contar da data de vencimento da fatura – 02 de abril de 2021 - e até integral pagamento à taxa de 4% (art.º 804º a 806º CC).

Procedem, nesta parte, as conclusões de recurso.


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Nos termos do art. 527º CPC as custas da ação e apelação, são suportadas pelo apelante e apelados, na proporção do decaimento, que se fixa em ¼ e ¾, respetivamente.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a sentença e nessa conformidade julgar parcialmente procedente a ação e condenar os réus a pagar ao autor a quantia de € 4.261,95, acrescida de juros a partir de 02 de abril de 2021, à taxa de 4% e até integral pagamento, ficando apenas suspenso em relação àquele valor, o pagamento € 405,90 (€ 330,00, acrescido de IVA à taxa de 23%), a efetuar uma vez comprovada a reparação do armário com porta de correr instalado num dos quartos da habitação, absolvendo no mais os réus do pedido.


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Custas da ação e apelação a cargo de autor/apelante e réus/apelados, na proporção do decaimento, que se fixa em ¼ e ¾, respetivamente.

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Porto, 20 de maio de 2024
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Eugénia Cunha
Mendes Coelho
_________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pág. 333-335.
[3] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 569.
[5] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.
[6] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pág. 333-334.
[7] FERNANDO PEREIRA RODRIGUES Os meios de prova em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 72
[8] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pág. 278
[9] Cf. JOSÉ JOÃO ABRANTES A exceção de não cumprimento do contrato no direito civil português – Conceito e Fundamento, Livraria Almedina, Coimbra, 1986, pág.127-130.
[10] Cf. ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA Direito privado II – Contrato de Empreitada Lisboa, AAFDL, 1983, pág. 7 e PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado – vol. II, 4ª EDIÇÃO REVISTA E ACTUALIZADA, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer, pág. 863.
[11] Cf. JOÃO CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 5ª Edição, Revista e Aumentada, Coimbra, Almedina, 2013, pág. 71 e PEDRO ROMANO MARTINEZ Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos – Compra e Venda, Locação, Empreitada, 2ª edição, 3ª Reimpressão da edição de Maio de 2001, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 472.
[12] Cf. ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA Direito privado II – Contrato de Empreitada Lisboa, ob. cit., pág. 74 e PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado – vol. II, ob. cit., pág. 892.
[13] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado – vol. I, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1982, pág. 381.
[14] Cf. ANTUNES VARELA Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., págs. 408 a 414; PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed. revista e atualizada, págs. 405 a 407; e JOSÉ JOÃO ABRANTES A exceção de não cumprimento do contrato no Direito Civil Português – conceito e fundamento, Coimbra, Almedina, 1986, pág. 148-150, 123-127, 127-130.
[15] JOSÉ JOÃO ABRANTES A exceção de não cumprimento do contrato no Direito Civil Português – conceito e fundamento, ob. cit., pág. 115.
[16] JOÃO CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, ob. cit., pág. 161
[17] Ac. Rel. Porto 29 de junho de 2010 acessível em www.dgsi.pt
[18] JOÃO CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, ob. cit., pág. 58.
[19] JOÃO CURA MARIANO Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, ob. cit. pág. 59.
[20] JOÃO CURA MARIANO Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, ob. cit., pág. 59.