Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUEL SOARES | ||
Descritores: | CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA SEGURANÇA SOCIAL GERENTES DE FACTO OMISSIVO PRÓPRIO TERCEIRO RESPONSÁVEL | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP20161012664/13.5TAPRD.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/12/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | PARCIAL PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 692, FLS.277-289) | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I – A responsabilização criminal dos gerentes da sociedade pelo crime de abuso de confiança à Segurança Social, pressupõe o exercício de facto e efectivo do cargo de gerente. II- O crime de abuso de confiança à segurança social é um crime omissivo próprio, em que o evento típico consiste na violação do dever de agir imposto por lei. III – A omissão dolosa (artº 14º CP) reside na vontade consciente de abstenção da actividade devida, no conhecimento da possibilidade de verificação do resultado típico e na aceitação intencional ou necessária desse resultado ou na mera conformação com a sua produção. IV – Comete tal crime também o gerente da sociedade se o ilícito criminal (não entrega da contribuição à Segurança Social) for praticado por outra pessoa a quem ele permitiu que tomasse a decisão (de entrega ou não entrega), por omissão do seu dever de vigilância ou controlo (artº 11º 1 CP). | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 664/13.5TAPRD Comarca do Porto Este Instância Local de Paredes, Secção Criminal, J2 Acórdão decidido em Conferência no Tribunal da Relação do Porto 1. Relatório 1.1 Decisão recorrida Por sentença proferida em 14 de Maio de 2015, a Sra. Juiz do Tribunal recorrido decidiu condenar as arguidas B… e C… Lda., por um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto nos artigos 107º nº 1 e 105º nºs 1, 2 e 7 da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (doravante RGIT), respectivamente, nas penas de 200 dias de multa, à taxa diária de 10 euros e de 250 dias de multa, à taxa diária de 20 euros. As arguidas foram ainda condenadas a pagar solidariamente ao Instituto da Segurança Social, I.P. a indemnização de 76.154,77 euros, correspondentes às contribuições em dívida à Segurança Social, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal. 1.2 Recurso A arguida B… não se conformou com a sentença e interpôs recurso. Pediu que seja declarada a nulidade decorrente da deficiência do registo da prova, impeditiva do exercício completo do direito de impugnar o julgamento da matéria de facto. Subsidiariamente, pediu que a sentença seja revogada e a arguida absolvida, por erro de julgamento da matéria de facto. No essencial, motivou o recurso invocando o seguinte: (resumo nosso) - Os depoimentos registados em gravação áudio são em larga medida imperceptíveis e não permitem indicar as passagens da gravação que alicerçam a discordância do julgamento da matéria de facto. Isso constitui nulidade, que pode ser invocada nas alegações de recurso e que, a ser decretada, conduzirá à necessidade de repetir os respectivos depoimentos. - O tribunal considerou provado, em resumo, que recorrente exercia as funções de gerência de facto e de direito da sociedade arguida, sendo responsável por toda a sua actividade e decidindo, nomeadamente, sobre a afectação dos meios financeiros necessários aos pagamentos das prestações sociais previstas na lei, e que foi ela quem efectuou nos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais o desconto das contribuições devidas à segurança social e não procedeu à entrega dos respectivos montantes àquela instituição, querendo alcançar para si e para a sociedade arguida benefício patrimonial ilegítimo. E considerou não provado que a recorrente nunca tomou decisões na vida da sociedade, cabendo, em exclusivo, à sua mãe a gerência da mesma. - As declarações da arguida recorrente e os depoimentos das testemunhas D…, E…, F… e G… não permitem concluir, de acordo com as regras de avaliação da prova, que a gerência de facto pertencesse à recorrente e que tivesse sido esta quem tomou a decisão de reter os montantes que deveriam ter sido entregues à segurança social. - Houve violação grosseira do princípio in dubio pro reo, que constitui erro de julgamento e erro notório na avaliação da prova. 1.3 Resposta do Ministério Público O Ministério Público respondeu alegando, em síntese, o seguinte: (resumo nosso) - A gravação da prova apresenta uma fidelidade razoável e permite captar sem qualquer esforço a integralidade dos depoimentos. - Em qualquer caso, a invocação da nulidade é extemporânea, face à jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 13/2014, segundo o qual tinha de ser arguida perante o tribunal de primeira instância, no prazo de 10 dias a contar da data da sessão da audiência em que o vício se verificou, descontado o tempo entre o requerimento e a entrega da cópia da gravação. - Não foi dado cumprimento pela recorrente ao disposto no artigo 412º nº 3 als. a) e b) do Código de Processo Penal[1], uma vez que nas conclusões do recurso não se indicam as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”. - Não houve erro de julgamento da matéria de facto. A própria arguida admitiu em julgamento que tinha a gerência de facto da empresa. 1.4 Parecer do Ministério Público na Relação O Ministério Público, nesta Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, remetendo, no geral, para os argumentos expostos na resposta ao recurso. 2. Questões a decidir no recurso Começaremos pela questão prévia da arguição de nulidade, pois a decisão que se tomar pode condicionar a apreciação do mérito do recurso. Em função do que decidirmos a propósito da questão anterior, veremos, em segundo lugar, se a motivação do recurso está inquinada pela deficiência apontada pelo Ministério Público na resposta e se isso deve obstar à apreciação do mérito. Por fim, se as questões anteriores forem ultrapassadas, teremos de ver se houve erro de julgamento da matéria de facto e se tiver havido retirar daí as devidas consequências, no plano dos factos e do direito. 3. Fundamentação 3.1. Arguição de nulidade processual Devemos começar por dizer que ouvimos o registo das declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência e verificámos que, no essencial, tirando uma ou outra pequena passagem irrelevante, são audíveis e compreensíveis. Pudemos perceber sem excessiva dificuldade o conteúdo de quase todas as passagens que na transcrição da recorrente são dadas como imperceptíveis. Há uns momentos com maior ruído de fundo, outros em que as conversas se sobrepõem e outros, até, com “apartes” dos depoentes, mas isso não prejudica minimamente a sua inteligibilidade geral. De todo o modo, como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, a arguição de nulidade é intempestiva. Os depoimentos alegadamente imperceptíveis foram prestados nas audiências de 9ABR2015 e 21ABR2015 (fls. 564 e 583). A sentença foi lida em 14MAI2015 e só em 12JUN2015, quase um mês depois, a recorrente pediu a entrega de cópia das gravações, pedido que foi satisfeito no mesmo dia (fls. 635 e 636). Só veio a arguir a nulidade no recurso interposto em 16JUN2015 (fls. 637). A nulidade invocada é a prevista no artigo 363º. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão para fixação de jurisprudência nº 13/2014, de 3JUL2014[2], decidiu que “a nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal de 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo de 10 dias, a contados da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do nº 3 do artigo 101º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada”. Ora, a recorrente não respeitou aquele prazo de 10 dias, contado a partir das sessões da audiência, ressalvado o tempo de entrega dos registos, para poder verificar a inteligibilidade do registo da prova e eventualmente invocar a sua nulidade perante o tribunal de primeira instância. Não vemos razão para divergir da interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que consideramos que uma eventual nulidade, a ter ocorrido, se mostra agora sanada por causa da intempestividade na sua arguição e já não pode ser invocada como fundamento de recurso. 3.2. Vício formal nas alegações de recurso O Ministério Público alegou na resposta ao recurso que a recorrente não cumpriu devidamente o ónus de especificar nas conclusões as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Notificada a recorrente nos termos do artigo 417º nº 2, nada disse. Como estamos no momento do exame preliminar previsto no número 3 desse artigo, devemos explicar as razões que nos levaram optar por decidir já o mérito do recurso em vez de convidar a recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões. Não há dúvida de que o ónus de especificação nas conclusões dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e das concretas provas que impõem decisão diversa não foi rigorosamente observado. Essas especificações, no entanto, constam na motivação do recurso com suficiente clareza. Na verdade, alega-se aí que foi erradamente considerado provado que a recorrente exercia as funções de gerência de facto e de direito da sociedade e que foi responsável pelas decisões de descontar as contribuições sociais nos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais e de não proceder à respectiva entrega à segurança social. Diz-se ainda que as declarações da arguida e os depoimentos das quatro testemunhas identificadas – todos transcritos na motivação – não sustentam os referidos factos, visto existir pelo menos uma dúvida insanável sobre a sua veracidade. O artigo 417º nº 3 dispõe que se das conclusões de recurso não for possível deduzir as indicações do previstas nos números 2 a 5 do citado artigo 412º, o recorrente é convidado a completá-las ou esclarecê-las, sob pena de rejeição ou não conhecimento do recurso na parte afectada. Concedemos que numa interpretação rigorosa dos formalismos legais referidos, a que a jurisprudência corrente dos tribunais superiores vem aderindo de forma constante, poderia haver lugar àquele convite. Porém, optámos por não o fazer por consideramos que isso não teria outro efeito que não fosse o de provocar um acto processual redundante e inútil. Temos de ter em conta que nos casos em que a impugnação do julgamento da matéria de facto em primeira instância se funda na violação do princípio in dubio pro reo, a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da impugnada não é possível com o mesmo grau de precisão. Em situações de dúvida sobre a veracidade do facto, muitas vezes a desconformidade entre o facto provado e a prova não é identificável em passagens específicas de certos depoimentos, das quais resulte o contrário do que se provou. Essa dúvida decorre normalmente da ausência de prova que sustente o facto. Se no recurso se invoca que o conteúdo dos depoimentos não permite dar certo facto como provado, naturalmente não pode ser exigido ao recorrente que identifique as partes específicas dos depoimentos onde se verifica aquela omissão de prova. Nestes casos a verificação da desconformidade entre a prova e o facto há-de resultar da análise global dos depoimentos e não de certas passagens isoladas. No caso que analisamos a recorrente não diz que o facto não se provou por esta ou aquela testemunha ter proferido esta ou aquela afirmação concreta. O que diz é que os depoimentos orais prestados em audiência não são suficientes para dar como provado que fosse ela a gerente de facto. Na motivação do recurso identificou e transcreveu esses depoimentos que considera insuficientes para a prova dos factos que impugnou. E nas conclusões indicou os factos que no seu entender foram incorrectamente julgados, com fundamento na violação do princípio in dubio pro reo [(nn) a rr) e bbb), ccc) e lll)]. As conclusões do recurso são apenas um resumo da motivação (artigo 412º nº 1) e têm a função meramente instrumental de facilitar o conhecimento dos fundamentos do pedido, para permitir aos outros sujeitos processuais o exercício do contraditório e ao tribunal de recurso a delimitação das questões sujeitas ao seu julgamento. Se conjugarmos o que dispõem os artigos 417º nº 3 e 412º nº 3, verificamos que a especificação dos concretos pontos de facto mal julgados e das concretas provas que impõem decisão diversa não tem necessariamente de ser totalmente reproduzida de forma integral nas conclusões. Pode constar apenas na motivação, desde que se possa deduzir das conclusões. O que releva é que a pretensão do recurso seja inteligível na sua globalidade e não suscite dúvidas relevantes aos outros sujeitos processuais e ao tribunal. No caso em apreciação o Ministério Público compreendeu perfeitamente o pedido e a motivação do recurso e não ficou impedido de exercer o direito de resposta. Da nossa parte não existem também dúvidas sobre a pretensão da recorrente que nos importasse esclarecer com um convite ao aperfeiçoamento. Nestas circunstâncias, não teria qualquer sentido protelar o conhecimento do mérito do recurso, convidando a recorrente a um aperfeiçoamento que não seria mais do que uma operação material de copiar frases da motivação para as conclusões. Isso nada acrescentaria à inteligibilidade do recurso e constituiria um formalismo excessivo que achamos ser de rejeitar. 3.3. Impugnação da matéria de facto. 3.3.1. Na sentença foram julgados provados e não provados os seguintes factos: (transcrição parcial – não transcrevemos por inutilidade e morosidade o mapa com os pagamentos omitidos) 1. Factos provados Da acusação e do pedido de indemnização civil: 1. A sociedade comercial “C…, Lda.”, com sede na Rua …, nº …, …, Paredes, tem como objectivo social o fabrico de mobiliário de madeira e comércio de mobiliário de madeira; 2. À data dos factos que se irão descrever, a gerência de facto e de direito da sociedade arguida era exercida pela arguida B… sendo esta como tal, responsável por toda a sua actividade, durante aquele período, actuando sempre em nome e no interesse “C…, Lda”, decidindo sobre os destinos da sociedade arguida, nomeadamente, a afectação dos meios financeiros necessários aos pagamentos devidos ao Estado a título de contribuições sociais, 3 Assim, entre outras incumbências, a arguida era responsável pelo preenchimento e entrega mensal ao Centro Regional de Segurança Social do Porto das folhas de renumeração pagas pela arguida sociedade aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, bem como pela dedução e entrega – em nome desta – do montante relativo às contribuições efectivamente deduzidas naquelas renumerações e entregues pela sociedade com a sua própria contribuição, nos termos e prazos legalmente previstos. 4. Nos períodos de Janeiro de 2007 a Março de 2009 e Maio de 2009 a Agosto de 2012, a sociedade arguida cuja gerência era exercida de facto e de direito pela arguida B…, efectuou o desconto nos salários dos seus trabalhadores e dos membros dos órgãos estatuários das contribuições legalmente devidas por aqueles à Segurança Social, nos termos estipulados no artigo 56º e 59º, nº1 da Lei 4/2007, de 16.01, descontos esses que perfizeram a quantia de € 76.437,76, acrescida dos respectivos acréscimos legais; 5. Porém, após ter descontado e retido aquelas contribuições e por determinação nesse sentido da segunda arguida, a sociedade da arguida, em todo o período atrás discriminado – não obstante ter preenchido e enviado as folhas de renumeração aos serviços de Segurança Social nos meses em referência, de acordo com o disposto no artigo 4º do DL 103/1980 e artigo 1º, nº2 do DL 106/2001 (até Dezembro de 2010) e artigo 40º da Lei nº 110/2009 (a partir de Janeiro de 2011) - - não procedeu à entrega dos montantes respectivos à Segurança Social, relativamente às contribuições anteriores a 2011, até ao dia 15 do mês seguinte àquele que as mesmas respeitavam (artigo 5º do DL 103/80 e artigo 10º, nº2 do DL 199/99), e a partir de Janeiro de 2011 entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitam (artigo 43º da Lei 110/2009), nem nos 90 dias imediatos após aquelas datas, nos termos definidos no artigo 105º, nº4, al. a) do RGIT, antes se tendo apropriado das importâncias respectivas, que sabia pertencerem e se4rem devidas à Segurança Social, afectando as mesmas em proveito próprio da sociedade, sua representada; 6. Assim, nos meses em questão, a sociedade arguida, através da segunda arguida, efectuou o desconto, nos salários dos seus trabalhadores e dos membros dos órgãos estatuários, das contribuições legalmente devidas por aqueles á Segurança social, mas não procedeu à sua entrega naquela instituição, conforme se alcança dos mapas de valores de fls. 54 a 58, nos termos a seguir discriminados: (…) 7. A sociedade arguida, bem como a segunda arguida, foram notificados nos termos e para os efeitos dos nº4, al. b) e nº6 do artigo 105º do RGIT, em 14.01.2014 (fls. 161/162); 8. Não obstante, não foi efectuado qualquer pagamento por conta do valor em divida nestes autos; 9. Actuou a segunda arguida, de comum acordo e em conjugação de esforços, exprimindo ou vinculando a vontade da referida sociedade, primeira arguida e procurando a satisfação dos interesses da mesma; 10. Ao agir de modo descrito, omitindo a entrega àquela instituição de Segurança Social dos montantes das contribuições referidas descontadas nos salários dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatuários da sociedade “C…, Lda.” tinha a arguida a vontade livre e a perfeita consciência que ficava na situação de fiel depositário desses valores que assim passaram a pertencer aos cofres do Estado, perante quem se constituía, em nome e me representação daquela sociedade, na obrigação legal de os entregar nos prazos e locais previstos na lei, apesar na lei, apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançou, para si e para a sua representada um indevido e ilegítimo beneficio patrimonial, não permitiu à Segurança Social o devido recebimento de tais contribuições, delas se apoderando; 11. Actuou a arguida de forma livre, voluntária e consistente, com noção do carácter periódico e, por isso, repetindo, do vencimento e incumprimento de tais obrigações, embora sendo certo que as apropriações dos valores respeitante foram executadas dentro da especificidade do seu procedimento burocrático, de forma essencialmente idêntica, num horizonte temporal delimitado, com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização, e num quadro circunstancial de solicitações e oportunidades também basicamente inalterado, repetido e facilitador da sucessão criminosa; 12. A arguida sabia que tal conduta era proibida e punida por lei. Das contestações escritas: 13. A sociedade atravessou dificuldades de tesouraria acabando por utilizar as quantias devidas à segurança social no pagamento de outras despesas da sociedade; 14. A arguida B… é uma pessoa educada e integrada na comunidade; 15. Em 04/12/2013 a arguida B… renunciou ao exercício do cargo de gerente da sociedade arguida. Mais se provou: 16. Já após a dedução da acusação pública a arguida procedeu ao pagamento à Segurança Social da quantia de € 282,99; 17. Do certificado do registo criminal a arguida B… nada consta; 18. Do certificado do registo criminal da sociedade arguida resulta que por sentença de 13/06/2014, proferida no âmbito do processo comum singular nº 1882/13.9 IDPRT, da instância criminal local de Paredes – J1, foi condenada em pena de multa pela prática do crime de abuso de confiança fiscal; 19. A arguida vive em casa na própria companhia do marido e de um filho com 14 anos de idade, A arguida trabalha como designer na sociedade arguida e aufere o salário mensal de € 700. O seu marido é vendedor de automóveis e aufere o salário de € 800 acrescido de comissões. Suportam a prestação mensal de € 320 a uma instituição bancária pelo crédito à habitação contraído; 20. A arguida tem como habilitações literárias a licenciatura em design de mobiliário. 2. Factos não provados 1. Que a arguida B… afectou as quantias em causa ao seu próprio proveito. Da contestação da arguida B…: 2. Que a arguida nunca tomou decisões na vida da sociedade cabendo, em exclusivo, à sua mãe D… a gerência da sociedade. (fim de transcrição) 3.3.2. De forma um pouco confusa, a recorrente anunciou que impugnava a matéria de facto por erro de julgamento, indicando a norma correcta, do artigo 412º nº 3 e concretizando as especificações das suas als. a) e b); para, depois, acabar por invocar que o julgamento está inquinado pelo erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º nº 2 al. c). A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento e a invocação ou conhecimento oficioso do vício de erro notório na apreciação da prova são fundamentos de recurso diferentes. Pode haver erro de julgamento da matéria de facto que não resulte de erro notório na avaliação da prova. Só uma avaliação da prova que contrarie com toda a evidência as regras da lógica e da experiência comum, que seja clamorosamente errada e se revele na leitura da própria decisão é que integra o vício do artigo 410º nº 2 al. c). Não é isso que sucede neste caso. A Sra. Juiz considerou provado que a recorrente foi a pessoa que dentro da sociedade tomou as decisões de reter as contribuições e não as entregar à segurança social. Fundamentou a sua convicção nas declarações da arguida e nos depoimentos das testemunhas que identificou. Motivou essa convicção de forma racional, a partir dos depoimentos, que analisou com suficiente detalhe, credibilizando uns mais do que outros e apelando às normais regras da experiência para dedutivamente explicar como é que a partir das provas chegou à demonstração do facto. Não há, portanto, qualquer vício ou omissão no raciocínio da Sra. Juiz que seja imediatamente perceptível pela leitura da sentença recorrida e que se deva considerar ostensivo e evidente. No entanto, isso não significa que a matéria de facto tenha sido correctamente julgada. Pode chegar-se a essa conclusão já não pela simples leitura da sentença mas pela análise das provas. É isso que temos de analisar de seguida. 3.3.3. O fundamento do erro de julgamento que levou a recorrente a impugnar a matéria de facto é a existência de dúvida sobre a veracidade dos seguintes segmentos factuais considerados provados na sentença: - “a gerência de facto e de direito (…) era exercida pela arguida B… sendo esta como tal, responsável por toda a sua actividade (…) actuando sempre em nome e no interesse da sociedade (…), decidindo sobre os destinos da sociedade arguida, nomeadamente a afectação dos meios financeiros necessários aos pagamentos devidos ao Estado a título de contribuições sociais” (facto 2); - “era responsável pelo preenchimento e entrega mensal (…) das folhas de remuneração pagas pela arguida sociedade (…) bem como pela sua dedução e entrega – em nome desta – do montante relativo às contribuições efectivamente deduzidas naquelas remunerações e entregues pela sociedade com a sua própria contribuição” (facto 3); - “a sociedade arguida (…) efectuou o desconto nos salários (…) das contribuições legalmente devidas por aquela à Segurança Social (…), porém (…), por determinação nesse sentido da segunda arguida, a sociedade arguida (…) não procedeu à entrega dos montantes respectivos (…) antes se tendo apropriado das importâncias respectivas, que sabia pertencerem e serem devidas à Segurança Social, afectando as mesmas em proveito próprio da sociedade, sua representada” (factos 4, 5 e 6); - “actuou a segunda arguida, de comum acordo e em conjugação de esforços, exprimindo ou vinculando a vontade da referida sociedade, primeira arguida e procurando a satisfação dos interesses da mesma” (facto 9); - “ao agir do modo descrito (…) tinha a arguida a vontade livre e perfeita consciência que ficava na situação de fiel depositário desses valores, que assim passaram a pertencer aos cofres do Estado, perante quem se constituía, em nome e em representação daquela sociedade, na obrigação legal de os entregar (…), apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançou, para si e para a sua representada um indevido e ilegítimo benefício patrimonial” (facto 10); - “actuou a arguida de forma livre, voluntária e consciente, com noção do carácter periódico e, por isso, repetido, do vencimento e incumprimento de tais obrigações (…)” (facto 11); - “a arguida sabia que tal conduta era proibida e punida por lei” (facto 12). Como se vê, o que está em causa é no essencial a prova de que as decisões criminalmente relevantes, de descontar as importâncias dos salários e de não as entregar à segurança social, foram tomadas intencionalmente pela recorrente, na sua qualidade de gerente da sociedade arguida, como se provou na sentença. Para fundamentar tais factos, dos quais decorre que foi a recorrente quem decidiu reter as prestações dos salários e não as entregar à segurança social, a Sra. Juiz considerou que a recorrente “era quem figurava como gerente de direito da sociedade”, que nas suas declarações reconheceu que “sempre acompanhou a sua mãe e sabia das dificuldades que a empresa atravessava, bem como as concretas dificuldades de liquidez” e esclareceu que “sempre pagaram os salários e efectuaram as retenções devidas, mas porque o dinheiro não chegava não efectuaram os pagamentos devidos à Segurança Social”. Considerou ainda, a propósito das características de liderança da mãe da recorrente, que o facto de ela ser “uma pessoa mais dinâmica e interventiva do que a arguida, isso não afasta as responsabilidades da arguida”; “de resto, a particular circunstância de serem mãe e filha e de esta trabalhar diariamente na empresa, e de aparentarem manter um bom relacionamento, aliada às normais regras da experiência, apenas [nos] pode levar a concluir e a interpretar as declarações da própria arguida como sendo perfeitamente conhecedora da situação da empresa, participando nas respectivas decisões, pois como a mesma admite «acompanhava» e «conversava» com a sua mãe”. Quanto ao depoimento da testemunha G…, a Sra. Juiz considerou-o não credível por ter sido prestado de maneira desconforme ao que havia sido declarado em inquérito. Relativamente aos depoimentos das testemunhas de defesa, considerou que a sua referência à liderança da empresa pela mãe da recorrente, “nomeadamente relativamente à contratação de trabalhadores, gestão de produção e relações comerciais, (…) não invalida a presença diária da arguida na empresa, desconhecendo as testemunhas em que concretas circunstâncias eram tomadas as decisões estratégicas da empresa, nomeadamente de decidir, não havendo liquidez suficiente, a que pagamentos se deveria dar prioridade”. A recorrente não concorda com aquelas razões e alega que as declarações da arguida e os depoimentos das testemunhas não permitem chegar às conclusões probatórias extraídas pela Sra. Juiz, por dúvida evidente sobre a veracidade daqueles factos. O Ministério Público, por sua vez, concordando com a sentença, acrescentou que a própria recorrente, nas declarações em audiência, admitiu que tinha a gerência da empresa, ao declarar: “não digo que não, mas quem tinha a última palavra era a minha mãe”. O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei para garantir ao máximo possível que se descobre a verdade histórica e se chega a uma decisão justa. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que assegura uma relação directa de contacto pessoal entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada. Como corolários desse princípio, o juiz de primeira instância deve assistir pessoalmente à recolha de toda a prova na audiência (artigo 328º-A), pode examinar directa e pessoalmente os depoimentos das testemunhas (artigo 348º nº 5) e só pode formar a sua convicção em provas que foram produzidas ou analisadas diante de si em audiência (artigo 355º). Na segunda instância, diferentemente, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização das provas registadas, cuja análise tenha sido sugerida no recurso e outras que se tenham por relevantes, estando dependente do impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova (artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b)). Em regra, portanto, a avaliação imediata e integral da prova em primeira instância obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias de se descobrir a verdade, do que a avaliação, meramente parcial, feita com base na audição ou visualização dos registos de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, como sucede na Relação. Esta diferença de procedimento justifica o princípio de que a reapreciação da prova em recurso não equivale a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição constitucionalmente garantido não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas a possibilidade de fiscalizar e controlar eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial das provas relevantes. A Relação não “julga outra vez”, limita-se a verificar se o tribunal recorrido “julgou bem”; não sobrepõe a sua convicção à convicção do tribunal recorrido, verifica apenas se a essa convicção tem apoio nas provas. Entender o contrário equivaleria a considerar que o legislador teria instituído um sistema ilógico, autorizando uma avaliação sucessiva das provas em dois momentos, mas com ferramentas diferentes, em que, incoerentemente, a decisão final caberia não à instância que avaliou com imediação toda a prova mas sim àquela que apenas a avaliou de forma mediada e parcial e está, por isso, menos apetrechada com os instrumentos necessários para reproduzir a verdade histórica do facto sujeito a julgamento. Não podemos perder de vista também que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º. Isso é válido tanto para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação. Esse princípio coloca a generalidade das provas no mesmo patamar de importância e confere ao juiz uma margem de discricionariedade para as valorar, em vez de o sujeitar a um sistema de provas com importância tarifada e hierarquizada. Mas, como é evidente, discricionariedade não é arbítrio. O exame crítico da prova está vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. A fundamentação da decisão tem de explicitar o percurso intelectual desse exame crítico e do processo lógico-dedutivo que permitiu partir da prova (premissa) para o facto (conclusão), em que o juiz revela as razões porque acreditou numa certa reconstituição histórica plausível do facto e não noutra. Sendo assim, para que haja erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso, é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de certo facto é implausível face às provas, ou então que existem outras hipóteses de verdade também plausíveis que desmentem o facto provado ou o tornam duvidoso. A recorrente afirma que perante as provas analisadas o tribunal recorrido não poderia ter deixado de ficar em dúvida sobre a questão crucial de saber se ela foi a pessoa que na sociedade tomou as decisões criminalmente relevantes e de valorar essa dúvida a seu favor – in dubio pro reo. Está assim em causa a violação do princípio do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece uma presunção de inocência a favor do arguido e, consequentemente, coloca em quem acusa o ónus de demonstrar a culpabilidade. Daqui decorre que a pergunta a que temos de responder não é se a gerente de facto da sociedade arguida era a mãe da recorrente ou outra pessoa qualquer – como alegado na contestação à acusação – mas sim se o Ministério Público apresentou em julgamento provas suficientes para demonstrar, sem dúvida que deva ser valorada a favor a não-prova do facto, que a recorrente foi a pessoa responsável e em que medida pela tomada das decisões criminalmente relevantes. A recorrente impugnou apenas a prova dos factos que basearam a sua condenação pelo crime com dolo directo. Sobre a possibilidade de resultar da prova não uma actuação pessoal e intencional, mas sim uma omissão dolosa do dever de agir, a recorrente nada disse. No entanto, a nós compete-nos verificar essa possibilidade, porque a falta de prova do “mais” não afasta necessariamente a prova do “menos”, ali ainda contido. Ouvimos o registo integral das declarações da arguida e dos depoimentos de todas as testemunhas, prestados oralmente em audiência. O primeiro aspecto que queremos salientar é o de que não nos parece correcta a decisão tomada pela Sra. Juiz de desvalorizar por completo a credibilidade o depoimento da testemunha F…, apenas porque o que disse em audiência pode ser diferente do que teria dito em inquérito[3] e porque o Ministério Público considerou indiciado um crime de falsas declarações. Isso equivale a atribuir às declarações prestadas em inquérito, mas não examinadas em audiência por impedimento legal, como que uma presunção de veracidade que não têm. A credibilidade do depoimento deveria ter sido analisada não apenas à luz daquela contradição – que concedemos ser relevante como indício de falta de credibilidade – mas também à luz do seu conteúdo, do seu valor intrínseco, da sua plausibilidade, tendo em conta o que esta testemunha declarou em audiência. Julgamos que nestas situações o teste da credibilidade do depoimento não se pode ficar pela constatação de ser contraditório com o anteriormente declarado, sobretudo se, como é o caso, o que a testemunha descredibilizada disse em julgamento não difere essencialmente do que disseram todas as outras testemunhas sobre a mesma matéria. Em segundo lugar, a fundamentação da sentença, quando se reporta às declarações da arguida, contém ela própria elementos de alguma dúvida sobre a prova da actuação pessoal e intencional que se considerou demonstrada. No fundo, aquilo que levou a Sra. Juiz a considerar que as declarações da arguida contêm a admissão de que participou activamente nas decisões, não obstante a posição de liderança na sociedade que reconheceu à sua mãe (testemunha D…), foi a dedução lógica extraída do facto de ela ser a gerente formal da sociedade, de “acompanhar” e “conversar” com a mãe e conhecer as dificuldades da empresa, de ter dito que “pagaram” salários e “efectuaram” as retenções mas não “efectuaram os pagamentos” e de serem mãe e filha, trabalharem diariamente na empresa e terem bom relacionamento. Só que, quando analisamos as declarações da recorrente ao detalhe, vemos que existem outros segmentos não mencionados na sentença que apontam no sentido da interpretação contrária, de não se provar uma que foi a recorrente quem pessoalmente tomou a decisão de não entregar à segurança social os salários retidos. A recorrente disse que no seu trabalho na sociedade não tratava “da parte do escritório e da parte da gerência”, que a mãe é que contrata os funcionários, “lida com eles”, “ela é que sabe das contas”, que as decisões do dia-a-dia eram sempre tomadas pela mãe; desconhecia o valor exacto da dívida à segurança social. Pensamos que destas declarações da arguida não se pode extrair de forma inequívoca uma admissão confessória de que participou pessoalmente na tomada das decisões criminalmente relevantes. O segmento referido na resposta do Ministério Público tem quanto a nós um significado diferente do que lhe foi atribuído. O Sr. Advogado da arguida pediu à Sra. Juiz para lhe perguntar se ela “não tomava qualquer decisão na empresa”; a Sra. Juiz estava a perguntar-lhe se “para além das decisões que tomava relativamente à parte de design, também não tomava decisões sobre a melhor maneira… se tinha conhecimento…”, quando foi interrompida pela arguida que disse: “eu não lhe vou dizer, não vou dizer à Sra. Dra. Juiz que não havia ou que não fazia… mas a última palavra é e foi sempre da minha mãe; e não vou dizer que estava ali…, certo? mas realmente a última palavra, a primeira e última foi e é sempre a minha mãe”. No sentido corrente, ter a última palavra é decidir depois de ouvir outra pessoa. O que estava a ser questionado referia-se obviamente à decisão de não entregar à segurança social os descontos feitos nos salários. A arguida não disse que a decisão foi sua, mas do que disse resulta – e isso é relevante – que deu opinião, teve conhecimento, concordou e não se opôs a uma decisão final que não foi sua mas cujo sentido ela conhecia. Assim, embora não concordemos que da resposta da arguida possa concluir-se que admitiu ser a autora dessas decisões, dela resulta a admissão do facto que adiante iremos considerar provado. A testemunha D…, mãe da recorrente, disse de forma clara que era ela e não a filha quem tomava as decisões na empresa – empresa que disse ser o seguimento de outra anterior onde trabalhou com o marido mas que fechou por causa da doença incapacitante dele. Ela é que contratava, despedia, pagava ao pessoal, passava lá os dias; ela é que contactava os clientes no estrangeiro, contratava fornecedores, pagava as madeiras, tratava com os bancos; ela é que decidia se era para pagar às finanças, à segurança social ou aos trabalhadores, ela é que foi à segurança social tentar fazer um acordo de pagamento. Conversava com a filha sobre essas matérias, às vezes dizia-lhe que o dinheiro não ia chegar para pagar tudo mas que para o pessoal tinha de ser, muito embora a decisão fosse dela. A testemunha E… (funcionária da empresa), com interesse para esta parte, disse que depois da incapacidade do marido, a mãe da recorrente é que “praticava actos de gestão” mas a filha não. A filha foi sempre designer. A Dona D… é que dizia “olha vais fazer isto ou vais fazer aquilo, vamos fazer aquilo, vamos fazer assim, mas ela [recorrente] não”; “apesar da idade é ela [Dona. D…] que manda, é ela que entrega, é ela que manda embora, é ela que paga”, é ela que decide a quem pagar; quem tratava dos pagamentos era a contabilidade, com instruções da Dona D…; os salários eram pagos em dinheiro pela Dona D…, em horas em que normalmente a recorrente não estava na empresa; a Dona D… fazia nessa altura o que faz agora: “manda, desmanda, ela anda todo o dia na fábrica”, “dá ordens lá que são precisas”; “não dá cavaco, o que faz está feito”; “em relação a ela ser filha, lá dentro pode ser muito amiga das filhas, mas lá dentro ela é uma empregada e ouve cada raspanete que, e eu também, como os outros”; a Dona D… decide “sozinha” [sobre se ouvia a filha ou decidia sozinha]. A testemunha F… (funcionário da empresa), à pergunta sobre se a recorrente alguma vez lhe deu ordens, declarou que “quem dá essas autorizações é a Dona D…”; se estiver em viagem e precisar de ligar para a empresa liga “para a Dona D… ou para o escritório”; no escritório atende “a Dona D… ou a funcionária”. A testemunha G… (funcionário da empresa) depôs, no que releva agora, dizendo que nem sabia que a recorrente era gerente; a Dona D… é que agia sempre como patroa; mulher de patrão é sempre patroa; a filha não era patroa; a filha trabalhava com eles; tratava dos desenhos dos móveis; depois da morte do Sr. H… quem ficou a mandar foi a Dona D… – a B… não; a Dona D… estava lá sempre, contratava empregados e despedia empregados; a filha era só na parte dos desenhos. Como pudemos ver da breve resenha dos depoimentos prestados em audiência, a prova da tomada das decisões pela recorrente, que a Sra. Juiz considerou admitidas nas suas declarações em julgamento, mas que nós consideramos duvidosas, não foi corroborada pelas testemunhas inquiridas. Como a Sra. Juiz afirmou na sentença, essas testemunhas – exceptuando a mãe – revelaram desconhecimento sobre o processo de tomada de decisões na empresa. Ora, sendo assim, desse desconhecimento não pode extrair-se nem a corroboração nem a negação de que a recorrente tivesse participado, e de que forma, na tomada das decisões penalmente relevantes. A dedução feita pela Sra. Juiz de que a arguida não era apenas gerente de direito mas também de facto, no sentido de que era ela a pessoa que decidia, assenta num raciocínio de plausibilidade, à luz dos critérios da lógica e da experiência, que nos parece claro e racional mas que, a nosso ver, não tem suporte suficiente na prova. Contudo, a prova sustenta plenamente um quadro factual diferente mas contido na acusação: a arguida B… sabia que, por ser gerente da sociedade arguida, estava legalmente obrigada a providenciar para que fossem deduzidas dos salários e depois entregues à segurança social as contribuições que lhe eram devidas, deixou de providenciar pessoalmente para que isso fosse feito, permitiu que terceira pessoa tomasse a decisão de não fazer essa entrega à segurança social e representando que isso iria ocorrer em como consequência necessária da sua omissão. A prova dos factos que acabámos de enunciar decorre com toda a evidência das declarações prestadas pela arguida e do depoimento da sua mãe, quando analisadas de acordo com critérios de razoabilidade e tendo em conta as regras da experiência da vida e do senso comum. A recorrente tinha naquela altura entre 37 e 39 anos. Era uma pessoa com formação superior. Sabia que era gerente da sociedade. Falava com a mãe sobre esses assuntos. Portanto, não podia ignorar os deveres legais que sobre si impendiam, de, nessa qualidade, estar obrigada a providenciar pelo cumprimento das obrigações tributárias para com a segurança social. Não se tratava, portanto, de uma “testa de ferro” da mãe ou de uma mera “gerente no papel” que desconhecesse as suas obrigações de gerência da sociedade. Tinha, portanto, sem dúvida consciência do seu dever de agir para evitar a omissão que a lei considera crime. Ora, se sabia isso, a verdade é que permitiu, com a sua inacção, que a sua mãe tomasse as decisões de não proceder à entrega dos montantes devidos à segurança social, sabendo que isso ocorreria necessariamente em resultado dessa sua inacção, uma vez que discutia esse assunto com a mãe e sabia das decisões que ela estava a tomar. Conclusão diferente seria artificiosa e ofensiva das regras da experiência. 3.3.4 Em face do que acabámos de afirmar, há que alterar a matéria de facto relevante para a decisão, em conformidade com o disposto no artigo 431º al. a), corrigindo os segmentos que considerámos não provados e provados diferentemente por erro de julgamento. E assim, a base factual da sentença é alterada nos seguintes termos: Facto 2: Provado que à data dos factos que se irão descrever, a gerência de direito da sociedade arguida era exercida pela arguida B…- Não provado que à mesma data a arguida B… fosse a pessoa responsável por toda a actividade da sociedade, actuando sempre em nome e no interesse “C…, Lda”, decidindo sobre os destinos da sociedade arguida, nomeadamente, a afectação dos meios financeiros necessários aos pagamentos devidos ao Estado a título de contribuições sociais. Facto 3: Provado que nesse período outra pessoa era responsável pelo preenchimento e entrega mensal ao Centro Regional de Segurança Social do Porto das folhas de renumeração pagas pela arguida sociedade aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, bem como pela dedução e entrega – em nome desta – do montante relativo às contribuições efectivamente deduzidas naquelas renumerações e entregues pela sociedade com a sua própria contribuição, nos termos e prazos legalmente previstos. Não provado que fosse a arguido B… a pessoa responsável pelas decisões referidas no parágrafo anterior. Facto 4: Provado que nos períodos de Janeiro de 2007 a Março de 2009 e Maio de 2009 a Agosto de 2012, a sociedade arguida cuja gerência era exercida pela arguida B…, efectuou o desconto nos salários dos seus trabalhadores e dos membros dos órgãos estatuários das contribuições legalmente devidas por aqueles à Segurança Social, nos termos estipulados no artigo 56º e 59º, nº1 da Lei 4/2007, de 16.01, descontos esses que perfizeram a quantia de € 76.437,76, acrescida dos respectivos acréscimos legais; Não provado que a arguida nesse período exercesse a gerência de facto – trata-se de uma expressão conclusiva, cujo significado corrente é contrário ao que se provou. Facto 5: Porém, após ter descontado e retido aquelas contribuições, a sociedade da arguida, em todo o período atrás discriminado – não obstante ter preenchido e enviado as folhas de renumeração aos serviços de Segurança Social nos meses em referência, de acordo com o disposto no artigo 4º do DL 103/1980 e artigo 1º, nº2 do DL 106/2001 (até Dezembro de 2010) e artigo 40º da Lei nº 110/2009 (a partir de Janeiro de 2011) - não procedeu à entrega dos montantes respectivos à Segurança Social, relativamente às contribuições anteriores a 2011, até ao dia 15 do mês seguinte àquele que as mesmas respeitavam (artigo 5º do DL 103/80 e artigo 10º, nº2 do DL 199/99), e a partir de Janeiro de 2011 entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitam (artigo 43º da Lei 110/2009), nem nos 90 dias imediatos após aquelas datas, nos termos definidos no artigo 105º, nº4, al. a) do RGIT; Não provado que o descrito no parágrafo anterior tivesse ocorrido por determinação nesse sentido da segunda arguida B… nem que a apropriação das importâncias respectivas em proveito da sociedade tivesse sido decidida por essa arguida; Facto 6: Provado que nos meses em questão, a sociedade arguida efectuou o desconto, nos salários dos seus trabalhadores e dos membros dos órgãos estatuários, das contribuições legalmente devidas por aqueles á Segurança social, mas não procedeu à sua entrega naquela instituição, conforme se alcança dos mapas de valores de fls. 54 a 58. Não provado que o descrito no parágrafo anterior tivesse sido feito através da segunda arguida. Facto 9: Não provado que a segunda arguida tivesse actuado de comum acordo e em conjugação de esforços, exprimindo ou vinculando a vontade da referida sociedade, primeira arguida e procurando a satisfação dos interesses da mesma. Facto 10: Provado que a arguida B… sabia que, por ser gerente da sociedade arguida, estava legalmente obrigada a providenciar para que fossem deduzidas dos salários e depois entregues à segurança social as contribuições que lhe eram devidas, deixou de providenciar pessoalmente para que isso fosse feito, permitiu que terceira pessoa tomasse a decisão de não fazer essa entrega à segurança social e representando que isso iria ocorrer em como consequência necessária da sua omissão. Não provado que a mesma arguida tivesse a vontade livre e a perfeita consciência que ficava na situação de fiel depositária desses valores que assim passaram a pertencer aos cofres do Estado, perante quem se constituía, em nome em representação daquela sociedade, na obrigação legal de os entregar nos prazos e locais previstos na lei, apesar na lei, apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançou, para si e para a sua representada um indevido e ilegítimo beneficio patrimonial, não permitiu à Segurança Social o devido recebimento de tais contribuições, delas se apoderando. Facto 11: Provado que a arguida B…, nos termos referidos no facto 10, ao não agir, o fez de forma livre, voluntária e consistente, com noção do carácter periódico e, por isso, repetindo, do vencimento e possível incumprimento de tais obrigações, embora sendo certo que as apropriações dos valores respeitante foram executadas dentro da especificidade do seu procedimento burocrático, de forma essencialmente idêntica, num horizonte temporal delimitado, com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização, e num quadro circunstancial de solicitações e oportunidades também basicamente inalterado, repetido e facilitador da sucessão criminosa. Facto 12: 12. A arguida sabia que a falta de entrega das referidas deduções à segurança era proibida e punida por lei. 3.4 Análise das questões de direito A recorrente foi condenada pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto nos artigos 105º e 107º do RGIT, praticado com dolo directo. A Sra. Juiz analisou na sentença recorrida de forma detalhada os traços gerais da incriminação ali prevista e subsumiu correctamente os factos ao crime continuado. Esta é de resto matéria que não suscita controvérsia no recurso. Temos no entanto de verificar se a alteração da matéria de facto provada tem impacto no enquadramento jurídico. O problema essencial, como é evidente, está agora na questão de saber se a recorrente, sendo gerente de direito, mas não se tendo provado que tomou pessoalmente as decisões imputadas na acusação, deve ser responsabilizada criminalmente. A recorrente indicou vários Acórdãos das Relações em que se decidiu que a responsabilização criminal dos gerentes da sociedade por este crime de abuso de confiança pressupõe o exercício, de facto e efectivo do cargo de gerente. É esse o sentido maioritário da jurisprudência. No Acórdão do TRG, de 11MAI15, com citação de outra jurisprudência e doutrina, fundamentou-se a decisão nesse sentido afirmando que “o preenchimento do tipo legal pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efectiva de administração da sociedade comercial e só pode ser responsabilizado criminalmente quem, na ocasião em que não foi entregue a prestação tributária retida ou deduzida, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária. Daí que a qualidade de “gerente” no sentido formal, mesmo que com um conhecimento da situação de incumprimento, seja insuficiente para a imputação do crime de abuso de confiança fiscal e se torne necessário demonstrar que esse gerente ou administrador de direito tinha o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa”[4]. No Acórdão do TRE, de 20OUT2015, também com citação de outras fontes doutrinárias, fundamentou-se a decisão assim: “a ocupação do lugar de gerente de uma sociedade (de gerência compartilhada), não seria por si só determinante da responsabilidade penal pelos crimes cometidos no seio dessa sociedade”. Acolhendo a sentença recorrida, transcreveu-a em parte: “a existência de uma situação de administração de direito, regularmente constituída e inscrita no registo comercial, não determina, sem mais, a responsabilização da pessoa singular que figure no registo nessa qualidade, pese embora, bem o sabemos, possa constituir presunção de desempenho efectivo do cargo, por força do art. 11º do CRC”[5]. Não vemos razão para não acompanhar essa jurisprudência maioritária. Só que no caso em apreço, não nos parece que a questão se resolva à volta deste problema da “gerência de facto” e da “gerência de direito”. O artigo 6º do RGIT, em linha com o que dispõe o artigo 12º do Código Penal (CP), quando define os pressupostos da responsabilidade criminal de quem actua ou deixa de actuar como titular de um órgão de pessoa colectiva, refere à cabeça o elemento da voluntariedade. Ora, ao se exigir que a acção ou omissão típica seja voluntária, a lei afasta a responsabilidade objectiva do gerente da sociedade decorrente da relação jurídico-funcional com a mesma. A voluntariedade em que se fundamenta a responsabilidade criminal pressupõe a existência de uma relação de facto entre o agente do crime – que pode ser o gerente da empresa ou outra pessoa que exerça a gerência de facto naquela concreta decisão – e o bem jurídico protegido. Uma pessoa não pode ser criminalmente responsável pela simples circunstância de ser gerente da sociedade mas sim pelas acções ou omissões em que incorre dolosamente nessa qualidade. Estamos na presença de um crime omissivo próprio[6], em que o evento típico consiste na violação do dever de agir imposto por lei. A omissão dolosa, por uma qualquer das modalidades do artigo 14º do CP, reside na vontade consciente de abstenção da actividade devida, no conhecimento da possibilidade de verificação do resultado típico e na aceitação intencional ou necessária desse resultado, ou na mera conformação com a sua produção. Ao gerente da sociedade compete agir com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, para cumprir as obrigações legais que lhe são impostas. Daí decorre que será responsável se o ilícito criminal for praticado por outra pessoa, mas em virtude da omissão dos seus deveres de vigilância ou controlo (artigo 11º nº 1 do CP). No caso, como o crime tem natureza dolosa, a responsabilização do gerente exigirá que essa omissão seja imputável dolosamente e não apenas por negligência. A arguida recorrente, ao conhecer as suas obrigações de gerente, sabia que tinha de agir para que as importâncias devidas à segurança social fossem entregues. Omitiu essa acção e deixou de providenciar pessoalmente para que a entrega devida fosse feita. Permitiu que terceira pessoa tomasse a decisão de não entregar à segurança social as importâncias devidas, o que representou como consequência necessária da sua inacção. Sendo assim, o crime foi praticado, tal como decidido na sentença recorrida, mas com dolo necessário e não directo. Muito embora isso não tivesse sido pedido no recurso, pensamos que a condenação com dolo necessário e não eventual tem de reflectir-se na pena. Um pedido de absolvição por falta de prova dos factos incriminatórios tem implícita a pretensão subsidiária de condenação em pena menor se a matéria de facto for alterada para menos, embora não tanto como pedido a título principal. A recorrente foi condenada na pena de 200 dias de multa, à razão diária de 10 euros. O único aspecto em que é possível alterar os pressupostos que determinaram a fixação da pena é na aplicação do resultado da modificação dos factos relativos ao dolo. No mais, a decisão recorrida não foi questionada no recurso e tem de se manter. A intensidade do dolo é um dos critérios de fixação da pena previstos no artigo 71º nº 2 al. b). A omissão com dolo necessário representa uma forma menos grave de evento ilícito do que a omissão com dolo directo. Por isso, a pena deve sofrer uma redução. No entanto, essa redução é muito ligeira, visto que este factor é apenas um entre muitos que foram considerados e não é sequer o mais importante. A pena de multa será assim reduzida para 180 dias. Em conclusão, o recurso é parcialmente procedente, embora por razões diferentes das peticionadas, e a sentença é modificada nos termos que referimos, quer na matéria de facto quer na medida da multa. Não há lugar ao pagamento de custas criminais, visto que o recurso obtém provimento parcial. 4. Decisão Pelo exposto, acordamos em conceder provimento parcial ao recurso e em modificar a sentença recorrida nos seguintes termos: - A matéria de facto provada e não provada é alterada em conformidade com o que consta na fundamentação deste acórdão; - A multa em que foi condenada a arguida B… é reduzida para cento e oitenta dias; - Toda a parte dispositiva da sentença não afectada pelo referido nos dois parágrafos anteriores se mantém. Sem custas. Porto, 12 de Outubro de 2016 Manuel Soares João Pedro Nunes Maldonado _____ [1] Referem-se a este código todos os preceitos legais referidos doravante sem outra indicação. [2] DR 183, Série I, 23SET2014. [3] É uma possibilidade que aceitamos mas não confirmamos porque não podendo tais declarações ser consideradas no julgamento optámos por não as ler sequer. [4] http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/3f40c58909c0f19d80257e4c0033c171?OpenDocument [5] http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/142c0a76dffc21d280257ef200402b92?OpenDocument&Highlight=0,1650%2F12.8TASTB.E1 [6] Esta qualificação tem sido a acolhida pela jurisprudência. Ver, por exemplo, os acórdãos TRC 24ABR2013 e TRC 6JUN2010, nas ligações que seguem: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c296a72bd3adaa8080257b6500370e7d?OpenDocument http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/941346cd8c56b181802577cf004eb341?OpenDocument |