Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
825/22.6T8MNC-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ALTERAÇÃO DO ACORDO
FACTOS SUPERVENIENTES
Nº do Documento: RP20250114825/22.6T8MNC-A.P1
Data do Acordão: 01/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A atribuição da casa de morada da família é um processo (ou incidente) de jurisdição voluntária, nos termos do artigo 990.º do Código de Processo Civil, somente ocorram factos supervenientes que determinem uma alteração do decidido quanto ao acordo entre os interessados/cônjuges, aquando do divórcio, relativo à atribuição da casa de morada de família, será caso de tal pretensão ser deduzida em Tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 825/22.6T8MCN-A.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo de Família e Menores de ...

RELAÇÃO N.º 189

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: João Diogo Rodrigues

Pinto dos Santos


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

A.: AA.

R.: BB.


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A[2] A. AA intentou, por apenso aos autos principais no processo de divórcio n.º 825/22.6T8MCN-A, a presente ação, subordinada à forma especial ao abrigo do disposto no artigo 1793º do Código Civil e artigo 990.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, contra o R. BB, por via da qual formula os seguintes pedidos:

Termos em que e nos melhores de direito aplicáveis, deve o presente incidente de atribuição da casa de morada de família ser julgado procedente, por provado e, em consequência:

A) Deve ser atribuido à requerente o direito ao arrendamento da casa de morada de família, encabeçando-se nele o contrato de arrendamento habitacional celebrado com o senhorio, Município ...;

B) Deve ser ordenado ao requerido que, nessa medida, abandone a casa de morada de família, devendo aplicar-se uma sanção pecuniária de 50,00€ (cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que vier a ser proferida, no sentido do exposto no pedido formulado na alínea anterior, tudo com as legais consequências.

Pretende a A. que seja proferida sentença a determinar a concentração nela da posição jurídica de arrendatária no contrato de arrendamento que tem como objeto mediato a Habitação Social, n.º .., do Bairro ..., com n.º de Processo Camarário ..., sito na Rua ..., ....

Para tanto, peticiona que seja alterado, por verificação de circunstâncias supervenientes, o acordo de atribuição do direito ao uso à casa de morada de família, a ambos os ex-cônjuges judicialmente homologado em sede de dissolução do casamento por divórcio, passando a ser esse uso atribuído à requerente com efeitos desde a data da sentença proferida nos presentes autos e, bem assim, ser o requerido condenado a pagar à requerente uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 50,00 por dia de atraso na entrega da casa, em perfeitas condições de habitabilidade, à requerente, após trânsito em julgado da sentença que o decretar.

Alegou, em síntese, que o casal que formou com o Requerido fixou residência na identificada habitação, arrendada pelo Réu à Câmara Municipal há mais de 40 anos, tendo sido no dia 14 de Fevereiro de 2023, no âmbito da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge acima referenciada, na audiência de discussão e julgamento, por ambas as partes foi dito estarem de acordo em converter a ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em Divórcio por Mútuo Consentimento, tendo sido decretado o divórcio pela homologação do vários acordos necessários, em concreto, no que respeita aos presentes autos, acordaram relativamente a casa de morada de família, arrendada, que, até à partilha dos bens comuns do casal, ambos podiam usufruir da casa, uma vez que a mesma tem 2 pisos, sendo a utilização do rés do chão atribuída à autora, ora requerente e a utilização do 1° andar atribuída ao réu, ora requerido, devendo todas as divisões do rés do chão ter em todas as portas colocadas as fechaduras, com respetivas chaves, cabendo ao réu a colocação de todas as .fechaduras caso não existam, no prazo de cinco dias após o trânsito em julgado da decisão que vier a decretar o divórcio.

Mais alega a requerente que não só o requerido não cumpriu o acordado com a colocação das fechaduras necessárias, como houve um agravamento da convivência entre ambos, com a ocorrência de fatos entre ambos que deram origem à queixa crime apresentada pela mesmo contra aquele no dia 11 de Maio de 2023, tendo sido sujeito a primeiro interrogatório de arguido detido, comprometendo de forma irremediável a partilha da casa de morada de família até à partilha dos bens comuns do ex-casal.

Alega, por fim, a requerente que não dispõe de condições para adquirir ou arrendar outro local para habitar, considerando o valor baixo da sua pensão de reforma, os seus problemas de saúde e a inexistência de qualquer outro tipo de rendimento.


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Designada data para realização da tentativa de conciliação a que alude os artigos 990º e 931º, ambos do Código de Processo Civil, as partes não lograram chegar a qualquer tipo de solução consensual, como melhor resulta de fls. 40 e 41 dos autos.

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Notificado para o efeito, o Réu contestou, alegando para o efeito inexistem fundamentos ou razões suficientes ou supervenientes para que que seja alterado o acordo quanto à atribuição e utilização da casa de morada de família por ambos os cônjuges até à partilha dos bens comuns do ex-casal, porquanto as queixas reportadas pela requerente reportam-se a situações descritas anteriores a este acordo.

Mais invoca que o contrato de arrendamento da habitação social por ter sido celebrado na constância do casamento do requerido com a requerente (celebrado sem convenção antenupcial, logo, sob o regime da comunhão de adquiridos), não significa que o direito ao arrendamento daquele se comunicou a esta última.

Por último vem o requerido alegar que o seu valor da pensão de reforma é baixo, continua a suportar sozinho a renda da casa, e as contas da eletricidade, água e lixo, e o pagamento dos seguros associados aos automóveis com matrículas ..-CC-.. e VF-..-.., pelo que o arrendamento da casa de morada de família lhe deve ser atribuído a si, tendo a requerente habitação alternativa por ser herdeira de bens imóveis.


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Realizou-se julgamento.

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DA DECISÃO RECORRIDA

Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:

Nestes termos, decide-se julgar a presente ação procedente e, em consequência,

1. atribuo o direito de utilização da casa de morada de família sita Habitação Social, n.º .., do Bairro ..., com n.º de Processo Camarário ..., sito na Rua ..., ... à requerente AA, devendo o requerido sair da habitação desocupando-a de bens e entregando as chaves do locado;

2. determino a concentração na Requerente AA, da posição jurídica de arrendatário no contrato de arrendamento celebrado com o Município ... e o requerido BB tendo como objeto mediato a Habitação Social, n.º .., do Bairro ..., com n.º de Processo Camarário ..., sito na Rua ..., ...;

3. condeno o requerido BB no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória fixada em €50,00 (cinquenta euros) diários, por cada dia de atraso falta de entrega do locado (habitação social/casa de morada de família) à requerente livre de pessoas e bens.“.


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DAS ALEGAÇÕES

O R., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Termos em que, no provimento deste recurso, se impõe que sejam conhecidas e declaradas as invocadas nulidades, com as emergentes consequências ou, se assim não se entender, ser alterada a decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, nos termos propostos e, consequentemente, ser a requerida condenada a sair e desocupar a casa que foi morada de família e onde vive com o requerido, como forma de dar satisfação à Lei e atuar com justiça.“.


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O apelante, R., apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

i. O presente recurso vem da sentença que, julgando procedente a ação, condenou o requerido a sair e a desocupar a casa de morada de família onde vive desde há mais de 40 anos, a qual ficou para uso da requerente, em virtude da concentração nela da posição de arrendatária no contrato de arrendamento celebrado entre o requerido e o Município ...;

ii. A discordância do requerido vai, em primeiro lugar, para a factualidade vertida nos pontos 8. e 9. dos fatos provados;

iii. A sentença recorrida desvalorizou do depoimento do requerido, confirmado por prova documental e confissão da requerente;

iv. Quer por força desse depoimento, quer por força da restante prova, os pontos 8. e 9. objeto de discórdia, deverão passar a ter a redacção sugerida, os mesmo se dizendo relativamente aos pontos 15. e 16., pelas razões referidas;

v. A sentença claudica em sede de fundamentação, ficando-se sem saber quais sejam os factos que concretamente determinaram a alteração das circunstâncias e em que medida se agravaram após o acordo que versou sobre o destino da casa de morada de família, até à partilha dos bens comum, violando o disposto no nº4 do art.607º, do CPCiv, o que consubstancia a nulidade prevista nas alíneas c) e d) do art.615º, do mesmo diploma, que aqui se deixa invocada.

vi. Com efeito, para demonstrar a alteração superveniente das circunstâncias, de modo a poder justificar a mudança do regime que ficou acordado na ação de divórcio, quanto à mencionada casa morada de família, não basta provar que a requerente tenha apresentado uma queixa por violência doméstica, é necessário provar os factos que em concreto dão corpo a essa queixa e em que circunstâncias de tempo eles ocorreram;

vii. Todavia, a prova desses factos não foi produzida;

viii. Mesmo que tivessem ocorrido as alegadas situações de violência doméstica, e não ocorreram, já existiriam durante a constância do casamento e na data do divórcio em 14 de fevereiro de 2023;

ix. Logo, não se verifica a alteração das circunstâncias que estiveram na base do acordo estabelecido no âmbito da ação de divórcio quanto à utilização da casa morada de família;

x. Opera, portanto, a falta de pressuposto essencial para que seja possível a alteração desse o acordo.

xi. Contrariamente ao requerido que não tem outra casa para onde possa ir residir, até porque apenas aufere a sua pensão de reforma cujo valor não lhe permite comprar ou arrendar outra casa com renda de valor superior, a requerente tem a facilidade de ir viver para a casa que foi morada dos pais ou de reunir fundos, seja pela venda da sua parte na dita herança, seja pela venda dos bens que em concreto fazem parte dela, que lhe permitem adquirir ou arrendar outra casa,

xii. A avaliação da situação patrimonial da requerente ficou-se pela pensão de reforma, desvalorizando os meios e condições que ela dispõe para melhorar a sua situação económica e financeira;

xiii. Deve anular-se a sentença recorrida, em face da invocada nulidade e falta de pressuposto essencial para que seja possível instaurar-se a presente ação:

xiv. No caso de assim não se decidir, deve tal decisão ser revogada e substituída por outra que atribua ao requerido a utilização e uso exclusivo da casa de morada de família em referência, ficando na posição de único arrendatário no contrato de arrendamento celebrado com o Município ..., e a requerente, por sua vez, condenada a sair e desocupar essa casa no prazo máximo de 30 dias contados após o transito em julgado, sob pena de, não o fazendo, pagar ao requerido uma sanção pecuniária no valor de 50,00 € por cada dia de atraso;

i. Foram violados, entre outros, os artigos 358º e nº1 do art.1793º, ambos do CCiv., e o nº4 do art.607º, do CPCiv. “.


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A A. apresentou CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso.


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II-FUNDAMENTAÇÃO.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:

A) Nulidade da decisão/sentença – artigo 615.º, alíneas c) e d) e 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil – cls. v) a x).

Não estão provados factos que permitam concluir por ter ocorrido alteração superveniente das circunstâncias.

B) Modificação da decisão de facto quantos aos pontos 8 e 9 dos factos provados – cls. ii) e iii).

Devem tais factos merecer resposta distinta por força da prova por declarações/depoimento de parte do R., apelante, conjugado com a prova documental e bem como com o depoimento da A., apelada, confessórias.

Igual deve ocorrer com os pontos 15 e 16 dos factos provados e pelas mesmas razões – cls. iv).

C) A apelada/A., tem habitação onde pode habitar ao contrário do apelante – cls. xi) a xii).


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OS FACTOS

A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

A - Factos provados: (…)

1. Requerente e Requerido contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 17 de setembro de 1978;

2. Há mais de 40 anos que o Município ... celebrou um contrato de arrendamento habitacional com o requerido cujo objeto mediato é uma habitação Social, n.º .., do Bairro ..., com n.º de Processo Camarário ..., sito na Rua ..., ..., fixando a renda atual no valor de € 22,05 (vinte e dois euros e cinco cêntimos);

3. A requerente e o requerido passaram então a dormir e tomar as suas refeições na identificada habitação social, ali guardavam os seus pertences, recebiam amigos e foi ali que os filhos do casal cresceram;

4. Por sentença proferida no dia 24 de Janeiro de 2023 e não 14 de Fevereiro de 2023[3], já transitada em julgado, com efeitos patrimoniais reportados à data da propositura da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge n.º 825/22.6T8MCM, a 27/06/2022, foi judicialmente convertida a ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em Divórcio por Mútuo Consentimento, tendo sido decretada a dissolução do casamento, por divórcio pela homologação do vários acordos necessários, alcançado pela requerente e requerido em concreto, acordaram relativamente a casa de morada de família, arrendada, que, até à partilha dos bens comuns do casal, ambos podiam usufruir da casa, uma vez que a mesma tem 2 pisos, sendo a utilização do rés do chão atribuída à autora, ora requerente e a utilização do 1° andar atribuída ao réu, ora requerido, devendo todas as divisões do rés do chão ter em todas as portas colocadas as fechaduras, com respetivas chaves, cabendo ao réu a colocação de todas as .fechaduras caso não existam, no prazo de cinco dias após o trânsito em julgado da decisão que vier a decretar o divórcio;

5. Nessa sequência o requerido colocou uma fechadura no quarto de dormir da requerente, entregando-lhe a chave e um fecho na casa de banho do rés-do-chão, as chaves da entrada da casa do r/c são comuns pois não há entradas independentes, ambos utilizam a cozinha;

6. Os efeitos patrimoniais da dissolução do casamento, por divórcio reportam-se à data da propositura da petição inicial da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge n.º 825/22.6T8MCM, a 27/06/2022;

7. A 10/08/2022 o requerido deu ordem de transferência do valor de € 17.500,00 de uma conta bancária por si titulada para uma outra conta bancária;

8. A 11 de Maio de 2023 a requerente apresentou uma queixa contra o requerido por factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica, dando origem ao inquérito n.º ... a correr termos no DIAP do ...;

9. A 24 de Maio de 2023 no inquérito n.º ... a correr termos no DIAP do ..., em que é denunciante a requerente, foi o requerido sujeito a primeiro interrogatório tendo-lhe sido aplicada apenas a medida de coação de Termo de identidade e Residência;

10. A requerente foi sujeita a uma intervenção cirúrgica ao ombro direito na especialidade ortopedia, por padecer de artroscopia do ombro, tendo ficado de baixa médica com incapacidade para a sua atividade profissional desde o dia 29/11/2022 e ininterruptamente até ao dia 26/07/2023;

11. Mais ficou de baixa médica com incapacidade para o exercício da sua atividade profissional ininterruptamente de 27/11/2023 a 12/12/2023, tendo recebido de valor de Subsídio de Doença o valor diário de € 13,81 (treze euros e oitenta e um cêntimo);

12. A 29/02/2024 foi emitido um Atestado de Doença relativo à requerente, no qual descreve os problemas de saúde de que padece, concretamente: Perturbação Depressiva, Angiomiolipoma Renal, Sdr. do ombro doloroso, Gonartorse, Excesso de Peso, Vitiligo, Nódulos Tiroideus, Dislipdemia, Pólipo com 15 mm no cólon sigmoide distal, Hemorroidas Internas, Patologia Lombar;

13. A 25/06/2024 foi emitido um Atestado de Doença relativo ao requerido, no qual refere que o mesmo padece de Diabetes Mellitus tipo 2, não insulinodependente, medicado;

14. A requerente é herdeira de uma herança indivisa aberta por óbito de seu pai, CC, em que é cabeça de casal a sua mãe, DD ainda viva e restantes herdeiros os seus nove irmãos;

15. Fazem parte da herança jacente um prédio em propriedade total sem andares nem divisão suscetível de utilização independente, T2, casa coberta de telha, cozinha térrea coberta de telha, outra cozinha térrea coberta de colmo e quintal, com artigo matricial n.º ...11, sito no Lugar ..., freguesia ... de ... e ..., concelho ..., com o valor patrimonial determinado no ano de 2022 no valor de € 7.417,70, sem condições de habitabilidade;

16. Mais faz parte da herança jacente um prédio em propriedade total sem andares nem divisão suscetível de utilização independente, casa de dois pavimentos, coberta de telha, 1º pavimento, T3 e logradouro, com artigo matricial n.º ...99, sito no Lugar ..., freguesia ... de ... e ..., concelho ..., com o valor patrimonial determinado no ano de 2021 no valor de € 19.538,75, cuja utilização está atribuída há vários anos a uma irmã da requerente;

17. E por último um prédio em propriedade total sem andares nem divisão suscetível de utilização independente, casa térrea coberta de telha, corte em ruínas ao cimo do quintal, com o artigo matricial n.º ...13 sito no Lugar ..., freguesia ... de ... e ..., concelho ..., com o valor patrimonial determinado no ano de 2021 no valor de € 669,90, sem condições de habitabilidade;

18. A requerente e o requerido são proprietários de um lugar de garagem com o artigo matricial n.º ...64, fração autónoma L num prédio urbano composto de cave, R/C, 1º e º andares, sito na Rua ..., ...;

19. Desde 01 de Fevereiro de 2024, que a requerente se encontra reformada e recebe de pensão de reforma o valor de € 357,47 (trezentos e cinquenta e sete euros e quarenta e sete cêntimos);

20. O requerido encontra-se reformado e recebe de pensão de reforma o valor de € 563,07 (quinhentos e sessenta e três euros e sete cêntimos);

21. O requerido suporta sozinho a renda mensal da casa de morada de família no valor de € 22,05 (vinte e dois euros e cinco cêntimos) as despesas mensais de eletricidade, água e lixo as quais ascendem ao total de € 70,00 (setenta euros);

22. O requerido faz as refeições de almoço e jantar fora da casa de morada de família;

23. Durante a semana na maioria das vezes, o requerido sai de casa pelas 07h00 da manhã e apenas regressa ao final da tarde, utilizando para tanto um veículo onde transporta as suas ferramentas, dedicando-se a fazer alguns biscates a amigos e conhecidos;


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B - Factos não provados:

Não se provou, com relevância para a decisão da causa, outros factos, designadamente que:

a) Que a requerente possa utilizar como habitação qualquer prédio que faz parte da herança de seu pai CC;

b) Que o requerido tenha levado e feito suas as poupanças do casal que se encontravam num cofre embutido na parede da casa de banho da casa de morada de família no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros);

c) Que a casa de morada de família fique próxima do Centro de Saúde onde a requerente é assistida e faz fisioterapia;

d) Que a casa de morada de família fique a 20 metros da igreja onde a requerente dá catequeses há cerca de 15 anos e dá voluntariado;

e) Que o requerido suporte o pagamento dos seguros associados aos automóveis com as matrículas ..-CC-.. e VF-..-..;

f) Que o requerido exerça a tempo inteiro uma atividade profissional remunerada.“, realçado os factos objecto de impugnação recursiva.


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DE DIREITO.

A)

Nulidade da decisão/sentença – artigo 615.º, alíneas c) e d) e 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil – cls. v) a x).

Não se encontram demonstrados quais os factos que levaram a apelada, A., a pedir o divórcio, nem se encontram provados factos que permitam concluir por ter ocorrido alteração superveniente das circunstâncias, pelo que a menção na sentença do seguinte parágrafo configura uma nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, alínea c) e d) do Código de Processo Civil.

O parágrafo é o seguinte:

No entanto, mais resultou provado que com o decorrer do tempo a convivência entre o ex-casal deteriorou-se a tal ponto com agressões verbais e psicológicas, não obstante a dissolução decretada do casamento, por divórcio, que os factos que motivaram a rutura entre o casal se agravaram, após o aludido acordo, devido à permanência de ambos no mesmo espaço, o que aliás motivou a queixa apresentada pela requerente contra o requerido pela prática de factos suscetíveis de configurarem o crime de violência doméstica.

Perscrutando o alegado pelo apelante, arguição de nulidade da sentença por “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” – alínea c) – e quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” – alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, podemos afirmar que de todo em todo não se encontra verificada nenhuma das apontadas nulidades.

A sentença em crise fixou a matéria factual na sequência da alegação das partes e da factualidade oficiosamente por si percepcionada. Passando pelo crivo da prova, em obediência ao direito probatório, a M.ma Juíza declarou quais os provados e quais os não provados.

Não foi arguida qualquer nulidade decorrente de violação do direito probatório, que acarrete a nulidade da sentença.

Não está demonstrado que ocorra qualquer oposição entre os fundamentos de facto ou direito com o decidido. De todo em todo não foi invocada que a sentença padeça de ambiguidade ou obscuridade que o torne ininteligível.

Por outro lado, não padece a sentença do vício de decidir questões que estavam vedadas conhecer, nem omitiu decisão de questões que estava obrigada a conhecer.

Distinto será a fundamentação não haver convencido o apelante e dela discordar. Mas tal não configura de todo em todo uma nulidade da sentença, daquelas tipificadas na lei – artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Improcede assim as arguidas nulidades.


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B)

Modificação da decisão de facto:

i) Quantos aos pontos 8 e 9 dos factos provados – cls. ii) e iii).

ii) Quanto aos pontos 15 e 16 dos factos provados – cls. iv).

Considerandos.

São as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.

a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;

b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;

c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;

d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).

Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).


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Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, o recorrente, quanto aos pontos de facto indicados, preenche os apontados requisitos.

Mais, é de atender ao decidido pelo recente Ac do Supremo Tribunal de Justiça de UJ de 14.11.2023, n.º 12/2023, do qual consta: “Nos termos do art. 640.º/1/c, do CPCivil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões do recurso a decisão alternativa pretendida, desde que essa indicação seja feita nas respetivas alegações “.

Na fundamentação do citado Ac. pode-se ler:

Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.

O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do artigo 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”.

Analisando o recuso do apelante, quanto ao ponto ii) supra identificado – pontos 15 e 16 dos factos provados – cls. iv).

O apelante não indica qual o sentido pretendido que a factualidade deverá apresentar, ie, não indica qual seja a modificação que pretende ver satisfeita com o recurso da impugnação da matéria de facto.

De igual modo, no caso em concreto quanto a estes pontos de facto, este Tribunal fica sem saber se para cada um dos factos (15 e 16 dos factos provados), qual ou quais os meios de prova que o apelante pretende que seja(m) valorado(s).

Ora como se vê, este ónus o apelante não cumpre com o presente recurso da decisão da matéria de facto.

É consabido que o recurso da decisão da matéria de facto visa que o Tribunal da Relação se pronuncie sobre a existência de erro de julgamento e da necessidade de se operar a sua correcção. A admitir-se o recurso da decisão da matéria de facto tal qual se apresenta o presente, nesta parte, em rigor, teria este Tribunal que fazer um novo julgamento da matéria de facto, dada a natureza genérica do recurso formulado pelo recorrente. Todavia, isso está-lhe vedado.

É que, como tem vindo a recordar repetidamente o Supremo Tribunal de Justiça, a impugnação da decisão de facto, perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão, como sucede no presente caso.

Pelo que é de rejeitar o recurso quanto à decisão da matéria de facto indicada, nesta parte.

Em sustento do que fica decidido, e de forma lapidar o nosso mais alto Tribunal afirma o seguinte:

Com o novo CPC, os poderes do tribunal da Relação de alteração da decisão de 1a instância sobre a matéria de facto foram largamente ampliados e reforçados como decorre do atual art. 662º no confronto com o anterior art. 712º do C.P.C. 1961. Este novo código teve também o propósito de sanar algumas dúvidas que o anterior regime de impugnação da decisão de facto suscitava, mas ao mesmo tempo, tal como já antes sucedia, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto ficou sujeita a determinadas exigências que surgem agora mais precisas que no anterior C.P.C, de 1961 e cuja observância não pode deixar de ser apreciada à luz de um critério de rigor.

Reza a lei adjectiva, no artigo 640º do C.P.C., que:

“ 1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.

Decorre, assim, da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos aludidos ónus, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.

Cremos, porém, que nesta matéria dos ónus de alegação na impugnação da matéria de facto – tal como vem sustentado no Ac. do STJ de 29/10/2015 – se impõe distinguir dois ónus, a saber:

- um ónus primário, que se traduz na concretização do disposto nas als. a), b e c) do n.º 1 do artigo 640º, e cuja falta impõe a imediata rejeição do recurso;

- um ónus secundário que se traduz na indicação exacta das passagens da gravação. – al. a) do número 2 do artigo 640º do C.P.C.

No ónus secundário – diferentemente do que ocorre no ónus primário –, a aludida falta de indicação exacta das passagens da gravação deve ser avaliada de forma casuística e mais cautelosa, pois os princípios da proporcionalidade e da adequação e ainda da prevalência do mérito sobre os requisitos puramente formais parece impor que não se aplique a liminar rejeição do recurso, salvo nos casos em que tal omissão ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos dificulte, de forma grave, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. (…)

Esclarece ABRANTES GERALDES que as exigências impostas pelo artigo 640.° CPC ao recorrente que impugne a matéria de facto são decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso.

Mas – acrescenta – elas não são alheias também ao princípio do contraditório, pois destinam-se a possibilitar que a parte contrária possa identificar, de forma precisa, os fundamentos do recurso, podendo assim discretear sobre eles, rebatendo-os especificadamente. “ – Ac Supremo Tribunal de Justiça 556/19.4T8PNF.P1.S1, de 15.09.2022, relatado pelo Cons FERNANDO BAPTISTA, in dgsi.pt.

Em causa, nesta apelação, está a inobservância do aludido ónus primário – em específico, a alegada falta de cumprimento do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, e cuja falta impõe a rejeição do recurso.


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Passemos então a apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto, quanto aos pontos 8 e 9 dos factos provados – cls. ii) e iii).

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.

Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.

Argumenta o apelante que devem tais factos (pontos 8 e 9 dos factos provados) merecer resposta distinta por força da prova por declarações/depoimento de parte do R., apelante, conjugado com a prova documental e bem como com o depoimento da A., apelada, confessórias.

Os pontos 8 e 9 dos factos provados:

8. A 11 de Maio de 2023 a requerente apresentou uma queixa contra o requerido por factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica, dando origem ao inquérito n.º ... a correr termos no DIAP do ...;

9. A 24 de Maio de 2023 no inquérito n.º ... a correr termos no DIAP do ..., em que é denunciante a requerente, foi o requerido sujeito a primeiro interrogatório tendo-lhe sido aplicada apenas a medida de coação de Termo de identidade e Residência;

Pugna o apelante pelo seguinte redacção:

8. Em data anterior a 11 de maio de 2023, o requerido apresentou uma queixa contra a requerente por factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica, dando origem ao inquérito nº... a correr termos no DIAP do ..., do qual a requerente ficou a saber e a levou a apresentar queixa contra o requerido, pelas mesmas razões, dando esta última queixa origem, por sua vez ao inquérito nº...;

9. O requerido foi detido para em 24 de maio de 2023 ser sujeito a primeiro interrogatório no âmbito do sobredito inquérito nº..., tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de termo de identidade e residência.

Sustenta o apelante que os factos 8 e 9 dos factos provados foram precedidos de uma queixa crime apresentada pelo apelante, R., contra a apelada, A., “tendo sido esta queixa que esteve na origem ao inquérito que sob o nº... correu termos no DIAP do ....”, sendo que a estes autos de inquérito foram apensados os autos do processo de inquérito n.º ....

Em amparo da pretendido o apelante indica como meio de prova a confissão, do próprio R. e da apelada, A. que admitiu no requerimento pelo qual apresentou queixa crime contra o apelante, R., das suas declarações de parte.

Salvo o devido respeito não se adere na sua totalidade à argumentação expendida pelo apelante.

Estamos perante factos que tendencialmente apenas admitem prova por documento.

Efectivamente a primeira instância fundamentou do seguinte modo:

Os factos descritos nos pontos 8. a 9. quanto ao inquérito crime que corre os seus termos no DIAP do ... temos por base além do mais a queixa crime apresentada pela requerente de fls. 14 a 24, 46 a 50, 134 verso a 136“.

Contudo resulta da acta de audiência de julgamento. De 26.06.2024 na sequência do depoimento/declarações de parte do R. a seguinte assentada:

fez queixa contra a Requerente após o divórcio, porquanto esta provocou-o, chamou-lhe de bêbado e todos os nomes, batendo-lhe com um tubo na mãe e nas costas dentro de casa. Aliás, desde o divórcio fez três queixas contra AA, sendo que a situação do tubo foi há cerca de 2 meses”.

Embora estejamos perante realidade fáctica que para a sua demonstração processual se exija prova documental, no caso dos autos, tendo sido declarado como confessado facto atrás referido – assentada –, não tendo as partes apresentado qualquer requerimento de oposição, haverá que o mesmo ser reconduzido aos factos a considerar para efeitos da presente decisão. Esta alteração tem sustentação óbvia pela sucessão dos números de processo de inquérito, que decorrem da prova documental.

Deste modo, haverá que alterar a redacção do ponto 8 dos factos provados para a seguinte redacção:

Em data anterior a 11 de maio de 2023, o requerido apresentou uma queixa contra a requerente por factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica, dando origem ao inquérito nº... a correr termos no DIAP do ..., tendo a 11 de Maio de 2023 a requerente apresentou uma queixa contra o requerido por factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica, dando origem ao inquérito n.º ... a correr termos no DIAP do ...

Quanto à redacção do ponto 9 dos factos provados, e relativamente ao uso da palavra “apenas” será de afirmar o seguinte.

O significado de “apenas” de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, I VOL, 2001, pág. 288 é o seguinte: “I. Usa-se, com valor restritivo para indicar exclusividade. 1. De um modo exclusivo. EXCLUSIVAMENTE, SÓ, SOMENTE, UNICAMENTE. (…) II. Usa-se, também com valor restritivo, para enfatizar a noção de pequena quantidade, dimensão, intensidade ou número. 1. Não mais do que isso. = SÓ, SOMENTE, UNICAMENTE. (…) 2. De modo muito ligeiro LIGEIRAMENTE, MAL, QUASE NADA.“ Este Tribunal de recurso, dá o significado à palavras “apenas” na redacção do ponto 9 dos factos provados, de “só, somente e unicamente”.

Por tudo o exposto, procede parcialmente a apelação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto.


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C)

A apelada/A., tem habitação onde pode habitar ao contrário do apelante – cls. xi) a xii).

A sentença recorrida fixou como questões a resolver as seguintes:

Aferir se existem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração da atribuição da casa de morada de família a título de arrendamento a ambos os cônjuges como acordado pelo ex-casal aquando da homologação judicial dos acordos celebrados que possibilitou a dissolução, por divórcio por mútuo consentimento, do casamento contraído entre ambos.

Em caso afirmativo, a quem deve ser atribuído o direito à utilização da casa de morada da família se à requerente ou ao requerido.

Caso seja atribuído este direito à requerente da possibilidade da concentração, na mesma, da posição jurídica de arrendatário no contrato de arrendamento que tem como objeto mediato da casa de morada de família

O apelante discorda da decisão proferida pela primeira instância alegando que não está verificada a factualidade do R. ter maltratado a A.. Que dos factos nada resulta. “Para demonstrar a alteração superveniente das circunstâncias, de modo a poder justificar a mudança do regime que ficou acordado na ação de divórcio, quanto à mencionada casa morada de família, não basta provar que a requerente tenha apresentado uma queixa por violência doméstica, era necessário provar os factos que em concreto dão corpo a essa queixa e em que circunstâncias de tempo eles ocorreram.” Mais argumenta que a factualidade alegada pela A. se situa em momento anterior à prolação da sentença aludida em 4 dos factos provados.

Conclui que a alteração da atribuição da casa morada de família pressupõe: que tenha ocorrido alteração do conjunto de circunstâncias à data da atribuição; que tal alteração seja substancial; permanente ou não transitória; que afectem os pressupostos fundamentais da anterior atribuição.

Mais sustenta estar o apelante na verdadeira situação de necessidade de habitação pelo que lhe deve ser atribuída a casa.

Vejamos.

A primeira instância fixou o âmbito da sua decisão: ”Voltando a nossa atenção para a situação em apreço nos autos, antes de mais, há que aferir se existem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração da atribuição da casa de morada de família a título de arrendamento a ambos os cônjuges como acordado pelo ex-casal aquando da homologação judicial dos acordos celebrados que possibilitou a dissolução, por o divórcio por mútuo consentimento, do casamento e, só posteriormente, a verificarem-se estas circunstâncias saber a quem deve ser atribuída a casa de morada de família.

O normativo legal é o seguinte:

Artigo 1793.º do Código Civil

Casa de morada da família)

1- Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

2- O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.

Artigo 990.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Atribuição da casa de morada de família

1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.

Decorre deste normativo legal caso ocorram factos supervenientes que determinem uma alteração do decidido quanto ao acordo entre os interessados/cônjuges, aquando do divórcio, relativo à atribuição da casa de morada de família, será caso de tal pretensão ser deduzida em Tribunal.

É jurisprudência unânime que apenas será de atender a uma alteração superveniente das circunstâncias fácticas. Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 2891/11.0TBVNG.P1, de 25.02.2013, relatado pelo Des CAIMOTO JÁCOME, onde se pode ler: “Defendendo a possibilidade de alteração do antes acordado pelos cônjuges ou decidido judicialmente desde que tenha ocorrido alteração substancial e anormal das circunstâncias tidas em consideração, sustenta Salter Cid (A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, págs. 314/316):

“a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);

b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);

c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...);.

d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).»

E acrescenta:

«A alteração substancial das circunstâncias justificativas da modificação das medidas pode (...) ser motivada tanto pela ocorrência de factos novos, como pelo conhecimento de factos anteriores de significativa transcendência ignorados na sua adopção.” A jurisprudência maioritária segue este caminho. Neste sentido Acórdão Tribunal da Relação do Porto, 395/12.3TBVLC-I.P1, de 22.05.2017, relatado pelo Des CARLOS QUERIDO,A lei permite tal alteração, contando que a requerente prove circunstâncias supervenientes que a justifiquem, o que ocorre se, perante a verificação de tais circunstâncias, concluirmos que o acordo celebrado e judicialmente homologado não acautelou, devidamente, os seus interesses, como se decidiu no acórdão desta Relação e Secção, de 25.02.2013 (processo n.º 2891/11.0TBVNG.P1, acessível no site da DGSI).” Entre muitos outros arestos, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 238/13.0TMCBR-B.C1, de 09.01.2018, relatada pelo Des LUÍS CRAVO, Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães 114/14.0TCGMR-A.G1, de 17.09.2020, relatada pela Des ANA CRISTINA DUARTE, “Não está aqui em causa reapreciar a bondade da solução anterior, mas sim averiguar se houve alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do que então foi acordado/decidido.”, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 1591/18.5T8FIG-C.C1, de 26.10.2021, relatado pela Des CRISTINA NEVES, “Estando atribuída a casa de morada de família a ambos os ex-cônjuges até à realização de partilhas do casal, a alteração desta decisão só poderá ocorrer se se verificarem circunstâncias supervenientes que imponham essa alteração (crf. Artº 1793º, nº 3 do C.C. e 988º, nº 1 do C.P.C.).”, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 776/17.6T8PRD-G.P1, de 01.12.2021, relatado pelo Des PAULO DIAS DA SILVA, “Se se verificar, dos factos provados nos autos, que se alterou de forma substancial, o circunstancialismo que foi determinante para o acordo celebrado, deve ser concedida a alteração.”, Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa 10316/16.9T8LRS-A.L1-2, de 15.04.2021, relatado pelo Des PEDRO MARTINS, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 2/17.8T8ETR-B.P1, de 04.05.2022, relatado pela Des ISOLETA DE ALMEIDA COSTA,

Ora, em face factualidade dada como provada, mormente aquele respeitante a factos ocorridos após a realização da diligência processual no processo de divórcio 24 de Janeiro de 2023, nada resulta.

Temos tão só que quer apelante/R., quer a apalada/A., apresentaram queixas crimes contra ambos por factos que podem configurar violência doméstica. Quanto à substância ou objecto de tais queixas crime, nada resulta dos factos.

A única certeza que este Tribunal pode retirar é que A. e R. estão desavindos, mas tal é conatural com um processo de divórcio e de partilha/inventário (processo apenso).

Nem a A., apelada, nem o R. apelante, vieram aos autos alegar factualidade que permita concluir por haver ocorrido uma alteração das circunstâncias. Soçobram ambos no cumprimento do ónus que sobre cada um recaía. Assim, para além da atrás citada jurisprudência, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 826/23.7T8ACB.C1, de 13.12.2023, relatado pelo Des LUÍS CRAVO, onde se pode ler, “Compete ao cônjuge [ou “unido de facto”] que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.”. Assim Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães 2692/22.0T8BCL.G1, de 10.07.2023, relatado pela Des MARGARIDA PINTO GOMES, “Requerendo-se a alteração da decisão que atribuiu a casa de morada de família ao Requerido/recorrido, tem de ser alegadas e demonstradas circunstâncias supervenientes que a justifiquem, entendendo-se, por alterações supervenientes, todas aquelas que tenham ocorrido em momento posterior à decisão ou aquelas que sendo anteriores não foram alegadas por ignorância ou outro motivo relevante.

Deste modo. porque não se encontra demonstrado qualquer factualidade superveniente que permita concluir alterar o acordo quanto à casa de marada de família.

Pelas mesmíssimas razões e fundamentos, não há razão para que seja procedente o pedido do apelante, de atribuição da casa de morada de família a si.

Por tudo o exposto, haverá que proceder parcialmente a presente apelação.


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III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, julgando improcedente o pedido de alteração da casa de morada de família.

Custas a cargo do apelante/R. e apelada/A., fixando o decaimento em 1/3 e 2/3, respectivamente (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 14 de Janeiro de 2025

Alberto Taveira

João Diogo Rodrigues

Pinto dos Santos

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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.
[3] Será certamente lapso a indicação da data da prolação da sentença, cfr acta de audiência de julgamento de divórcio junto com a petição inicial.