Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3419/21.0JAPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CRIME
BURLA INFORMÁTICA
CRIME DE FALSIDADE INFORMÁTICA
CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONCURSO EFETIVO DE CRIMES
Nº do Documento: RP202511053419/21.0JAPRT.P2
Data do Acordão: 11/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NÃO CONHECER DO RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA QUANTO À NULIDADE SUSCITADA E, NO MAIS, NEGAR-LHE PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: Atenta a diversidade de bens jurídicos protegidos verifica-se um concurso efetivo entre o crime de burla informática (art.221º, nº1, do Código Penal), o crime de falsidade informática (art.3.º nº1 e 2, da Lei n.º 109/2009, de 15/09) e o crime de acesso ilegítimo (art.6.º nº1 a 3, da cit. Lei n.º 109/2009).

(Sumário da responsabilidade do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3419/21.0JAPRT.P2

Relator

João Pedro Pereira Cardoso

Adjuntos

1 Isabel Namora

2 Carla Carrecho

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


1. RELATÓRIO

Após realização da audiência de julgamento no Processo 3419/21.0JAPRT, do Juízo Local Criminal de Valongo - ..., foi proferida sentença inicial que julgou improcedente a acusação pública deduzida contra os arguidos AA, BB e CC, em consequência os absolveu dos crimes que lhes vinham imputados, bem assim dos pedidos de perda de vantagens patrimoniais e de indemnização civil.

Desta sentença recorreu o Ministério Público, na sequência do que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/01/2025 decidiu modificar a decisão sobre a matéria de facto e ordenar “o reenvio do processo à 1ª Instância, para reabertura da Audiência restrita ao apuramento de factos referentes ao percurso e condições de vida dos 3 arguidos, e respectivos antecedentes criminais, para em conjugação com os já considerados provados, depois se proceder à respectiva qualificação jurídica, e determinação da espécie e medida da pena, assim como à apreciação do Pedido de Indemnização Civil, formulado pelo DD”.


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Nessa decorrência, por sentença de 26/03/2025, foi decidido, além do mais condenar a arguida AA:

i. Pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de burla informática, previsto e punido pelo art.221º, nº1, do Código Penal (por lapso escreveu-se no dispositivo da sentença o art. 217.º, n.º 1 do Código Penal), na pena parcelar de 6 (seis) meses de prisão;

ii. Pela prática de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art. 3.º n.º s 1 e 2 da Lei n.º 109/2009 de 15/09, na pena parcelar de 3 (três) meses de prisão;

iii. Pela prática de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 6.º n.º s 1 a 3 da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro, na pena parcelar de 2 (dois) meses de prisão;

iv. Em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto nos arts. 50.º e 51.º do Código Penal, se suspende pelo período de 16 (dezasseis) meses, subordinada ao dever de pagamento a DD da quantia de € 1.000,00 (mil euros), na íntegra ou a título fraccionado durante o referido período de suspensão [correspondente à parcela de capital infra que integra o pedido de indemnização civil].


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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a arguida AA, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes:
“conclusões”, que se sintetizam:

1. - Entende a arguida AA que a sentença padece vícios que versam matéria de facto e de direito, a saber: iii – erro notório na apreciação da prova e o princípio in dubio pro reo; iv – da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. 410º nº2, al. a) código processo penal v– nulidade da sentença por falta de fundamentação; vi- erro da qualificação jurídica; vii- da medida da pena; viii – da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.

2. - A Arguida foi condenada em autoria material e concurso efectivo, de um crime de burla informática, previsto e punido pelo arts. 217.º, n.º 1 do Código Penal (acreditamos que houve lapso de escrita e se devia ler art. 221º n.º1 conforme consta da douta acusação pública) na pena parcelar de 6 (seis) meses de prisão; pela prática de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art. 3.º n.º s 1 e 2 da Lei n.º 109/2009 de 15/09, na pena parcelar de 3 (três) meses de prisão; pela prática de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 6.º n.º s 1 a 3 da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro, na pena parcelar de 2 (dois) meses de prisão, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto nos arts. 50.º e 51.º do Código Penal, se suspende pelo período de 16 (dezasseis) meses, subordinada ao dever de pagamento a DD da quantia de € 1.000,00 (mil euros), na íntegra ou a título fraccionado durante o referido período de suspensão [correspondente à parcela de capital infra que integra o pedido de indemnização civil].

3. - Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, tendo em consideração as regras da experiência e a lógica comuns, não poderiam ter ocorrido. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, percetível pela mera leitura do texto da decisão.

4. - Em primeiro lugar, é afirmado na Douta Sentença que “uma pessoa de sexo masculino não concretamente identificada, agindo a mando e no interesse dos arguidos AA, BB e CC” contactou telefonicamente o aqui Ofendido e que “os arguidos, em conjugação de esforços e de vontades e na concretização de um plano previamente delineado, fizeram, assim, (...)”.

5. - Neste primeiro ponto, destaca-se a falta de lógica ou substância do afirmado, pois para afirmar a existência de um plano é necessário apurar de que plano se trata. Mas não só, um alegado plano, tem de ter sido formado em data minimamente concreta e com contornos minimamente determinados. Ainda assim, apesar da total falta de informação apurada, não se imiscuiu o Douto Tribunal de dar como provada a sua existência, o que nos surpreende.

6. - Mais afirma o douto Tribunal que os arguidos agiram em conjugação de esforços e de vontades, não se percebendo como é que o mesmo pode chegar a tal conclusão, não tendo a Arguida AA qualquer ligação com os restantes Arguidos. Sendo que, o único facto possível de ligação é terem recebido um montante indevido na sua conta bancária ... o que não se compreende!

7. - O Tribunal a quo dá como provado que quem efetivamente efetuou a chamada de contacto com o Ofendido, quem acedeu aos seus dados, solicitando-lhe a indicação do IBAN e NIF, quem pediu os códigos necessários para as transferências bancárias e quem as concretizou foi um foi uma pessoa do sexo masculino não concretamente identificada.

8. - Contudo, nos pontos 8 a 14 da douta Sentença, afirma perentoriamente que foram os Arguidos que tiveram os atos executórios.

9. - Ora, tal matéria de facto dá-se como provada, sem se perceber bem como, atendendo à escassa fundamentação da Decisão, pelo simples facto da Arguida ser o titular da conta bancária de destino, onde efetivamente foram recebidas as quantias oriundas da conta bancária do Ofendido.

10. - Quando na verdade tal factualidade só constitui um indício, o que não comporta a segurança jurídica necessária para uma condenação!

11. - E aqui reside a base da Acusação e a base da Decisão quanto à Arguida. É verdade que a conta bancária era titulada pelo Recorrente, não o pode negar, nem o tentou.

12. - Aliás, a Recorrente prestou declarações, contribuindo para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, contando a sua versão dos factos, tendo numa primeira decisão a mesma colhido!

13. - Disse esta a Arguida que “ (...)que abriu a conta bancária de destino de duas das transferências bancárias em causa em benefício de um seu tio cujo paradeiro lhe é desconhecido (...)”

14. - Com o devido respeito, não pode o douto Tribunal afirmar que “Os arguidos, como é óbvio, tiveram conhecimento dessas transferências, sabiam que as mesmas não lhe eram devidas, e não procederam à devolução do dinheiro — como o faria qualquer pessoa média, ou «de bem» — sendo lícito concluir-se que o gastaram em proveito próprio. (...)”

15. - Não logramos compreender como pode o douto Tribunal ter chegado a esta conclusão?!

16. - Pois, o mesmo desconhece, pelo menos não há prova nesse sentido, se à data dos factos a Recorrente tinha o acesso à sua conta bancária ... Se foi a própria Recorrente que procedeu ao levantamento da referida quantia... Se a Recorrente tinha acesso ou disponha do seu cartão de multibanco...

17. - Baseando-se apenas e mais uma vez em presunções e meros indícios!

18. - Na verdade e segundo a versão da aqui Recorrente e do outra Arguida, estes apenas tiveram conhecimento do recebimento das transferências bancárias para a suas contas aquando confrontados com os presentes autos, tendo a aqui Recorrente tentado obter o dinheiro junto do seu Tio, de modo a ressarcir o aqui Ofendido, bem como refere a douta decisão posta em crise, “a arguida AA sustentado o inêxito das suas tentativas no sentido de encontrar o seu referido tio”.

19. - Destaca-se igualmente que, afirmar que a Recorrente cometeu os factos pelos quais foi condenada, e ainda assim enviou o produto do ilícito para uma conta bancária por si titulada, é no mínimo contrário às regras da experiência e normal acontecer das coisas.

20. - Tendo em conta que não foi apurado os contornos da introdução dos dados bancários na aplicação MBWAY, nem do alegado plano previamente acordado, nem tampouco quem terá requerido e acedido aos dados informáticos, somente suportando a decisão no facto de a Arguido ser o titular da conta bancária onde foram recebidos os montantes indevidos, jamais poderia ser imputado ao mesmo os crimes de falsidade informática e de acesso ilegítimo. Pelo que, a nosso ver, assiste-se no caso vertente, a uma latente ausência de prova contra a ora Recorrente.

21. - Face ao exposto, julgamos ser pertinente sublinhar que a douta Sentença contempla de forma deveras evidente, um vício de erro notório de apreciação da prova e paralelamente uma violação do princípio constitucionalmente consagrado - in dubio pro reo.

22. - O vício de erro notório na apreciação da prova consagrado no artigo 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal, constitui um vício da sentença/Acórdão cuja verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do artigo 426.º n.º 1 do mesmo diploma.
IV – DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA

23. - Urge especificar os factos que o Tribunal a quo apesar de ter indagado e conhecido, na realidade, não indagou na sua plenitude e consequentemente, não conheceu, podendo e devendo fazê-lo. Quer isto dizer, que faltam factos necessários para a decisão e não foi levada a cabo a indagação a respeito destes quando podia e devia ser feito.

24. - Tal verifica-se no caso sub judice, pois, pese embora, o Tribunal a quo se tenha pronunciado relativamente às circunstâncias que depõem contra a Arguida, já não o fez quanto às que o beneficiam, determinando assim a moldura penal concreta com base em circunstâncias negativas e fazendo uma incorreta aplicação do disposto no art. 71.º do Código de Processo Penal.

25. - Atente-se à página 24 da douta Sentença que nos diz que, “(...) distinção acima perfilhada prende-se com a existência de antecedentes criminais, sendo que os CRC dos arguidos BB e CC, reconhecedores do seu comprometimento com a prática de crimes em sede de relatório social, nenhuma condenação judicial têm averbada, donde, a necessária ilação do decurso de vários anos sobre a sua comissão, ao passo que a arguida AA conta com duas condenações recentes, pela prática dos mesmos ilícitos por que ora se encontra a ser julgada, em ambas as situações lhe tendo sido infligidas penas de prisão suspensas na sua execução, uma subordinada a regime de prova e outra ao cumprimento de dever.(...)”

26. - Ora, para a douta Decisão apenas somente revelou o registo criminal da Arguida, não invocando ou mencionando qualquer facto que a ela beneficie.

27. - Com o devido respeito, o que pretendemos dizer é que, não é possível determinar a pena justa ao caso concreto se os factores positivos e negativos das circunstâncias do caso, bem como os factores endógenos do Recorrente não forem totalmente levados em conta. Quando se determina uma pena com base em dois depoimentos, em alguma prova documental e no registo criminal, não se respeita os mais basilares direitos de defesa da Arguida.

28. - O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art. 410º nº 2 al. a) do CPP, constitui um vício da Sentença/Acórdão cuja verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º nº 1 do CPP.
V – NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

29. - O Tribunal recorrido foi parco na sua fundamentação relativamente a parte da factualidade dada como provada, pois é omissa relativamente a alguns motivos que fundamentam a decisão.
VI – ERRO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
30. - Em primeiro lugar, urge desde logo salientar que, é do nosso entendimento, que estamos perante um evidente caso de concurso aparente de crimes.

31. - De facto, e de acordo com a Decisão – que conforme devidamente explanado supra discordamos -, os factos em causa consistiram em enganar um terceiro, levando-o a fornecer dados que permitiriam aceder à sua conta bancária.

32. - Ora, em última análise, estamos perante um crime de burla informática em concurso real com o crime de falsidade informática.

33. - Assim, é necessário salientar que, a terem existido os factos tal qual descritos na Douta Acusação e posterior Decisão, os mesmos tiveram a sua génese numa única e mesma resolução criminosa. Isto é, o autor ou os autores dos factos pretenderam apoderar-se de uma determinada quantia pecuniária pertencente a um terceiro.

34. - Para realizar tal intento, e por via aparentemente ludibriosa, forneceram falsas informações ao ofendido, que acreditando, forneceu por engano, o acesso à aplicação MBWAY.

35. - Ora, com o devido respeito, não logramos alcançar como se pode verificar in casu os crimes de acesso ilegítimo e falsidade informática, por considerarmos que os mesmos estão abrangidos pela possível burla informática.

36. - Em segundo lugar, e retomando o caso concreto e os argumentos supra explanados, reforçamos que inexiste prova sólida de que a Arguida tivesse integrado um qualquer plano criminoso, que tivesse a disposição sobre a sua conta bancária/cartão de multibanco e que tenha sido o próprio a proceder ao levantamento, com ou sem proveito económico.

37. - Neste sentido, e ainda que o Douto Tribunal ad quem entenda pela culpabilidade do próprio, estaremos, em abstrato, perante um único crime de receptação, p. p. pelo artigo 231.º, nº1, do Código Penal.

38. - Assim, em abstrato, da prova latente nos autos, encontram-se preenchidos quer o elemento objetivo quer o elemento subjetivo do referido ilícito criminal.

39. - Pelo que, o Recorrente, a ser condenado, apenas lhe poderia ser imputado tal crime, o que se pugna.

VI – DA MEDIDA DA PENA

40. - Aqui chegados, importa atentar na questão atinente à dosimetria da pena de prisão aplicada ao Recorrente, que considera que o Tribunal a quo além da sua injustificável severidade, tendo em conta as circunstâncias do caso, não levou em conta as suas condições pessoais, nos termos do art. 71° nº 2 do Código Penal, nem fez correta aplicação dos artigos 40º nº 1 e 2, 70º e 50º nº 1 do Código Penal.

41. - A este propósito, o Tribunal a quo, só referiu e considerou circunstâncias que, no seu entender, depõem contra a Arguida.

42. - A Arguida à data dos factos tinha 20 anos de idade, tendo atualmente 24 anos.

43. - Possui enquadramento habitacional, social e familiar.

44. - Vive com a seu marido e quatro filhos menores, a seu cargo, com 2, 4, 6 e 8 anos de idade.

45. - Tem uma condição socioeconómica carente, encontrando-se, juntamente com a mulher, desempregado, sobrevivendo atualmente com ajudas do Estado.

46. - Frequentou o ensino até ao 6.º ano de escolaridade.

47. - A família da Arguida é bem vista por toda a vizinhança e conhecidos pela postura de seriedade, responsabilidade e capacidade de trabalho, que sempre tiveram, sendo pessoas de bem. Pelo que, a condenação que ora se recorre é humilhante no contexto sócio - familiar em que se insere.

48. - No caso em apreço, com o devido respeito – que é muito - parece-nos que esta medida está a ser aplicada como uma opressão desnecessária, pelo que se apresenta manifestamente injusta.

49. - Os factos em causa ocorreram em agosto de 2021, isto é, há mais de quatro anos. O Recorrente tem demonstrado um comportamento exemplar e conforme com o Direito neste hiato temporal.
VIII – DA APLICAÇÃO DA LEI N.º 38-A/2023, DE 02 DE AGOSTO:

50. A 1 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto, que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

51. - Assim, segundo o artigo 2.º, n.º 1 do diploma, está abrangido pelo denominado perdão de penas as sanções penais relativas a ilícitos praticados até as 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, determinando que a facha etária abrangida é a compreendida entre os 16 e os 30 anos de idade ao momento da prática dos factos.

52. - A Arguida ao momento da prática dos factos tinha 20 anos de idade.

53. - Assim, facilmente se observa que, quanto aos crime de falsidade informática e acesso ilegítimo, por estarem tipificados na Lei do Cibercrime, encontram-se excluídos da abrangência da referida lei, por força do artigo 7.º, n.º 1, al. f), vii).

54. Todavia, já quanto à burla informática e nas comunicações, da análise atenta do artigo 7.º da lei, não se encontra previsto tal ilícito como excecionado da aplicação, motivo pelo qual se aplica in casu.

55. - Segundo o artigo 3.º, n.º 1 da Lei 38.º-A/2023, de 02 de agosto, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos. Mais diz o n.º 3 do mesmo artigo pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena e o n.º 4, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

56. - Ora, atendendo que a Recorrente foi condenada pelo crime de burla informática, na pena parcelar de 6 (seis) meses de prisão e em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto nos arts. 50.º e 51.º do Código Penal, se suspende pelo período de 16 (dezasseis) meses, salvo melhor entendimento, caso se mantenha a condenação nos exatos termos, deve a mesma ser perdoada.

57. - Contudo, se o douto Tribunal ad quem for do entendimento que a ora Recorrente deve ser condenada num crime de recptação, deve ter em atenção que o referido ilícito não está excluído da Lei 38.º-A/2023, de 02 de Agosto.

58. - Face ao exposto, consideramos que, a condenação do caso sub judice para além de se apresentar contrária aos princípios e aos fundamentos legais e constitucionais expostos, constituiu uma opressão desnecessária dos direitos da Arguida, pelo que se apresenta manifestamente injustificada, severa, excessiva e injusta.

59. - Atendendo a todos os elementos suprarreferidos e carreados nos autos, consideramos arguida AA, não cometeu os crimes que lhe foram imputados, devendo o mesmo ser absolvida!! porém, se assim não for entendido – o que por mero raciocínio académico se equaciona-, deve ser o arguida condenado pela prática de um receptação, previsto no artigo 231.º do código penal, condenando-o em pena de multa, perdoada ao abrigo da lei 38.º-a/2023, de 02 de agosto, que garantirá, de forma cabal, o cumprimento das necessidades de prevenção geral e especial do caso concreto”.


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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o mesmo deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.

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Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal [1]).

Posto isto,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal:
1. Da nulidade por falta de fundamentação
2. Da impugnação restrita: erro notório na apreciação da prova; violação princípio in dubio pro reo; insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
3. Erro da qualificação jurídica;
4. Da medida da pena;
5. Da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.


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Com relevo para a resolução da questão objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
Matéria de facto provada:

1. “Em 28/08/21, pessoa de sexo masculino não concretamente identificada, agindo a mando e no interesse dos arguidos AA, BB e CC, fazendo uso do número de contacto telefónico ...94, efectuou uma chamada para DD, mostrando-lhe interesse na aquisição de um capacete de mota cuja venda este anunciara no site OLX pelo preço de € 50,00 (cinquenta euros).

2. Ao que o mesmo, acreditando na sua genuinidade, acedeu, nessa sequência lhe tendo aquele solicitado a indicação do seu IBAN e do seu número de contribuinte para proceder à transferência bancária da referida quantia, dados que lhe foram facultados.

3. Munido dos quais o número de contacto telefónico de DD foi associado à aplicação MBWay, introduzido o seu IBAN  ...69 e demais elementos de identificação e ordenada a transferência de determinadas quantias monetárias para as contas bancárias da titularidade dos arguidos, para esse efeito tendo sido gerados quatro códigos de confirmação, que foram remetidos para aquele número de contacto telefónico.

4. Nessa altura, a mesma pessoa de sexo masculino pediu a DD que lhe comunicasse tais códigos por serem necessários para a realização da transferência bancária do preço de € 50,00 (cinquenta euros), ao que o mesmo, acreditando na sua genuinidade e desconhecendo o funcionamento da aplicação MBWay, acedeu.

5. Conhecedor daqueles códigos, concretizando as seguintes transferências bancárias:

a. No valor de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), para o IBAN  ...23, correspondente a conta bancária aberta no Banco 1..., então titulada pela arguida AA;

b. No valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), para o IBAN  ...23, correspondente a conta bancária aberta no Banco 1..., então titulada pela arguida AA;

c. No valor de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), para o IBAN  ...02, correspondente a conta bancária aberta na Banco 2..., então titulada pelos arguidos BB e CC;

d. No valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), para o IBAN  ...02, correspondente a conta bancária aberta na Banco 2..., então titulada pelos arguidos BB e CC.

6. Posteriormente às quais não mais logrou DD entrar em contacto com aquela pessoa de sexo masculino não concretamente identificada.

7. Quedando-se com um prejuízo no valor global de € 2.000,00 (dois mil euros) que jamais recuperou.

8. Ao actuarem da forma descrita, os arguidos AA, BB e CC conheciam a confidencialidade e pessoalidade do número de telemóvel, do número de conta bancária e dos códigos de segurança de DD, enquanto dados informáticos que utilizaram sem a respectiva autorização e para obter um proveito económico que sabiam não lhes ser devido.

9. Sabiam que a inserção daqueles dados no sistema informático gerava dados informáticos de carácter não genuíno, fazendo uso dos mesmos para realizar, via internet, operações bancárias não verdadeiras, mas com aparência genuína, como se fossem os titulares dos dados informáticos, induzindo, assim, a entidade bancária em erro e causando a DD o prejuízo de € 2.000,00 (dois mil euros).

10. Sabiam, ainda, que, ao actuarem da forma descrita, acediam à conta bancária da disponibilidade de DD, contra a sua vontade, fazendo uso daquele número de telemóvel e dos códigos de segurança, pertencentes aquele, apresentando-se perante terceiros como se fossem DD e conseguindo, dessa forma, concretizar as operações bancárias não autorizadas.

11. Os arguidos tinham também conhecimento que DD não lhes deu autorização para que utilizassem o seu número de contacto telefónico, o número da sua conta bancária e os códigos de segurança para que realizassem as referidas operações bancárias, através das quais, em conjugação de esforços e de vontades, fizeram sua a quantia de € 2.000,00 (dois mil ouros).

12. Assim como que, ao sugerirem-lhe que lhes facultasse o contacto telefónico e o número da sua conta bancária, o contacto telefónico de DD ficaria associado ao número de cartão de débito na disponibilidade do mesmo e ao seu número de telemóvel, o que fizeram na plataforma MBWay, em cujo sistema introduziram dados que lhes permitiram obter acesso à conta bancária a que aquele cartão estava adstrito.

13. Os arguidos, em conjugação de esforços e de vontades e na concretização de um plano previamente delineado, fizeram, assim, crer na plataforma MBWay que o cartão de débito estava a ser utilizado e movimentado pelo seu verdadeiro titular, introduzindo dados erróneos no sistema informático que regula a movimentação de contas através da internet e induzindo em erro a entidade bancária que validou as operações bancárias em causa, acreditando serem legítimas.

14. Os arguidos actuaram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era previsto e punido por lei.


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antecedentes criminais

15. À arguida AA são conhecidos os seguintes antecedentes criminais:

- PCS n.º ... – Juízo (J1) Local Criminal de Viana de Castelo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Condenação, proferida em 19/04/23 e transitada em 22/05/23, pela prática, em Abril de 2020, de um crime de falsidade informática, na forma tentada, três crimes de falsidade informática na forma consumada e três crimes de burla informática e nas telecomunicações, nas penas únicas de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), e de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 2 (dois) anos, subordinada a regime de prova;

- PCS n.º ... – Juízo (J2) Central Cível e Criminal de Portalegre do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre – Condenação, proferida em 11/12/23 e transitada em 08/07/24, pela prática, 01/05/20, de um crime de dois crimes de falsidade informática, dois crimes de burla informática e nas telecomunicações e dois crimes de acesso ilegítimo, na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 2 (dois) anos, sujeita a dever de pagamento.

16. Ao arguido BB não são conhecidos antecedentes criminais.

17. À arguida CC não são conhecidos antecedentes criminais.

Mais se apurou:

18. Como consequência directa e necessária do comportamento perpetrado pelos arguidos, DD experimentou vergonha e vexame por ter sido burlado, o que foi do conhecimento de familiares seus e ainda perdura.


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Do relatório social elaborado acerca das
condições de vida da arguida AA consta que:

19. À semelhança do que ocorria à data dos factos subjacentes à instauração dos presentes autos, reside com o companheiro, com quem estabeleceu relacionamento há dez anos, os descendentes, actualmente com nove, sete, cinco e três anos de idade, e uma irmã da arguida, com dezassete anos de idade, de quem esta é tutora legal desde 2022; o agregado reside numa habitação arrendada, com reduzidas condições de habitabilidade, em área rural e isolada, na cidade de Paredes; a dinâmica familiar foi descrita como funcional, descrição corroborada pela Técnica do SAAS ... que a acompanha há vários anos.

20. Oriunda de um agregado numeroso, marcado pela separação dos progenitores, pela reclusão do progenitor, pela precariedade económica e habitacional, a progenitora e a avó materna constituíram os principais referenciais afectivos da arguida, figuras com quem mantém contacto regular; aos catorze anos de idade iniciou união de facto com o actual companheiro, sendo o relacionamento descrito como afectuoso, coeso e gratificante; a rede social é constituída pelo seu agregado de origem e família alargada, elementos constituintes do seu grupo sociocultural de pertença; no meio onde residem não têm interacção vicinal, dadas as características isoladas da habitação, assim como a sua constante mobilidade no acompanhamento dos descendentes.

21. Com habilitações ao nível do 6.º ano de escolaridade, a arguida não regista qualquer actividade laboral formal, dedicando-se, segundo a própria, juntamente com o companheiro, à venda ocasional porta a porta, de produtos de vestuário e calçado; à semelhança ao ocorrido à data dos factos, ambos os elementos do casal subsistem com base na prestação do RSI, no valor mensal de € 936,50 (novecentos e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos), e das prestações de abono familiar, no montante global de € 681,10 (seiscentos e oitenta e um euros e dez cêntimos) mensais, tendo como despesa fixa a renda da casa, no montante de € 150,00 (cento e cinquenta euros) mensais, e despesas correntes em montantes variáveis.

22. A arguida regista anteriores contactos com o sistema de Justiça, tendo sido condenado pela prática de crimes de natureza idêntica aos presentes autos na suspensão da execução de pena de prisão e em pena de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade, o qual ainda não cumpriu, alegando constrangimentos familiares.

(…)


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Com interesse, não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos.


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2.2. Fundamentação da matéria de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência e da normalidade social, em cujo âmbito sopesou as declarações prestadas pelos arguidos que optaram por prestar declarações, o depoimento protagonizado pela testemunha arrolada em sede de acusação pública / pedido de indemnização civil e os documentos juntos aos autos com pertinência para a descoberta da verdade material e subsequente boa decisão da causa, nos moldes que doravante se expõem, para o que nos permitiremos repristinar o anotado por ocasião do proferimento da sentença original, mas desta feita em concatenação com as considerações tecidas pelo Venerando TRP. *

Assim, e no âmbito da sentença original, quanto às declarações dos arguidos: “A arguida CC fez uso do direito ao silêncio que o seu estatuto processual lhe assegura, apenas os arguidos AA e BB tendo optado por prestar declarações. Ambos recusaram a autoria da factualidade narrada no libelo acusatório, a primeira alegando que abriu a conta bancária de destino de duas das transferências bancárias em causa em benefício de um seu tio cujo paradeiro lhe é desconhecido, ao passo que o segundo aventou que a conta bancária de destino das restantes duas transferências bancárias foi desde sempre movimentada exclusivamente pela sua companheira, a arguida CC. Instados acerca da existência de quantias monetárias que lhes não pertenciam em contas bancárias da sua titularidade, ambos aduziram apenas terem tido conhecimento desse facto quando confrontados com a pendência dos presentes autos, tendo a arguida AA sustentado o inêxito das suas tentativas no sentido de encontrar o seu referido tio e o arguido BB convocado ter-lhe sido admitido pela arguida CC tratar-se de dinheiro proveniente da sua prostituição de rua” (sic). No tocante ao depoimento prestado pela testemunha arrolada em sede de acusação pública / pedido de indemnização civil, DD: “descreveu a série de eventos que culminaram nas quatro transferências bancárias indevidas, a propósito do que esclareceu ter sido contactado por um indivíduo de sexo masculino, que se manteve consigo em chamada telefónica durante o processamento daquelas, tendo sido em virtude dos apelos do mesmo no sentido de não estar a lograr liquidar o preço do capacete, que se foi permitindo facultar código atrás de código sem se aperceber do logro” (sic). Por fim, e quanto à prova documental: “consideraram-se o auto de notícia de fls. 22 e seguinte, a cópia de screenshots de fls. 32 e seguintes, as cópias de documento de movimentos bancários de fls. 38 e de talão de multibanco de fls. 39, as informações bancárias de fls. 59 e seguintes, de fls. 77 e seguintes e de fls. 86 e seguintes, os CRC dos arguidos e os relatórios sociais elaborados pelos serviços da DGRSP juntos aos autos” (sic).


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Entendeu o Venerando TRP: “É, antes de mais, oportuno relembrar que a apreciação da prova em julgamento é — pela natureza das «acções humanas» e porque se pretende reconstituir acontecimentos do passado — necessariamente composta por raciocínios lógico-dedutivos, formulados à luz das regras da experiência comum. Tal como escrevia o Prof. Castro Mendes («Do Conceito de Prova em Processo Civil», Tese de Doutoramento), «a prova são os diversos meios pelos quais a inteligência chega à descoberta da verdade», acrescentava o saudoso Professor que, assim, se poderia dizer «que a actividade do Juiz se equipara à do Historiador» (afirmação que não pode ser tomada à letra, mas, em termos metafóricos, realçando a ideia de que se está a reconstruir o passado). Reforçando esta ideia, temos por exemplo, Montero Aroca («Princípios del Processo Penal», ed. Tirant lo Blanch): «A valoração da prova radica sempre numa operação mental consistente num silogismo em que a premissa menor é uma fonte da prova (uma testemunha, p. ex.); a premissa maior, uma máxima da experiência; a conclusão que é uma afirmação da existência ou não do facto que se pretendia provar». Concretizando, tem-se por assente que o indivíduo que contactou o DD, a pretexto de querer comprar um capacete à venda no «OLX», logrou obter do mesmo o IBAN, número de contribuinte e os códigos de MBWay que foram remetidos àquele, e com utilização desses elementos, foram transferidas, sucessivamente, para as contas bancárias — com utilização, também, dos respectivos números de identificação bancária — para a conta conjunta do BB e da CC, e para uma conta de AA, quantias que totalizaram dois mil euros. Os arguidos, como é óbvio, tiveram conhecimento dessas transferências, sabiam que as mesmas não lhe eram devidas, e não procederam à devolução do dinheiro — como o faria qualquer pessoa média, ou «de bem» — sendo lícito concluir-se que o gastaram em proveito próprio. Em complemento, quem efectuou as transferências tinha de ter conhecimento dos números de identificação bancária dessas contas, tendo necessariamente de ter alguma ligação, ter algum elo com os arguidos (se porventura não foram os próprios a fazê-lo). As «justificações» que os arguidos dão são absurdas, totalmente inverosímeis, para além de toda a lógica. Perante tudo isto, tem de se concluir — não para além de toda a dúvida (é sempre possível cogitar outras hipóteses por mais improváveis que sejam), mas sim para além de toda a dúvida razoável — que o indivíduo que contactou o DD, obteve dele os elementos necessários e procedeu à transferência das quantias em causa para as contas bancárias do BB, da CC e da AA, actuou a mando e no interesse daqueles”.

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Cumpre apreciar.


Da nulidade por falta de fundamentação

A arguida recorrente veio invocar a nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação - art. 374º nº 2, ex vi art.379º, nº1, al.a).

Para tanto alega genericamente que o “Tribunal recorrido foi parco na sua fundamentação relativamente a parte da factualidade dada como provada, pois é omissa relativamente a alguns motivos que fundamentam a decisão”.

Contudo, em torno da aventada violação do dever de fundamentação, a recorrente não específica, na motivação e conclusões do seu recurso, o sentido em que, no seu entender, o tribunal recorrido interpretou e/ou aplicou o art. 374º nº 2, e o sentido em que o devia ter sido interpretado ou aplicado (art.412º, nº2, al.b)), o que inviabiliza o conhecimento do recurso nessa parte.

Nesse sentido, a recorrente não especifica, sequer na motivação, os concretos factos dados como provados, a cuja falta de fundamentação genericamente se refere.

Por conseguinte, não se conhece do recurso nesta parte.


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Da impugnação restrita da matéria de facto

Da insuficiência para a decisão

A arguida recorrente impugna em sentido restrito a decisão sobre a matéria de facto, com fundamento na insuficiência desta.

O vício previsto no art.410º, nº 2, al. a), ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito alcançada na decisão e sempre que o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão final.

O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa pois que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a definição da participação ou modelo de autoria do arguido.

Deste modo, a insuficiência em causa neste vício decisório reporta-se aos factos indispensáveis para a decisão de direito, daí que o vício se considere demonstrado quando a sentença, por si só considerada evidencie que os factos dados como provados não permitiam atingir a decisão de direito a que se chegou. Ou seja, o vício ocorre quando a matéria de facto provada se mostra exígua para fundamentar a decisão de direito, em resultado de o tribunal ter omitido o dever de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

Portanto a insuficiência diz respeito aos factos e não à prova, por isso, o que importa indagar é se a sentença contém falha, hiato ou omissão ao nível dos factos e não se a decisão da matéria de facto tem apoio na prova ou se era exigível ao tribunal produzir ou valorar de forma diversa as provas.

Vistos os factos dados como provados e a decisão recorrida, não existe uma ostensiva incompletude no texto da sentença sobre os factos selecionados com relevantes para determinação da pena, sendo certo que a recorrente tão-pouco os especifica nesta matéria.

Não se verifica, pois, o vício previsto no art.410º, nº2, al.a).


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Do erro notório na apreciação da prova

O erro notório da apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média.

É necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [2].

Sucede que a recorrente invoca a existência de um erro notório de apreciação da prova e paralelamente uma violação do princípio in dubio pro reo em matéria de facto já fixada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.01.2025 proferido nestes autos, transitado em julgado, relativa à participação da arguida recorrente nos factos que lhe são imputados.

A pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto impugnada pela recorrente, colidiria com o caso julgado formado a respeito da questão da participação da arguida recorrente nos ilícitos criminais que lhe são imputados.

No que ao instituto jurídico do caso julgado se refere, embora não regulado expressamente na lei processual penal, o art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, prescreve que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Esta proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos, como efeito processual da sentença transitada em julgado, assenta em razões de segurança jurídica, impedindo que o que nela se decidiu seja atacado quer dentro do mesmo processo (caso julgado formal), quer noutro processo (caso julgado material).

O que se proíbe no comando constitucional que tem o seu enunciado no art. 29º, nº 5 “é o duplo julgamento” “pela prática do mesmo crime” pretendendo evitar a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração e vice-versa.

Não se verifica, pois, o vício previsto no art.410º, nº2, al.c), do Código Processo Penal.

Ergo, improcede nesta parte o recurso.


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Erro da qualificação jurídica

A arguida recorrente foi condenada pela prática, em autoria material e concurso efetivo, dos seguintes crimes:

- um crime de burla informática, previsto e punido pelo art.221º, nº1, do Código Penal (por lapso escreveu-se no dispositivo da sentença o art. 217.º, n.º 1 do Código Penal);

- um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art. 3.º n.º s 1 e 2 da Lei n.º 109/2009 de 15/09;

- um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 6.º n.º s 1 a 3 da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro.

Inconformada, a arguida recorrente veio impugnar a decisão sobre a matéria de direito em relação ao concurso efetivo de crimes, entendendo que a factualidade imputada consubstancia, no limite, a prática de um crime de recetação.

Neste ponto, cumpre aqui recordar que a factualidade dada como provada quanto à integração dos ilícitos típicos imputados à arguida recorrente, resultou do caso julgado formado nestes autos e, portanto, insuscetível de alteração.

Defende a arguida recorrente que os crimes de acesso ilegítimo e falsidade informática estão consumidos pelo crime de burla informática, em concurso aparente de crimes, caso não se entenda que cometeu – isso sim – um só crime de recetação.

Neste sentido, argumenta que os factos imputados à arguida recorrente tiveram a sua génese numa única e mesma resolução criminosa de, por via deles, “apoderar-se de uma determinada quantia pecuniária pertencente a um terceiro”, a integrar no limite o tipo legal de recetação.

Ora, nesta parte, versando a impugnação da recorrente sobre a qualificação jurídica dos factos dados como provados, impunha-se à arguida AA o ónus de especificar, na motivação e conclusões do seu recurso, o sentido em que, no seu entender, o tribunal recorrido interpretou e/ou aplicou os elementos típicos, ilícitos e culposos de cada um dos crimes imputados e o sentido em que os mesmos deviam ter sido interpretados ou aplicados (art.412º, nº2, al.b)).

O incumprimento do referido ónus de especificação, inviabiliza o conhecimento do recurso nessa parte.

Com efeito, a recorrente não específica, sequer na motivação, os concretos elementos constitutivos dos diversos tipos legais de crime pelos quais foi condenada.

Por conseguinte, não se conhece do recurso nesta parte, mantendo-se inalterada a subsunção jurídica da conduta da arguida recorrente em cada um dos tipos legais que lhe são imputados.


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No mais, importa recuperar os ensinamentos vertidos na sentença sobre a caracterização de cada um dos tipos legais de crime.
“3.1.1. Do crime de burla informática

Dispõe o art. 221.º, n.º 1 do Código Penal que quem, com a intenção de obter, para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

Em causa está a protecção do património, globalmente entendido, como bem jurídico autónomo, configurando a incriminação em apreço um ilícito de dano, “cuja consumação dependa da efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial de outra pessoa”, e, do mesmo modo, de resultado, na medida em que apenas se perfectibiliza “com a verificação do «evento» consistente na saída dos bens ou valores da esfera de «disponibilidade fáctica» da vítima”; ademais, encontramo-nos perante um crime de execução vinculada, por referência à “exigência de que a lesão do património se produza através de meios informáticos e, em todo o caso, não se mostre reconduzível ao modus operandi da burla do art. 217.º”, já que se concretiza “num atentado directo ao património (…), que não contempla, de permeio, a intervenção de outra pessoa” (Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, Coimbra Editora, 1999, 329 e seguinte). Revertendo ao tipo subjectivo de ilícito, cumpre notar que, para além do prejuízo patrimonial da vítima, se afigura mister uma actuação com o fito de obtenção, para o próprio ou terceiro, um enriquecimento ilegítimo, nesta circunstância se aludindo a um delito de resultado parcial ou cortado. Assim, “a burla informática consiste sempre num comportamento que constitui um erro consciente provocado por intermédio da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados”, pelo que sequer “se exige um qualquer engano ou artifício por parte do agente, mas sim a introdução e utilização abusiva de dados no sistema informático” (cfr. o Ac. do TRP de 03/02/16, in www.dgsi.pt).

No caso em apreço, resultou demonstrado que os arguidos ainda acederam a dados de conta bancária alheia, tendo vindo a transferir para a dos próprios verbas, provenientes da manipulação informática de dados, no valor global de € 2.000,00 (dois mil euros), que destinaram como se na realidade lhe pertencessem e sem que para tanto estivessem autorizados ou beneficiassem do consentimento por parte de DD. Mais se descortinou encontrarem-se os arguidos, não apenas cientes de que as referidas verbas lhes não pertenciam, mas que, igualmente, com as suas descritas condutas, directa e necessariamente, causavam prejuízos na esfera patrimonial do titular da conta bancária em que se verificou o desfalque, no valor correspondente às transferências efectuadas, desapossado que se viu desses valores e à custa do que empobreceu. Donde, e no que concerne ao animus que presidiu a uma tal actuação, dúvidas não se nos suscitam quanto ao seu dolo, em toda a abrangência supra descrita, tendo visado o prejuízo patrimonial de outrem, concomitantemente com o seu enriquecimento ilegítimo. A este propósito, salientemse os ensinamentos da jurisprudência, de acordo com os quais, “quanto à atitude interior do arguido, o Tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum (…), [sendo] os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infracção, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum (cfr. o Ac. do TRL de 21/02/19, in www.dgsi.pt). Deste modo, e perscrutada a factualidade que logrou a adesão da prova à luz dos ditames da normalidade do acontecer, dúvidas não nos subsistem quanto à intencionalidade que presidiu às condutas, desenvolvida numa actuação livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, por parte dos arguidos.

(…)


3.1.2. Do crime de falsidade informática

Dispõe o art. 3.º, n.º 1 da L. n.º 109/2009 de 15/09 que quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias. De acordo com as definições insertas no antecedente art. 2.º, por “sistema informático”, deve entender-se qualquer dispositivo ou conjunto de dispositivos interligados ou associados, em que um ou mais de entre eles desenvolve, em execução de um programa, o tratamento automatizado de dados informáticos, bem como a rede que suporta a comunicação entre eles e o conjunto de dados informáticos armazenados, tratados, recuperados ou transmitidos por aquele ou aqueles dispositivos, tendo em vista o seu funcionamento, utilização, protecção e manutenção [al. a)] e, por “dados informáticos”, qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função [al. b)].

Não sendo consensual a densificação do bem jurídico visado proteger com a incriminação em apreço, “havendo quem entenda que é a integridade dos sistemas informáticos, pretendendo o legislador, por via desta incriminação, impedir a prática de actos que atentem contra a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade dos sistemas informáticos e dos dados informáticos, bem como a utilização fraudulenta dos mesmos”, assim como quem considere estar em causa “a segurança nas transacções bancárias” ou “a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (…), o que se deve à circunstância de o crime de falsidade informática e o crime de falsificação de documento previsto e punido pelo art. 256.º do Código Penal serem de tal modo semelhantes (apenas se distinguindo quanto ao modus operandi, em que releva a execução pelo meio informático)”, julgamos ser de afirmar ter o legislador visado assegurar “a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (onde se inclui a segurança nas transacções bancárias), embora (…), ainda que de forma meramente reflexa, acabe por tutelar também a integridade dos sistemas informáticos” (Duarte Nunes, O Crime de Falsidade Informática, in Julgar Online, Outubro de 2017, 7 e seguintes, in www.julgar.pt).

Revertendo ao respectivo tipo objectivo, o mesmo é integrado “pela introdução, modificação, apagamento ou supressão de dados informáticos ou por qualquer outra forma de interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou documentos não genuínos, consumando-se o crime apenas com a produção deste resultado”, sendo que, subjectivamente, “o tipo legal supõe o dolo, sob qualquer das formas previstas no art. 14.º do Código Penal, exigindo, enquanto elemento subjectivo especial do tipo, a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, bem como, relativamente à produção de dados ou documentos não genuínos, a particular intenção do agente de que tais dados ou documentos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se fossem genuínos” (cfr. o Ac. do TRE de 19/05/15, in www.dgsi.pt).

No caso em apreço, resultou demonstrado que os arguidos introduziram dados informáticos associados à pessoa de outrem em sistema informático de dados, a saber o número de contacto telefónico e o PIN cujos números foram sugeridos para aceder à plataforma MBWay, desse modo os convertendo em dados destituídos de genuinidade, para lograrem apropriar-se de quantias alheias. Com efeito, tal PIN, introduzido no sistema informático, ficou associado ao cartão bancário de DD, mercê da sua ciência acerca desse desvirtuamento lhes permitindo aceder à respectiva conta bancária e executar as transferências que lhes aprouve. Apurou-se estarem cientes de que, com semelhantes condutas, subvertiam o tratamento de dados pessoais e identificativos, pretendendo fazer-se passar por outra pessoa, para que os demais nisso acreditassem, sabedores de que aqueles dados não eram verdadeiros e não eram os seus, tratando-se de comportamentos adequados a induzir em erro quem se julgasse em contacto com informações e conteúdos autênticos e fidedignos. Em ordem a dar como assente o elemento subjectivo do tipo, novamente se convocaram as premissas da experiência comum e da normalidade do acontecer; mantendo-se intocada a lição jurisprudencial anteriormente expendida, mais poderemos afirmar que “a prova do dolo faz-se, normalmente, de forma indirecta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência, pelo que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente” (cfr. o Ac. do TRP de 15/12/15, in www.dgsi.pt). *

(…)


3.1.3. Do crime de acesso ilegítimo

Dispõe o art. 6.º, n.º 1 da L. n.º 109/2009 de 15/09 que quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. Estatui o seu n.º 2 que na mesma pena incorre quem ilegitimamente produzir, vender, distribuir ou por qualquer outra forma disseminar ou introduzir num ou mais sistemas informáticos dispositivos, programas, um conjunto executável de instruções, um código ou outros dados informáticos destinados a produzir as acções não autorizadas descritas no número anterior, prevendo o respectivo n.º 3 que a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias se as acções descritas no número anterior se destinarem ao acesso para obtenção de dados registados, incorporados ou respeitantes a cartão de pagamento ou a qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento.

Principiando pelo tipo objectivo de ilícito, o mesmo preenche-se com o acesso do agente a sistema informático de qualquer modo, razão pela qual, no que tange à incriminação prevista no n.º 1, se prescinde da utilização indevida de dados como o nome do utilizador, a palavra-passe, o código “PIN” ou quaisquer outros mecanismos de segurança de acesso ao sistema; atestando-se ter sucedido essa usurpação, a incriminação a observar é, diversamente, a plasmada no n.º 3, referente ao tipo de crime agravado. Ora, o acesso é reputado como ilegítimo sempre que o agente se move “num quadro não justificado, visando somente conhecer dados ou informações que não lhe estavam acessíveis [v.g., por via das suas funções profissionais ou prévia autorização do titular dos dados], agindo por motivos exclusivamente pessoais ou particulares”, dispensando o tipo subjectivo de ilícito “qualquer intenção específica (como seja o prejuízo ou a obtenção de benefício ilegítimo), ficando preenchido com o dolo genérico de intenção de aceder a sistema, sem consentimento do seu titular” (cfr. o Ac. do TRG de 12/04/21, in www.dgsi.pt). Deste modo, torna-se legítimo concluir que “o crime de acesso ilegítimo veio, no essencial cobrir a área do que se vem denominando de «hacking informático», conceito sob o qual se agregavam “as condutas que se traduziam na mera entrada ou acesso a sistemas informáticos por «mero prazer» ou «gozo», em superar as medidas ou barreiras de segurança, isto é, sem qualquer (outra) intenção ou finalidade alguma de manipular, defraudar, sabotar ou espionar”, assim se tendo passado a tutelar “a «integridade do sistema informático lesado», a partir de uma ideia nova de «inviolabilidade do domicílio informático»”, assente “na noção de ilegitimidade, consubstanciada na falta de autorização para aceder a um sistema ou rede informáticos ou interceptar comunicações que se processam numa rede ou sistema informático” (cfr. o Ac. do TRL de 07/03/18, in www.dgsi.pt).

No caso em apreço, resultou demonstrado que os arguidos, sem o consentimento do titular da conta bancária em questão, acederam a um sistema informático, para o que usaram PIN sugerido a DD, e, no âmbito desse acesso, fizeram uso de dados registados que lhes possibilitaram imiscuir-se em sistema de pagamento, nessa senda efectuando as transferências e fazendo seus montantes pecuniários que lhes não pertenciam. Na verdade, e dando por reproduzidos os considerandos acima tecidos acerca da distinção intercedente entre as incriminações a que se reportam os n.º s 1 e 3 do normativo legal em apreço, não apenas acederam os arguidos ao sistema informático que regula a movimentação de contas através da internet, como, para o efeito, fizeram uso de PIN em ordem a poder movimentar quantias monetárias, criando a aparência de lhes pertencerem e, como tal, assim poderem proceder. Revertendo ao elemento subjectivo do tipo, e dando por reproduzidas as lições convergentes da jurisprudência acima expostas, outra ilação não é susceptível de ser retirada, no confronto com os ditames da experiência comum, que não a de que os arguidos se encontravam plenamente ciente de todos os contornos da actuação que protagonizaram, sem prejuízo do que se comportaram conforme descrito, representando, querendo e logrando os feitos criminosos em observação”.

Cumpre analisar.

Seguindo a jurisprudência tomada do ac STJ de 27.05.2010 (Henriques Gaspar, no processo 474/09.4PSLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt: “A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.

A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.

Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. JESCHECK e THOMAS WEIGEND, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.).

A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados.

O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de 29/06/2006, proc. nº 1942/06-3ª).”

Dito isto, atendendo à diversidade de bens jurídicos protegidos pelos crimes de acesso ilegítimo, de falsidade informática e de burla informática, e analisando a concreta atuação desenvolvida pela coarguida AA (nos termos dados como provados), desde já se adianta estar correta a condenação da mesma pela prática, como autora material e em concurso efetivo, de um crime de burla informática, previsto e punido pelo art.221º, nº1, do Código Penal, um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art. 3.º n.º s 1 e 2 da Lei n.º 109/2009 de 15/09, e um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 6.º n.º s 1 a 3 da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro.

Na linha da argumentação expendida pelos acórdãos de fixação de jurisprudência emanados pelo STJ [3], a propósito do concurso entre os crimes de burla e de falsificação de documento, se a burla informática se realizou mediante o acesso e a introdução de dados falsos na aplicação MB WAY, tal conduta corresponde igualmente ao cometimento pelo agente do crime de acesso ilegítimo e falsidade informática, havendo concurso efetivo entre o crime de burla, o crime de acesso ilegítimo e o crime de falsidade informática – cfr. RC 24-05-2023 (PAULO GUERRA, processo 84/20.5GBPMS.C1), RE 14-01-2025 (FÁTIMA BERNARDES, processo 248/20.1GDSRP.E1, RP 22-03-2023, LUÍS COIMBRA, 283/20.0PBVLG.P1, www.dgsi.pt

Cada uma destas incriminações tutela bens jurídicos de diversa natureza, não se podendo defender que, nesta situação, existe apenas uma conduta única que esgota a ilicitude típica de todos aqueles crimes.

Com plena aplicação aos crimes informáticos, convoca-se aqui a doutrina sufragada no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 10/2013, de 5/6/2013: «A alteração introduzida pela Lei nº 59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256º do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes».

Também assim ocorre um concurso efetivo entre o crime de burla informática, acesso ilegítimo e o de falsidade informática.

É certo que o acesso e a falsificação constituem o meio, o artifício fraudulento, que permitem a burla.

Mas, no caso, a conduta da arguida recorrente preenche múltiplas normas incriminadoras e os concretos bens jurídicos protegidos pelas várias incriminações são diversos.

A tutela de bens jurídicos diversos, justifica uma punição autónoma, sabido que o legislador acolheu, como critério distintivo da unidade ou pluralidade de crimes, “a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta de um mesmo agente” e não um critério naturalístico em função da unidade ou pluralidade de ações do agente (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, pág. 985).

O critério do crime instrumental ou crime-meio não é bastante para que se possa concluir pela existência de um concurso aparente/legal.

A atuação da arguida recorrente não esgotou a sua danosidade na violação da segurança no acesso a sistema e rede informáticos, redundou também, mediante a criação de documentos de autenticação falsos, num prejuízo patrimonial para o ofendido.

No crime de acesso ilegítimo, o bem jurídico protegido é a segurança dos sistemas informáticos [4].

A este propósito ensina Duarte Rodrigues Nunes: “Começando pelo grau de lesão do bem jurídico, no caso das condutas previstas nos n.ºs 1 e 3 do art. 6.º da Lei n.° 109/2009, a consumação do crime basta-se com a conduta de aceder, de qualquer modo, a um sistema informático (não se exigindo a verificação de qualquer dano em dados informáticos ou em sistemas informáticos nem a efetiva tomada de conhecimento de informações armazenadas no sistema informático acedido), pelo que estamos perante um crime de perigo abstrato. No fundo, o legislador presume (e bem) que tais condutas são passíveis de constituir um perigo para a segurança dos sistemas informáticos, sem, contudo, exigir a criação de um perigo efetivo.” (cfr., citado autor, in Os crimes previstos na Lei do Cibercrime, Gestlegal, 2020, págs. 157 e 158).

Incorre neste crime quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, não sendo atualmente exigível para o preenchimento do tipo, ao nível subjectivo, o dolo específico («intenção de alcançar, para si ou para outrem, um benefício ou vantagem ilegítimos»), bastando-se a previsão do art. 6º, nº1, da Lei 109/2009, com a verificação do dolo genérico.

No crime de acesso ilegítimo pretende-se proteger o “domicílio informático”, algo semelhante à introdução em casa alheia [5], usando-se a terminologia hacking para a hipótese de simples acesso a sistemas informáticos, enquanto o agente é denominado hacker.

No mesmo sentido, Pedro Verdelho – Comentários das Leis Penais Extravagantes, vol. 1, pág. 516.: “O crime de acesso ilegítimo dirige-se às modernas ameaças à segurança dos sistemas informáticos que ponham em causa as respectivas confidencialidade, integridade e disponibilidade. É interesse protegido a salvaguarda da possibilidade de gerir, operar e controlar os sistemas de forma livre e tranquila, sem perturbação.”

Assim, comete um crime de acesso ilegítimo, por exemplo, o inspector tributário que por motivos estritamente pessoais, acedendo ao sistema informático da autoridade tributária, consulta declarações de IRS de outrem, apesar de nessa qualidade possuir os instrumentos necessários para o efeito -cfr. ac RC 17/2/2016 (Jorge França) www.dgsi.pt.

Já o crime de burla informática, p. e p. pelo art 221º do Código Penal, configura um crime contra o património, embora de execução vinculada, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos.

A burla informática, por isso, na construção típica e na correspondente execução vinculada, há-de consistir sempre em um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afetação direta em relação a uma pessoa como na burla tipo, mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.

O bem jurídico protegido é o património de outra pessoa. O prejuízo patrimonial é consequência adequada da conduta do agente, sem a mediação do ofendido ou da pessoa enganada. Daí que a consumação do crime se verifique quando o prejuízo patrimonial ocorre e não quando se interfere no dado ou programa informático.

O tipo objetivo consiste na interferência no resultado de tratamento de dados, no caso através da utilização de dados sem autorização [6], causando desse modo prejuízo patrimonial.

Exemplo clássico da utilização não autorizada de dados é o uso ilegítimo, por terceiro, de caixas-automáticas, do sistema de telebanking ou home banking, através dos quais, mediante a utilização do código de acesso pessoal alheio, se efetua indevidamente um pagamento ou realiza uma transferência monetária, ultrapassando o crédito do titular do cartão, ou o saldo disponível da respetiva conta bancária, consoante as circunstâncias do caso [7].

Entre os crimes de falsidade informática e de burla informática e nas comunicações existe uma relação de concurso efetivo, atenta a diversidade de bens jurídicos tutelados por ambas as incriminações, ainda que o crime de falsidade informática seja cometido enquanto crime-meio para o cometimento do crime de burla informática e nas comunicações [8].

Tendo presentes estas considerações e a consagração de um critério teleológico referente ao bem jurídico, por serem distintos os bens jurídicos protegidos pelas respetivas normas incriminadoras (crimes de acesso ilegítimo, falsidade informática e de burla informática), o cometimento dos mesmos deve ser punido autonomamente, ou seja, por via de um concurso real de crimes, assim se afastando a ideia do pretendido concurso aparente.

Nesse sentido também se pronuncia Duarte Rodrigues Nunes ao referir expressamente que “Entre os crimes de acesso ilegítimo e de burla informática (p. e p. pelo art. 221.º do CP) existe uma relação de concurso efetivo a atenta a diversidade dos bens jurídicos tutelados por ambas as incriminações.” (cfr., citado autor, in Os crimes previstos na Lei do Cibercrime, Gestlegal, 2020, pág. 178).

Sufragando o mesmo entendimento, o ac RE 09-05-2023 (Nuno Garcia, processo 1275/20.4JALRA.E1), www.dgsi.pt, considerou serem “diferentes os bens jurídicos que se protegem com as incriminações do acesso ilegítimo e da falsidade informática. No crime de acesso ilegítimo protege-se a segurança do sistema informático, no que diz respeito à sua “privacidade” e não intromissão no mesmo. Basta a intromissão, mesmo que nada mais ocorra, ou seja, é como se fosse “introdução em casa alheia”, aqui no sentido de introdução num sistema informático alheio. Já no crime de falsidade informática protege-se a integridade do sistema informático, isto é, a sua estabilidade, a sua não modificação. Se ocorrer apenas “introdução” no sistema informático quedamo-nos pelo crime de acesso ilegítimo. Se após essa “introdução”, ocorre qualquer tipo de interferência, modificação, então passamos a ter também crime de falsidade informática, o qual, atente-se, pode ocorrer só por si”.

No entanto, como sublinhado na sentença recorrida, em relação ao crime de falsidade informática, não é consensual a densificação do bem jurídico visado proteger com a incriminação em apreço, “havendo quem entenda que é a integridade dos sistemas informáticos, pretendendo o legislador, por via desta incriminação, impedir a prática de actos que atentem contra a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade dos sistemas informáticos e dos dados informáticos, bem como a utilização fraudulenta dos mesmos”, assim como quem considere estar em causa “a segurança nas transacções bancárias” ou “a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (…), o que se deve à circunstância de o crime de falsidade informática e o crime de falsificação de documento previsto e punido pelo art. 256.º do Código Penal serem de tal modo semelhantes (apenas se distinguindo quanto ao modus operandi, em que releva a execução pelo meio informático)” [9].

Neste ponto, julgamos que o crime de falsidade informática é pluriofensivo, posto que o legislador visou assegurar “a segurança e a fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório (onde se inclui a segurança nas transacções bancárias), embora (…), ainda que de forma meramente reflexa, acabe por tutelar também a integridade dos sistemas informáticos[10] .

Voltando à linha argumentativa do recurso da arguida, assume pertinência convocar a jurisprudência do citado ac. do S.T.J. de 7/1/2021, relatado pela Exmª Cons. Isabel S. Marcos, assim sumariado na parte que interessa:

“I - Para aferir da existência de uma situação de concurso aparente (legal) de crimes não basta recorrer ao critério atinente à condição de meio/instrumento dos crimes de acesso ilegítimo e de falsidade informática em relação aos crimes de burla informática e nas comunicações, peculato e branqueamento.

II - Atendendo aos critérios que ponderam para tal fim, designadamente o critério reportado à natureza dos bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminadoras, os crimes de acesso ilegítimo e de falsidade informática encontram-se numa situação de concurso efectivo em relação aqueloutros crimes.”

E adiante acrescenta-se o seguinte:

“Daí que, para efeitos de determinar a medida de conexão temporal, que funciona como índice da medida de resolução, se exija um trabalho de reflexão, orientado por critérios não arbitrários, que permita concluir se, à luz de um critério de normalidade, é de aceitar que, estando uma dada actividade apartada de outra, ambas tivessem sido desenvolvidas no âmbito de um único processo resolutivo.

Porém, para além destes critérios, como referido, relativos à pluralidade de resoluções criminosas do agente e à inexistência de conexão temporal entre elas, a um outro critério terá de atender-se para efeitos de apurar da pluralidade de crimes. Trata-se do critério que, respeitante à natureza dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras, tem como resultado que, se vários e distintos forem os bens jurídicos desrespeitados, outros tantos crimes terão de ser imputados, em concurso efectivo, ao agente.

Assim, ao invés do que parece entender a recorrente, o critério reportado tão-só ao crime meio/instrumento não se representa, de facto, suficiente para se afirmar a existência de um concurso aparente/legal, no caso em apreciação dos crimes de acesso ilegítimo e de falsidade informática em relação aos demais crimes por cuja prática a mesma foi também condenada.

(…)

Efectivamente, enquanto o bem jurídico protegido no crime de acesso ilegítimo (que, como se sabe, não exige qualquer intenção específica por parte do agente, maxime o propósito de causar prejuízo a outrem ou obter benefício ilegítimo próprio) é a segurança do sistema e rede informáticos, no crime de falsidade informática (que, ao contrário do que sucede com aqueloutro tipo legal, exige a intenção específica de o agente provocar engano nas relações jurídicas e, no que concerne à produção de dados ou documentos não verdadeiros, a intenção de que tais dados ou documentos sejam tidos em conta e bem assim usados para fins juridicamente relevantes como se fossem verdadeiros), o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é a integridade dos sistemas informáticos que se visa proteger, impedindo a prática de actos dirigidos contra a confidencialidade, fidedignidade e disponibilidade de sistemas, redes e dados informáticos, e também a sua utilização fraudulenta.”

Desta forma, à pluralidade de tipos legais integrados deve corresponder uma pluralidade de crimes.

Face ao exposto, resulta que bem andou a decisão recorrida ao condenar a recorrente nos termos em que o fez.


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Da medida concreta da pena de prisão aplicada

A arguida recorrente foi condenada pela prática, em autoria material e concurso efetivo:

- de um crime de burla informática, previsto e punido pelo art.221º, nº1, do Código Penal, na pena parcelar de 6 (seis) meses de prisão, sendo punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa;

- de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art. 3.º n.º s 1 e 2 da Lei n.º 109/2009 de 15/09, na pena parcelar de 3 (três) meses de prisão, sendo punível com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias;

- de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo art. 6.º n.º s 1 a 3 da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro, na pena parcelar de 2 (dois) meses de prisão, sendo punível com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

Em cúmulo jurídico de penas, a arguida foi condenada na pena única de 8 (oito) meses de prisão, sendo o limite mínimo de 6 (seis) meses de prisão e o máximo de 11 (onze) meses de prisão, nos termos do art. 77.º, n.º 2, do Código Penal.

A arguida recorrente veio impugnar genericamente a medida da pena de prisão aplicada (e não também a escolha da pena principal), sem dizer qual, argumentando que na sua determinação não foi devidamente levado em conta a sua situação pessoal, designadamente a idade e o enquadramento habitacional, social e familiar, e o tempo decorrido.

Sendo o recurso de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do mesmo Código).

O recorrente tinha o ónus de apresentar as concretas razões da sua discordância relativamente a cada uma das penas parcelares aplicadas e/ou pena única, condensando-as nas respetivas conclusões, enunciando as questões que pretende ver reapreciadas, aí resumindo “as razões do pedido” (n.º 1 do citado art. 412.º).

Com efeito, o Tribunal de recurso não formula um novo juízo sobre a responsabilidade penal dos arguidos com fundamento no quadro factual apurado em primeira instância, nem tão pouco aplica novamente as penas.

O Tribunal ad quem reaprecia uma decisão judicial de acordo com os argumentos que a possam infirmar, de acordo com as conclusões do recorrente.

Portanto, não basta ao recorrente clamar que as penas devem ser reduzidas por serem manifestamente exageradas e desajustadas.

Impunha-se ao recorrente que justificasse o porquê, baseado, consoante o caso, nos factos apurados ou nos preceitos legais aplicáveis, bem como que indicasse, qual, no seu entendimento, seria a decisão justa ou a medida adequada nos limites da moldura abstrata correspondente a cada um dos crimes e/ou moldura do cúmulo jurídico.

Sucede que a recorrente não deu cumprimento ao referido ónus de especificação que lhe é imposto pelo art.412º, nº2, do Código Processo Penal.

Ao tribunal de recurso, em sede de determinação da medida da pena, compete apenas controlar os erros apontados no recurso, alterando a pena se houver violação clara dos princípios da proporcionalidade e necessidade e/ou omissão ou manifesta ponderação errada de algum critério legal ou facto relevante.

Ora, tendo em conta a moldura abstrata correspondente a cada um dos crimes e/ou concurso de crimes, vistos os elementos ponderados em sede determinação das penas concretas, não se compreende a intervenção corretiva pretendida deste tribunal quanto a qualquer daquelas.

Nem a arguida recorrente explica se e em que medida o tempo decorrido, a sua idade e uma concreta circunstância pessoal da sua vida devia ter inferido ainda mais favoravelmente na determinação de alguma das penas e, nesse caso, qual delas, ainda que todas elas tenham sido fixadas muito próximas do seu limiar mínimo.

Por conseguinte, nesta parte improcede o recurso da arguida.


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Do perdão da pena em relação ao crime de burla informática

A arguida AA nasceu em ../../2001 e, portanto, tinha 20 anos de idade à data dos factos (28/08/2021).

Defende a recorrente que relativamente aos crimes de falsidade informática e acesso ilegítio, por estarem tipificados na Lei do Cibercrime, encontram-se excluímdos da abrangência da referida lei, por força do artigo 7.º, n.º 1, al. f), vii). da Lei 38.º-A/2023, de 02 de agosto.

Todavia, já quanto à burla informática e nas comunicações, da análise atenta do artigo 7.º da lei, não se encontra previsto tal ilícito como excecionado da aplicação, motivo pelo qual se aplica in casu.

Cumpre analisar.

Estabelece o art.3º, da Lei 38.º-A/2023, de 02 de agosto:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2 - São ainda perdoadas:

(…)

d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.

3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

Daqui resulta que o perdão incidirá sempre sobre a pena única de prisão suspensa (cfr. art.º 50.º do C.P.), mas caso não tenha ficado subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (cfr. art.º 51.º do C.P.) ou de regras de conduta (cfr. art.º 52.º do C.P.) ou acompanhada de regime de prova (cfr. art.º 53.º do C.P.).

Neste caso, o perdão só poderá ser aplicado uma vez revogada a referida suspensão da execução da pena de prisão, na pena de prisão fixada na decisão condenatória (cfr. art.º 56.º do C.P.) e com o limite da pena perdoável até ao máximo 1 ano de prisão estabelecido no n.º 1, do art.3º, para onde expressamente remete o seu n.º 3 – cfr. Pedro Brito, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, JULGAROnline, agosto de 2023 | 15.

No caso a arguida recorrente foi condenada na pena única de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto nos arts. 50.º e 51.º, nº1, al.a), ambos do Código Penal, foi subordinada ao dever de pagamento a DD da quantia de € 1.000,00 (mil euros), na íntegra ou a título fraccionado durante o referido período de suspensão [correspondente à parcela de capital infra que integra o pedido de indemnização civil].

Ergo, não é aplicável de momento o perdão parcial da pena correspondente ao crime de burla informática, pelo que improcede o recurso nesta parte.


***

3. DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
a) não conhecer do recurso interposto pela arguida AA quanto à suscitada questão da nulidade da sentença por falta de fundamentação;
b) no mais, em negar provimento ao recurso e em consequência confirmar integralmente a decisão recorrida.

Custas pela arguida/recorrente AA, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UCs (arts. 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Notifique.

Porto, 5.11.2025

(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

João Pedro Pereira Cardoso

Isabel Namora

Carla Carecho



_________________________
[1] Diploma a que se referem os normativos adiante citados, sem indicação expressa da respetiva fonte legal.
[2] Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200.
[3] O Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/02/992 (Cerqueira Vahia), processo
n.º 042203, publicado no DR, 84, I Série, A, pp. 1674 a 1677; o Assento n.º 8/2000, de 4/05 (Flores Ribeiro), processo n.º 99P1141, publicado no DR, 119, I Série, A, pp. 230 a 231; e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 5/06/2013 (Santos Cabral), processo n.º 29/04.0JDLSB-Q.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Cfr., entre outros, o acórdão da Relação do Porto de 08.01.2014 (processo nº 1170/09.8JAPRT.P2), o acórdão da Relação de Coimbra de 15/10/2008 (Proc. 368/07.8TAFIG.C1) e o acórdão da Relação de Guimarães de 12.04.2021 (processo 19/19.8GCBRG.G1)www.dgsi.pt.
[5] Neste caso, conforme escrevem Lourenço Martins, Garcia Marques e Pedro Simões Dias, in Cyberlaw em Portugal - O Direito das Tecnologias da Informação e Comunicação, CentroAtlantico.Pt, 2004, p.444: “A tutela do domicílio informático reconduzir-se-ia à privacidade do mesmo domicílio e ainda à liberdade informática de cada um operar no interior desse domicílio e de excluir do mesmo os terceiros mal vindos”.
Convocando maior autonomia deste ilícito criminal, os Autores em referência, realçam que a proteção da segurança dos sistemas informáticos, bem jurídico aqui tutelado, deve ser vista numa dimensão extra-individual e individual, que protege: a necessidade de salvaguarda do poder dispositivo sobre os bens informáticos, sem que os mesmos devam ser objeto de atos disruptivos; a dimensão quantitativa da perda; a dimensão qualitativa que é expressão mais direta da preservação da comunicação fechada – ob.cit., p.444.
Esta dimensão extra-individual é evidente se pensarmos no alarme provocado pelo risco de interferência de hackers em sistemas militares, financeiros e sociais.
[6] Neste caso a burla informática resultará da interferência no tratamento de dados em consequência da utilização não autorizada de dados. “A utilização de dados não autorizada consiste no uso de dados cujo acesso se encontra vedado a terceiros ou em violação dos limites dos poderes de utilização conferidos, verificando-se um aproveitamento da disponibilidade daqueles para executar operações não permitidas” - cfr. Rita Santos in in O Tratamento Jurídico-Penal da Transferência de Fundos Monetários através da Manipulação Ilícita dos Sistemas Informáticos, 2005, Coimbra Editora, pg.253.
[7] Cfr. Rita Santos in ob.cit., pg.256.
[8] Neste sentido, veja-se a resenha doutrinária citada por Duarte Alberto Rodrigues Nunes, O Crime de Falsidade Informática, in Julgar Online, Outubro de 2017, p.44, e PAULO ALEXANDRE GONÇALVES TEIXEIRA, O fenómeno do Phishing, p.23; contra JOÃO CARLOS BARBOSA DE MACEDO, “Algumas considerações acerca dos crimes informáticos em Portugal”, in Direito Penal Hoje, p. 237 (nota 55).
[9] Neste sentido, Lourenço Martins, Garcia Marques e Pedro Simões Dias, in CYBERLAW em Portugal - O Direito das Tecnologias da Informação e Comunicação, CentroAtlantico.Pt, 2004, p.439.
Ainda partidários desta posição, veja-se a resenha doutrinária citada por Duarte Alberto Rodrigues Nunes, O Crime de Falsidade Informática, in Julgar Online, Outubro de 2017, p.7, n.12, com referência a “GARCIA MARQUES/LOURENÇO MARTINS, Direito da Informática, 2.ª Edição, pp.683 e ss, FARIA COSTA, “Algumas reflexões sobre o estatuto dogmático do chamado “Direito penal informático””, in Direito Penal da Comunicação, p. 109, FARIA COSTA/HELENA MONIZ, “Algumas reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal”, in BFDUC, 1997, p. 328, BENJAMIM SILVA RODRIGUES, Da Prova Penal, IV, pp. 126-127, PEDRO DIAS VENÂNCIO, “ O Crime de Falsidade Informática”, in JusNet 120/2010, LOPES ROCHA, “A lei da criminalidade informática (Lei n.º 109/01 de 17 de Agosto). Génese e técnica legislativa”, in Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 8, p. 73, PEDRO VERDELHO/ROGÉRIO BRAVO/MANUEL LOPES ROCHA, Leis do Cibercrime, I, p. 250, JOÃO CARLOS BARBOSA DE MACEDO, “Algumas considerações acerca dos crimes informáticos em Portugal”, in Direito Penal Hoje, p. 238, JOEL TIMÓTEO RAMOS PEREIRA, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, p. 522, PAULO ALEXANDRE GONÇALVES TEIXEIRA, O fenómeno do Phishing, p. 19, DIANA VIVEIROS DE SIMAS, O Cibercrime, pp. 79-80.
[10] Neste sentido, Duarte Alberto Rodrigues Nunes, O Crime de Falsidade Informática, in Julgar Online, outubro de 2017, p.8-9.