Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2390/18.0T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE PREVARICAÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
REQUISITOS
PERDA DE VANTAGENS
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP202404032390/18.0T9AVR.P1
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS INTERPOSTOS PELOS ARGUIDOS E PARCIALMENTE PROCEDENTE O INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido pelo crime de prevaricação, p. e p. pelo art.º 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/7 traduz-se na fidelidade à lei e ao direito, no exercício de funções públicas. O crime de prevaricação pressupõe que, em procedimento administrativo inerente às suas funções, o agente cometa atos ou omissões contrários ao direito, entendido este como conjunto de princípios e normas jurídicas vinculativas ao processo e à decisão respetiva.
II - Neste contexto, o bem jurídico protegido com a incriminação da prevaricação em causa consiste na realização da função administrativa autárquica segundo o direito e no interesse do bem comum, sem ilegalidades, nem compadrios ou malquerenças particulares.
III - Para o cometimento do crime de prevaricação não é necessária a existência de prejuízo para a entidade adjudicante, mas que o agente, conscientemente, conduza – ou decida – contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém. O benefício – entendido como toda a vantagem que o sujeito ativo pretende retirar da sua atuação -, embora ilegítimo, não tem que ser patrimonial, podendo derivar do mero compadrio, ou mesmo assumir fins caritativos ou altruísticos.
IV – A perda da vantagem (ou a condenação no pagamento do valor equivalente) deve ser declarada contra aquele agente que, não obtendo para si a vantagem, possibilita e determina, com a prática do ilícito-típico, a sua obtenção por outrem.
V - Tendo os arguidos atuado de forma concertada, possibilitando, com a sua conduta, a obtenção de uma vantagem indevida pela sociedade arguida, tornam-se, todos eles, solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Estado do valor equivalente ao da vantagem ilicitamente obtida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2390/18.0T9AVR.P1





Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório

No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 2390/18.0T9AVR, corre termos pelo Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira, foram submetidos a julgamento os arguidos AA, BB, CC, para além da sociedade arguida “A..., Lda”, tendo sido proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

«Perante o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal Coletivo em julgar parcialmente procedente a acusação e, consequentemente, em:

a) Absolver os arguidos AA, BB e CC, com os demais sinais dos autos, da acusação pela prática, em coautoria, de 1 (um) crime de prevaricação, p. e p. pelos arts. 26.º, 28.º e 66º, n.º 1 do Código Penal e art. 11.º da Lei n.º 34/87 de 16/07.

b) Absolver o arguido AA da acusação pela prática, em coautoria, de 1 (um) crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelos arts. 66.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4 do Código Penal.

c) Condenar o arguido BB, com os demais sinais dos autos, pela prática, em coautoria, de 1 (um) crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4 do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na respetiva execução pelo período de 2 (dois) anos.

d) Condenar a sociedade arguida A..., Lda., com os demais sinais dos autos, pela prática de 1 (um) crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelos arts. 11º, n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 7 e 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4, ambos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 150 (cento e cinquenta euros), perfazendo o quantitativo total de € 22 500 (vinte e dois mil e quinhentos euros).

e) Condenar a arguida CC, com os demais sinais dos autos, pela prática, em coautoria, de 1 (um) crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na respetiva execução pelo período de 2 (dois) anos.

f) Condenar a sociedade arguida A..., Lda., ao abrigo do disposto no 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal, no pagamento ao Estado da quantia de € 2.321,35 (dois mil trezentos e vinte e um euros e trinta e cinco cêntimos), absolvendo-o do pedido de pagamento de montante superior.

g) Absolver os arguidos AA, BB e CC do pagamento ao Estado de quantia monetária, no montante de € 42.627,50, correspondente a vantagem da atividade criminosa desenvolvida.


*

Custas, na parte criminal, a cargo dos arguidos BB, A..., Lda. e CC, fixando-se a taxa de justiça individual em 3 UC (arts. 374º, nº 4, 513º, 514º, n.ºs 1 e 2 e 524º, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os arts. 1º, n.º 1, 3º, n.º 1 e art. 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a este diploma). […]».

*

Inconformados com a decisão condenatória, dela interpuseram recurso o Ministério Público e os arguidos CC, BB e “A..., Lda” para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos nas respetivas motivações e contidos nas “conclusões”, que se transcrevem:
1. Recurso do Ministério Público.

«1. Na ótica do Ministério Público, uma leitura congruente da prova produzida e do Direito aplicável, conforme às regras da experiência e da normalidade, não poderia ter levado à absolvição, total ou parcial consoante os casos, dos arguidos AA, BB, e CC. Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido pecou por ser, pelo contrário, incongruente e desarmonioso na apreciação de facto e de Direito.

2. De tal maneira que condenou CC, BB e a A..., Lda pela prática de um crime de falsificação por terem simulado um procedimento e execução contratuais no âmbito do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 o qual tinha por alvo a pavimentação do troço ....

3. Troço esse executado em momento prévio à instauração daquele procedimento, entre 23/09/2017 e 26/09/2017 e mesmo a tempo das eleições do dia 01/10 a que concorriam AA e CC, no âmbito ainda do Proc. 20/DPO/SOM/2017 que não contemplava esse troço.

4. Mas absolveu AA de tal crime, e todos, do crime de prevaricação, desconsiderando a relevância penal da ideação e execução dessa pavimentação, a necessária articulação mantida entre os arguidos para a execução dessa pavimentação a tempo das eleições, e a posterior instauração do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 para possibilitar o pagamento, desconsiderando a final que os arguidos tivessem tido qualquer intenção de favorecer outrem.

5. Justificando-se uma leitura congruente porque por um lado, ao nível do crime de prevaricação, foi desrespeitada pelos arguidos a legislação aplicável, designadamente, o Código dos Contratos Públicos, com fins eleitorais e de benefício da sociedade adjudicada que já não poderia ser alvo de qualquer ajuste direto, num casamento de conveniências e de interesses, e por isso, com fins de benefícios próprios e alheios indevidos; porque ao nível do crime de falsificação de documento agravado, não faz qualquer sentido pressupor desarticulação entre os agentes quando lógico-cronologicamente os factos o demonstram para que tudo se encaixe e faça sentido ao comum dos mortais.

III. 1. Enquadramento jurídico-penal e substancial; a minoração dos crimes de prevaricação/abuso de Direito como defeito genético da ponderação decisória:

6. Salvo melhor opinião, apesar de em muitos pontos lúcido, o Tribunal a quo levou à motivação uma leitura minimalista do crime de prevaricação/abuso de poder, com consequências ao nível do próprio texto da decisão, e que desde logo é possível extrair do seguinte trecho da motivação: “(…) falta o elemento subjetivo específico: a intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. Não ficou demonstrado que o arguido AA tenha atuado movido por um tal desiderato. (…) O que não é incompatível com o facto de realizar que a sua atuação teria como consequência um benefício económico para a sociedade arguida e seria suscetível de trazer benefício eleitoral potencial para as listas do partido em que concorria às eleições. (…) estas eram consequências do seu atuar. Não as causas do seu atuar.”.

7. O crime de prevaricação (art. 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/07) ou mesmo o de abuso de poder (art. 26.º) em concurso aparente com aquele, tutelam a integridade do exercício de funções públicas (pressupondo que um decisor terá apenas o interesse público em mente), e numa vertente acessória, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outrem; sendo um crime formal, não pressupõe um resultado, bastando para a imputação a tomada de decisão antijurídica com a intenção de beneficiar ou de prejudicar outrem.

8. No caso dos autos, a antijuridicidade assenta em primeiro plano nos deveres funcionais que obrigavam os arguidos, positivados na Lei n.º 35/2014, de 20/06 (LGTFP) e Lei n.º 29/87, de 30/06 (EEL), e sobretudo no Código de Procedimento Administrativo, como os da legalidade (art. 3.º), prossecução do interesse público (art. 4.º), boa administração (art. 5.º), e imparcialidade (art. 9.º), obrigando a uma atuação subordinada integralmente ao interesse público sem procurar quaisquer favorecimentos ou interesses pessoais.

9. Assenta em segundo plano na legislação da contratação pública, devendo os agentes consideração aos princípios da transparência, da igualdade e da concorrência (art. 1.º, n.º 4 do CCP), encontrando-se positivados os procedimentos com vista à celebração do contrato (não vigorando, pois, liberdade absoluta na conformação procedimental), tendo tais princípios densificação por exemplo no art. 113.º do CCP, que visa impedir a existência de adjudicado/cocontratante de regime e fomentar a concorrência, não devendo por isso permitir fraudes à lei através de expedientes como o fracionamento contratual ou a utilização de falsos concorrentes/conluio.

10. Mas assenta ainda no regime jurídico da realização de despesa pública, a qual pressupõe a inscrição orçamental, o correspondente cabimento e a adequada classificação da despesa de acordo com o art. 22.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28/07 (RAFE). Isto significa, em termos práticos, de acordo com o art. 13.º do mesmo diploma, que antes de autorizar despesa, tem que se assegurar a dotação orçamental com o registo do cabimento prévio onde constem os encargos prováveis.

11. Não poderá ser celebrado um contrato sem a existência de um compromisso válido e sequencial ou violar-se-á assim a Lei n.º 8/2012, de 21/02 (LCPA), e o Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21/06, conforme jurisprudência constante do Tribunal de Contas. Nem o pagamento poderá ser realizado sem que o compromisso tenha sido assumido legalmente nem poderá ser exigido pelos agentes económicos que verifiquem inexistir número de compromisso (art. 9.º da Lei n.º 8/2012).

12. No caso do regime da contratação pública ganha ainda importância a regulação da execução das empreitadas de obras públicas e do controlo administrativo da execução da obra para fins de correção de defeitos, e até, de incumprimento contratual, implicando que tenha existido procedimento o qual fornecerá os padrões de referência de primeira linha, e acompanhamento regulado, ainda que antes das alterações do ano 2017 (v.g. arts. 387.º a 405.º do CCP). Obra executada sem que a entidade adjudicante exerça poderes de controlo, porque informal, é obra juridicamente desprotegida.

13. Todavia, a interpretação do Tribunal a quo fez o seu caminho contra o Direito aplicável: a lei não restringiu o que seja o benefício, o qual apenas deverá ser ilegítimo, não tendo que ser patrimonial, podendo redundar no mero compadrio, ter fins altruísticos ou de simples favorecimento, e a interpretação do Tribunal a quo, cega ao evidente casamento de interesses estabelecido por um lado entre AA e CC e BB por outro, e ao nexo lógico da atuação de uns e outros, utilizou uma análise ex-post para duvidar que tal conduta tenha sido num primeiro momento, como foi, uma evidente manobra eleitoral.

14. A urgência da execução da pavimentação, de facto, tem explicação na aproximação das eleições a que se candidatavam AA e CC na mesma lista, que só podia ser vista pelo primeiro como a continuidade, mas em que a vitória se faria agora num plano diferente porque era esta que se candidatava a presidir ao Executivo, numa dinâmica nova e desconhecida, em que a vitória, ou o seu grau, por isso mesmo, não estaria assegurada. Juntou-se a isto a oportunidade conferida pela realização de menos obra (trabalhos a menos), com orçamento disponível para fazer face ao desagrado da comunidade local com a pavimentação excluída.

15. O benefício não tem também que ser exclusivo, podendo concorrer num mesmo plano diversos benefícios, próprios e alheios, e até fins de interesse público. Se num primeiro momento se visou um efeito eleitoral, num segundo momento procurou-se favorecer a A..., Lda, sociedade essa que correu também um grande risco em aceitar proceder nestes moldes, e que foi necessário remunerar para assegurar que o casamento de conveniência não prejudicava ambos, ainda que a pavimentação fosse devida e tivesse sido executada com evidente vantagem para a população local.

16. Mas foi executada em total desrespeito pelo Direito, ou mesmo na ausência do Direito (principiando a execução, e só depois o procedimento), por confiança no empreiteiro e sem qualquer controlo consequente da execução da empreitada, afrontando não só a legalidade mas também a imparcialidade e a transparência, numa alimentação de interesses mútua que mancha o bem jurídico tutelado pelo crime de prevaricação, que é no essencial a integridade do agente (ou o normal funcionamento da Administração Pública orientada pelo interesse público, com os mesmos efeitos).

III.2. Os crimes de prevaricação e de falsificação – vícios do texto da decisão recorrida:

17. A configuração da responsabilização penal dos arguidos A..., Lda, BB e CC, tal como construída no texto da decisão recorrida, designadamente no confronto entre os factos provados n.º 2, 4, 16, 17 e 25 e os factos provados n.º 56 e 57 e os não provados X e XI, não pode senão ser o resultado de uma leitura equivocada e violadora das regras da experiência e da normalidade.

18. Tendo em conta o texto da decisão recorrida, existe a nosso ver uma incoerência interna que decorreu de uma leitura equivocada, ao desarticular e autonomizar os Procs. 20/DPO/SOM/2017 e 60/DPO/SOM/2017, bem como as próprias condutas dos arguidos, AA de quem partiu o impulso inicial, mas absolvido de todos os crimes, e CC, que aderiu ao impulso daquele, mas condenada pela prática de um crime de falsificação.

19. Por um lado, o Tribunal dá por assente que AA estava ciente que dava preferência à sociedade arguida no pagamento do preço e lucro com a inerente violação da legalidade (facto provado 37), por outro lado afirma o seu contrário (facto não provado sob a al IX), sobrando da leitura da decisão uma dúvida sobre o fio condutor da apreciação do Tribunal a quo e do sentido final da decisão não obstante o segmento decisório.

20. Há também uma, salvo o devido respeito, artificiosa diferenciação entre consequência e causa, numa entorse à conclusão a que o Tribunal já havia chegado (por exemplo no facto 37) e no geral quanto à conclusão ao nível da falsificação de documento, tentando dar uma dimensão ambígua ao que não é de todo ambíguo, forçando o fio condutor lógico e racional da decisão recorrida, que não fez uma leitura harmoniosa, global, correlacionada, da prova documental e testemunhal desembocando num texto neste particular incongruente.

21. Há também desarmonia na apreciação da atuação da sociedade arguida A..., Lda, pois o Tribunal a quo fez entrar nos factos provados a participação de DD, diretor técnico e representante da sociedade arguida na empreitada do Proc. n.º 20/DPO/SOM/201725, e deu ainda como provado que BB não se articulou com os arguidos, pelo que o texto da decisão não é claro na estruturação do fundamento factual para imputar o facto à pessoa coletiva, que no despacho de acusação se encontrava articulado nos termos do disposto pelo art. 11.º, n.º 2, al. a) do Código Penal.

22. E se aqui e ali é possível reconstruir o raciocínio do Tribunal a quo (no fundo, BB teria aderido, assim permitindo a responsabilização penal da pessoa coletiva, mas a ordem para executar a obra, por mais incrível que soe, teria sido de DD), apenas lendo os factos provados n.º 17, 37 a 39 e 43, e facto não provado I, há um salto para a responsabilização daquele permanecendo apenas um estado de dúvida perante o empreendedorismo da testemunha DD e da responsabilidade da pessoa coletiva.

23. Finalmente, no que concerne à preferência concedida à mesma, não se compreendem os motivos pelos quais no facto provado n.º 37 se articula a “preferência à sociedade arguida na execução da empreitada de obras públicas de pavimentação do troço ..., e no pagamento do correspondente preço e inerente lucro, ainda que violando conscientemente as regras e as normas aplicáveis à contratação pública” ao mesmo tempo que na motivação se decidiu inexistir “intenção de prejudicar ou beneficiar alguém”, o mesmo ocorrendo no facto não provado IX. São raciocínios incompatíveis que levantam dúvidas sobre o teor da decisão.

24. Por outro lado, e no mesmo sentido, não se percebe como compatibilizar o facto provado n.º 38, de que CC e BB sabiam que não podia ser convidada a sociedade por causa do art. 113.º do CCP, com a ideia vertida na motivação de que assim teria que ser porque a obra já havia sido realizada por esta sociedade, esquecendo que o benefício concedido à sociedade é duplo: quer porque se remunera a facilitação em proceder nestes moldes, quer porque se está no fundo a permitir um ajuste direto informal, que depois veio a ser formalizado, a entidade que já não podia beneficiar do mesmo.

25. Entende o Recorrente que a decisão recorrida, salvo melhor opinião, sofre nesta parte de dois irreparáveis vícios: contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão nos termos da al. b) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Proc. Penal; erro notório na apreciação da prova nos termos da al. c) do mesmo artigo, do que deverão ser assacadas as devidas e legais consequências; e não obstante,

III. 3. Os crimes de prevaricação e de falsificação – recurso da matéria de facto (encontrando-se as concretas passagens indicadas no corpo da motivação):

26. Assim se não entendendo, e ainda assim nos termos do disposto pelos arts. 426.º, n.º 1 a contrario e 431.º, al. a) e b) do Código de Proc. Penal, fazendo valer da leitura já ensaiada em III. 1. e III. 2, o Ministério Público entende dever ser alterado o resultado do julgamento da matéria de facto para que os factos não provados sob as als. I., VIII., IX., X., XI. sejam antes julgados como provados.

27. E para que os factos provados n.º 37 e 57 sejam antes julgados como não provados na parte em que se dá como provado que foi DD quem deu a ordem para a execução dos trabalhos e na parte em que AA é isento de qualquer comparticipação na elaboração do procedimento por ajuste direto.

28. No que à inexistência de acordo entre os arguidos BB e AA para a pavimentação do troço ... (factos I, VIII e 37) concerne, a prova produzida é inequívoca no sentido de que aquele acordo só poderia ter existido para que a conduta, objetivamente tomada, faça algum sentido lógico-cronologicamente.

29. Para além da prova documental demonstrar a intervenção do primeiro nos dois procedimentos, diversos factos provados permitem indicar aquele como um empresário experiente e a A..., Lda como uma empresa familiar (factos 112 a 114 e 131), afastando-se a ideia segundo a qual teria sido DD a tomar decisões sobre a execução do troço.

30. DD foi titubeante e embora consonante com AA quanto à retirada de BB da dinâmica factual, foi contraditório com AA nos detalhes, por ambos afirmados de um modo muito trivial, despreocupado, quanto ao como, onde e a quem foi transmitida a ordem de execução do troço.

31. E, por outro lado, como sublinhou CC, ao ter indicado situação em que obra havia sido feita sem procedimento e o Município só foi obrigado a pagar depois em Tribunal, havia um risco para a sociedade de ter que percorrer essa via sacra, o que só pode ter implicado acordo entre BB e AA, mas também CC, para que se aceitasse proceder em tais moldes sem quaisquer garantias formais.

32. Quanto à intenção em assegurar a maior votação possível na lista a que se candidatavam AA e CC e para beneficiar a sociedade (facto IX), sem qualquer conjunção disjuntiva ausente do despacho de acusação, é necessário efetuar uma apreciação ponderada dos elementos probatórios à luz das regras da experiência e da normalidade, devendo ter-se em conta nessa ponderação a magnitude da violação dos princípios de contratação pública e de finanças públicas para verificar qual ou quais os interesses predominantes ou mesmo concorrentes.

33. Não obstante AA tenha desvalorizado o contributo eleitoral que a pavimentação do troço ... poderia ter tido, o facto é que essa pavimentação não representava qualquer urgência que não pudesse aguardar, não fosse a circunstância de ter sido realizada menos obra no âmbito do Proc. 20/DPO/SOM/2017 e as eleições se aproximarem com a representação do desagrado da comunidade local com essa exclusão. Não se esquecendo que o Tribunal a quo, e bem, afastou as explicações daquele arguido quanto às razões dessa exclusão do primeiro procedimento.

34. Nas eleições de 01/10/2017, CC concorria à Presidência da Câmara na mesma lista integrada por AA, candidato a Presidente da Assembleia, e por isso, em condições de vitória menos certa porque numa dinâmica diferente das eleições até ali ocorridas. É perfeitamente configurável, e quase certo, nesta conjugação de ideias, que a inclusão do troço ... tenha partido de um fim eleitoralista num primeiro momento.

35. Isso mesmo também se sustenta no depoimento de EE, que não só afastou que esse troço configurasse trabalhos a mais como AA e CC, em uníssono, tentaram fazer crer, como implicou diretamente AA na tomada de decisão da execução desse troço perfeitamente consciente de estar a incumprir regras, no que identificou como consequência do desagrado vocal da população.

36. Mesmo FF, Presidente da Junta de Freguesia ..., e que teria sinalizado a AA a necessidade da obra, deu uma explicação não muito distante, afirmando ter depreendido que AA queria finalizar esta obra por estar em fim de mandato. Acrescentamos nós, em fim de mandato enquanto Presidente da Câmara, mas integrando uma lista em que a candidata à Presidência havia sido sua Vereadora, e sendo ele próprio candidato.

37. A isto acresce, se o troço fosse executado separadamente, a sociedade arguida já não poderia ser convidada através de um quase certo ajuste direto futuro, sendo certo que os controlos internos do cumprimento do art. 113.º do CCP existiam e foram explicados por GG.

38. Nada mais evidente e lógico do que procurar aliar fins eleitorais ao favorecimento de uma sociedade que se prestava a executar obra sem qualquer procedimento prévio assim assumindo um risco não negligenciável para ela, mas racional, porque tinha o compromisso informal que se pode vislumbrar em toda a sua extensão e deduzir dos dados factuais conhecidos, de que seria compensada celeremente.

39. Casam-se interesses: o eleitoralista, e o de promoção da sociedade que aceita correr riscos que assim solidifica a sua posição e potencia negócios futuros enquanto permite o seu giro comercial sem o custo que o respeito pelos constrangimentos legais de transparência, legalidade, e imparcialidade lhe traria.

40. Daí converge também a necessária obtenção do acordo de CC posteriormente reforçado quando Presidente da Câmara (facto X), a qual teve um papel determinante no Proc. 60/DPO/SOM/2017 para que o pagamento à sociedade arguida viesse a ter lugar assim que possível como o aponta desde logo a prova documental, mas não só. Não fosse esta intervenção ter ocorrido, com a simulação de um procedimento e execução de um contrato, e a sociedade teria que propor uma ação judicial para que o pagamento viesse, um dia, a ter lugar.

41. Esse menor rigor na gestão da coisa pública era prática comum, como se intui do depoimento de EE, mas também das declarações da própria arguida CC, pese embora AA tenha tentado responsabilizar aquela numa desajeitada, ilegal e informal estruturação de trabalhos a mais, o que só pode ter sido feito para exportar responsabilidades para os serviços, exercício nessa parte habilmente afastado na decisão recorrida.

42. O certo é que os arguidos tentaram convencer, com parcial vencimento na decisão recorrida, que tudo se passou como se um acaso desarticulado se tratasse, um troço executado forçando a própria noção básica e do senso comum de trabalhos a mais sem qualquer procedimento a ele atinente, e um procedimento posterior todo ele apenas feito de papel porque referente a realidade já executada que apenas visou garantir e permitir o pagamento. Uma conduta sem atores principais, sem transição e sentido unitário histórico, apenas meros figurantes e acasos, quiseram fazer crer os arguidos.

43. EE afirmou como AA deu ordens para que um novo procedimento tivesse lugar, o que só não sucedeu porque não havia valor suficiente para a cabimentação, teve que se esperar reforço, e mais referiu ter falado com CC a qual lhe disse para pagar, e naturalmente, o procedimento foi preparado por causa disso. Isto só poderia ocorrer com CC a bordo do plano iniciado seguramente por AA em acordo com BB, empresário experiente, um self made men que não será ingénuo, pois de maneira alguma poderia este arriscar não receber ou receber apenas com muita luta.

44. Tudo isto converge, com prova indireta e direta no sentido da atuação concertada dos arguidos para a pavimentação do troço sem a prévia abertura de procedimento contratual (facto XI) e participação de AA no procedimento por ajuste direto (facto n.º 57), tendo as eleições ocorrido a 01/10/2017 e a execução do troço ... pouco antes disso, o pagamento veio a ocorrer celeremente a 28/12/2017.

45. Sem essa articulação, nada do que ocorreu factual e objetivamente faria qualquer sentido de acordo com as regras da experiência e da normalidade, a não ser que acreditemos nesse acaso que os arguidos afincadamente tentaram convencer ter guiado neste caso os procedimentos, que aceitemos que AA de nada mais tratou porque uns anos depois foi viver para Angola, que BB correria o risco de não receber porque altruísta, que CC havia tratado da formalização celeremente porque alguém (quem?) no interior dos serviços assim o quis.

III. 4. O crime de prevaricação – recurso da matéria de Direito:

46. A nosso ver, a decisão recorrida violou, com a sua interpretação extra legem na tentativa de introduzir características típicas de que se não lembrou o legislador, o disposto pelo art. 11.º da Lei n.º 34/87 de 16/07, sendo disso patente o trecho já copiado e que introduz pretensa sofisticação na diferenciação entre consequência e causa do atuar com reflexos jurídico-penais.

47. O tipo penal em análise é suficientemente abrangente do que seja o benefício, que não veio de modo algum reduzido ou circunscrito, precisamente, porque na proteção da integridade do decisor público quis o legislador obstar a que a imaginação dos prevaricadores na formulação dos benefícios passasse a perna ao texto legal, se nos é permitida a imagem. Por isso mesmo, a diferenciação que se estabeleceu na decisão recorrida é totalmente inconsequente.

III. 5. As consequências jurídicas – a condenação:

48. Nada se nos oferecendo adiantar quanto à condenação da pessoa coletiva (condenada pelo crime de que foi acusada), procedendo o recurso quanto aos demais arguidos com alteração da matéria de facto e consequente condenação pelos crimes de prevaricação e falsificação ou contrafação de documento agravado, entende-se inexistirem nos autos fatores que imponham a condenação em pena efetiva de prisão de qualquer um dos arguidos.

49. Como orientador da posição do Ministério Público, entende-se que AA deverá ser condenado em pena única não inferior a 4 anos; 3 anos no caso de BB; e 3 anos e 6 meses no caso de CC (tomando neste caso a pena a que foi condenada no caso da falsificação com a que nos conformamos).

III. 6. O caso da perda das vantagens na co-autoria:

50. Tendo o Tribunal a quo dado como provado que os arguidos A..., Lda, BB e CC atuaram em co-autoria, condenando-os pelo crime de falsificação, impunha-se condenar igualmente todos pela perda das vantagens assim se respeitando a expressão maioritariamente civilística deste instituto que nada tem que ver com uma pena criminal.

51. Não o tendo feito, errou o Tribunal na aplicação do Direito, violando os arts. 110.º, n.º 1. al. a) e b), n.º 4 e 111.º, n.º 1 e 2, al.s a), b) e c) e n.º 3 do Código Penal, confundindo conceptualmente as consequências que devem ser retiradas solidariamente para os co-autores de um facto ilícito típico que envolva vantagens e o conceito de beneficiários (aqueles em cuja esfera se tiver produzido diretamente a vantagem) e/ou de terceiros (estranhos ao facto ilícito típico).

52. Não há qualquer razão legal para fazer estender aos agentes, ainda que numa situação de co-autoria, o regime de proteção conferido aos terceiros, ainda que fazendo entrar nessa equação os co-autores através de uma definição de beneficiário sem assento legal, e mesmo que os co-autores não beneficiários fossem terceiros, sempre a circunstância de terem concorrido censuravelmente para a produção da vantagem arredaria a possibilidade de utilizar o mesmo regime nos termos do art. 111.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

53. A resposta, sem prejuízo da regulação das relações internas permitir eventual correção, quer no caso da condenação decidida pela decisão recorrida, quer no caso de prosseguir o presente recurso com condenação também pela prevaricação, deverá ser a da solidariedade de todos os arguidos enquanto co-autores que é o regime-regra na responsabilidade pelos danos nos termos da conjugação dos arts. 129.º do Código Penal e 497.º, n.º 1 do Código Civil.


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TERMOS EM QUE, MERECENDO O PRESENTE RECURSO INTEIRA PROCEDÊNCIA, V. EXAS., NO QUE MAIS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, FARÃO A JÁ ACOSTUMADA JUSTIÇA!».

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2. Recurso da arguida CC.

«1. Mostra-se incorretamente julgada a matéria dada como provada no acórdão recorrido, constante dos pontos 20, 33, 36, 38, 43 e 44 da decisão da matéria de facto.

2. Deve ser eliminado o segmento inserido no ponto 20 dos factos provados “ainda que posterior à execução da predita pavimentação” por exprimir a ideia de que a arguida CC sabia que a pavimentação já estava executada, sendo que, quanto ao facto objetivo - desligado do conhecimento da arguida - de que a execução já estava concluída, o mesmo resulta já dos factos provados 14 e 19 e, como tal, é desnecessária a sua repetição.

3. Os fundamentos para a impugnação encontram-se plasmados infra, a respeito da impugnação quanto ao facto 43 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

4. Relativamente ao facto provado 33 deve ser suprimida a expressão “o que não demoveu os arguidos de agir como descrito”, já que não tem qualquer fundamento a imputação à arguida CC de saber que, nessa data, a sociedade adjudicatária tinha já esgotado o plafond de 150.000 euros impeditivo de com ela ser celebrado novo contrato por ajuste direto.

5. Este facto 33 entronca com o facto 38, o qual deve ser dado como não provado por comunhão de razões de argumentação que se deixaram expressas e aqui se reproduzem sinoticamente, porque em sede de conclusões.

6. Com efeito, não há no acórdão recorrido a alusão a prova alguma de onde resulte que a arguida CC tivesse conhecimento desse impedimento legal (preenchimento do plafond de 150.000€) e, mais ainda, que pelo facto de já sido esgotado esse limite, no quadro da contratação pública, estivesse vedada a celebração de contratos por ajuste direto entre a Câmara Municipal ... e a sociedade arguida A..., Lda.

7. A própria técnica da Divisão de Obras, EE, engenheira civil, com uma experiência de mais trinta e cinco anos, responsável pela preparação do procedimento 20/DPO de ajuste direto que deu lugar ao contrato celebrado entre a C Municipal ..., representada pela arguida, e a sociedade A..., Lda, LDA, conforme resulta evidenciado no depoimento que prestou na sessão de julgamento do dia 20/04/2023 e nas concretas transcrições inseridas no corpo destas alegações, desconhecia que tal valor estivesse já esgotado, encontrando-se, por tal circunstância, a Câmara e aquela sociedade impedidas de celebrarem contratos por ajuste direto.

8. A respeito desta limitação, do pretenso conhecimento da mesma, por parte da arguida CC, escreveu-se no acórdão recorrido, na parte alusiva à fundamentação, que “os arguidos CC e BB tinham conhecimento, não havia razão para não saberem dos contratos antes celebrados entre o Município e a A..., Lda. e, como tal, que esta já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de € 150 000 para serviços idênticos, pelo que não poderia ser escolhida no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017. Mas, por ter sido essa empresa a fazer a obra, tinha agora que ser ela a escolhida para apresentar propostas.”

9. O tribunal conclui que a arguida não tinha razão para não saber, sem que, em lado algum da fundamentação, se possa extrair um só fundamento que, com base nos factos provados, por si ou conjugados com as regras da experiência, também não vertidas no acórdão, se permitisse inferir o facto que consta de uma tal afirmação. Ainda mais que nem os serviços administrativos e, mais concretamente, a própria técnica responsável pela preparação do procedimento – como já aflorado – tinha conhecimento de que um tal limite havia já sido ultrapassado, impedindo, com isso, a contratação por ajuste direto!

10. Uma tal afirmação do acórdão recorrido é simplesmente gratuita, provém do nada, de uma íntima convicção/suspeita do tribunal coletivo, mas não seguramente dos meios de prova – que o tribunal especificamente não indica – nem de factos provados que, por efeito de prova indireta – a que não alude, nem passível de passar pelo crivo da sua admissão nos termos dos critérios admissíveis consoante se deu nota nas alegações para as quais, nessa parte, se remete a sua leitura –, ou sequer mesmo com apoio em regras da experiência comum, que o próprio tribunal se demitiu de explicitar, que lhe permita assim afirmar.

11. O facto 36 deve ser dado como não provado. Embora a alteração dos factos 20 e 33 impugnados conduzam fatalmente à alteração, também, deste facto, sob pena de incoerência da decisão, não só não existiu, como não há evidência, através da fundamentação do acórdão recorrido, de onde possa concluir-se por uma atuação conjunta e conjugada de intenções e de vontades para a realização de qualquer facto ilícito ou criminalmente punível, por parte da arguida/recorrente e da A..., Lda, Lda, ou sequer com o representante deste, não podendo, por consequência ter este facto outro destino que não ser dado como não provado.

12. O Facto 38 deve ser considerado não provado, pelos motivos que justificam a impugnação do facto 33 e a que se aduzirá na impugnação ao facto 43, no segmento que se refere a este tema concreto

13. O Facto 43 – pelo menos no que se refere às condutas, conhecimento e intenção da arguida CC – deve ser dado como não provado, sendo que este facto aglutina todos os demais, objeto da presente impugnação da decisão sobre a matéria de facto devidamente identificada, donde, o vasto conjunto de argumentos aqui resumidamente expostos em sede conclusiva a propósito da impugnação dos concretos pontos da matéria de facto indevidamente julgada, se inserirem (valendo do mesmo modo) no contexto da argumentação destinada à total reprovação quanto à decisão deste ponto 43 talqualmente se deixou vertida e que se reproduz.

14. Nenhum elemento de prova – designadamente indireta – permite considerar provado que a arguida agira com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização) aliás do foro íntimo da arguida, pois que nenhuma testemunha a tal se referiu; a arguida não o confessou e ainda que tal facto - a elaboração de um procedimento de ajuste direto - em termos objetivos, pudesse conferir uma “maior dificuldade em detetar a anormalidade do procedimento adotado”, de tal não é legítimo concluir-se que a arguida tivesse intenção de lograr essa finalidade.

15. Ainda que a arguida soubesse, que a obra já estava executada (o que, como se disse, aqui se concebe por mera hipótese de raciocínio) – a intenção que presidiria, nesse caso, à sua decisão seria apenas formalizar em consonância com as regras da contabilidade pública (antes de a cumprir), uma obrigação assumida pela C M ... à qual era de todo em todo alheia.

16. Por isso, esse pagamento que veio a ser efetuado traduziu-se não num benefício ilegítimo para a empreiteira, mas sim no cumprimento, pela autarquia, de uma obrigação que – sem qualquer intervenção da arguida – a C M ... assumira em momento anterior, colhendo então a respetiva contrapartida (execução da pavimentação desse troço de estrada) obrigação essa que não deixara de existir ainda que esse compromisso/contrato padecesse de nulidade.

17. A arguida que acabara de tomar posse como Presidente da Câmara; que nenhuma intervenção tivera nos outros contratos anteriormente celebrados entre a autarquia e essa empresa desconhecia de todo “que a sociedade arguida não poderia ser convidada a apresentar propostas no procedimento n.º 60/DPO/SOM/201”, sendo que nem os serviços administrativos nem quem lhe levou o processo a despacho disso se tinham apercebido.

18. A arguida desconhecia, nessa data do início do procedimento, que esse troço de pavimentação se encontrava já realizado, ou pelo menos, e em face do princípio de presunção de inocência e in dubio pro reo, não se pode considerar provado que soubesse.

19. Com efeito e ao invés do que sustenta o tribunal, existia motivo para os serviços administrativos (e por isso para a Engª EE que fora quem recebera as instruções do anterior Presidente) esconderem à nova Presidente a real situação daquela obra e a especificidade desse procedimento e levarem o processo para despacho não ao anterior presidente mas à nova presidente e logo no 1º dia em que iniciou funções: os serviços municipais, na pessoa da testemunha EE, incumpriram uma ordem que lhe havia sido dada pelo anterior presidente, no sentido de tratarem do problema com urgência, ainda durante o mandato do arguido AA e como trabalhos a mais.

20. Acresce ainda que ao longo do seu depoimento, a testemunha EE nunca escondeu o seu agastamento contra os arguidos AA e CC pelo facto de responsabilizarem os serviços em que ela intervinha por incumprimento de ordem que lhe fora dada pelo anterior presidente.

21. Ainda a propósito do desconhecimento, pela arguida, de que se tratava de obra por executar, releva o facto de o procedimento contratual por concurso público 20/DPO/SOM/2017 se reportar a empreitada de várias parcelas plurilocalizadas e à data em que a arguida decidiu o procedimento 60/DPO../2017 existirem ainda outras parcelas por concluir.

22. E só o desconhecimento pela arguida, quando despachou o procedimento 60/DPO… em causa, de que se tratava de obra realizada explica o que ocorreu na sessão da assembleia municipal de 27/6/2018 (ATA Nº 03/2018 da Assembleia Municipal, junta aos autos) em que a arguida mostrou desconhecer de todo o assunto abordado quando um membro da assembleia fez expressa referência a esse facto, já muito tempo após a conclusão do procedimento 60/DPO.

23. Para além disso não há qualquer fundamento para o tribunal dar maior crédito ao depoimento dessa testemunha – com base no qual o tribunal disse ter-se apoiado para provar esse facto - (testemunha essa comprometida como estava com os factos em causa para os quais deu um forte e decisivo contributo e face às incongruências apontadas nestas alegações) comparativamente com as declarações do arguido AA que, de forma bem clara, coerente e lógica, referiu que:

• Sempre quis que a sua decisão verbal de mandar executar de imediato a pavimentação do troço ... fosse formalizada através do recurso à rúbrica dos “trabalhos mais” e não a novo procedimento.

• Comunicou à EE que, embora soubesse que não era a opinião dela, desse urgente seguimento ao assunto, tratando-o como trabalhos a mais ou complementares.

24. Tal não é contrariado pela circunstância de o tribunal ter considerado que os trabalhos realizados não se enquadravam no regime dos trabalhos a mais, no âmbito da Contratação Pública e que o arguido AA soubesse disso, já que o que releva é a interpretação normativa (ainda que errónea) que o arguido tenha feito a partir da situação que vivenciou, interpretação essa que aliás, bem explicou.

25. Além de que, no caso concreto, melhor alternativa não teria o arguido AA para encaixar esses trabalhos se não como trabalhos a mais ou complementares em detrimento da outra alternativa: o novo procedimento.

26. Foi por ter dado essa ordem à testemunha EE que, como esta reconhece, o arguido AA lhe disse que tomara essa decisão ainda que soubesse que era contrária ao entendimento da testemunha EE, sendo que esse diferente entendimento não se prendia com a realização da obra sem ser precedida de qualquer formalização – o que era uma situação já corrente, como referiu a mesma testemunha – mas sim de a encaixar nos trabalhos a mais.

27. Finalmente e decisivo quanto ao descrédito do depoimento da testemunha EE quando afirma que o arguido AA lhe deu ordens para preparar os elementos necessários à formalização dos trabalhos assim decididos realizar, é o que resulta do facto provado 57 que se cita: O arguido AA não deu ordens ou instruções expressas para lançar um novo procedimento contratual.

28. O facto 44 deve ser considerado não provado, sendo que os fundamentos são os que emergem da fundamentação dada na impugnação que antecede, dos factos que precedem aquele facto 44 e que em síntese se traduzem no seguinte: em momento algum a arguida CC admitiu que incorresse em responsabilidade, muito menos responsabilidade criminal, limitando-se a dar forma a um anterior contrato da autarquia, em que esta foi representada por terceiro, sendo que, mesmo que esse contrato padecesse de nulidade, dessa nulidade não dispensava a autarquia de cumprir a sua obrigação, depois de ter auferido da contrapartida proporcionada pela outra parte.

29. A arguida agiu como o faria qualquer pessoa de bem que cumpre compromissos que ela mesma ou quem a representa assumiu e com a sua conduta não criou direitos para terceiros nem constituiu obrigações para a autarquia, já que eles já existiam e não derivavam de responsabilidade sua.

Enquadramento jurídico -penal e erro na aplicação do direito.

30. Em relação ao elemento subjetivo de acordo com o estatuído no artº 256º do C Penal, este prevê o dolo genérico, exigindo do agente o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.

31. O dolo específico exigido pelo mesmo normativo penal traduz-se na intenção do agente em causar prejuízo a terceiro, ou de obter para ou para terceiro benefício ilegítimo, ou ainda, de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

32. No caso sub judice, pelos fundamentos que se deixaram expostos a propósito da impugnação da matéria de facto a recorrente não tinha conhecimento de que o troço ... se encontrasse já executado aquando da abertura e da tramitação do procedimento nº 60/DPO, relativo ao contrato por ajuste direto referente à obra de pavimentação desse troço, nem representou, sequer, como possível, que tal tivesse ocorrido, conformando-se com a realização de um procedimento que jamais seria admissível em relação a obra já executada, estando, assim afastado o dolo genérico nas suas duas modalidades: dolo direto e dolo eventual.

33. Mas ainda que se mantivesse provado que a arguida ao proferir despacho no novo procedimento que lhe foi apresentado pelos serviços administrativos da câmara soubesse que se reportava a obra já executada - sempre se teria de concluir que a arguida não agiu com intenção de obter para si qualquer benefício ilegítimo (nem o acórdão ousa assim afirmá-lo), nem atuou com intenção de beneficiar ilegitimamente a sociedade construtora, empreiteira da obra, com quem, nem a Câmara Municipal tinha boas relações, sendo estas caracterizadas (pasme-se!!) por litígios, conforme resulta da fundamentação do acórdão recorrido.

34. O enquadramento feito pelo tribunal recorrido em relação à prática do crime de falsificação p. e punido pelo artº 256º, no que concerne à integração do elemento subjetivo, respeitante ao segmento do facto provado do ponto 43 quando refere que a arguida atuou “com intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização...” não tem a menor sustentação.

35. O avantajamento ilícito (do próprio agente ou de outrem), ainda que não necessariamente material ou patrimonial, enquanto elemento subjetivo do tipo, não se coaduna com a conjetura de uma potencial maior dificuldade em o agente da ação ser fiscalizado.

36. Distingue, a lei, em relação ao preenchimento do dolo específico que exige, duas distintas situações: (i) a intenção de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo; ou, (ii) a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

37. A apontada (e inventada) intenção da arguida em dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controle e assim se eximirem à responsabilização nunca se enquadraria nesta segunda situação da previsão legal.

38. Não está em causa a intenção de encobrir a prática de um outro crime; de o preparar, de o facilitar ou de o encobrir, sendo que somente se o agente tivesse intenção de preparar um outro crime, de facilitar a prática de um outro crime; de executar um outro crime ou de encobrir um outro crime, se estaria diante o preenchimento do dolo específico, no quadro desta segunda modalidade da punição da intenção do agir.

39. Tudo para concluir pela ausência do preenchimento dos elementos necessários à prática do crime de falsificação, desde logo, e também, em face de um erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico penal.

40. O tribunal recorrido incorreu em erro in judicando em matéria de facto e violou artº 256º nº 1 d) e e) e nº 4 do C Penal carecendo o acórdão recorrido do remédio jurídico como é o recurso, em vista à obtenção da cura do acórdão recorrido enfermo.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogado o acórdão recorrido na parte que condenou a arguida pela prática em autoria material e sob a forma consumada um crime previsto e punido pelo artº 256º nº 1 d) e e) e nº 4 do C Penal, proferindo um outro que determine a absolvição total da arguida, aqui recorrente, com o que assim farão, V.as Exas a merecida, habitual e sempre aguardada JUSTIÇA».

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3. Recurso do arguido BB e da sociedade arguida “A..., Lda”.
«1. Mostra-se incorretamente julgada a matéria dada como provada no douto acórdão recorrido, constante dos factos 17 (parte final), 19, 20, 25, 33, 36, 38, 43 e 44 da factualidade dada como provada, pelo que vai impugnada.
2. Os arguidos, ora recorrentes, por economia, aderem ao alegado no recurso interposto pela arguida CC, na estrita medida em que as suas consequências a si aproveitem.
3. Deve ser eliminada do facto 17 e dada como provado a expressão “O arguido AA estava ciente que a pavimentação deste troço, não prevista no proc. n.º 20/DPO/SOM/2017,26 sendo desejada pela população local, era suscetível de aumentar o número de votos na lista do partido pelo qual, juntamente com a arguida CC, se candidatava às eleições autárquicas. E não ignorava que, desse modo, a sociedade arguida A..., Lda seria preferida, como foi, na execução da obra de pavimentação do troço ... e no pagamento do correspondente preço, sem a realização de qualquer procedimento contratual prévio”.
4. Na mente do arguido AA (anterior presidente da Câmara Municipal ...) sempre esteve que a decisão de levar a cabo o prolongamento da pavimentação entre ..., respeitava a trabalhos não previstos, trabalhos complementares no âmbito do procedimento 20/DPO, adjudicada à sociedade arguida. Tal decisão foi transmitida ao, e acatada pelo, encarregado geral do empreiteiro, Eng. DD, que tinha autonomia completa para decidir e jamais com o arguido BB.
5. Os trabalhos a menos que o arguido AA mandou retirar de outras obras, ultrapassavam, eram superiores, aos trabalhos a mais daquele troço de ... até ... e era um volume de obra pequeno, trabalhos muito rápidos, o que implicava uma decisão imediata, atento a indicação expressa e imediata do dono da obra. Tal traduziu-se, também, em clara poupança para o erário público.
6. Nesse sentido veja-se o depoimento do arguido AA [Sessão de 13/04/2023 com início às 10:19h] e da testemunha Eng. DD [Sessão de 11/05/2023, com início às 16:02h] e da testemunha Dr. HH [Sessão de 25/05/2023, com início às 14:53h]
7. O facto 19 deve ser considerado como não provado, pois não houve qualquer atuação em conjugação de esforços e união de vontades com vista ao referido, pelo que não é verdade que quer o arguido AA quer a arguida sociedade soubessem, ambos, que o troço somente poderia ser realizado pela arguida sociedade e que nenhum pagamento seria efetuado sem um procedimento prévio.
8. Nesse sentido veja-se o depoimento do arguido AA [Sessão de 13/04/2023 com início às 10:19h], da testemunha Eng. DD [Sessão de 11/05/2023, com início às 16:02h] e da testemunha Dr. HH [Sessão de 25/05/2023, com início às 14:53h].
9. Deve ser eliminado o segmento inserido no ponto 20 dos factos provados “ainda que posterior à execução da predita pavimentação”, na medida em que traduz a ideia de que o arguido BB e a arguida CC sabiam que a pavimentação já estava executada, sendo que, quanto ao facto objetivo - desligado do conhecimento dos arguidos - de que a execução já estava concluída, isso resulta já dos factos provados 14 e 19 e, como tal, é desnecessária a sua repetição.
10. Os fundamentos para a impugnação encontram-se plasmados na impugnação supra aos factos 17 e 19 dados como provados, pelo que os arguidos remetem para as transcrições aí constantes, bem como para a impugnação que irão efetuar quanto ao facto 25 e ao facto 43, que aqui também se dá por integralmente reproduzida.
11. O facto 25 dado como provado deverá ser reformulado, nos seguintes termos: “O funcionário II, subscreveu o documento intitulado DECLARAÇÃO, datado de 04/12/2017, no qual declarou ter tomado conhecimento do caderno de encargos do contrato e que a sua representada se obrigava a executar este último em conformidade com o dito caderno e nos termos previstos na proposta e na lista unitária de preços unitários final, e noutros documentos anexos, necessários para a formalização do procedimento.”
12. Pelos motivos supra expostos, deverá, ainda a expressão “apesar de bem saber que o dito contrato já se encontrava executado”, ser eliminada do facto 25 dado como provado.
13. Foi o funcionário II, da sociedade arguida que, submeteu todas as declarações na plataforma e se limitou a assinar o contrato que os serviços competentes da Câmara tinham preparado, assim como o procedimento que estes abriram.
14. Jamais os arguidos, ora recorrentes, atuaram com intenção de obter qualquer benefício ilegítimo pois que a sociedade arguida sempre teria direito a receber o preço pelos ditos trabalhos não previstos acrescido dos juros. Foi nesse pressuposto que a sociedade arguida acabou por abdicar até de na conta final reclamar indemnização a que, enquanto sociedade adjudicatária, tinha direito, nos termos previstos no CCP.
15. Nesse sentido veja-se o depoimento do arguido AA [Sessão de 13/04/2023 com início às 10:19h), da testemunha Eng. DD [Sessão de 11/05/2023, com início às 16:02h] e da testemunha Dr. JJ [sessão de 11/05/2023 com início às 15:03] e da testemunha Dr. HH [Sessão de 25/05/2023, com início às 14:53h].
16. Do Facto 33 dado como provado deve ser suprimida a expressão “o que não demoveu os arguidos de agir como descrito”, uma vez que carece de qualquer fundamento a imputação aos arguidos, ora recorrentes, de saberem se, nessa data, a sociedade arguida, enquanto adjudicatária tinha já esgotado o plafond de 150.000 euros impeditivo de com ela ser celebrado novo contrato por ajuste direto.
17. Este facto 33 entronca com o facto 38, o qual deve ser dado como não provado por comunhão de razões de argumentação que se deixaram expressas e aqui se reproduzem sinoticamente, porque em sede de conclusões. O mesmo se diga em relação ao já argumentado, e transcrito, em sede de impugnação dos factos dados como provados 17, 19, 20 e 25.
18. Com efeito, não há no acórdão recorrido a alusão a prova alguma de onde resulte que os arguidos, aqui recorrentes, tivessem conhecimento desse impedimento legal (preenchimento do plafond de 150.000€) e, mais ainda, que pelo facto de já sido esgotado esse limite, no quadro da contratação pública, estivesse vedada a celebração de contratos por ajuste direto entre a Câmara Municipal ... e a sociedade arguida.
19. A própria técnica da Divisão de Obras, EE [Sessão de 11/05/2023 com início às 10:15h], engenheira civil responsável pela preparação do procedimento 20/DPO de ajuste direto que deu lugar ao contrato celebrado entre a Câmara Municipal ... e a sociedade arguida, desconhecia que tal valor estivesse já esgotado, encontrando-se, por tal circunstância, a Câmara e aquela sociedade impedidas de celebrarem contratos por ajuste direto.
20. Consta do acórdão recorrido, na parte alusiva à fundamentação, que “os arguidos CC e BB tinham conhecimento, não havia razão para não saberem dos contratos antes celebrados entre o Município e a A..., Lda. e, como tal, que esta já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de € 150 000 para serviços idênticos, pelo que não poderia ser escolhida no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017. Mas, por ter sido essa empresa a fazer a obra, tinha agora que ser ela a escolhida para apresentar propostas.”
21. O tribunal a quo conclui que os arguidos não tinham razão para não saber, sem que, em lado algum da fundamentação, se possa extrair um só fundamento que, com base nos factos provados, por si ou conjugados comas regras da experiência, também não vertidas no acórdão, se permitisse inferir o facto que consta de uma tal afirmação. Ainda mais que nem os serviços administrativos e, mais concretamente, a própria técnica responsável pela preparação do procedimento tinha conhecimento de que um tal limite havia já sido ultrapassado, impedindo, com isso, a contratação por ajuste direto!
22. Tal conclusão não provém de qualquer meio de – daí o tribunal especificamente não indicar – nem de factos provados que, por efeito de prova indireta – a que não alude, nem passível de passar pelo crivo da sua admissão nos termos dos critérios admissíveis consoante se deu nota nas alegações para as quais, nessa parte, se remete a sua leitura –, ou sequer mesmo com apoio em regras da experiência comum, que o próprio tribunal se demitiu de explicitar, que lhe permita assim afirmar.
23. Nesse sentido veja-se o depoimento do arguido AA [Sessão de 13/04/2023 com início às 10:19h), da testemunha Eng. DD [Sessão de 11/05/2023, com início às 16:02h] e da testemunha Dr. JJ [sessão de 11/05/2023 com início às 15:03], da testemunha EE [Sessão de 11/05/2023, com início às 10:17h] e da testemunha Dr. HH [Sessão de 25/05/2023, com início às 14:53h].
24. O facto 36 deve ser dado como não provado. Embora a alteração dos factos 20 e 33 impugnados conduzam fatalmente à alteração, também, deste facto, sob pena de incoerência da decisão, não só não existiu, como não há evidência, através da fundamentação do acórdão recorrido, de onde possa concluir-se por uma atuação conjunta e conjugada de intenções e de vontades para a realização de qualquer facto ilícito ou criminalmente punível, por parte da sociedade arguida, ou sequer com o representante deste, não podendo, por consequência ter este facto outro destino que não ser dado como não provado. Reitera-se nesta sede toda a impugnação, e transcrições, efetuadas quanto à matéria constante dos factos 17, 19, 20, 25 e 33.
25. O facto 37 deve ser considerado como não provado, sendo que em abono desta alteração, se remete para o que se explicitou anteriormente em relação ao desconhecimento da sociedade arguida, e do diretor técnico da obra, em relação às regras e normas específicas aplicáveis à contratação pública. Reitera-se nesta sede toda a impugnação, e transcrições, efetuadas quanto à matéria constante dos factos 17, 19, 20, 25 e 33.
26. Neste sentido é clara a transcrição efetuada dos depoimentos de AA, DD, EE, HH, quanto à impugnação dos factos antecedentes, bem como para a impugnação do facto 43, para a qual aqui também se remete.
27. O Facto 38 deve ser considerado como não provado, pelos motivos que justificam a impugnação dos factos 17, 19, 25, 33 e a que se aduzirá na impugnação ao facto 43, no segmento que se refere a este tema concreto.
28. O facto 39 deve ser considerado como não provado. Para os devidos efeitos, e por uma questão de economia processual, os arguidos reiteram todo o alegado na impugnação aos factos 17, 19, 25, 33 e a que se aduzirá na impugnação ao facto 43, no segmento que se refere a este tema.
29. O Facto 43 deve ser considerado como não provado. Afigura-se aos ora recorrentes, que neste facto dado como provado se encontra o núcleo essencial da matéria de facto, na parte relativa ao elemento subjetivo do tipo legal do crime de falsificação de documento.
30. Prova alguma, quer testemunhal, quer documental, quer prova direta ou indireta naquelas baseada permite concluir que os arguidos, ora recorrentes, mesmo que tivessem consciência de que o procedimento padecia de vícios formais, pois que se trataria de obra anteriormente executada, jamais se poderia considerar provado, desde logo, que os arguidos tenham agido com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização.
31. Os ora recorrentes, e em particular a arguida sociedade, pois que o arguido BB, deste tema nada sabe, limitaram-se a cumprir as indicações que lhe foram solicitadas pelo Município ....
32. Nenhum elemento de prova (mesmo que indireta) permite suportar que os arguidos, ora recorrentes, agiram com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização. Nenhuma testemunha a tal se referiu, nenhum arguido confessou tal facto pelo que não é (nem pouco mais ou menos) legítimo concluir-se que os arguidos, ora recorrentes, tivessem intenção de lograr tal finalidade.
33. Do acordo verbal celebrado entre o arguido AA, enquanto representante da Câmara Municipal ... e o engenheiro da obra, Eng. DD, resultou a obrigação deste em pavimentar aquele troço ..., o que ele cumpriu, mas também, naturalmente, a correspetiva a obrigação de pagamento.
34. A autarquia, através do seu Presidente acordou verbalmente, não só a execução da pavimentação desse troço como também acertou o pagamento do preço correspondente aos preços unitários fixados na empreitada, sem qualquer acréscimo. Daí o tribunal ter dado como provados os factos 55 e 56.
35. Ainda que se pudesse invocar a irregularidade procedimental desse acordo, depois de executada a obra, jamais uma entidade de bem poderia recusar pagar o preço, invocando essa mesma irregularidade. Estaríamos aqui perante um abuso de direito na vertente de Venire contra factum proprium.
36. Encontrando-se todos cientes que o preço fixado para a execução do troço em questão tinha como base os preços unitários dos trabalhos do anterior troço ..., e que esse preço fixado no concurso público fora o mais baixo (e substancialmente mais baixo) de todas as demais propostas (daí que aquela obra tenha sido adjudicada à arguida sociedade) seria absolutamente seguro que, ou por força de declaração da nulidade ou do enriquecimento sem causa, a sociedade arguida sempre teria direito ao preço certado e que veio a receber, acrescido até dos juros de mora.
37. O pagamento efetuado traduziu-se, não num benefício ilegítimo para a sociedade arguida, mas antes no cumprimento, pela autarquia, de uma obrigação que a mesma assumiu em momento anterior, já que havia recebido a respetiva contrapartida (a execução da pavimentação desse troço de estrada).
38. Para prova dessa intenção, o tribunal a quo limitou-se a afirmar na pág. 45 que, como a realização da obra não deu observância prévia às regras da contratação pública e das normas contabilísticas, o pagamento ao empreiteiro não se podia legalmente realizar, como ressuma dos depoimentos das testemunhas JJ, KK, LL e MM). A libertação do pagamento é, em si, um benefício. Como benefício é a “regularização” das contas da autarquia e, assim, evitar a deteção da irregularidade e evitar eventual responsabilização dos agentes.”
39. Na fundamentação do tribunal a quo, para considerar provada tal intenção foi apenas a circunstância de a deteção de irregularidade ser uma consequência necessária daquela formalização, o que, entende-se é manifesta e claramente insuficiente para suportar a prova de tal facto.
40. Segundo o tribunal a quo o arguido BB e a sociedade arguida tinham conhecimento disso porque, pasme-se “não havia razão para não saberem”! Que regra comum de experiência e lógica justifica tal conclusão?!
41. A sociedade arguida efetuou a pavimentação que lhe foi indicada pelo representante do município e, de forma a obter o respetivo pagamento, fez o mesmo a solicitação dos serviços do município. É alheia, assim, como também o é o arguido BB, à tramitação interna do município, à justificação ou roupagem jurídica que o mesmo deu para proceder ao pagamento devido.
42. Os ora recorrentes, são completamente alheios à circunstância de ter sido considerado que os trabalhos realizados não se enquadravam no regime dos trabalhos a mais, no âmbito da Contratação Pública, ao facto de o arguido AA saber ou não de tal facto e/ou ao facto de a arguida CC ser, ou não, conhecedora da data da realização dos trabalhos.
43. Uma coisa é o enquadramento jurídico objetivo que se faça em relação a determinado facto (caracterização de trabalhos complementares ou a mais) e outra, bem diferente, é a eventual errónea interpretação normativa que o agente faça a partir de dado facto, por via da qual lhe advenha a convicção da conformação legal do seu comportamento.
44. Uma irregularidade procedimental e/ou administrativa não traduz necessariamente ilícito criminal, admitindo, por exemplo, uma situação de ilícito administrativo sujeito à respetiva sanção.
45. Pelos fundamentos já acima invocados e até repetidamente, o tribunal, à luz dos princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo tem de se considerar também como não provado que os arguidos, ora recorrentes, soubessem que aquele novo procedimento, que iria ser conduzido de forma absolutamente idêntica à de qualquer outro (sem obra já executada) se reportava a uma obra já concluída.
46. O facto 44 deve ser considerado como não provado. Os fundamentos, óbvios até, são os que emergem da fundamentação dada na impugnação antecedente dos factos o precedem, já que em momento algum os arguidos, ora recorrentes, admitiram que incorressem em responsabilidade muito menos responsabilidade criminal.
47. Os funcionários da sociedade arguida limitaram-se a subscrever o que lhe foi solicitado por parte dos serviços do Município ... e o arguido BB sempre foi desconhecedor da tramitação processual solicitada pelos serviços do Município ....
48. Independentemente de eventuais irregularidades formais de que o procedimento em causa possa padecer, a intervenção dos arguidos no âmbito da contratação da pavimentação do troço de estrada entre ... e ... (Proc. Nº 60/DPO/SOM/2017), não foi levada a cabo com a intenção de prejudicar ou beneficiar quem quer que fosse, a não ser beneficiar o interesse público municipal, que saiu objetivamente beneficiado.
49. Aliás, da abundante jurisprudência do Tribunal de Contas disponível para consulta não se conhece alguma decisão que tenha mandado extrair certidão para efeitos criminais nos casos em que o tribunal deteta que o procedimento pré-contratual não é o adequado à natureza ou ao valor do contrato ou que este foi formalizado à posteriori, isto é, depois da respetiva prestação se encontrar já em execução ou mesmo concluída, como é o caso nos autos, mesmo nas situações em que o Tribunal reconhece que o que se pretendia com o contrato assim celebrado era conferir-lhe, à posteriori, vestes de legalidade.
50. Nestes casos o Tribunal de Contas tem vindo apenas a recusar o visto aos respetivos contratos e a determinar a abertura de processo para efeitos de apuramento dos factos e de eventual responsabilidade financeira dos intervenientes, a título responsabilidade financeira reintegratória ou sancionatória, nos termos do disposto nos artigos 59º a 65.º da LOPTC.
51. Em relação ao elemento subjetivo de acordo com o estatuído no artº 256º do C Penal, este prevê o dolo genérico, exigindo do agente o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
52. Nos termos e pelos fundamentos que se deixaram expostos a propósito da impugnação da matéria de facto, que os arguidos, ora recorrentes, consideram dever ser alterada, torna-se evidente que os recorrentes, confiando nos procedimentos e no profissionalismo dos serviços do Município ..., jamais representaram, sequer, como possível, que pudessem incorrer em violação de qualquer procedimento legal.
53. Encontra-se, desta feita, integralmente afastado o dolo genérico nas suas modalidades de dolo direto ou eventual no que concerne ao comportamento censurado pela lei penal, traduzível na participação em um procedimento de contratação pública não admissível nas circunstâncias do caso.
54. O dolo específico exigido pelo mesmo normativo penal traduz-se na intenção do agente em causar prejuízo a terceiro, ou de obter para ou para terceiro benefício ilegítimo, ou ainda, de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
55. Por outro lado, pelos argumentos já expendidos a respeito da impugnação da matéria de facto dada como provada, e que se deixa impugnada na presente motivação - ainda que se mantivesse provado que os arguidos tiveram participação consciente no novo procedimento que lhe foi apresentado pelos serviços administrativos da câmara - sempre se teria de concluir que não agiram com intenção de obter para si qualquer benefício ilegítimo (nem o acórdão ousa assim afirmá-lo), tanto mais que os mesmos nem têm boa relação com a Câmara Municipal, sendo estas caracterizadas, até, por litígios, conforme resulta da fundamentação do acórdão recorrido.
56. O enquadramento feito pelo tribunal recorrido em relação à prática do crime de falsificação p. e punido pelo artº 256º, no que concerne à integração do elemento subjetivo, respeitante ao segmento do facto provado do ponto 43 quando refere que os arguidos atuaram “com intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização.” não tem a menor sustentação.
57. O avantajamento ilícito (do próprio agente ou de outrem), ainda que não necessariamente material ou patrimonial, enquanto elemento subjetivo do tipo, não se coaduna com a conjetura de uma potencial maior dificuldade em o agente da ação ser fiscalizado.
58. A lei distingue, em relação ao preenchimento do dolo específico que exige, duas distintas situações: (i) a intenção de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo; ou, (ii) a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
59. A apontada (e inventada) intenção dos arguidos em dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controle e assim se eximirem à responsabilização nunca se enquadraria nesta segunda situação da previsão legal.
60. Não está em causa a intenção de encobrir a prática de um outro crime; de o preparar, de o facilitar ou de o encobrir, sendo que somente se o agente tivesse intenção de preparar um outro crime, de facilitar a prática de um outro crime; de executar um outro crime ou de encobrir um outro crime, se estaria diante o preenchimento do dolo específico, no quadro desta segunda modalidade da punição da intenção do agir.
61. Tudo para concluir pela ausência do preenchimento dos elementos necessários à prática do crime de falsificação, desde logo, e também, em face de um erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico-penal.
62. O tribunal recorrido incorreu em erro in judicando em matéria de facto e violou artigo 256º nº 1 d) e e) e nº 4 do CP carecendo o acórdão recorrido do remédio jurídico como é o recurso, em vista à obtenção da cura do acórdão recorrido enfermo.
63. Não se verificando o preenchimento, por parte dos arguidos, ora recorrentes, do tipo legal de crime de falsificação, não pode a sociedade arguida ser condenada no pagamento ao Estado de qualquer quantia ao abrigo do disposto no 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogado o acórdão recorrido na parte em que:
- Condenou o arguido BB, com os demais sinais dos autos, pela prática, em coautoria, de 1 (um) crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4 do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na respetiva execução pelo período de 2 (dois) anos.
- Condenou a sociedade arguida A..., Lda, com os demais sinais dos autos, pela prática de 1 (um) crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelos arts. 11º, n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 7 e 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4, ambos do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 150 (cento e cinquenta euros), perfazendo o quantitativo total de € 22 500 (vinte e dois mil e quinhentos euros);
- Condenou a sociedade arguida A..., Lda, ao abrigo do disposto no 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal, no pagamento ao Estado da quantia de € 2.321,35 (dois mil trezentos e vinte e um euros e trinta e cinco cêntimos), absolvendo-o do pedido de pagamento de montante superior,
- proferindo-se um outro que determine a absolvição total dos arguidos, aqui recorrentes, com o que V/Exas farão a merecida, habitual, sempre aguardada e são JUSTIÇA!».
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Os recursos foram admitidos para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência dos recursos, nos termos constantes do respetivo articulado e cujo teor aqui damos por reproduzido.

Do mesmo modo, apresentaram resposta os arguidos AA, CC, BB e A..., Lda, pugnando pela improcedência do recurso do Ministério Público, nos termos constantes dos respetivos articulados e cujo teor aqui temos por reproduzidos.

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A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se pela procedência parcial do recurso do MP e pela negação de provimento aos demais recursos, interpostos pelos arguidos, concluindo nos seguintes moldes (segue transcrição): «Naquela que se configura ser a factualidade a ter como assente, entendemos que a mesma integra a prática: - pelos arguidos AA e BB, em co-autoria, de um crime de prevaricação, p. e p. pelos arts. 26.º, 28.º e 66º, n.º 1 do Código Penal e art. 11.º da Lei n.º 34/87 de 16/07; - pelos arguidos CC, BB e A..., Lda; Lda., em co-autoria um crime de falsificação de documento, agravado, p. e p. pelos arts. 11º, n.º 2, al. a), n.ºs 4 e 7, 28º e 256.º, n.º 1, als. d) e e), e n.º 4, ambos do Código Penal.
Termos em que
- se devem manter as condenações dos arguidos CC, BB e A..., Lda; Lda. nas penas já fixadas na primeira instância, por, nessa parte, não ter sido interposto recurso por qualquer sujeito processual;
- deverão os arguidos AA e BB ser condenados, em co-autoria, pela prática de um crime de prevaricação, p. e p. pelos arts. 26.º, 28.º e 66º, n.º 1 do Código Penal e art. 11.º da Lei n.º 34/87 de 16/07;
- deverão todos os arguidos ser condenados, solidariamente, no pagamento ao Estado da quantia de € 2.321,35 (dois mil trezentos e vinte e um euros e trinta e cinco cêntimos), por com todas as suas descritas terem proporcionado à arguida A..., Lda; Lda a obtenção de vantagens naquele valor».

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer pelos arguidos CC e AA, reiterando, a primeira, as conclusões do seu recurso e concluindo, o segundo, pela improcedência do recurso do Ministério Público.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Assim, podemos equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes [1]:
1) Recurso do Ministério Público.
a) Vícios decisórios.
b) Impugnação da matéria de facto.
c) Condenação de todos os arguidos pela prática dos crimes de prevaricação e de falsificação de documento.
d) Perda de vantagens.

2) Recurso da arguida CC.
a) Insuficiência da fundamentação.
b) Impugnação da matéria de facto e violação do princípio “in dubio pro reo”.
c) Preenchimento do tipo de ilícito do crime de falsificação de documento.


3) Recurso dos arguidos BB e A..., Lda.
a) Insuficiência da fundamentação.
b) Impugnação da matéria de facto e violação dos princípios da livre apreciação da prova e do “in dubio pro reo”.
c) Preenchimento do tipo de ilícito do crime de falsificação de documento.

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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão proferida.

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Factos provados e não provados; motivação da decisão de facto (segue transcrição):

«Instruída e discutida a causa, resultaram provados, com relevo para a decisão desta, os seguintes factos:

1. No contexto dos factos narrados infra, o cargo de Presidente da Câmara Municipal ... foi ocupado pelo arguido AA até à tomada de posse desse cargo, em 14/10/2017, pela arguida CC, na sequência das eleições autárquicas de 01/10/2017. Até então, esta arguida ocupava o cargo de Vice-Presidente, desde o ano de 2013, acumulando os Pelouros da Cultura, Turismo, Educação, Ação Social e do Desporto.

2. Os dois arguidos referidos concorreram nessas eleições em listas do Partido Socialista,7 concorrendo o arguido AA como cabeça de lista para o cargo de Presidente da Assembleia Municipal, que veio a ocupar 8.

(nota de rodapé 7: Lista para a Câmara Municipal, a arguida CC, e lista para a Assembleia Municipal, o arguido AA; nota de rodapé 8: Cf. https://www.cne.pt/content/eleicoes-autarquicas-2017).
3. A sociedade A..., Lda, LDA. foi constituída em 09/02/1995, dedicada a pavimentações, construção de obras públicas e particulares, compra e venda de materiais de construção, compra e venda de imóveis, entre outros.9 (nota de rodapé 9: Cf. certidão permanente de fls. 351-359).

4. O arguido BB é sócio e gerente da sociedade arguida e interveio, no contexto dos factos narrados infra, em nome e no interesse desta, para promoção da correspondente atividade comercial.

5. No Município ..., inscreveram-se nas Grandes Opções do Plano (GOP) do ano 2015, com repetição nas GOP do ano 2016, os seguintes projetos:

a. ... 31 2015/73 - pavimentação da estrada de ligação de ... (...);

b. ... 31 2015/54 – pavimentação da via de ligação de ... a ... (.../.../...);

c. ... 31 2015/75 – pavimentação da estrada de Forno ... à ... (...);

d. ... 31 2015/56 – pavimentação da via de ligação de ... (...).10

6. No Município ..., inscreveram-se nas GOP do ano 2017 os projetos referidos em a., b. e c. do ponto anterior e, ainda o seguinte projeto:

... 31 2017/56 – grandes reparações/beneficiação de estradas, entroncamentos, pontes e caminhos.11

(nota de rodapé 10: Cf. Dossier sem indicação de assunto na capa, do Município ..., contendo as GOP, página 32 (do ano de 2015) e pág. 31 (do ano de 2016); nota de rodapé 11: Cf. Fls. 403 verso e fls. 404; cf. ainda Dossier sem indicação de assunto na capa, do Município ..., contendo as GOP, páginas 34 e 35 (do ano de 2017).

7. No projeto previsto nas GOP de 2015, 2016 e 2017, sob o código “... 31 2015/73 - pavimentação da estrada de ligação de ... (...)”, referido em a. do ponto 5 da factualidade provada, a estrada, tendo em conta os seus pontos extremos, é constituída pelo troço de ... e pelo troço .... Assim, qualquer um destes troços faz parte da estrada do ... e, consequentemente, a sua pavimentação estava prevista nas referidas GOP.

8. Posto isto, foi deliberada pela Câmara Municipal ... (CM...) a abertura, em 06/06/2017, do procedimento contratual com o n.º 20/DPO/SOM/2017, de concurso público, relativo a “empreitada de pavimentação em tapete em vários locais do concelho”, incluindo os seguintes projetos:

a. Pavimentação da Estrada de ... (...) – .../.... PPI ... 31 2015/73;

b. Pavimentação da Via .... PPI ... 31 2015/54;

c. Pavimentação da Estrada de ...). PPI ... 31 2015/75;

d. Grandes Reparações/Beneficiações de Estradas, Entroncamentos, Pontes e Caminhos. PPI ... 31 2017/56, projeto que contemplava as seguintes vias:

i. Pavimentação da Estrada ...;

ii. Pavimentação da Estrada ... (Moldes); e

iii. Pavimentação da Estrada ....12

(nota de rodapé 12: Fls. 48 a 51e 655 a 663. Cf. Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017-Município ..., fls. 5, 11, 46 a 49 e 87 a 90).

9. Foi adjudicada a empreitada à A..., Lda., pelo preço contratual de 239.864,53€, classificada no “CPV ...20-7, Pavimentação de estradas”13.

(nota de rodapé 13: Cf. fls. 48 a 51).

10. A adjudicação foi determinada por deliberação da Câmara Municipal ... de 18 de julho de 2017.14. Foi celebrado o contrato de empreitada entre o Município ... (representado pelo arguido AA) e a A..., Lda. (representada pelo arguido BB), assinado digitalmente nos dias 13/09/2017 e 14/09/2017. Foi o dito contrato publicitado no portal BASE em 14/09/2017.15

(nota de rodapé 14: Cf. fls. 664 e fls. 366, 393 a 398 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ...; nota de rodapé 15: Cf. fls. 49 a 51 dos autos, fls. 393 a 397 e fls. 398 e 399 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ...).

11. O contrato tinha por objeto a execução da empreitada de “Pavimentação em Tapete em Vários Locais do Concelho”, constando expressamente do mesmo, na cláusula 10ª, que integrava os projetos previstos no Plano Plurianual de Investimentos (PPI) para 2017/2020, sob os números ... 31 2015/7316, ... 31 2015/54, ... 31 2015/75 e ... 31 2017/56, referidos no ponto 8º da factualidade provada.17

(nota de rodapé 17: O Plano Plurianual de Investimentos (PPI) e as Atividades Mais Relevantes (AMR) compõem as denominadas Grandes Opções do Plano (GOP).

12. Ficou a constar no contrato que ao encargo orçamental correspondiam os cabimentos n.º 7136, 7137, 7138 e 7139, de 31/05/2017, e os compromissos ...37, ...38, ...39 e ...40, de 21/07/2017 (cláusula 12.ª). O cabimento n.º ...38 e o compromisso n.º ...41 respeitavam ao projeto referido em a. do ponto 8º da factualidade provada (PPI ... 31 2015/73).18

(nota de rodapé 18: Cf. fls. 1 a 4, maxime fls. 3 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município .... Cf. ainda fls. 366 a 370. O cabimento n.º ...38 e o compromisso n.º ...41 eram no valor de € 99.999,66. O preço unitário da proposta da sociedade arguida para a execução da empreitada do PPI ...31.2015... – Troço ..., a quem foi adjudicada, era de € 64.774.36. Ou seja, o preço da proposta continha-se dentro da despesa autorizada pela Câmara Municipal ...).

13. Ficou a constar no contrato que os pagamentos devidos seriam “efetuados no prazo de sessenta dias após a entrega das respetivas faturas, tendo por base os autos de medição dos trabalhos realizados e a liquidação dos preços correspondentes” (cláusula 9ª).

14. Por referência ao projeto indicado em a. do ponto 5º e no ponto 7º da factualidade provada, foi executada pela sociedade arguida a pavimentação da estrada entre ... (freguesia ...) e ... (freguesia ...)19, entre os dias 23/09/2017 e 26/09/2017, a poucos dias das eleições autárquicas.

(nota de rodapé 19: Cf. ortofotomapa de fls. 105 e fls. 40 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ..., respeitante ao ..., cuja pavimentação foi incluída no contrato de empreitada do procedimento vindo de referir; cf. ainda fls. 106, que respeita ao Troço .... Cf. documentos, mails trocados entre a fiscal da obra e o diretor técnico, bem como informação daquela à Chefe da DPO, que inculcam que os trabalhos de pavimentação foram executados no período apontado, cf. fls. 170 a 175, 178, 180 e 181 da Pasta proc. n-º 20/2017).

15. Não estava, porém, previsto no procedimento contratual por concurso público n.º 20/DPO/SOM/2017, mormente na orçamentação 20, caderno de encargos 21, proposta e lista de preços unitários 22, contrato de empreitada, mapa de trabalhos, conta final da empreitada 23, adjudicação ou qualquer outro documento do dito procedimento, a pavimentação do troço entre ... e ... (mas apenas, como já referido, o troço ...).

(nota de rodapé 20: Cf. Artigo 1 de Fls. 46 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ...; nota de rodapé 21: Cf. fls. 21 a 45 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ...; nota de rodapé 22: Cf. art. 1 de fls. 25 da Pasta Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ...; nota de rodapé 23: Cf. Artigo 1 de fls. 15, fls. 18, fls. 58, 84 e 185 da Pasta Proc. n.º 20/17).

16. Sucede que, aproximando-se as eleições autárquicas às quais concorriam os arguidos AA e CC, em listas do mesmo partido político, foi transmitido ao primeiro o desagrado da população local com a não inclusão na empreitada do procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017 do troço ..., população que há muito reclamava pela respetiva pavimentação 24, o que lhe foi transmitido, entre outras pessoas, pelo então Presidente da Junta de Freguesia ..., FF.

(nota de rodapé 24: Cf. ofício de fls. 88).

 17. Nessa sequência, o arguido AA, no dia 23/09/2017, deslocou-se ao local, tendo verificado que o piso da estrada do troço da ... estava em muito mau estado, com desgaste expressivo e depressões acentuadas. Solicitou, nessa ocasião, à sociedade arguida A..., Lda., cujos trabalhadores estavam a pavimentar o troço ..., que procedesse, logo de seguida, à pavimentação do piso do troço ..., o que aquela sociedade, por decisão do Eng. DD, diretor técnico da empreitada e representante da empreiteira no procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017 (25), aceitou fazer, como efetivamente fez. O arguido AA estava ciente que a pavimentação deste troço, não prevista no proc. n.º 20/DPO/SOM/2017,26 sendo desejada pela população local, era suscetível de aumentar o número de votos na lista do partido pelo qual, juntamente com a arguida CC, se candidatava às eleições autárquicas. E não ignorava que, desse modo, a sociedade arguida A..., Lda. seria preferida, como foi, na execução da obra de pavimentação do troço ... e no pagamento do correspondente preço, sem a realização de qualquer procedimento contratual prévio.

(nota de rodapé 25: Cf. fls. 190 e fls. 195 e 196 da Pasta n.º 20/2017; nota de rodapé 26: Cf. ortofotomapa de fls. 106).

18. O arguido AA não era candidato, nas eleições autárquicas de 2017, a um órgão executivo da Câmara Municipal ....

19. A pavimentação do troço ..., acordada entre o arguido AA e a arguida A..., Lda., atuando ambos em conjugação de esforços e vontades, foi executada, nos sobreditos termos, logo após a pavimentação do troço ... – estando este troço previsto no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, mas não aquele –, sem a prévia abertura de procedimento contratual autónomo.

Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017:

20. Posto isto, para permitir a realização do pagamento à sociedade A..., Lda. pelos trabalhos de execução da pavimentação do troço ..., com aparência de respeito pelas regras da contabilidade pública, visto que tal pagamento não estava contemplado no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, não obstante os trabalhos a menos que no mesmo vieram a ser decididos 27, a arguida CC e o arguido BB, em representação da sociedade arguida, puseram-se de acordo quanto à formalização de um novo procedimento contratual, respeitante àquele troço, ainda que posterior à execução da predita pavimentação.

(nota de rodapé 27: Cf. fls. 40, 98 e 104 a 109, da Pasta Proc. n.º 20/17; e ainda informação de fls. 445 a 447).

21. Nessa sequência, por despacho de 28/11/2017, veio a ser tomada pela arguida CC (28) a decisão de contratar a empreitada de obras públicas, dando início ao procedimento contratual com o n.º 60/DPO/SOM/2017, por ajuste direto, que veio a resultar na adjudicação dos trabalhos de pavimentação daquele troço ... à A..., Lda., pelo preço contratual de € 42.617,50, inserido no CPV 45233200-1, Obras diversas de pavimentação.

(nota de rodapé 28: Cf. fls. 20, 22 e 23 do Anexo A (numeração no canto superior direito).

22. A adjudicação, decidida por despacho da mesma arguida de 05/12/2017 (29), foi publicitada no portal BASE a 15/12/2017 (30), tendo o contrato de empreitada outorgado entre o Município ... (representado pela arguida CC) e a A..., Lda. (representada pelo arguido BB) sido assinado digitalmente no mesmo dia. (31)

(nota de rodapé 29: Cf. fls. 57 do Anexo A; nota de rodapé 30: Cf. fls. 42; nota de rodapé 31: Cf. fls. 61 e 62 e fls. 69 a 71 do Anexo A. Fls. 92 a 94 do Pasta do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017).

23. Nesse contrato, inscreveram, na sequência daquele acordo, que o contrato tinha por objeto a execução da empreitada de pavimentação da estrada de ..., acrescentando a esse objeto: “- .../...” (cláusula 3.ª).

24. Com o assentimento da arguida CC, a eng. EE, funcionária da Divisão de Planeamento e Obras do Município ..., elaborou o Caderno de Encargos (32) e o Programa e Projeto de Execução (Memória Descritiva)33.

(nota de rodapé 32: Cf. fls. 6 a 17 do Anexo A; nota de rodapé 33: Cf. fls. 18 do Anexo A).

25. O arguido BB, em nome e no interesse da sociedade arguida, subscreveu o documento intitulado DECLARAÇÃO 34, datado de 04/12/2017, no qual declarou ter tomado conhecimento do caderno de encargos do contrato e que a sua representada se obrigava a executar este último em conformidade com o dito caderno e nos termos previstos na proposta e na lista unitária de preços unitários final, e noutros documentos anexos, necessários para a formalização do procedimento, apesar de bem saber que o dito contrato já se encontrava executado.

(nota de rodapé 34: Cf. fls. 27 a 55 do Anexo A).

26. O cabimento de despesa foi autorizado por despacho da arguida CC, de 13/11/2017 (35).

(nota 35: Cf. fls. 5 do Anexo A)

27. Atenta a execução da obra, foi emitida pela A..., Lda., por ordem do arguido BB, a fatura FA 2017/...15, com alusão ao compromisso n.º ...17, no valor de 45.185,15€ (36), com IVA incluído, e o recebimento n.º 573/2017, de 28/12/2017 (37), confirmando o recebimento do preço da pavimentação de tal troço.

(nota 36: Cf. fls. 131; nota 37: Cf. fls. 132 e 133).

Os limites trienais – impedimento de convite a contratar:

28. Ademais, à data, em procedimento de formação de contratos de empreitada de obra pública, estava vedado à entidade adjudicante, como era o caso do Município ..., convidar a apresentar propostas em procedimento de ajuste direto as entidades às quais a entidade adjudicante tivesse adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de ajuste direto, propostas para a celebração de contratos cujo objeto fosse constituído por “prestações do mesmo tipo ou idênticas” às do contrato a celebrar, e cujo preço contratual acumulado fosse igual ou superior a 150.000,00€ (38).

(nota 38: Cf. art. 113.º, n.º 2 do Código dos Contratos Públicos, conjugado com o art. 19.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal (na versão do Dec.-Lei n.º 214-G/2015 de 02/10, então vigente).

29. Estava já então em vigor o Vocabulário Comum para os Contratos Públicos (CPV) (39), que é um sistema único de classificação aplicável aos contratos públicos, com o objetivo de normalizar as referências que as autoridades e entidades adjudicantes utilizam para caracterizar o objeto dos seus contratos públicos. (40)

(nota 39: Cf. fls. 448 a 456; nota 40: O Common Procurement Vocabulary, ou CPV, foi instituído pelo Regulamento (CE) n.º 2195/2002 de 05/11/2002, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 213/2008 da Comissão Europeia, de 28/11/2007. Cf. nomeadamente os considerandos deste último Regulamento, consultável no sítio da internet base.gov.pt. Nos considerandos do primeiro dos regulamentos referidos, consta que “o recurso a diferentes nomenclaturas prejudica a liberalização e a transparência dos contratos públicos europeus” e ainda que os “Estados-Membros devem dispor de um sistema único de referência, que utilize a mesma descrição dos bens nas línguas comunitárias oficiais e o mesmo código alfanumérico correspondente e que permita, assim, derrubar as barreiras linguísticas a nível comunitário”. Cfr. ainda as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2004/17/CE e 2004/18/CE, relativas aos processos de adjudicação de contratos, no que respeita à revisão do CPV. a. O CPV era, e é, de utilização obrigatória pelas entidades adjudicantes (modelos publicados em anexo à Portaria n.º 701-A/2008 de 29 de julho).

30. O CPV contém um Vocabulário Principal e um Vocabulário Suplementar. O Vocabulário Principal assenta numa estrutura de códigos em árvore de até 9 algarismos (um código de 8 algarismos e um algarismo de verificação), associados a uma designação que descreve o tipo de fornecimentos, obras ou serviços objeto do contrato. No código numérico: os primeiros 2 algarismos identificam as divisões (XX000000-Y); os primeiros 3 algarismos identificam os grupos (XXX00000-Y); os primeiros 4 algarismos identificam as classes (XXXX0000-Y); os primeiros 5 algarismos identificam as categorias (XXXXX000-Y); cada um dos três algarismos finais acrescenta um grau de precisão suplementar, dentro de cada categoria. (41)

(nota 41: Cf. Anexo I do Regulamento (CE) n.º 213/2008 da Comissão Europeia, de 28/11/2007).

31. Para aferir da existência de “prestações do mesmo tipo ou idênticas”, era utilizável pelas entidades adjudicantes como critério a classificação CPV dos contratos, nomeadamente os primeiros 5 algarismos, que definem a categoria da prestação. (42)

(nota 42: Cf. Acórdão n.º 3/2022, do Tribunal de Contas, 3.ª Secção, de 12/01/2022).

32. Verificava-se à data da adjudicação realizada no Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 a realidade descrita no quadro que segue (43):


(nota 43: Fls. 278-279).

33. Considerando que em tais casos estão em causa prestações do mesmo tipo ou idênticas, tendo por referência os primeiros cinco dígitos do CPV, ...33 no caso, quando foi decidido adjudicar a empreitada do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017, a sociedade arguida já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de 150.000,00€ correspondente ao máximo legalmente imposto (sendo já esse o caso do Proc. n.º 31/DPO/SOM/2016), o que não demoveu os arguidos de agir como descrito.

34. Como foram executados trabalhos a menos no âmbito do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, o pagamento neste caso veio a cifrar-se em €172.953,96, acrescido de IVA; e não o preço adjudicado de € 239.864,53, acrescido de IVA. (44)

Se considerado o preço adjudicado de 42.617,50€, acrescido de IVA, do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017, a sociedade arguida acabou por receber, de ambos os procedimentos, o total € 215.571,46, acrescido de IVA.

(nota 44: Fls. 107 da Pasta Proc. n.º 20/17).

35. No entanto, apesar de os trabalhos a menos se terem vindo a tornar uma realidade, a pavimentação do troço entre ... (45):

a. Não resultava necessária em razão de erro ou omissão no âmbito do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017;

b. Não era necessária para a execução da obra incluída no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017;

c. Era tecnicamente e economicamente separável da obra incluída no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, não se impondo a sua execução para a realização das obras contempladas neste.

(nota 45: Arts. 370.º a 382.º do Código dos Contratos Públicos na versão instituída e em vigor pelo Decreto-Lei n.º 214- G/2015, de 02/10).

36. Agiram os arguidos BB - em nome e no interesse da sociedade A..., Lda LDA. -, e CC, em conjugação de esforços, intentos e vontades, nos moldes descritos supra.

37. Os arguidos AA e a sociedade A..., Lda, LDA, atuando esta através do diretor técnico da obra, eng. DD, concertaram-se, tendo em vista a execução célere do troço ..., cuja exclusão do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 era por eles conhecida, mas que sabiam desagradar à população local. Cientes que davam preferência à sociedade arguida na execução da empreitada de obras públicas de pavimentação do troço ..., e no pagamento do correspondente preço e inerente lucro, ainda que violando conscientemente as regras e as normas aplicáveis à contratação pública, como bem sabiam ser o caso, pois caso fossem cumpridas não permitiriam a execução dos trabalhos sem um procedimento contratual prévio.

38. Sabiam os arguidos CC e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade arguida A..., Lda., que esta última não podia ser convidada a apresentar proposta no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017, porque havia sido beneficiária nos dois anos anteriores de contratos, tendo por objeto prestações do mesmo tipo ou idênticas, celebrados por ajuste direto, em valor superior a € 150.000,00.

39. BB, em especial, atuou visando promover as atividades a que se dedicava a A..., Lda., e obter o correspondente pagamento, ainda que violando as regras e normas aplicáveis.

40. Sabiam todos os arguidos que AA, enquanto Presidente da Câmara Municipal, e CC, enquanto Vice-Presidente e Presidente, respetivamente, e como indicado, no exercício dessas funções, deviam agir tendo exclusivamente em mente o interesse público, e não o seu interesse particular ou de terceiros, atuar com imparcialidade, e respeitar as regras e normas da contratação pública e da contabilidade pública, estando todos cientes que tal não sucedeu.

41. E, ainda, que a contratação pública é regida pelos princípios da transparência, da igualdade e da concorrência, e que o procedimento de formação de qualquer contrato se inicia com a decisão de contratar, a qual cabe ao órgão competente para autorizar a despesa inerente ao contrato a celebrar, precedendo a sua execução, sem que, no caso vertente, existisse fundamento para a retroatividade do contrato de empreitada.

42. Sabia, pois, o arguido AA que, ao acordar com a sociedade arguida a pavimentação do troço ..., decidia contra o Direito aplicável.

43. Os arguidos CC e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade A..., Lda; LDA, em conjugação de esforços e intentos, quiseram fazer constar falsamente do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 o ajuste direto por referência a uma empreitada ainda por realizar, bem como a proposta efetuada pela A..., Lda. por referência a empreitada ainda por realizar, estando perfeitamente cientes que essa empreitada já havia sido executada, e que as menções à execução futura, nos documentos do procedimento, eram por isso contrárias à realidade dos factos, o que fizeram para dissimular que a execução da obra já ocorrera, com a intenção de que o pagamento da empreitada à sociedade arguida por parte da entidade adjudicante se pudesse realizar, em consonância com as regras da contabilidade pública e, ainda, com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização, sabendo até que a sociedade arguida não poderia ser convidada a apresentar propostas no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017.

44. Em tudo, agiram de um modo livre, deliberado e consciente, cientes de que incorriam em responsabilidade penal.


*

45. Havia anos, tendo por referência setembro de 2017, que a estrada entre ... e ... tinha um pavimento em semipenetração betuminosa, com superfície de desgaste muito degradada e deformada, com buracos que abriam, o que obrigava à intervenção frequente da brigada de cantoneiros da edilidade.

46. O arguido AA, como transmitia à população e aos presidentes de Junta, tinha a preocupação de que a realização de obras de pavimentação das estradas com tapete betuminoso fosse precedida da execução das infraestruturas, nomeadamente a colocação das tubagens de saneamento e de abastecimento de água, de modo a evitar que, pouco tempo depois da aplicação do tapete, tivessem de ser feitos rasgos na estrada, deteriorando o respetivo piso.

47. A execução das infraestruturas dos serviços públicos de água era, como é, da responsabilidade da empresa pública B..., SA (B...).

48. Apesar de a estrada entre ... e ... estar com piso mau em toda a sua extensão, atento o facto de não ter ainda a garantia de as B... procederem à instalação da conduta de saneamento entre o lugar de ... e ..., o arguido AA deu instruções aos serviços municipais para incluir no objeto da empreitada do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 somente a pavimentação do troço de ... até ....

49. A realização da pavimentação da estrada, entre ... e ..., foi pedida pela Junta de Freguesia ..., tendo esse pedido sido reforçado verbalmente junto do vereador do pelouro da Câmara ..., NN, pelo presidente daquela junta, FF, particularmente aquando da execução dos trabalhos de pavimentação do troço ....

50. Quando se iniciou a pavimentação deste troço, e a população se apercebeu que a pavimentação chegaria apenas a ..., foi pedido ao arguido AA que se deslocasse ao local para ver que o piso da estrada estava péssimo.

51. O arguido AA deslocou-se ao local e verificou que o piso do troço ... estava em muito mau estado.

52. Esse troço fazia parte do percurso que fazia o autocarro escolar no transporte de alunos para as escolas em ... e ... e, para além do trânsito local, era utilizado por muitos visitantes, vindos de fora, em direção à Serra ....

53. Estas circunstâncias, com repercussão na segurança do trânsito da via, preocuparam o arguido.

54. Vieram a ser suprimidos à empreitada do proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 trabalhos previstos e contratados, por deliberações da Câmara Municipal ... de 19/12/2017 e de 06/03/2019, (46) nomeadamente, nesta última deliberação, a pavimentação: do troço entre ... e a Igreja ...; do troço de estrada entre .../... e .../... (...). Donde resultou a existência de trabalhos a menos naquela empreitada

(nota 46: Cf. atas das reuniões de Câmara juntas a fls. 33 e 112 e informações de trabalhos a menos, da DPO, de fls. 40 e de fls. 105, todas da Pasta n.º 20/17. E ainda 1º Adicional ao Contrato de Empreitada, do Proc. n.º 20/DO/SOM/2017, outorgado em 02/04/2019, junto a fls. 104).

55. O arguido AA, ao solicitar e acordar a extensão da pavimentação de ... a ..., estava ciente de que beneficiaria, como beneficiou, da presença das máquinas e equipamentos no local e que seria praticado o mesmo preço unitário contratual resultante do concurso público.

56. O arguido AA, no dia 23/09/2017, informou da decisão de estender a pavimentação de ... a ... quer o Vereador do Pelouro das Obras Municipais, NN, quer a responsável técnica pela fiscalização da obra, Eng. EE, solicitando-lhes que acompanhasse a execução dos trabalhos e ainda a esta última que acompanhasse a medição e que preparasse os elementos necessários à formalização dos trabalhos assim decididos realizar.

57. O arguido AA não deu ordens ou instruções expressas para lançar um novo procedimento contratual.

58. O presidente da Junta de Freguesia ... militava em partido diferente dos arguidos AA e CC. Era candidato à Câmara Municipal, ao cargo de vereador pela coligação do PSD e do CDS-PP, com a designação .... Era também candidato, como 2ª da lista, pela mesma coligação, à Assembleia de Freguesia ....

59. De acordo com os Relatórios de Gestão da Câmara Municipal ..., aprovados pelos órgãos competentes, foram a seguintes as taxas de execução financeira das Grandes Opções do Plano (GOP) (47), foram as seguintes:

- 2013 ………. 71,16% (ano eleitoral)

- 2014 ………. 72,13%

- 2015 ………109,32%

- 2016 ……… 118,61%

- 2017 ………. 74,09% (ano eleitoral)

- 2018 ………. 59, 95%

- 2019 ………. 73,30%

- 2020 ………. 74,21%

- 2021 ………. 72,58% (ano eleitoral). (48)

(nota 47: As Grandes Opções do Plano (GOP) integram o Plano Plurianual de Investimentos (PPI) e as Atividades Mais Relevantes (AMR); nota 48: Cf. documentos 5 a 13, de fls. 668 a 697).

60. O Município ... transitou em 31 de dezembro de 2016 com uma capacidade de endividamento no valor de 17.057.208,44 euros, sendo que em 31 de dezembro de 2017, ano durante o qual decorreram as eleições, o saldo transitado para o ano seguinte foi de 17.452,311,73 euros. (49)

(nota 49: Cf. fls. 698).

61. No que respeita às disponibilidades financeiras, o Município ... transitou no final do ano económico de 2016 com um saldo em dinheiro de operações orçamentais, próprio, no valor de € 3.525.673,13, saldo que no final de 2017 foi de € 4.310.511,56. (50)

(nota 50: Cf. “Resumo Diário da Tesouraria” números 247 de 30/12/2016 e 244 de 29/12/2017, juntos a fls. 699 a 701).

62. No ano de 2005, quando o arguido AA iniciou o seu primeiro mandato, o Município ... registava uma dívida a terceiros, de operações orçamentais, no valor no valor de 4.251.435,46€, sendo que no final de 2017, termo do último mandato, a dívida registava € 2.437.587,76. No ano de 2021, na presidência da arguida, CC, o Município registava uma dívida a terceiros de €1.212813,43. (51)

(nota 51: Cf. Relatórios de Gestão dos anos de 2005, 2017 e 2021, na parte intitulada de “Evolução da Dívida de e a Terceiros”, de fls. 703 a 715).

63. A gestão financeira do Município ... foi referida no Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses, editado pela Ordem dos Contabilistas Certificados, com o apoio do Tribunal de Contas, sendo referido como um dos municípios que, em 2017, ano eleitoral autárquico, integrava o ranking dos que apresentam, entre outras referências positivas, “maior equilíbrio orçamental”, “melhor índice de dívida total” e uma das melhores classificações no “ranking global” dos municípios portugueses. (52)

(nota 52: Cf. Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses, pág. 161, 214 e 319, in https://www.occ.pt/noticias/anuario-financeiro-dos-municipios-portugueses-2017/).

64. O lugar de ..., da freguesia ..., contava com uma população, nos censos de 211, de 111 residentes. A freguesia ..., ao tempo das eleições autárquicas de 2017, contava 1 163 eleitores inscritos.

65. Os troços de estrada suprimidos na empreitada do procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017 ficam situados em ..., freguesia que contava, em 2017, com 933 eleitores inscritos, e em ..., que contava, em 2017, com 2036 eleitores inscritos. (53).

(nota 53: Cf. Mapa Oficial dos Resultados Eleitorais n.º 1-A/2017 da CNE, publicado no DR, n.º 231, 1ª série, de 30/11/2017).

66. A lista em que concorreu o arguido AA à Assembleia Municipal ... obteve 7753 votos (52,07%), tendo a segunda lista mais votada obtido 5790 votos (38,88%).

67. A lista em que concorreu a arguida CC à Câmara Municipal ... obteve 8220 votos (55,20%), tendo a segunda lista mais votada obtido 5425 votos (36,43%). (54)

(nota 54: Cf. Mapa Oficial dos Resultados Eleitorais n.º 1-A/2017 da CNE, publicado no DR, n.º 231, 1ª série, de 30/11/2017).

68. Na empreitada do proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, cujo valor de adjudicação era de €239.864,53, a autarquia decidiu unilateralmente suprimir trabalhos no valor € 66.910,57 (trabalhos a menos), tendo a sociedade arguida executado apenas €172.953,96, acrescido de IVA. Na conta final da empreitada, elaborada pela autarquia, não foi liquidada indemnização alguma à empreiteira, não tendo esta, a ora arguida A..., Lda., reclamado da dita conta final. (55)

(nota 55: Fls. 18 da Pasta 20/2017).


*

69. A sociedade A..., Lda. para a realização da empreitada de pavimentação do troço ..., forneceu e aplicou diversos materiais na obra, tendo utilizado máquinas e recorrido a mão-de-obra, tendo suportado os correspondentes custos.

70. No ano de 2017, a sociedade arguida fez vendas e prestações de serviços no valor de € 14.762.045,56, tendo apurado um lucro tributável, antes de impostos, de € 803.890,26. A coleta (de IRC) ascendeu à quantia de € 168.216,95. Considerando a derrama e tributação autónoma e deduzidos os benefícios fiscais e os pagamentos por conta, entre o mais, fez o pagamento autoliquidado, a título de IRC, no montante de € 36.005,66.

71. A empreitada da pavimentação do troço ... trouxe um lucro para a sociedade arguida no valor líquido de € 2.321,35.


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72. O arguido AA é casado. A esposa, de 54 anos de idade, é doméstica.

73. A relação conjugal é sentida por ambos como gratificante e emocionalmente estável, com entreajuda mútua.

74. O arguido terminou, em outubro de 2017, o seu terceiro, e último, mandato como presidente da Câmara Municipal ....

75. A dedicação à atividade autárquica retirava-lhe disponibilidade para a família, tendo contado, durante o período em que exerceu funções como autarca, com o apoio e a colaboração da esposa no acompanhamento dos filhos. A esposa do arguido, a partir da gravidez do segundo filho, optou por se dedicar exclusivamente à família.

76. O arguido AA trabalha, desde março de 2020, em Angola. Visita a família em Portugal com uma periodicidade trimestral, permanecendo usualmente no nosso país pelo período de duas a três semanas.

77. A ausência regular do arguido no estrangeiro, por motivos profissionais, determinou a necessidade de readaptação do seu quotidiano. Não obstante, considera ter mais disponibilidade para a família agora do que no tempo em que era autarca.

78. O casal reside, desde janeiro de 2000, numa moradia de sua propriedade, com espaço exterior, localizada em zona sem problemáticas sociais de relevo.

79. O arguido AA é engenheiro técnico, tendo estudado do ISEP. Concluiu a licenciatura aos 26 anos. Durante a frequência do ensino superior, já lecionava.

80. Após a conclusão da sua formação académica integrou imediatamente os quadros superiores da C..., onde exerceu funções durante cerca de 10 anos. Trabalhou depois em empresas ligadas à construção de autoestradas em Portugal. Cessou a atividade profissional nessa área em 2005, quando foi eleito presidente da Câmara Municipal ....

81. Iniciou a atividade política na freguesia ..., sua terra natal, tendo sido eleito presidente de junta de freguesia em 1993. Este foi o seu primeiro cargo político, que exerceu até 2001.

82. AA exerceu as funções de presidente da Câmara Municipal ... em exclusividade de 2005 até 2017, altura em que, por impossibilidade legal de se recandidatar, assumiu as funções de Secretário de Estado da Proteção Civil, que desempenhou cerca de dois anos, até setembro de 2019, tendo renunciado ao cargo na sequência da instauração de inquérito sobre alegadas irregularidades em negócios públicos.

83. Por essas alturas, os rendimentos do agregado provinham do vencimento do arguido como presidente da Câmara Municipal e, depois, como Secretário de Estado da Proteção Civil.

84. Atualmente exerce funções como diretor geral da empresa D..., Lda., em Angola, e de gestor agrícola na empresa E..., Lda., localizada em .... Ambas as empresas fazem parte do mesmo grupo.

85. A sua situação profissional atual foi precedida de deslocação a Angola, em 2019, para avaliação das condições de trabalho que lhe eram propostas.

86. O arguido aufere mensalmente € 7000 líquidos. O valor das despesas do agregado ascende a cerca de € 3000, com a habitação, os gastos do casal e o apoio regular aos agregados de ambos os filhos. O arguido AA não tem despesas com a sua estada em Angola. A sua situação económica é sentida, por si próprio, como satisfatória.

87. O arguido AA tem uma imagem local associada ao seu percurso autárquico, sendo-lhe reconhecido mérito no desenvolvimento comunitário, proximidade aos residentes e interação regular e equilibrada. É pessoa respeitada e conceituada pela generalidade dos que o conhecem.

88. O arguido sempre sentiu a vida política como gratificante, sobretudo como autarca, considerando ter qualidades de liderança e sentindo-se reconhecido

89. O presente processo não tem repercussões conhecidas no seu quotidiano, quer laboral, quer familiar, quer social.

90. Não tem antecedentes criminais.


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91. A arguida CC vive com o filho, OO, de 22 anos, estudante do curso superior ..., no Instituto Superior ... (...).

92. As dinâmicas familiares e parentais são afetivamente gratificantes e solidárias, quer ao nível da relação parental/filial, com investimento no futuro e interesses do descendente, bem como, no relacionamento da arguida com os quatro irmãos, também residentes em ..., refletindo-se esta união e solidariedade nos cuidados partilhados para com a progenitora, pessoa com alguma idade e fragilidades de saúde.

93. A arguida e o filho vivem em moradia, com adequadas condições, propriedade dos pais do arguido, inserida em meio não associado a problemáticas sociais e criminais.

94. A arguida é licenciada em Turismo, pelo Instituto de Assistentes e Intérpretes, com pós-graduação em desenvolvimento e gestão de destinos turísticos.

95. Durante vários anos, a arguida CC foi responsável pelo Posto de Turismo da Região de Turismo ... (...), em ..., tendo este sido o seu primeiro emprego como funcionária pública, no ano de 1987.

96. Posteriormente, integrou os Serviços Centrais desta Região de Turismo, onde foi coordenadora dos serviços (administrativos, financeiros, técnicos/promoção) e Chefe de Divisão de Promoção Interna e Externa.

97. Entre 2009 e 2017, primeiramente como vereadora e depois, a partir de 2013, como vice-presidente, teve a seu cargo os pelouros do Turismo, Educação, Cultura, Desporto e Ação Social do Câmara Municipal ....

98. A arguida é, desde outubro de 2017, presidente da Câmara Municipal ..., cumprindo atualmente o segundo mandato.

99. A arguida aufere mensalmente, como presidente da câmara, cerca de € 2500 líquidos. Os encargos fixos do agregado, com amortização de empréstimos e despesas de água e luz e propinas, ascendem a €432 mensais.

100. A situação económica do agregado é ajustada às necessidades, apesar de, para o efeito, ser necessária uma gestão ponderada dos recursos.

101. No meio sociocomunitário onde a arguida CC está inserida dispõe de imagem social positiva, sendo vista como pessoa dedicada ao trabalho, disponível para os outros e sensível às causas sociais da região.

102. É referenciada como elemento ativo em prole da comunidade local, envolvendo-se em relações e ações pró-sociais, na sua maioria no exercício das funções de autarca, mas também, como habitante ....

103. Atualmente, assume também a presidência da ... - Associação de Desenvolvimento Rural ..., ... e ... e da ... - Associação Geoparque .... Integra igualmente o Conselho Estratégico de Turismo do ... da Portugal.

104. Para além do envolvimento na coletividade e do tempo passado em família, dedica-se a atividades ao ar livre e junto da natureza.

105. O presente processo causou na arguida surpresa, alguma revolta e indignação, por se ver confrontada com o sistema da justiça penal. Já teve implicações negativas na sua vivência, sobretudo em termos emocionais, por se sentir afetada na sua dignidade pessoal, e ainda socialmente, devido impacto mediático da situação, tendo em conta a sua imagem pública, embora considere que a arguida que esta não foi de todo afetada.

106. Não tem antecedentes criminais.


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107. O arguido BB é casado com PP, de 66 anos. Dessa união nasceram dois filhos, já profissionalmente ativos e autonomizados.

108. O arguido tem uma vida familiar estabilizada, desenvolvendo com a esposa dinâmicas habituais de convívio e de partilha. Recebem em casa os filhos e os netos. Entre todos existe um relacionamento harmonioso.

109. O arguido e a esposa vivem numa moradia, propriedade do casal, inserida em zona não associada problemáticas sociais ou criminais.

110. Trata-se de uma moradia unifamiliar (T 5 + 1), de arquitetura moderna, ladeada por áreas verdes (jardim e vegetação) em zona residencial de meio peri urbano, que dispõe de adequadas condições de habitabilidade e conforto.

111. O arguido BB tem o 4º ano de escolaridade.

112. Desde os seus 21 anos de idade, trabalha na área da construção civil e obras públicas.

113. É sócio e gerente da sociedade arguida A..., Lda., empresa familiar de construção civil e de obras públicas, onde também trabalham a esposa e os filhos, em funções e cargos distintos (a primeira como gerente e os descendentes como técnicos que coadjuvam o arguido na supervisão e orientação dos trabalhos).

114. O arguido define-se como pessoa que “se fez a si próprio”, pelo seu afinco no trabalho, tendo logrado aceder a um nível de vida favorecido e a um estatuto social reconhecido no meio.

115. O arguido aufere mensalmente o vencimento líquido de € 2376, sendo o montante total das despesas fixas do agregado de cerca de €3800.

116. O arguido BB é visto na comunidade, de um modo geral, como pessoa voluntariosa, de convicções fortes e espírito audaz – podendo por vezes ser excessivo ou impetuoso - que soube sempre orientar os seus negócios e rodear-se de pessoal técnico habilitado e capacitado para o ajudar empresarialmente na resposta aos desafios contratuais.

117. É visto como pessoa altruísta, não só pela sua ligação e dedicação ao clube da terra, mas também pelo envolvimento em iniciativas/campanhas em prol do bem comum e social (apoiando, designadamente, a corporação de bombeiros local).

118. O arguido BB é, há mais de 15 anos, presidente do Clube ..., cargo que exerce com gosto e entusiamo. Muito do reconhecimento social de que goza advém deste cargo.

119. O arguido BB não sentiu impactos negativos decorrentes do seu envolvimento no presente processo, seja a nível da sua vida pessoal e familiar ou empresarial.

120. Foi condenado, no processo n.º 857/20.9GDVFR, por sentença transitada em julgado em 05/01/2023, pela prática, em 2020, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º da Lei n.º 5/2006 de 23/02, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 8.


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121. A sociedade arguida A..., Lda., para além do arguido BB, tem por sócia e gerente a esposa deste, PP. Tem o capital social de € 500.000,00.

122. No ano fiscal de 2019, a sociedade A..., Lda. realizou vendas e prestações de serviços no valor € 21.160.323,15. Teve gastos com o pessoal no valor de € 3.107.218,71. Apresentou um resultado antes de impostos de € 1.884.314,06. Teve um resultado líquido, nesse período, de € 1.472.321,80.

123. No ano fiscal de 2020, realizou vendas e prestações de serviços no valor de € 20.924.580,59. Teve gastos com o pessoal no valor de € 3.240.374,42. Apresentou um resultado antes de impostos de € 4.897.310,63. Teve um resultado líquido, nesse período, de € 4.685.960,13.

124. No ano fiscal de 2021, realizou vendas e prestações de serviços no valor de € 22.187.761,5. Teve gastos com o pessoal no valor de € 3.328.109,75. Apresentou um resultado antes de impostos de € 2.166.363,22. Teve um resultado líquido, nesse período, de € 2.228.396,59.

125. No final do ano fiscal de 2021, o total do ativo da sociedade era de € 29.219.323,33 e o total do passivo de € 4.177.683,18.


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Da discussão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, tendo designadamente resultado não provados os seguintes:

I. O arguido BB foi quem, em seu nome, lidou pessoalmente com os demais arguidos.

II. O projeto com o n.º ... 312017/56 foi incluído nas GOP dos anos de 2015 e 2016.

III. O procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017 contemplava: por referência ao projeto n.º ...31 2015/73, a pavimentação do .../...; e, por referência ao projeto n.º ... 31 2017/56, a pavimentação da via de ligação de ... (...).

IV. O projeto previsto nas GOP sob o n.º ... 31 2017/56 contemplava a pavimentação da via de ... (...).

V. A adjudicação da empreitada do procedimento contratual n.º 20/DPO/SOM/2017 foi determinada por despacho da arguida CC de 19/07/2017.

VI. A pavimentação do piso do troço entre ... não estava prevista nas GOP dos anos de 2015 a 2017.

VII. O presidente da Junta de Freguesia ..., aproximando-se o dia das eleições autárquicas de 2017, transmitiu ao arguido AA o desagrado da população local com a exclusão do troço ....

VIII. O arguido AA acordou a realização da pavimentação do troço ... com o arguido BB, por si e enquanto representante da sociedade arguida.

IX. O arguido AA, ao solicitar e acordar a extensão da pavimentação do piso da estrada até ..., atuou movido pelo propósito de assegurar para o partido pelo qual se candidatava a maior votação possível nas eleições autárquicas e/ou pelo propósito de beneficiar a sociedade arguida A..., Lda.

X. O arguido AA obteve o acordo da arguida CC, na sua qualidade de Vice-Presidente, para a imediata pavimentação do piso do troço (de ...) até ..., acordo esse reforçado depois da tomada de posse desta como Presidente da Câmara Municipal ....

XI. Foi acordado entre todos os arguidos a execução da pavimentação do troço de ... até ... sem a prévia abertura de procedimento contratual, tendo atuado todos os arguidos em conjugação de esforços e intentos.

XII. O arguido AA recebeu indicações da empresa B... de que apenas em 2018 esta iria instalar a conduta de saneamento no troço de estrada entre ... e ....

XIII. O estado do piso do troço ... tinha-se agravado, de modo relevante, já depois de lançado o procedimento por concurso público n.º 20/DPO/SOM/2017.

XIV. Em setembro de 2017 já havia sido decidido suprimir, no procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017, a pavimentação dos seguintes troços de estrada: o troço entre ... e a Igreja ...; o troço de estrada entre .../... e .../... (...).

XV. O arguido AA mandou estender a pavimentação do piso de ... a ... a título de trabalhos complementares, ciente de que se tratava de trabalhos urgentes, estando convencido de que tinha cobertura contratual e legal para mandar executar tais trabalhos ao abrigo da figura dos trabalhos a mais, prevista no art. 370º e segs. do Código dos Contratos Público em vigor ao tempo.

XVI. Nunca esteve na mente do arguido AA que se estaria perante uma nova empreitada, nem de um novo procedimento contratual.

XVII. A sociedade arguida deixou de realizar os trabalhos suprimidos da empreitada n.º 20/DPO/SMO/2017 por decisão do arguido AA.

XVIII. O arguido AA estava convencido que a situação teria sido formalizada como trabalhos a mais no âmbito da empreitada adjudicada por concurso público.

XIX. A arguida CC, até assumir a presidência da Câmara Municipal ..., não tinha, nem adquirira conhecimento ao nível do regime jurídico da contratação pública.

XX. Quando assumiu a presidência da Câmara Municipal eram os serviços administrativos que, sempre que era necessário recorrer ao regime da contratação pública, escolhiam o tipo de procedimento adequado, limitando-se o decisor a assinar os documentos procedimentais que eram da sua competência.

XXI. Depois de eleita Presidente da Câmara ..., a arguida CC estava convencida que o procedimento estava arrumado, julgando que o troço ... ficara incluído nos trabalhos complementares.

XXII. Os arguidos AA, CC e BB, em seu nome e no interesse da sociedade arguida, não podiam ignorar que se deve ter em conta os primeiros cinco algarismos que definem a classificação CPV».


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Motivação:

No ordenamento processual penal vigente, são admissíveis os meios de prova que não forem proibidos por lei (art. 125º do Código de Processo Penal).

O que significa que não são só os meios tipificados, isto é, regulamentados por lei, que são admitidos mas, diversamente, todos os que não forem proibidos, mesmo sendo atípicos.56

A prova, por outro lado, deve ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (art. 127º do Código de Processo Penal).

A livre apreciação da prova comporta duas vertentes: por um lado, quem decide fá-lo de acordo com a sua íntima convicção em face do rol de provas apresentadas no processo, em especial na audiência de julgamento; por outro lado, essa convicção, objetivamente formada com apoio em regras técnicas e de experiência, não está sujeita, salvo em contados casos especialmente previstos, a critérios legais predeterminados do valor a atribuir às provas.57

A convicção do juiz deve ser “uma convicção pessoal – até porque nela desempenha papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”.58

A livre apreciação da prova pelo julgador deve ser vista de acordo com os princípios da oralidade e da imediação.

Oralidade, no sentido de “forma oral de atingir a decisão”. Imediação no sentido da “relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base a sua decisão”.

«Na verdade, a convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos, perícias e outras provas constituídas, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram».

Dito isto, é importante advertir que o princípio da livre apreciação da prova encontra um desvio na prova pericial.

Com efeito, dispõe o art. 163.º do Código de Processo Penal que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos.

A prova pericial, que «tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» - art. 151º do Código de Processo Penal -, é, portanto, de apreciação vinculada.

A propósito da livre valoração da prova, é usual trazer à liça a questão da valoração das declarações incriminatórias de coarguido relativamente a outro coarguido.

Sufraga-se, nesta matéria, o entendimento de que as «declarações de coarguido são valoráveis ao abrigo do art. 127.º do CPP.

Na verdade, não existe nenhuma restrição legal, no sentido de proibir a prova obtida através das declarações de coarguido, pelo que é admissível ao abrigo do art. 125.º do CPP, para além de não ser proibida, por não se enquadrar em nenhuma das situações previstas no art. 126.º do CPP, sendo certo que a tal entendimento não obsta o facto de estar impedido de depor como testemunha (art. 133.º, n.º 1, al. a), do CPP), já que tal norma visa a proteção do próprio arguido, por poder prejudicar o seu direito de defesa, caso estivesse obrigado a falar com a verdade.

As declarações do coarguido estão sujeitos ao artigo 127.º do CPP e como tal, poderão por si só formar a convicção do tribunal no sentido da condenação de outro coarguido. É certo que o crivo na apreciação da força probatória será mais apertado, mas se, atendendo ao modo como depôs e sua razão de ciência, o tribunal ficar convencido de determinada factualidade, nada impede que a dê como provada (ou não provada) apenas com base nas declarações do coarguido.

Secundando esta posição ac. da RG, de 16.05.2011 24, em cujo sumário se escreveu “As declarações do coarguido podem e devem ser valoradas no processo e são válidas mesmo desacompanhadas de outro meio de prova, desde que credíveis”.

Saliente-se que é constitucional a valoração de declarações de um coarguido em desfavor de outro que se remeteu ao silêncio (ac. do TC 133/2010, de 18 de Maio de 2010, DR-II série, n.º 96)».62

Lançando agora o olhar sobre a prova documental, é de referir que, ao invés dos documentos autênticos, que fazem prova por si mesmos da proveniência que ostentam, os documentos particulares não provam, só por si, a sua procedência da pessoa que aparentemente assume a sua autoria.

De todo o modo, a impugnação de um documento particular, ainda que não seja estabelecida a sua veracidade, não afasta a possibilidade da sua valoração pelo tribunal, sendo um meio de prova passível de ser livremente apreciado (art. 127º do Código de Processo Penal).

Dizendo o mesmo, por outras palavras, estes documentos estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.

Concomitantemente, os autos de notícia, de busca, de apreensão, relatórios de buscas, de pesquisa ou de inspeção, quando levantados ou elaborados por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, enquanto documentos intra processuais, são meios de prova válidos quanto aos factos materiais neles narrados, que tenham sido presenciados ou percecionados pelo(s) agente(s) autuante(s), podendo e devendo ser valorados para a formação da convicção de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigos 169 º e 127º do CPP).64

Prosseguindo, acrescenta-se ainda que, para além da prova direta, a lei admite a comummente denominada prova indireta ou indiciária.

Com efeito, «a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adoção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial.

Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “as provas que não forem proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC).

As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova)».

Abordemos agora o caso concreto.

A convicção do tribunal coletivo resultou da ponderação conjugada, à luz de regras de experiência comum, das declarações dos arguidos AA e CC e, bem assim, dos seguintes depoimentos testemunhais:

- QQ, que foi presidente da Junta de Freguesia ... até ../../2017 e candidato à respetiva Assembleia de Freguesia nas eleições autárquicas desse ano;

- FF, que foi presidente da Junta de Freguesia ... até ../../2017 e candidato, nas eleições autárquicas desse ano, à Câmara Municipal ..., sendo o 4º da respetiva lista, e à Assembleia de Freguesia ..., sendo o 2º da respetiva lista (“...”, coligação entre o PSD e o CDS-PP);65

- RR, urbanista, chefe da Divisão de Planeamento e Obras da Câmara Municipal ..., em 2017;

- KK, atualmente chefe de Divisão de Finanças ..., sendo, em 2017, técnica superior da mesma Divisão, apesar da então diversa designação;

- LL, presentemente reformado, tendo sido coordenador técnico na Divisão de Contabilidade da CM...;

- MM, assistente técnica da DPO da CM..., tendo integrado o júri do procedimento n.º 20/DPO/SOM/2107 (cf. fls. 87, 359 a 36ª da Pasta apensa relativa ao mesmo);

- GG, engenheiro, a prestar serviço na DPO da CM..., tendo elaborado peças do procedimento, por concurso público, n.º 20/DPO/SOM/2107, nomeadamente caderno de encargos, orçamentação e programa e projeto de execução (cfr. fls. 21 da Pasta apensa relativa ao dito procedimento);

- EE, engenheira, técnica superior da DPO da CM..., tendo sido diretora de fiscalização, em representação do dono da obra, no procedimento n.º 20/DPO/SOM/2107; além disso, elaborou as peças do procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017, nomeadamente caderno de encargos e programa e projeto de execução, tendo também sido a diretora da fiscalização em representação do dono da obra, o Município ....

- NN, vereador da CM... entre 2013 e 2017, com os pelouros, entre o mais, das Obras Municipais e Administração Direta e Juntas de Freguesia, tendo participado nas medições para o lançamento do procedimento n.º 20/DPO/SOM/2107, dizendo ainda que acompanhava as empreitadas municipais;

- JJ, consultor jurídico, tendo sido diretor do Departamento ..., entre 2011 e 2020;

- DD, engenheiro civil, funcionário da A..., Lda há cerca de 19 anos, tendo sido o diretor de obra, em representação da empreiteira, a sociedade arguida, no procedimento n.º 20/DPO/SOM/2107;

- HH, chefe dos serviços administrativos da sociedade arguida A..., Lda.;

- SS, que foi Comandante dos Bombeiros e também presidente da Assembleia Municipal ..., tendo abonado a personalidade do arguido AA, enaltecido o seu desempenho como autarca, dizendo nomeadamente que era usual, logo de manhã cedo, se deslocar aos locais das obras, depondo ainda sobre a inserção social e familiar do referido arguido;

- TT, professor, ex-vereador da Câmara Municipal ..., entre 2005-2009 e 2013 e 2017, tendo neste último período sido eleito pelo PSD, tendo abonado as qualidades do arguido AA como autarca, mormente o seu empenho na defesa do interesse público, tendo-se ainda referido a problemas no relacionamento entre o Município ... e a sociedade arguida A..., Lda., bem como no relacionamento pessoas entre os arguidos AA e BB;

Mais se ponderaram, conjugadamente, os seguintes documentos:

- Prints de pesquisas efetuadas sítio BASE.GOV de fls. 40 a 51 (cf. fls. 39), fls. 249 e fls. 276 a 279, relativas a contratos celebrados entre o Município ... e a sociedade arguida, constando ainda cópias de contratos n.ºs 20/DPO/SOM/2017, 18/APROV/DPO/SOM/2017 e 60/DPO/SOM/2017;

- Ata da Assembleia Municipal n.º 03/2018, de 27/06/2018, junta a fls. 61 a 69, maxime fls. 64 a 66, onde é referida a empreitada relativa ao .../...;

- Autos de análise ao conteúdo da capa relativa ao proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 e de outras capas, juntos a fls. 76 a 79, fls. 261 a 269 e fls. 292 e 293;

- Pedidos de intervenção da Junta de Freguesia ..., dirigidos à Câmara Municipal ..., relativas ao troço entre ... e ..., juntos a fls. 88 a 93 (cf. termo de juntada de fls. 86);

- Informação do Município ..., relativa aos procedimentos contratuais por ajuste direito e valores contratuais acumulados, de fls. 96 e 97, bem como carta do Município ... dirigida ao processo, assinada pela arguida CC, constante de fls. 140 e 141 (cf. fls. 137 e 138);

- Ortofotomapas de fls. 105 e 106, relativos aos procedimentos n.º 20/DPO/SOM/2017 (troço ...) e n.º 60/DPO/SOM/2017 (troço ...);

- Fatura e recibo da sociedade arguida e notas de lançamento da ..., juntas a fls. 131 a 134 (donde resulta o recebimento, pela sociedade arguida, do preço do procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017, em 28/12/2017);

- Auto de apreensão de fls. 271 e 272 (que deve ser concatenado com a carta de envio de documentos, pelo Município ..., e termo de entrega, de fls. 257 e 258, bem como fls. 269 e 270; cf. também carta de solicitação dos documentos, de fls. 250 e 251 e, ainda, auto de análise, realizada pela PJ, de fls. 261 a 269);

- Guia do Vocabulário Comum para os Contratos Públicos (CPV), para os contratos públicos na EU, junto a fls. 448 a 456, disponibilizado pela EU, que não tendo valor jurídico em si mesmo, procede ao enquadramento genérico da figura do CPV, sua estrutura, seus objetivos e o seu modo de utilização (cf. fls. 445 verso);

- Apenso/Anexo A, contendo, entre o mais: orçamentação do Proc. n.º 60/2017, fls. 3; ortofotomapa, fls. 4; cabimento de despesa, fls. 5; caderno de encargos, de fls. 6 a 17; programa e projeto de execução, fls. 18; despacho do início do procedimento, fls. 20; informação de abertura, fls. 23; convite à sociedade arguida, de fls. 24 a 26; declaração e outros documentos apresentados pela sociedade arguida, de fls. 27 a 55, nomeadamente proposta e lista unitária de preços; despacho de adjudicação, fls. 57; contrato de empreitada, de fls. 61 e 62 (cf. termo de constituição de apenso, constante de fls. 75, e, ainda, auto de análise de fls. 76 a 79, estes dos autos principais);

- Pasta do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 – Município ...: contendo, entre o mais: cabimentação orçamental, fls. 3; programa do procedimento, de fls. 12 a 20; caderno de encargos, de fls. 21 a 45; orçamentação, fls. 46; ortofotomapas, de fls. 51-56; lista de preços unitários, apresentadas pela A..., Lda., de fls. 250 a 254; deliberação e despacho de adjudicação, de fls. 365 e 366; contrato de empreitada, de fls. 393 a 397;

- Pasta Proc. n.º 20/17, contendo, nomeadamente, a conta final de empreitada do procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017, a fls. 15 a 18, e os trabalhos a menos desse procedimento, que constam designadamente de fls. 40, 98, 104 a 109;

- Pasta designada Empreitada de Pavimentação da Estrada ..., Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017, Dossier de Execução/Financeiro, de fls. 1 a 35 [incluindo um parecer da Chefe da DPO, de 20/12/2017, no sentido da comunicação ao empreiteiro da necessidade de elaboração de Plano de Segurança e Saúde (PSS)].

- Dossier sem indicação de Assunto na capa, do Município ..., contendo as GOP de 2015 a 2017, numeradas de 22 a 37;

- Declarações fiscais da empresa A..., Lda., dos anos 2018 a 2021, juntos aos autos, com a contestação, ref. elet. 14069790, de 26/01/2023;

- Documentos juntos pelo arguido AA, com a contestação, com a ref. elet. 14113297 de 05/02/2023, bem como requerimentos subsequentes, com as refs. elets. n.º ...98 de 05/02/2023 (Relatório de Gestão de 2018), n.º 14113305 e 14113306, estes de 06/02/2023;

- Requerimento de junção de documentos pelo arguido AA, com a ref. elet. 14522599 de 08/05/2023 (Conta-corrente da Despesa para Projetos 2015/54, 2015/73, 2015/75 e 2017/56, ofício do Município ... às B..., SA, onde se refere, entre as obras de pavimentação de 6 a 12 meses, a Repavimentação da EM ...11 de ... a ..., datada de 23/09/2016, e ofício da empresa B..., datado de 06/06/2017, dirigido à CM..., onde se diz que não estava calendarizada a execução de novas infraestruturas na EM ...11, de ... a ...); bem como requerimento de 24/05/2023, com a ref. elet. 14612731 de 24/05/2023, onde consta que consta como data de entrada do último ofício referido, na CM..., 12/06/2017);

- Documento junto aos autos, pelo arguido AA, no requerimento com a ref. elet. ...32 de 28/06/2023, na sequência de despacho (certidão de documento manuscrito e assinado pela testemunha RR, por esta referido no seu depoimento em audiência de julgamento).

Dito isto, por referência à factualidade dada como provada, cumpre sinopticamente referir que, relativamente às funções desempenhadas pelos arguidos, quer como autarcas, quer como gerente da sociedade arguida, à atividade comercial desenvolvida por esta última, e ainda quanto à sucessão de incidências dos procedimentos contratuais n.ºs 20/DPO/2017 e 60/DPO/SOM/2015 e ainda aos concretos factos praticados pelos arguidos nos mesmos, adveio a convicção do tribunal coletivo, sem prejuízo do infra se dirá e explicará, dos documentos constantes dos autos, nomeadamente daqueles que são indicados nas notas de rodapé ao longo do texto da factualidade provada, bem como das declarações dos arguidos AA e CC e depoimentos testemunhais produzidos em audiência de julgamento, concatenando-se congruentemente, de modo credível, tais meios de prova.

Na senda do exposto, grande parte da factualidade que veio a ser dada como provada está cabalmente documentada, não havendo prova que a infirme ou torne duvidosa. É o que sucede, designadamente, com o teor das GOP e os atos praticados nos procedimentos contratuais aludidos, seja na formação, seja na celebração, seja na execução dos mesmos.

Particularizando, corrigiram-se no texto da factualidade dada como provada, por referência aos documentos dos autos, o conteúdo das GOP do Município .... Tendo sido estes que determinaram o respetivo conteúdo, em consonância, no geral, com as declarações prestadas pelo arguido AA. Note-se que os projetos ... 31 2015/56 e ... 31 2017/56, apesar da semelhança numérica aparente, são distintos.

Resulta, de modo incontroverso das declarações dos arguidos, dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos testemunhais, mormente de QQ, FF, GG, EE, NN e DD que a Estrada de ligação de ... (freguesia ...) a ... (freguesia ...), atento o sentido ascendente, passa pelo lugar de ..., lugar este da freguesia ... (se considerado o sentido descendente da via, a estrada segue por ...).

Consequentemente, a estrada entre ... e ... pode ser dividida, como foi, em dois troços, que, não obstante são fisicamente contínuos: um, ... (cfr. ortofotomapa de fls. 105); o outro, ... (cfr. ortofotomapa de fls. 106).

É unívoco, perante os documentos coligidos nos autos, que nas GOP dos anos de 2015 a 2017 figurava a pavimentação da estrada .... E, também, que no procedimento por concurso público n.º 20/DPO/SMO/2017, que teve início em 06/06/2017, quando era Presidente da Câmara o arguido AA, foi apenas contemplada a pavimentação de parte dessa estrada, a saber, de um dos aluídos troços, a saber, .... Não foi deliberadamente incluído naquele procedimento contratual, segundo decorre proficientemente das declarações do arguido AA e dos depoimentos de GG, NN e EE, o troço .... E a documentação dos autos corrobora, reitera-se, confirma isso mesmo.

A adjudicação, em se tratando de concurso público, foi deliberada pela Câmara Municipal, em 18/07/2017, como documentado nos autos, cf. fls. 664. O contrato foi outorgado eletronicamente em 13 e 14 de setembro desse ano. E a consignação da obra ocorreu em 20/09/2017 (cf. fls. 186 da Pasta 20/2017), ou seja, foi somente nesta data que foi facultado ao empreiteiro o acesso aos locais onde se iriam realizar as obras. Ou seja, esta é a data a partir da qual a sociedade arguida pôde iniciar os trabalhos.

É, concomitantemente, incontroverso que o arguido AA, ao tempo Presidente da Câmara, quando decorriam os trabalhos de pavimentação no troço ..., em 23/09/2017, determinou, com a concordância do diretor técnico da arguida, adjudicatária da empreitada, que a tal anui, que se procedesse, logo de seguida, à pavimentação até ..., ou seja, do (outro) troço: ....

É ainda incontroverso, adiantando-nos um pouco, que, já depois de materialmente executada a pavimentação do troço ..., quando já era Presidente da Câmara a arguida CC, foi aberto, em 28/11/2017, e tramitado o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017, por ajuste direto, tendo por objeto a pavimentação do referido troço, como se a dita pavimentação ainda não tivesse sido feita. Mas tinha, como se disse. Foi, depois, realizado o pagamento do preço correspetivo, tendo sido emitido o recibo pela empreiteira em 28/12/2017.

No tocante ao contexto em que o arguido AA solicitou a pavimentação do troço da estrada ... à empreiteira, ora arguida, bem como ao estado degradado do respetivo piso e características de utilização, estribou-se o tribunal nas declarações daquele arguido, bem como das testemunhas QQ, FF, GG, EE, NN e DD, tudo concatenado, entre o mais, com os documentos de fls. 88, de fls. 170 a 175, 178, 180 e 181 da Pasta Proc. n.º 20/2017 e, ainda, a correspondência entre a empresa B... e a CM..., junta eletronicamente aos autos com a ref. elet. 14522599 de 08/05/2023 e com a ref. elet. 14612731 de 24/05/2023.

Isto dito, o arguido AA disse que o troço ... não foi incluído no procedimento por concurso público porque havia a expectativa de que a empresa B... fizesse a instalação das infraestruturas de saneamento naquele troço. Pretendia evitar fazer as obras de pavimentação e pouco depois fossem feitos rasgos na estrada.

Porém, as pessoas manifestaram o seu desagrado e o arguido, deslocando-se ao local, verificou o mau estado da estrada. E como não acreditasse que a empresa B... colocasse o saneamento, tendo também ficado preocupado com a segurança da via, decidiu avançar com a pavimentação do troço ....

O arguido AA refutou qualquer concertação ou conhecimento com os arguidos BB e CC. A testemunha DD, diretor técnico em representação da arguida sociedade, afirmou ter acedido à solicitação do arguido AA, tendo decidido por si próprio, por ter autonomia para tal, não tendo falado com o arguido BB.

Não há, diga-se, nos autos qualquer meio de prova que relacione os arguidos BB e CC com a aquela atuação do arguido AA. Nem sequer que, antes da realização dos trabalhos de pavimentação, aqueles estivessem tampouco informados e inteirados do que este fizera.

Relativamente à intenção que norteou a atuação arguido AA, o tribunal não ficou convencido, para lá de toda a dúvida razoável, que o mesmo tivesse por objetivo conseguir obter votação superior nas eleições, nem tampouco que o seu fito fosse favorecer a arguida sociedade.

Está documentada a informação da empresa B..., recebida na CM... em 12/06/2017, que não iria colocar o saneamento.

Perante isso, o arguido, sensível ao desagrado da população, verificou o mau estado do piso do troço de .... Com repercussão negativa na segurança da via. O empreiteiro tinha os funcionários e equipamentos no local, o que permitia obviar aos custos de nova deslocação de homens e máquinas.

Nesse condicionalismo, concede-se que o arguido viu vantagem, para a população e demais utentes da via, na pavimentação do troço ..., cujo estado degradado justificava a realização da obra.

Ademais, note-se, os relatórios de gestão e as contas do município mostram que a taxa de execução financeira, entre os anos de 2013 a 2017 não foram das mais elevadas em anos de eleições. E, por outro lado, se o arguido pretendesse mostrar obra, dispunha, no Município, de saldos financeiros e capacidade de endividamento significativos.

Por outro lado, o arguido AA, que estava em vias de completar o seu terceiro mandato como presidente da Câmara, veio a ganhar as eleições com margem confortável, não necessitante de carecer de granjear à última da hora mais uns quantos votos, sendo certo que o lugar de ... era pouco populoso. A arguida CC viria também a ganhar as eleições com uma margem confortável.

Perante as declarações produzidas pelos arguidos, AA e CC, bem como pelas testemunhas RR, JJ, TT e FF, retira-se que quer as relações pessoais entre os arguidos BB e AA não eram as melhores, quer as próprias relações entre o Município e a A..., Lda. não eram isentas de litígios.

Dito isto, uma coisa é o arguido AA ter atuado movido pela intenção de obter benefícios eleitorais e/ou de beneficiar a sociedade arguida.

Outra coisa diferente é o arguido AA ter realizado que da sua conduta adviria necessário benefício para a empreiteira (uma vez que lhe atribuiu a realização daquela obra, de modo não concorrencial, possibilitando-lhe o aumento das vendas e, consequentemente, da obtenção de lucro) e que a sua conduta agradaria à população local e que, por essa via, tenderia a granjear mais votos para as listas do partido pelo qual concorria.

Uma pessoa com o percurso de vida do arguido AA, naquele concreto condicionalismo, seguramente não teria deixado de realizar o vindo de expor.

Porém, reitera-se, uma coisa é a consciência desses benefícios, outra coisa diferente é os mesmos serem a causa e o móbil de atuação do arguido AA. E, reitera-se também, não ficamos convencidos que a intenção subjacente à atuação do arguido, o que o fez atuar, tenha sido a de obter qualquer dessas vantagens.

Posto isto, ficamos convencidos que o arguido AA estava perfeitamente ciente de que, ao ordenar a realização da pavimentação, com a anuência do diretor de obra da sociedade arguida, atuava contra a legalidade, ao mandar fazer a obra sem prévio procedimento contratual.

O arguido AA era engenheiro civil, ligado à construção de estradas. Cumpria o terceiro mandato como presidente de câmara, tendo larga experiência em empreitadas de obras públicas.

É incontroverso que o troço ... não estava previsto no procedimento do concurso público.

Não era necessária a sua realização para a execução da obra contemplada no concurso público.

Menos ainda por circunstância imprevista.

Com efeito, o mau estado do piso não era uma circunstância imprevista. Aliás, isso mesmo resulta dos depoimentos das testemunhas NN, GG, que fizeram medições para o lançamento do concurso público. E ainda da testemunha EE. Os serviços camarários sabiam. E não o esconderam seguramente ao arguido AA.

Não ficou demonstrado, perante as declarações e testemunhos, que entre o lançamento do concurso e o início das obras ocorresse uma deterioração adicional anormal, abrupta e inesperada do estado do piso do troço ....

E não havia inconvenientes graves para o Município na não realização da pavimentação deste troço.

A demora adicional para a realização de um novo contrato. Tanto mais que a Câmara podia até fazer intervenções pontuais através da equipa de cantoneiros. E, o facto de o preço vir a ser superior, tendo em conta a reduzida dimensão da obra e a boa situação financeira do Município, não era incomportável.

O arguido sabia que os trabalhos determinados não configuravam trabalhos a mais (art. 370º do Código dos Contratos Públicos). E, por isso, que a realização da obra dependia da observância de um dos tipos de procedimento previstos na lei para a formação do contrato (arts. 1º, 16º e 34º e segs. do Código dos Contratos Públicos)

Prosseguindo, cumpre salientar que a empreitada do proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 estava praticamente no início. Veja-se, como já aludido, a data da consignação.

E, ao tempo em que o arguido AA, determinou a pavimentação do troço ... não havia ainda sido tomada, ao contrário do que aquele referiu, a decisão de supressão de outros trabalhos. Ou seja, a determinação de trabalhos a menos. É o que se retira, atentando nas respetivas datas, dos documentos de fls. 88 e 95, 105, 107, 123 a 125, 163, 164 e 152 verso e 152 rosto. Veja-se que de fls. 152 se retira que em 12 outubro de 2017, a supressão de trabalhos ainda não era uma certeza.

Consequentemente, ao tempo em que determinou a pavimentação do troço ... ainda não havia sido decidida a existência de trabalhos a menos, pelo que o arguido não poderia ter cogitado qualquer compensação do custo daquela obra com estes.

De todo o modo o arguido, para o projeto da Estrada ..., não havia dotação orçamental inscrita, cabimento registado e compromisso assumido, em termos contabilísticos, suficientes para acomodar, sem mais, o custo adicional da pavimentação do troço ....

Aqui chegados, do acervo de provas é incontroverso que foi lançado e tramitado o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017, com intervenção dos arguidos CC e BB, atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, em comunhão de esforços e intentos, tendo em vista ocultar e dissimular a ilícita pavimentação do troço .... Como se a obra ainda estivesse por realizar. Fazendo ambos constar nos documentos do procedimento factos falsos juridicamente relevantes, atinentes às prestações e obrigações das partes contraentes.

Como a realização da obra não deu observância prévia às regras da contratação pública e das normas contabilísticas, o pagamento ao empreiteiro não se podia legalmente realizar, como ressuma dos depoimentos das testemunhas JJ, KK, LL e MM). A libertação do pagamento é, em si, um benefício. Como benefício é a “regularização” das contas da autarquia e, assim, evitar a deteção da irregularidade e evitar eventual responsabilização dos agentes.

Note-se que o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017 correu integralmente termos no mandato da arguida CC. Não se apurou a intervenção do arguido AA em tal procedimento. Nem há evidência de que ele tenha convencido ou determinado os coarguidos a cometer o ilícito, nem que lhes tenha prestado qualquer tipo de auxílio.

A arguida CC, nas suas declarações, sustenta o desconhecimento de que a obra fora já feita, que o procedimento foi tratado pelos serviços administrativos e que não tinha conhecimentos do regime da contratação pública.

No que é frontalmente contrariada pela testemunha EE, engenheira que fiscalizava o procedimento por concurso público e que fez as peças para o procedimento por ajuste direito.

Ora, a verdade é que a arguida CC já cumprira dois mandatos como autarca na Câmara, um com vereadora, outro como vice-presidente. As empreitadas de obras públicas e suas vicissitudes, até pela participação nas reuniões de Câmara, não lhe eram seguramente matérias estranhas.

De mais a mais, a necessidade de fazer o pagamento ao empreiteiro em consonâncias com as regras da contabilidade pública, era tema que lhe dizia respeito e que contendia com a sua atividade autárquica.

Ademais, tendo sido o arguido AA o responsável pela realização da obra sem precedente procedimento contratual e sem observâncias das regras contabilísticas, não havia razão algum para os serviços municipais esconderem a situação à presidente em exercício. A responsabilidade era do anterior presidente.

Estamos, por isso, convencidos que a arguida, deparando-se com um problema, o tentou resolver, mediante um novo procedimento e um novo contrato, por ajuste direito. Aliás, outro procedimento não poderia ser, uma vez que a adjudicatária teria que ser a sociedade arguida, pois ela é que fizera a obra.

Relativamente ao arguido BB, o mesmo colaborou no dito procedimento, sabendo seguramente o que se passava.

O arguido é o gerente da empresa e, retira-se dos depoimentos das testemunhas DD e UU dirige, nos vetores principais, o negócio e acompanha-os. E apesar de a assinatura do arguido ser eletrónica, não sendo ele – disse a testemunha - que pratica a operação informática de assinar, decorre do depoimento da testemunha UU que não é aposta assinatura do arguido à revelia do mesmo.

Ademais, também aqui se não descortina razão para que o que estava a acontecer, e tinha acontecido, fosse omitido ao arguido BB.

Assim, apesar de as testemunhas DD e UU terem tentado, de alguma forma, obnubilar ou mitigar a responsabilidade do arguido BB, seu patrão, da caracterização que fizeram da personalidade deste, sendo ele que assumia a condução dos negócios, adveio-nos a convicção que o referido arguido estava inteirado do que se passava, nada foi feito no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017 à sua revelia, até porque era do seu interesse receber o dinheiro da pavimentação do troço ....

No que concerne aos CPV, é uma matéria técnica, não havendo provas de que os arguidos estivessem familiarizados com eles e soubessem concretamente que os cinco primeiros algarismos eram utilizados como critério para aferir dos serviços relevantes para efeitos de convidar a apresentar propostas em ajuste direito.

Mas era apenas um critério de que se lançava mão, para aferir se as prestações contratuais eram do mesmo tipo ou idênticas.

Esse critério não estava, como tal, positivado. Mas é um critério válido.

Prosseguindo, os arguidos CC e BB tinham conhecimento, não havia razão para não saberem, dos contratos antes celebrados entre o Município e a A..., Lda. e, como tal, que esta já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de €150.000 para serviços idênticos, pelo que não poderia ser escolhida no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017. Mas, por ter sido essa empresa a fazer a obra, tinha agora que ser ela a escolhida para apresentar propostas.

A classificação de acordo com o CPV dos contratos do procedimento por contrato público e por ajuste direto são diferentes. Naquele, a classificação foi efetuada pela testemunha GG, E neste pela testemunha EE. Apesar de os trabalhos a realizar serem em tudo semelhantes.

Quanto ao lucro da sociedade arguida, chegou-se ao valor do mesmo pela extrapolação proporcional do lucro resultante do preço do contrato por ajuste direto, tendo por referência o lucro decorrente do total de vendas e prestações de serviços da empresa (mediante o uso de uma regra de três simples).

Prosseguindo, o propósito e vontade de atuação dos arguidos infere-se, à luz de regras de lógica e de experiência, da factualidade objetiva demonstrada.

Resulta também de regras de lógica e de experiência comum que pessoas adultas, como eram os arguidos, com a sua experiência de vida, não ignoravam, não poderiam ignorar, a ilicitude das condutas dadas como provadas.

No tocante às condições pessoais do arguidos e respetivos antecedentes criminais, relevaram sobretudo os relatórios sociais do arguido AA, com a ref. elet. 14295391 de 14/03/2023, da arguida CC, com a ref. elet. 14295751 de 14/03/2023 e do arguido BB, com a ref. elet. 14296116 de 14/03/2023 e dos CRC com as refs. 14342727, 14341166 e 14342894 de 23/03/2023, devidamente concatenadas com as declarações dos próprios e, bem assim, dos depoimentos das testemunhas SS e TT, relativamente ao arguido AA.

Quanto à sociedade arguida relevaram, basicamente, os documentos fiscais juntos aos autos.

Relativamente à factualidade dada como não provada, e para além do que supra se deixou dito, resultou a posição do tribunal da ausência de prova bastante e suficiente quanto à mesma, quando não da prova de factualidade contrária ou incompatível».


*

Apreciando os fundamentos dos recursos.


I) Insuficiência da fundamentação.

Considera a recorrente CC que a decisão encontra-se insuficientemente fundamentada, limitando-se o tribunal a quo a formular considerações genéricas, insuscetíveis de traduzir o raciocínio lógico que o levou a considerar determinados factos provados e, outros, não provados (que, contudo, não identifica).

Idêntica crítica formulam os recorrentes BB e “A..., Lda”, referindo que «Tratando-se de uma decisão judicial condenatória, afigura-se claro que o tribunal não cumpriu com as finalidades de uma decisão judicial na sua dupla vertente, endoprocessual e extraprocessual da fundamentação das decisões judiciais, enquanto emanação do princípio de um Estado Democrático (com consagração constitucional e conforme o CEDH)».

Vejamos, então, se assiste razão aos recorrentes na crítica dirigida à decisão objeto do presente recurso.

Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.

Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [2], “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289)”.

A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[3]

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

Como é observado no acórdão do TRL de 18/5/2022 [4], “É certo que o exame crítico das provas tem geometria variável, tanto quanto o dever geral de fundamentação de todas as demais decisões judiciais, consoante a sua complexidade intrínseca ou a controvérsia gerada entre os sujeitos processuais, ou mesmo, a natureza e o conteúdo dos meios de prova disponíveis, designadamente, quanto à existência ou não de prova direta dos factos que integram a prática dos crimes pelos quais os arguidos vêm acusados, ou à necessidade de recurso a presunções naturais que podem envolver e, por regra, envolvem mesmo, um maior esforço argumentativo, pela necessidade de cruzamento de informações provenientes de diferentes fontes e da sua análise lógica e dedutiva, à luz de máximas de experiência comum, de critérios de razoabilidade humana, de determinados usos, ou de regras técnicas e científicas, pertinentes ao juízo de inferência necessário para extrair um facto desconhecido de outro facto conhecido”.

A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.

Contudo, e como se adverte no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2/10/2018 [5], “A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.”

Por fim, importa salientar que “O exame crítico exigido pela lei não se basta com a apreciação das provas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada. Do juiz exige-se muito mais que análises fragmentárias, parcelares e descontextualizadas do material probatório que tem à sua disposição. O que o legislador pressupõe é um juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do seu conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que tem ao seu dispor, analisando e valorando as provas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.” [6].

Na formulação do acórdão deste TRP de 7/6/2017 [7], o exame crítico dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento “só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu”.

Em todo o caso, constitui entendimento jurisprudencial pacífico que só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão [8].

Vejamos o que se escreveu no acórdão recorrido, a propósito do exame crítico das provas e da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, por referência aos recorrentes CC, BB e A..., Lda.

Inicia o tribunal a quo a motivação da decisão de facto pela indicação de todos os meios de prova de natureza pessoal (em concreto, as declarações prestadas pelos arguidos AA e CC, para além dos depoimentos prestados por testemunhas) e documental, prosseguindo nos seguintes moldes (segue transcrição parcial):

«[…] Aqui chegados, do acervo de provas é incontroverso que foi lançado e tramitado o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017, com intervenção dos arguidos CC e BB, atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, em comunhão de esforços e intentos, tendo em vista ocultar e dissimular a ilícita pavimentação do troço .... Como se a obra ainda estivesse por realizar. Fazendo ambos constar nos documentos do procedimento factos falsos juridicamente relevantes, atinentes às prestações e obrigações das partes contraentes.

Como a realização da obra não deu observância prévia às regras da contratação pública e das normas contabilísticas, o pagamento ao empreiteiro não se podia legalmente realizar, como ressuma dos depoimentos das testemunhas JJ, KK, LL e MM). A libertação do pagamento é, em si, um benefício. Como benefício é a “regularização” das contas da autarquia e, assim, evitar a deteção da irregularidade e evitar eventual responsabilização dos agentes.

Note-se que o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017 correu integralmente termos no mandato da arguida CC. Não se apurou a intervenção do arguido AA em tal procedimento. Nem há evidência de que ele tenha convencido ou determinado os coarguidos a cometer o ilícito, nem que lhes tenha prestado qualquer tipo de auxílio.

A arguida CC, nas suas declarações, sustenta o desconhecimento de que a obra fora já feita, que o procedimento foi tratado pelos serviços administrativos e que não tinha conhecimentos do regime da contratação pública.

No que é frontalmente contrariada pela testemunha EE, engenheira que fiscalizava o procedimento por concurso público e que fez as peças para o procedimento por ajuste direito.

Ora, a verdade é que a arguida CC já cumprira dois mandatos como autarca na Câmara, um com vereadora, outro como vice-presidente. As empreitadas de obras públicas e suas vicissitudes, até pela participação nas reuniões de Câmara, não lhe eram seguramente matérias estranhas.

De mais a mais, a necessidade de fazer o pagamento ao empreiteiro em consonâncias com as regras da contabilidade pública, era tema que lhe dizia respeito e que contendia com a sua atividade autárquica.

Ademais, tendo sido o arguido AA o responsável pela realização da obra sem precedente procedimento contratual e sem observâncias das regras contabilísticas, não havia razão algum para os serviços municipais esconderem a situação à presidente em exercício. A responsabilidade era do anterior presidente.

Estamos, por isso, convencidos que a arguida, deparando-se com um problema, o tentou resolver, mediante um novo procedimento e um novo contrato, por ajuste direito. Aliás, outro procedimento não poderia ser, uma vez que a adjudicatária teria que ser a sociedade arguida, pois ela é que fizera a obra.

Relativamente ao arguido BB, o mesmo colaborou no dito procedimento, sabendo seguramente o que se passava.

O arguido é o gerente da empresa e, retira-se dos depoimentos das testemunhas DD e UU dirige, nos vetores principais, o negócio e acompanha-os. E apesar de a assinatura do arguido ser eletrónica, não sendo ele – disse a testemunha - que pratica a operação informática de assinar, decorre do depoimento da testemunha UU que não é aposta assinatura do arguido à revelia do mesmo.

Ademais, também aqui se não descortina razão para que o que estava a acontecer, e tinha acontecido, fosse omitido ao arguido BB.

Assim, apesar de as testemunhas DD e UU terem tentado, de alguma forma, obnubilar ou mitigar a responsabilidade do arguido BB, seu patrão, da caracterização que fizeram da personalidade deste, sendo ele que assumia a condução dos negócios, adveio-nos a convicção que o referido arguido estava inteirado do que se passava, nada foi feito no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017 à sua revelia, até porque era do seu interesse receber o dinheiro da pavimentação do troço ....

No que concerne aos CPV, é uma matéria técnica, não havendo provas de que os arguidos estivessem familiarizados com eles e soubessem concretamente que os cinco primeiros algarismos eram utilizados como critério para aferir dos serviços relevantes para efeitos de convidar a apresentar propostas em ajuste direito.

Mas era apenas um critério de que se lançava mão, para aferir se as prestações contratuais eram do mesmo tipo ou idênticas.

Esse critério não estava, como tal, positivado. Mas é um critério válido.

Note-se que o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017 correu integralmente termos no mandato da arguida CC. Não se apurou a intervenção do arguido AA em tal procedimento. Nem há evidência de que ele tenha convencido ou determinado os coarguidos a cometer o ilícito, nem que lhes tenha prestado qualquer tipo de auxílio.

A arguida CC, nas suas declarações, sustenta o desconhecimento de que a obra fora já feita, que o procedimento foi tratado pelos serviços administrativos e que não tinha conhecimentos do regime da contratação pública.

No que é frontalmente contrariada pela testemunha EE, engenheira que fiscalizava o procedimento por concurso público e que fez as peças para o procedimento por ajuste direito.

Ora, a verdade é que a arguida CC já cumprira dois mandatos como autarca na Câmara, um com vereadora, outro como vice-presidente. As empreitadas de obras públicas e suas vicissitudes, até pela participação nas reuniões de Câmara, não lhe eram seguramente matérias estranhas.

De mais a mais, a necessidade de fazer o pagamento ao empreiteiro em consonâncias com as regras da contabilidade pública, era tema que lhe dizia respeito e que contendia com a sua atividade autárquica.

Ademais, tendo sido o arguido AA o responsável pela realização da obra sem precedente procedimento contratual e sem observâncias das regras contabilísticas, não havia razão algum para os serviços municipais esconderem a situação à presidente em exercício. A responsabilidade era do anterior presidente.

Estamos, por isso, convencidos que a arguida, deparando-se com um problema, o tentou resolver, mediante um novo procedimento e um novo contrato, por ajuste direito. Aliás, outro procedimento não poderia ser, uma vez que a adjudicatária teria que ser a sociedade arguida, pois ela é que fizera a obra».

E, prosseguindo na sua apreciação do comportamento dos recorrentes CC e BB, observa-se no acórdão recorrido o seguinte:

«Prosseguindo, os arguidos CC e BB tinham conhecimento, não havia razão para não saberem, dos contratos antes celebrados entre o Município e a A..., Lda. e, como tal, que esta já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de € 150 000 para serviços idênticos, pelo que não poderia ser escolhida no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017. Mas, por ter sido essa empresa a fazer a obra, tinha agora que ser ela a escolhida para apresentar propostas.

A classificação de acordo com o CPV dos contratos do procedimento por contrato público e por ajuste direto são diferentes. Naquele, a classificação foi efetuada pela testemunha GG. E neste pela testemunha EE. Apesar de os trabalhos a realizar serem em tudo semelhantes.

[…]

Prosseguindo, o propósito e vontade de atuação dos arguidos infere-se, à luz de regras de lógica e de experiência, da factualidade objetiva demonstrada.

Resulta também de regras de lógica e de experiência comum que pessoas adultas, como eram os arguidos, com a sua experiência de vida, não ignoravam, não poderiam ignorar, a ilicitude das condutas dadas como provadas. […]»

Com relevância para aferir da correção do segmento decisório imediatamente atrás transcrito, importa observar que, não sendo imposto o dever de o tribunal se pronunciar sobre todo e qualquer meio de prova, mas apenas dos que serviram para fundamentar a convicção do tribunal, e não se mostrando que o meio de prova omitido seja relevante para a decisão, não ocorre nulidade por falta de fundamentação, como se faz notar no acórdão deste TRP, de 25/1/2017 [9].

Além disso, não se exige que o tribunal reproduza, na decisão, o teor de todo e qualquer meio de prova produzido na audiência, nem que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir. O que verdadeiramente importa é que o exame crítico permita identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, assente numa análise conjugada de todos os meios de prova, ainda que de sinal contrário, e daí resulte uma decisão linear, regida pelas regras da lógica e as máximas da experiência [10].

No presente caso, é manifesta a inexistência ou, sequer, a insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, permitindo a fundamentação compreender de forma suficientemente clara e precisa – e com a amplitude adequada à complexidade da causa - os motivos e a construção do percurso lógico da decisão, segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum, não se restringindo a uma adesão acrítica da prova, cumprindo-se, desta forma, o ónus imposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.

No fundo, a crítica dirigida à decisão recorrida assenta na discordância dos recorrentes quanto à forma como o tribunal valorou a prova. Contudo, tal discordância de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão em análise.

Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso.


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II) Impugnação da matéria de facto e vícios decisórios.

Os recorrentes, sem exceção, impugnam parcialmente a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal, considerando que a prova produzida na audiência de julgamento impõe decisão diversa da recorrida, tendo sido violado o princípio da livre apreciação da prova e, na opinião dos arguidos CC e BB, ainda o princípio da presunção de inocência (na configuração do “in dubio pro reo”). Acrescenta o Ministério Público, por sua vez, que a decisão enferma dos vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova (vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP).

Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).

A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:

- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;

- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.

Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão [11].

Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.

Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cf. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal]. [12]

Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida [13].

Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [14]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [15].

O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf., no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).

Contudo, e como observa o Conselheiro António Gama [16], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância. Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [17], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”.[18]

Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.


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O princípio “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência [19], configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel [20] sobre a verificação, ou não, de determinado facto decisivo para a decisão da causa -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Violação do princípio “in dubio pro reo” ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.[21]

O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável” [22].


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Delineados os princípios gerais da apreciação crítica da prova e decisão da matéria de facto, analisemos as razões de discordância invocadas pelos recorrentes.

Comecemos pelo recurso do Ministério Público que aponta, desde logo, à decisão recorrida a existência dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP.

As hipóteses que configuram o chamado recurso de «revista ampliada» integram-se nas patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410.º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.

O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [23].

Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018 [24].

O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange, na verdade, dois vícios distintos:

- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [25].

Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

É de notar que, como se assinala no acórdão do TRL de 21/5/2015, [26] «A contradição a que se reporta a al. b) do art. 410 do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento».

Já o «erro notório na apreciação da prova» – vício decisório contemplado na alínea c), do n.º 2, do art.º 410.º do CPP - refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[27]

Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [28].

Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O Ministério Público/recorrente aponta à decisão recorrida o vício de contradição insanável da fundamentação, afirmando existir uma incompatibilidade insanável entre o conteúdo do ponto 37) da matéria de facto provada e a factualidade que o tribunal a quo veio a considerar não provada constante da alínea IX), na medida em que, neles, o “Tribunal afirma uma coisa e o seu contrário”.

Considera, além disso, que, tendo o tribunal a quo declarado, na motivação, inexistir “intenção de prejudicar ou beneficiar alguém”, não se compreende o teor do ponto 37).

Vejamos.

Consta do ponto 37) da matéria facto provada o seguinte: «Os arguidos AA e a sociedade A..., Lda, LDA, atuando esta através do diretor técnico da obra, eng. DD, concertaram-se, tendo em vista a execução célere do troço ..., cuja exclusão do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 era por eles conhecida, mas que sabiam desagradar à população local. Cientes que davam preferência à sociedade arguida na execução da empreitada de obras públicas de pavimentação do troço ..., e no pagamento do correspondente preço e inerente lucro, ainda que violando conscientemente as regras e as normas aplicáveis à contratação pública, como bem sabiam ser o caso, pois caso fossem cumpridas não permitiriam a execução dos trabalhos sem um procedimento contratual prévio».

Já a alínea IX) do elenco da factualidade considerada não provada tem a seguinte redação: «O arguido AA, ao solicitar e acordar a extensão da pavimentação do piso da estrada até ..., atuou movido pelo propósito de assegurar para o partido pelo qual se candidatava a maior votação possível nas eleições autárquicas e/ou pelo propósito de beneficiar a sociedade arguida A..., Lda».

Com a inclusão desta factualidade no elenco da matéria de facto não provada pretendeu o tribunal a quo excluir a demonstração dos elementos subjetivos do tipo de ilícito – em concreto, a atuação do arguido AA com o “dolo específico” e o “dolo direto” pressuposto pelo tipo subjetivo do crime de prevaricação –, como se conclui da respetiva motivação.

E, nesse sentido, podendo discordar-se do pressuposto de que partiu o tribunal a quo (ou seja, o de que o tipo de ilícito subjetivo apenas se preenche com a verificação de dolo direto, já que a exigência de um “dolo específico”, traduzido numa especial intenção, é inequívoca) [29], temos de concluir pela inexistência da incongruência lógica e insanável apontada pelo recorrente.

As observações efetuadas, a este propósito, pelo tribunal de primeira instância na decisão recorrida contextualizam o raciocínio lógico subjacente àquela conclusão, traduzida na falta de demonstração de uma atuação pelo arguido AA condicionada pela específica intenção de causar prejuízo ou de beneficiar terceiros. Com efeito, observa-se na motivação da decisão de facto que «Relativamente à intenção que norteou a atuação arguido AA, o tribunal não ficou convencido, para lá de toda a dúvida razoável, que o mesmo tivesse por objetivo conseguir obter votação superior nas eleições, nem tampouco que o seu fito fosse favorecer a arguida sociedade».

Acrescentando o tribunal que «Está documentada a informação da empresa B..., recebida na CM... em 12/06/2017, que não iria colocar o saneamento. Perante isso, o arguido, sensível ao desagrado da população, verificou o mau estado do piso do troço de .... Com repercussão negativa na segurança da via. O empreiteiro tinha os funcionários e equipamentos no local, o que permitia obviar aos custos de nova deslocação de homens e máquinas.

Nesse condicionalismo, concede-se que o arguido viu vantagem, para a população e demais utentes da via, na pavimentação do troço ..., cujo estado degradado justificava a realização da obra.

Ademais, note-se, os relatórios de gestão e as contas do município mostram que a taxa de execução financeira, entre os anos de 2013 a 2017 não foram das mais elevadas em anos de eleições. E, por outro lado, se o arguido pretendesse mostrar obra, dispunha, no Município. de saldos financeiros e capacidade de endividamento significativos.

Por outro lado, o arguido AA, que estava em vias de completar o seu terceiro mandato como presidente da Câmara, veio a ganhar as eleições com margem confortável, não necessitante de carecer de granjear à última da hora mais uns quantos votos, sendo certo que o lugar de ... era pouco populoso. A arguida CC viria também a ganhar as eleições com uma margem confortável.

Perante as declarações produzidas pelos arguidos, AA e CC, bem como pelas testemunhas RR, JJ, TT e FF, retira-se que quer as relações pessoais entre os arguidos BB e AA não eram as melhores, quer as próprias relações entre o Município e a A..., Lda. não eram isentas de litígios.

Dito isto, uma coisa é o arguido AA ter atuado movido pela intenção de obter benefícios eleitorais e/ou de beneficiar a sociedade arguida.

Outra coisa diferente é o arguido AA ter realizado que da sua conduta adviria necessário benefício para a empreiteira (uma vez que lhe atribuiu a realização daquela obra, de modo não concorrencial, possibilitando-lhe o aumento das vendas e, consequentemente, da obtenção de lucro) e que a sua conduta agradaria à população local e que, por essa via, tenderia a granjear mais votos para as listas do partido pelo qual concorria.

Uma pessoa com o percurso de vida do arguido AA, naquele concreto condicionalismo, seguramente não teria deixado de realizar o vindo de expor.

Porém, reitera-se, uma coisa é a consciência desses benefícios, outra coisa diferente é os mesmos serem a causa e o móbil de atuação do arguido AA. E, reitera-se também, não ficamos convencidos que a intenção subjacente à atuação do arguido, o que o fez atuar, tenha sido a de obter qualquer dessas vantagens.

Posto isto, ficamos convencidos que o arguido AA estava perfeitamente ciente de que, ao ordenar a realização da pavimentação, com a anuência do diretor de obra da sociedade arguida, atuava contra a legalidade, ao mandar fazer a obra sem prévio procedimento contratual […]».

E, enquadrando jurídico-penalmente o comportamento do arguido AA, observa o tribunal recorrido que «[…] por referência à factualidade dos pontos 1 a 19, 34 e 35 e 37, 40 a 42 e 44 da factualidade provada dir-se-á, relativamente ao arguido AA, que se mostram presentes todos os elementos objetivos do tipo legal de crime.

Mas falta o elemento subjetivo específico: a intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. Não ficou demonstrado que o arguido AA tenha atuado movido por um tal desiderato. Que tenha sido a causa da sua conduta.

O que não é incompatível com o facto de realizar que a sua atuação teria como consequência um benefício económico para a sociedade arguida e seria suscetível de trazer benefício eleitoral potencial para as listas do partido em que concorria às eleições.

Mas estas eram consequências do seu atuar. Não as causas do seu atuar.

Não se mostra, portanto, preenchido o elemento subjetivo intencional do tipo legal de crime em apreço, pelo que será, da acusação da respetiva prática, o arguido AA absolvido. Assim, como serão os demais arguidos acusados, uma vez que, quanto a estes, não ficou demonstrada sequer sua participação ou envolvimento, por qualquer forma, na situação em apreço, não estando preenchidos nem os elementos objetivos nem subjetivos do tipo legal de crime» (cf. fls. 56/57 do acórdão recorrido).

  Inexiste, portanto, contradição insanável da fundamentação, cuja verificação pressuporia “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, evidenciado no próprio texto da decisão. E não se deteta, igualmente, uma patente contradição entre a fundamentação e a decisão, sendo a decisão sobre a matéria de facto congruente com as premissas lógicas enunciadas na fundamentação [30].
Importa, agora, indagar se a decisão recorrida está afetada de «erro notório na apreciação da prova», como sustenta o recorrente.
Como já tivemos oportunidade de salientar, o «erro notório na apreciação da prova» configura uma patologia extrema da decisão que, não se confundindo com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova levada a efeito pelo julgador, traduz-se na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, violadora das regras da experiência, das legis artis ou das regras sobre o valor da prova vinculada.
 No presente caso, analisada a fundamentação da matéria de facto constante da sentença recorrida, verificamos que o tribunal a quo procedeu a uma análise crítica da prova de forma detalhada e exaustiva. Nesse processo, analisando as declarações prestadas pelos arguidos na audiência de julgamento, por confronto com a restante prova produzida (fundamentalmente, os depoimentos das testemunhas inquiridas e o conteúdo da vasta prova documental), concluiu pela falta de demonstração do dolo do arguido AA no que concerne ao crime de prevaricação e pela ausência de prova suficientemente sólida e consistente quanto à sua participação na execução do crime de falsificação de documento e, por fim, quanto participação dos arguidos CC e BB no crime de prevaricação. Coerentemente, o tribunal incluiu os respetivos factos relevantes para a determinação da responsabilidade criminal assacada aos arguidos no núcleo da factualidade não provada.
Ora, importa assinalar que a função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos e que a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, mas, ao invés, deve ser valorada na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção [31].
Por outro lado, convém não esquecer que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar – certeza essa que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar. O que é necessário é que as mesmas indiquem um grau de probabilidade tão elevado que se baste como certeza possível para as necessidades da vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.
Dito isto, não podemos deixar de assinalar que a análise da prova (tal como se encontra enunciada na decisão recorrida), em conjugação com juízos de normalidade decorrentes da experiência comum, implicava que o tribunal tivesse retirado as necessárias ilações quanto ao dolo do arguido AA, por referência ao crime de prevaricação.

Com efeito, a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível dos arguidos, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum [32].
Ora, resulta claro a partir da simples leitura da decisão recorrida que o tribunal a quo admitiu, como certo, que o arguido AA teve consciência de que, da sua conduta, adviria necessário benefício para a empreiteira (uma vez que lhe atribuiu a realização daquela obra, de modo não concorrencial, possibilitando-lhe o aumento das vendas e, consequentemente, da obtenção de lucro) e que a sua conduta agradaria à população local e que, por essa via, tenderia a granjear mais votos para as listas do partido pelo qual concorria (cf. a fundamentação constante página 43 do acórdão).
Como afirma o tribunal no acórdão recorrido, «Uma pessoa com o percurso de vida do arguido AA, naquele concreto condicionalismo, seguramente não teria deixado de realizar o vindo de expor».
É esta, efetivamente, a única conclusão lógica a extrair da globalidade da prova e dos demais factos feitos constar no elenco da factualidade provada – tarefa que o tribunal não levou até ao fim, parece-nos, pela circunstância de ter partido do pressuposto de que o preenchimento do tipo subjetivo do crime de prevaricação pressupõe a verificação de dolo direto (com exclusão não só do dolo eventual, mas também do dolo necessário) [33] e que o denominado «dolo específico» pressupõe uma atuação tendo em vista, unicamente, a finalidade descrita no tipo legal, com exclusão de quaisquer outras com ela eventualmente concorrentes e, até, porventura, legítimas.
É de notar que o tribunal a quo considerou ter ficado provado que, aproximando-se as eleições autárquicas às quais concorriam os arguidos AA e CC, em listas do mesmo partido político, foi feito saber ao primeiro o desagrado da população local com a não inclusão na empreitada do procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017 do troço ..., população que há muito reclamava pela respetiva pavimentação, o que lhe foi transmitido, entre outras pessoas, pelo então Presidente da Junta de Freguesia ..., FF (cf. ponto 16), não impugnado). E ainda que, nessa sequência, o arguido AA, no dia 23/09/2017, deslocou-se ao local, tendo verificado que o piso da estrada do troço da ... estava em muito mau estado, com desgaste expressivo e depressões acentuadas, tendo solicitado, nessa ocasião, à sociedade arguida A..., Lda., cujos trabalhadores estavam a pavimentar o troço ..., que procedesse, logo de seguida, à pavimentação do piso do troço ..., o que aquela sociedade aceitou fazer, como efetivamente fez (ponto 17), não impugnado neste segmento).
Neste contexto, não se vê como pôde o tribunal a quo ter deixado de concluir, já que regras da experiência e da lógica assim o impunham, que o arguido AA atuou movido pelo propósito de assegurar para o partido pelo qual se candidatava a maior votação possível nas eleições autárquicas – ainda que se admita, como admitiu o tribunal, que com este propósito pudessem ter concorrido outros, designadamente ligados ao interesse da população ali residente e, em geral, aos utentes da via.
Por outro lado, se não podemos concluir com toda a certeza, em face dos dados equacionados na decisão recorrida, que o arguido AA agiu com o propósito de beneficiar a sociedade arguida, é evidente, porém, que teve consciência de que tal benefício decorria como consequência necessária da sua conduta (uma vez que lhe atribuiu a realização daquela obra, de modo não concorrencial, possibilitando-lhe o aumento das vendas e, consequentemente, da obtenção de lucro, como se assinalou no acórdão recorrido) [34].
Exigia-se, assim, na conclusão de uma tarefa consequente com os princípios da lógica e adequada valoração da prova apreciada na sua globalidade, tal como se encontra enunciada na decisão recorrida, a seleção dos factos que se afiguravam congruentes com a atuação dolosa do arguido AA.
Além disso, consideramos também que a análise da prova (tal como se encontra enunciada na decisão recorrida), em conjugação com juízos de normalidade decorrentes da experiência comum, implicava que o tribunal tivesse retirado as necessárias ilações quanto à participação do arguido BB na decisão da execução da “obra suplementar”, em representação da sociedade A..., Lda, Lda.
Com efeito, parece-nos ser esta a única conclusão lógica a extrair da globalidade da prova e dos demais factos feitos constar no elenco da factualidade provada, contrariando as regras da experiência comum a afirmação do tribunal a quo de que aquela decisão foi tomada unicamente pelo diretor técnico da obra, engenheiro DD, sem a participação do arguido BB (cf. os pontos 17) e 37) da matéria de facto provada e, em particular, a alínea VIII) dos factos não provados).
É de notar que o próprio tribunal afirma, na motivação da decisão, que «apesar de as testemunhas DD e UU terem tentado, de alguma forma, obnubilar ou mitigar a responsabilidade do arguido BB, seu patrão, da caracterização que fizeram da personalidade deste, sendo ele que assumia a condução dos negócios, adveio-nos a convicção que o referido arguido estava inteirado do que se passava, nada foi feito no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017 à sua revelia, até porque era do seu interesse receber o dinheiro da pavimentação do troço ...» (fls. 47 do acórdão recorrido).
Como bem salienta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, «[…] decorre da factualidade provada que: - o arguido BB é sócio e gerente da sociedade arguida e interveio, no contexto dos factos narrados, em nome e no interesse desta, para promoção da correspondente atividade comercial; - foi o arguido BB quem, em representação da sociedade A..., Lda., celebrou o contrato de empreitada com o Município ..., pelo preço contratual de 239.864,53€, classificada no “CPV ...20-7, Pavimentação de estradas” - Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017; - foi o arguido BB, quem, em representação da sociedade, se apresentou a cobrar as obras de pavimentação realizadas por aquela sociedade, a mando do arguido AA.
Não se compreende, por conseguinte, à luz de toda a factualidade provada e de regras de experiência comum, que não tenha sido o arguido BB, quem, em representação da sociedade arguida, acordou com o arguido AA a execução da pavimentação do troço de ... até ..., com aquele tendo atuado em conjugação de esforços e intentos, conforme tido como não provado em XI. Atente-se que se tratou de obra no valor de 42 417,50€, valor que, não obstante o volume de negócios da sociedade, se não pode ter por irrelevante e por isso deixado ao critério de um funcionário, ainda que diretor técnico da obra e representante da empreiteira no procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017.
Acresce, tal como consignado no facto provado sob o nº 19, que «A pavimentação do troço ..., acordada entre o arguido AA e a arguida A..., Lda., atuando ambos em conjugação de esforços e vontades, foi executada, nos sobreditos termos, logo após a pavimentação do troço ... – estando este troço previsto no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, mas não aquele –, sem a prévia abertura de procedimento contratual autónomo».
Não podia também o arguido BB ignorar, considerando a sua experiência em matéria de realização de obras públicas, que a adjudicação e a realização da obra em causa dependia de prévia abertura de procedimento contratual autónomo e que à realização da mesma nem sequer se poderia candidatar por a sociedade sua representada ter já ultrapassado o preço contratual acumulado de €150.000,00.
E à luz de regras de experiência comum, também se não compreende, considerando o valor da obra de pavimentação do troço ... (€42 617,50), que este arguido, em representação da sociedade, não tenha imediatamente acordado com o arguido AA quais os termos em que, perante a não previsão destas obras no processo n.º 20/DPO/SOM/2017, a impossibilidade de nele as incluir e a inexistência de prévio procedimento concursal, se iria realizar o pagamento da obra à sociedade.
A tudo acrescendo, como se afirma no facto provado nº 37, que os arguidos AA e a sociedade A..., Lda estavam «Cientes que davam preferência à sociedade arguida na execução da empreitada de obras públicas de pavimentação do troço ..., e no pagamento do correspondente preço e inerente lucro, ainda que violando conscientemente as regras e as normas aplicáveis à contratação pública, como bem sabiam ser o caso, pois caso fossem cumpridas não permitiriam a execução dos trabalhos sem um procedimento contratual prévio.»
Não se duvida que o arguido AA possa ter falado com o Engenheiro DD sobre a realização da obra respeitante ao troço ..., pois que este era o diretor técnico da obra, por conta da sociedade arguida, na empreitada do Proc. n.º 20/DPO/SOM/201725.
Contudo, impunha-se uma apreciação crítica do depoimento prestado pela testemunha DD, o que, conjugado com todos os demais elementos já enunciados, levaria a que o tribunal concluísse, para além da “dúvida razoável”, e apesar do por ela declarado, que o arguido BB, atuando em representação da sociedade, assentiu na execução da obra, tanto mais que, como a testemunha naturalmente sabia - pois os trabalhos em causa não podiam ser enquadrados no procedimento n.º 20/DPO/SOM/2017 -, havia a necessidade de acautelar as condições do respetivo pagamento.

Relativamente à exclusão da factualidade relativa à participação dos arguidos AA e CC na execução dos factos que se relacionam, respetivamente, com os crimes de falsificação de documento e de prevaricação, e respetivo dolo, a valoração da prova efetuada pelo tribunal de primeira instância não nos merece qualquer censura, resultando da leitura da sentença recorrida que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais não se convenceu, para além da dúvida razoável, [35] de que os arguidos/recorrentes adotaram os comportamentos descritos na acusação, tendo agido com culpa.

Como se fez notar no acórdão recorrido, «o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017 correu integralmente termos no mandato da arguida CC. Não se apurou a intervenção do arguido AA em tal procedimento. Nem há evidência de que ele tenha convencido ou determinado os coarguidos a cometer o ilícito, nem que lhes tenha prestado qualquer tipo de auxílio».

Já quanto à atuação da arguida CC, salientou o tribunal a quo que não há nos autos qualquer meio de prova que relacione a arguida CC com a precedente atuação do arguido AA.

Importa notar, como é salientado no parecer do MP e decorre do texto da decisão recorrida, que a arguida CC não tinha, então, poderes para determinar a realização da obra e, conquanto possa ter obtido vantagem eleitoral em consequência do comportamento do arguido AA e se tenha disponibilizado a simular a existência de um regular procedimento no Proc. 60/DPO/SOM/2017, de tanto não decorre, sem mais, que esta arguida tenha participado no acordo (verbal) firmado entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade A..., Lda, para a pavimentação do troço ....

O que resulta da factualidade assente (com as correções necessárias) é que a realização da obra decorreu do acordo de vontades daqueles dois arguidos, inexistindo qualquer evidência de que a arguida CC nele tenha participado ou, por qualquer forma, naquele contexto [36], a ele tenha aderido.


*
Como se assinala no acórdão do TRP de 22/6/2016 [37], o reenvio do processo para novo julgamento, previsto no art.426.º, do CPP, deve constituir a exceção e a sanação dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, deve ser a regra. O tribunal de recurso só deve proceder ao reenvio quando for objetivamente inviável a decisão da causa pela segunda instância com os elementos de que dispõe.
No presente caso, é possível sanar no tribunal de recurso o aludido vício, alterando a decisão sobre a matéria de facto.
Assim, ao elenco dos factos provados são aditados os seguintes, reproduzindo o sentido da factualidade constante do ponto 13) da acusação, mas com uma redação adaptada à descrição do dolo por parte do arguido AA [38]:
42. a) O arguido AA, ao solicitar e acordar a extensão da pavimentação do piso da estrada até ..., atuou movido pelo propósito de assegurar para o partido pelo qual se candidatava a maior votação possível nas eleições autárquicas, e com consciência que, da sua conduta, adviria necessário benefício para a empreiteira.
A redação dos pontos 17) e 37) deve ser corrigida, eliminando-se a referência ao «diretor técnico da obra, eng. DD», e fazendo deles constar o nome do arguido BB.
Simultaneamente, devem ser eliminados os pontos I) e IX) da matéria de facto não provada, incluído o ponto VIII) na factualidade provada e corrigido o teor do ponto XI) – por forma a que dele permaneça excluída a participação da arguida CC -, o qual transita, igualmente, para o elenco da factualidade provada, com a seguinte redação: «Foi acordado entre os arguidos AA e BB a execução da pavimentação do troço de ... até ... sem a prévia abertura de procedimento contratual, tendo atuado estes arguidos em conjugação de esforços e de intentos».
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Analisemos, agora, a impugnação ampla da matéria de facto formulada pela totalidade dos recorrentes.

Como já tivemos oportunidade de observar, pretendendo impugnar amplamente a matéria de facto, o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.

Além disso, tendo as provas sido gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (cf. o art.º 412.º, n.º 4, do CPP).

Como se observa no acórdão deste TRP, datado de 13/12/2023 [39], «Questionada a decisão matéria de facto através impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.º 3, do CPP, recai sobre o recorrente o ónus de especificar e individualizar os concretos factos que, em seu entender, se encontram incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Feita tal indicação, deverá ainda explicar a razão pela qual as provas ou os meios de prova que especifica impõem decisão diversa da recorrida. Por exemplo, não basta transcrever excertos de declarações ou de depoimentos e dizer que dali resulta o contrário do decidido. Acresce que o ónus deve ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não por atacado, impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado».

O ónus de impugnação especificada foi adequadamente observado pelos recorrentes, pelo que importa analisar as razões de discordância por eles enunciadas quanto à decisão sobre a matéria de facto.

Assim:
a) Recurso do Ministério Público.
Discorda o Ministério Público, como vimos, da decisão tomada pelo tribunal a quo relativamente aos factos constantes dos pontos 37) e 57) da factualidade provada e dos descritos nas alíneas I), VIII), IX), X) e XI) da matéria de facto não provada.
Ora, quanto à factualidade constante dos pontos 37), I), VIII), IX) e XI), já tivemos oportunidade de explicar, no capítulo antecedente, os motivos e as condições em que deverá ser alterada, por forma a tornar-se congruente com a restante factualidade apurada e com uma apreciação lógica da prova e conforme às regras da experiência. Além disso, a análise conjugada da prova com princípios de normalidade, decorrentes das regras da experiência, sempre imporia uma decisão diversa da recorrida, com os limites atrás definidos.
Avancemos, agora, para a análise do facto 57), que tem a seguinte redação: «O arguido AA não deu ordens ou instruções expressas para lançar um novo procedimento contratual».
E, relativamente a este facto, temos de admitir inexistir qualquer prova que, concludentemente, demonstre realidade contrária à ali enunciada – nem o recorrente a indica.
É de notar que a engenheira EE [40] descreveu, circunstanciadamente, o contexto em que foi elaborado o procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017, esclarecendo ter sido informada pelo arguido AA, então Presidente da Câmara ..., da decisão tomada de “estender” os trabalhos de pavimentação, acrescentando que “tinha feito aquilo que ela disse para não fazer”. Apesar de discordar desta decisão - pois, como explicou, os trabalhos em causa não estavam inicialmente contemplados e não se enquadravam no conceito de “trabalhos imprevisíveis” e, por isso, na figura de “trabalhos a mais” -, deu seguimento ás ordens recebidas do arguido AA para “tratar do assunto o mais rapidamente possível”, por forma a ser efetuado o pagamento ao empreiteiro.
Além disso, esclareceu nunca ter recebido qualquer ordem ou instrução do arguido AA no sentido de iniciar um procedimento por “trabalhos a mais”, o qual, em concreto, não tinha cabimento, como era do conhecimento de ambos, sendo certo que era procedimento habitual, designadamente durante a presidência do arguido, recorrer ao procedimento de ajuste direto para resolver este tipo de situações.
Decorre, assim, do relato efetuado pela testemunha, que sempre ficou subentendido nas conversas que manteve com o arguido AA que teria de ser lançado um novo procedimento por ajuste direto. Contudo, a testemunha em nenhum momento declarou ter recebido ordens expressas do arguido para proceder desse modo ou de qualquer outro – limitando-se, segundo descreve, o arguido a dizer-lhe para preparar os documentos e o procedimento para se pagar ao empreiteiro, o mais rapidamente possível -, sendo, nessa medida, correta a afirmação contida no ponto 57).

Discorda, ainda, o Ministério Público/recorrente da inclusão da alínea X) no elenco dos factos não provados, com a seguinte redação: «O arguido AA obteve o acordo da arguida CC, na sua qualidade de Vice-Presidente, para a imediata pavimentação do piso do troço (de ...) até ..., acordo esse reforçado depois da tomada de posse desta como Presidente da Câmara Municipal ...».
No capítulo antecedente tivemos oportunidade de explicar a razão pela qual não se evidenciava ter sido cometido erro notório na apreciação da prova, relativamente a este segmento da decisão, diversamente do que sustentava o Ministério Público/recorrente. Agora, estamos em condições de acrescentar que nenhuma prova suficientemente concludente foi produzida no sentido da demonstração de tal factualidade, existindo, até, elementos que a infirmam.
Com efeito, diversos elementos probatórios (designadamente, as declarações prestadas pelo arguido AA e os depoimentos prestados pelas testemunhas EE e DD) confluem para a conclusão de que a decisão de “estender” os trabalhos de pavimentação foi tomada instantaneamente, por impulso, pelo arguido AA, na sua qualidade de Presidente da Câmara, iniciando-se, de imediato, a respetiva execução [41].
Ora, se a estes elementos acrescentarmos a circunstância de a arguida CC não ter, então, poderes para determinar a realização da obra, e a circunstância de a testemunha EE ter recebido ordens para tratar do procedimento e documentos “rapidamente”, sendo intenção do arguido AA que tudo ficasse resolvido ainda durante o seu mandato – como a testemunha declarou, na audiência, ter depreendido das conversas que manteve com o arguido a este propósito -, consolida-se a conclusão a que chegou o tribunal a quo, a qual não nos merece qualquer reparo.
Procede, assim, apenas parcialmente o presente fundamento do recurso do Ministério Público.

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b) Recurso da arguida CC.

A recorrente defende que os factos constantes dos pontos 20º, 33º, 36º, 38º, 43º e 44º, dados como assentes, foram incorretamente julgados, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime por que foi condenada, pelo menos por aplicação do princípio “in dubio pro reo”, que considera ter sido inobservado.

Recordemos os pontos de facto impugnados pela recorrente e que serviram de fundamento ao preenchimento dos tipos de ilícito e de culpa do crime de falsificação de documento em análise nos autos:

[19. A pavimentação do troço ..., acordada entre o arguido AA e a arguida A..., Lda., atuando ambos em conjugação de esforços e vontades, foi executada, nos sobreditos termos, logo após a pavimentação do troço ... – estando este troço previsto no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, mas não aquele –, sem a prévia abertura de procedimento contratual autónomo.]

Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017:

20. Posto isto, para permitir a realização do pagamento à sociedade A..., Lda. pelos trabalhos de execução da pavimentação do troço ..., com aparência de respeito pelas regras da contabilidade pública, visto que tal pagamento não estava contemplado no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, não obstante os trabalhos a menos que no mesmo vieram a ser decididos, a arguida CC e o arguido BB, em representação da sociedade arguida, puseram-se de acordo quanto à formalização de um novo procedimento contratual, respeitante àquele troço, ainda que posterior à execução da predita pavimentação.

33. Considerando que em tais casos estão em causa prestações do mesmo tipo ou idênticas, tendo por referência os primeiros cinco dígitos do CPV, ...33 no caso, quando foi decidido adjudicar a empreitada do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017, a sociedade arguida já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de 150.000,00€ correspondente ao máximo legalmente imposto (sendo já esse o caso do Proc. n.º 31/DPO/SOM/2016), o que não demoveu os arguidos de agir como descrito.

36. Agiram os arguidos BB - em nome e no interesse da sociedade A..., Lda LDA. -, e CC, em conjugação de esforços, intentos e vontades, nos moldes descritos supra.

38. Sabiam os arguidos CC e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade arguida A..., Lda., que esta última não podia ser convidada a apresentar proposta no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017, porque havia sido beneficiária nos dois anos anteriores de contratos, tendo por objeto prestações do mesmo tipo ou idênticas, celebrados por ajuste direto, em valor superior a € 150.000,00.

43. Os arguidos CC e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade A..., Lda; LDA, em conjugação de esforços e intentos, quiseram fazer constar falsamente do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 o ajuste direto por referência a uma empreitada ainda por realizar, bem como a proposta efetuada pela A..., Lda. por referência a empreitada ainda por realizar, estando perfeitamente cientes que essa empreitada já havia sido executada, e que as menções à execução futura, nos documentos do procedimento, eram por isso contrárias à realidade dos factos, o que fizeram para dissimular que a execução da obra já ocorrera, com a intenção de que o pagamento da empreitada à sociedade arguida por parte da entidade adjudicante se pudesse realizar, em consonância com as regras da contabilidade pública e, ainda, com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização, sabendo até que a sociedade arguida não poderia ser convidada a apresentar propostas no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017.

44. Em tudo, agiram de um modo livre, deliberado e consciente, cientes de que incorriam em responsabilidade penal.

Na motivação da decisão, por referência a este segmento factual, escreveu o tribunal a quo o seguinte:

«Aqui chegados, do acervo de provas é incontroverso que foi lançado e tramitado o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017, com intervenção dos arguidos CC e BB, atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, em comunhão de esforços e intentos, tendo em vista ocultar e dissimular a ilícita pavimentação do troço .... Como se a obra ainda estivesse por realizar. Fazendo ambos constar nos documentos do procedimento factos falsos juridicamente relevantes, atinentes às prestações e obrigações das partes contraentes.

Como a realização da obra não deu observância prévia às regras da contratação pública e das normas contabilísticas, o pagamento ao empreiteiro não se podia legalmente realizar, como ressuma dos depoimentos das testemunhas JJ, KK, LL e MM). A libertação do pagamento é, em si, um benefício. Como benefício é a “regularização” das contas da autarquia e, assim, evitar a deteção da irregularidade e evitar eventual responsabilização dos agentes.

Note-se que o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017 correu integralmente termos no mandato da arguida CC. Não se apurou a intervenção do arguido AA em tal procedimento. Nem há evidência de que ele tenha convencido ou determinado os coarguidos a cometer o ilícito, nem que lhes tenha prestado qualquer tipo de auxílio.

A arguida CC, nas suas declarações, sustenta o desconhecimento de que a obra fora já feita, que o procedimento foi tratado pelos serviços administrativos e que não tinha conhecimentos do regime da contratação pública.

No que é frontalmente contrariada pela testemunha EE, engenheira que fiscalizava o procedimento por concurso público e que fez as peças para o procedimento por ajuste direto.

Ora, a verdade é que a arguida CC já cumprira dois mandatos como autarca na Câmara, um com vereadora, outro como vice-presidente. As empreitadas de obras públicas e suas vicissitudes, até pela participação nas reuniões de Câmara, não lhe eram seguramente matérias estranhas.

De mais a mais, a necessidade de fazer o pagamento ao empreiteiro em consonância com as regras da contabilidade pública, era tema que lhe dizia respeito e que contendia com a sua atividade autárquica.

Ademais, tendo sido o arguido AA o responsável pela realização da obra sem precedente procedimento contratual e sem observâncias das regras contabilísticas, não havia razão algum para os serviços municipais esconderem a situação à presidente em exercício. A responsabilidade era do anterior presidente.

Estamos, por isso, convencidos que a arguida, deparando-se com um problema, o tentou resolver, mediante um novo procedimento e um novo contrato, por ajuste direito. Aliás, outro procedimento não poderia ser, uma vez que a adjudicatária teria que ser a sociedade arguida, pois ela é que fizera a obra. […].

Prosseguindo, os arguidos CC e BB tinham conhecimento, não havia razão para não saberem, dos contratos antes celebrados entre o Município e a A..., Lda. e, como tal, que esta já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de € 150 000 para serviços idênticos, pelo que não poderia ser escolhida no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017. Mas, por ter sido essa empresa a fazer a obra, tinha agora que ser ela a escolhida para apresentar propostas. […]

Prosseguindo, o propósito e vontade de atuação dos arguidos infere-se, à luz de regras de lógica e de experiência, da factualidade objetiva demonstrada.

Resulta também de regras de lógica e de experiência comum que pessoas adultas, como eram os arguidos, com a sua experiência de vida, não ignoravam, não poderiam ignorar, a ilicitude das condutas dadas como provadas».

Importa reiterar que, para alterar a decisão sobre a matéria de facto, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida (artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP), sendo que, como justamente salientou o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP, datado de 9/11/2016 (e disponível em www.dgsi.pt), “(…) para tanto, não basta apontar disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, tem de aceitar ou rejeitar cada um dos depoimentos na globalidade. A sua tarefa é dilucidar, em cada um deles, o que merece crédito e o que lhe suscita reservas ou mesmo descrédito.

Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.”.
Da análise da decisão recorrida (já transcrita) resulta que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais, no confronto da versão dos factos trazida, por um lado, pela acusação – apoiada na prova documental e nos depoimentos das testemunhas ali indicadas, em particular, quanto ao segmento que agora nos interessa, no depoimento prestado pela testemunha EE - e, por outro, pela arguida, conferiu maior credibilidade á primeira.

A recorrente, embora com referenciação e/ou transcrição de depoimentos, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal a quo explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que a arguida/recorrente adotou os comportamentos descritos na decisão recorrida, sendo da análise conjugada dos depoimentos prestados pelas indicadas testemunhas e do conteúdo da prova documental junta aos autos - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Verifica-se, ainda, que os elementos de prova que a recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal – fundamentalmente, as declarações prestadas pelo arguido AA e o depoimento prestado pela testemunha EE - não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida.

Com efeito, a arguida limita-se a negar as acusações que lhe são dirigidas e aponta, na motivação do recurso, incongruências que considera existir nas declarações da testemunha EE - meio de prova no qual o tribunal, a par da prova documental e de outros elementos de prova testemunhal, baseou a sua convicção -, sem que, de modo algum, se possa concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [42].

Na verdade, o que ressalta da motivação é que a recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
É de notar que, tal como observou o tribunal a quo, a testemunha EE prestou um depoimento consistente e credível e, contrariando as declarações prestadas pelo arguido AA, esclareceu que, em momento algum, recebeu ordens ou instruções do arguido, então Presidente da Câmara Municipal ..., para enquadrar a documentação que era necessário elaborar para permitir o pagamento à empreiteira no quadro de um procedimento por “trabalhos a mais” – o que, acrescenta a testemunha, nem faria sentido naquele contexto, já que ambos sabiam que os trabalhos em causa, não se tratando de trabalhos imprevisíveis, não poderiam ser configurados como trabalhos suplementares, pelo que teriam de ser enquadrados num novo procedimento, por ajuste direto [43].
Mas diz mais, em segmentos do seu depoimento que a recorrente, numa leitura naturalmente interessada da prova, omite: esclarece que era habitual recorrer ao procedimento por ajuste direto para resolver aquele tipo de situações, o que sucedeu por diversas vezes durante a presidência do arguido AA na Câmara Municipal ...; e, ainda, que a arguida CC já antes tinha assinado procedimentos naquelas condições, em substituição do arguido AA, na sua qualidade de Vice-Presidente daquela Câmara Municipal.
Por fim, a testemunha EE declarou ter sido informada pela recorrente CC de que já tinha falado com o arguido AA sobre o assunto – como é natural, aliás, dado que estava pendente de resolução por falta de dotação orçamental, como explicou a testemunha, e o arguido AA havia cessado funções, sendo substituído no cargo pela arguida.
Assim se explica que a recorrente não tenha colocado questões à técnica EE, limitando-se a dizer-lhe que já tinha falado sobre o assunto com o arguido AA e a dar-lhe instruções “para avançar com o procedimento para fazer o pagamento ao empreiteiro” [44].
Como consta do acórdão recorrido e decorre inelutavelmente da prova, a arguida CC ocupou o cargo de Vice-Presidente da Câmara ... desde 2013 até ../../2017, data em que assumiu as funções de Presidente da mesma autarquia. Acumulava os pelouros da Cultura, Turismo, Educação, Ação Social e Desporto e, tal como referiu a testemunha EE, substituía o Presidente da Câmara, nomeadamente em procedimentos de contratação de obras públicas quando aquele se encontrava impedido. Nas eleições autárquicas que se realizaram em 1/10/2017 concorreu integrando as listas do mesmo partido que o arguido AA. É legítimo, por isso, concluir, como observa a Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, que ambos se encontravam não só nas instalações da Câmara, mas também nas ações de campanha eleitoral que precederam aquelas eleições.
Impõe-se, por outro lado, a conclusão que a arguida, dada a sua experiência, conhecia os procedimentos legais de contratação pública e, considerando as suas funções e, em especial, a circunstância de ser candidata à presidência da Câmara, não ignorava as obras públicas que se encontravam em curso, as que recentemente tinham sido realizadas, as que se encontravam projetadas e as que a arguida pretenderia realizar caso fosse eleita.    

Ora, na ausência de confissão, a prova do dolo assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. [45] Com efeito, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).

A prova indiciária constante do processo e analisada pelo tribunal de julgamento é suficientemente clara e precisa para nos permitir afirmar, com a segurança exigível à superação da presunção de inocência ínsita no princípio in dubio pro reo [46], que os factos ocorreram do modo descrito no acórdão recorrido.
Na verdade, e como afirma Marieta, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza. É a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas, que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando [47].
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração de uma atuação consciente e deliberada (e, por isso, dolosa) da arguida na execução dos factos que integram o crime de falsificação.
Tais inferências obedecem ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência, não se encontrando, para além disso, “contra-indícios” reveladores de hipóteses divergentes plausíveis, capazes de abalar a elevada convicção probatória em torno da hipótese da acusação.[48]
Em síntese, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio da livre apreciação da prova e, ainda, pelo princípio in dubio pro reo [49] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável à arguida, nem tal dúvida se evidencia).

Desta forma, e como se salienta no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [50], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.” [51].

Improcede, assim, o presente fundamento do recurso.


*

c) Recurso dos arguidos BB e “A..., Lda”.

Sustentam os recorrentes que os factos constantes dos pontos 17º (parte final), 19º, 20º, 25º, 33º, 36º, 38º, 43º e 44º, dados como assentes, foram incorretamente julgados, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de falsificação de documento por que foram condenados.

Recordemos os pontos de facto impugnados pelos recorrentes e que serviram de fundamento ao preenchimento dos tipos de ilícito e de culpa do crime de falsificação de documento em análise nos autos:

17. [Nessa sequência, o arguido AA, no dia 23/09/2017, deslocou-se ao local, tendo verificado que o piso da estrada do troço da ... estava em muito mau estado, com desgaste expressivo e depressões acentuadas. Solicitou, nessa ocasião, à sociedade arguida A..., Lda., cujos trabalhadores estavam a pavimentar o troço ..., que procedesse, logo de seguida, à pavimentação do piso do troço ..., o que aquela sociedade, por decisão do Eng. DD, diretor técnico da empreitada e representante da empreiteira no procedimento n.º 20/DPO/SOM/201725, aceitou fazer, como efetivamente fez. O arguido AA estava ciente que a pavimentação deste troço, não prevista no proc. n.º 20/DPO/SOM/2017,26 sendo desejada pela população local, era suscetível de aumentar o número de votos na lista do partido pelo qual, juntamente com a arguida CC, se candidatava às eleições autárquicas.] E não ignorava que, desse modo, a sociedade arguida A..., Lda. seria preferida, como foi, na execução da obra de pavimentação do troço ... e no pagamento do correspondente preço, sem a realização de qualquer procedimento contratual prévio.

19. A pavimentação do troço ..., acordada entre o arguido AA e a arguida A..., Lda., atuando ambos em conjugação de esforços e vontades, foi executada, nos sobreditos termos, logo após a pavimentação do troço ... – estando este troço previsto no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, mas não aquele –, sem a prévia abertura de procedimento contratual autónomo.

Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017:

20. Posto isto, para permitir a realização do pagamento à sociedade A..., Lda. pelos trabalhos de execução da pavimentação do troço ..., com aparência de respeito pelas regras da contabilidade pública, visto que tal pagamento não estava contemplado no Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017, não obstante os trabalhos a menos que no mesmo vieram a ser decididos, a arguida CC e o arguido BB, em representação da sociedade arguida, puseram-se de acordo quanto à formalização de um novo procedimento contratual, respeitante àquele troço, ainda que posterior à execução da predita pavimentação.

25. O arguido BB, em nome e no interesse da sociedade arguida, subscreveu o documento intitulado DECLARAÇÃO, datado de 04/12/2017, no qual declarou ter tomado conhecimento do caderno de encargos do contrato e que a sua representada se obrigava a executar este último em conformidade com o dito caderno e nos termos previstos na proposta e na lista unitária de preços unitários final, e noutros documentos anexos, necessários para a formalização do procedimento, apesar de bem saber que o dito contrato já se encontrava executado.

33. Considerando que em tais casos estão em causa prestações do mesmo tipo ou idênticas, tendo por referência os primeiros cinco dígitos do CPV, ...33 no caso, quando foi decidido adjudicar a empreitada do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017, a sociedade arguida já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de 150.000,00€ correspondente ao máximo legalmente imposto (sendo já esse o caso do Proc. n.º 31/DPO/SOM/2016), o que não demoveu os arguidos de agir como descrito.

36. Agiram os arguidos BB - em nome e no interesse da sociedade A..., Lda LDA. -, e CC, em conjugação de esforços, intentos e vontades, nos moldes descritos supra.

38. Sabiam os arguidos CC e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade arguida A..., Lda., que esta última não podia ser convidada a apresentar proposta no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017, porque havia sido beneficiária nos dois anos anteriores de contratos, tendo por objeto prestações do mesmo tipo ou idênticas, celebrados por ajuste direto, em valor superior a € 150.000,00.

43. Os arguidos CC e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade A..., Lda, em conjugação de esforços e intentos, quiseram fazer constar falsamente do Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 o ajuste direto por referência a uma empreitada ainda por realizar, bem como a proposta efetuada pela A..., Lda por referência a empreitada ainda por realizar, estando perfeitamente cientes que essa empreitada já havia sido executada, e que as menções à execução futura, nos documentos do procedimento, eram por isso contrárias à realidade dos factos, o que fizeram para dissimular que a execução da obra já ocorrera, com a intenção de que o pagamento da empreitada à sociedade arguida por parte da entidade adjudicante se pudesse realizar, em consonância com as regras da contabilidade pública e, ainda, com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e de controlo e assim se eximirem à responsabilização, sabendo até que a sociedade arguida não poderia ser convidada a apresentar propostas no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017.

44. Em tudo, agiram de um modo livre, deliberado e consciente, cientes de que incorriam em responsabilidade penal.

Na motivação da decisão, por referência a este segmento factual, escreveu o tribunal a quo o seguinte:

«O arguido AA era engenheiro civil, ligado à construção de estradas. Cumpria o terceiro mandato como presidente de câmara, tendo larga experiência em empreitadas de obras públicas.

É incontroverso que o troço ... não estava previsto no procedimento do concurso público.

Não era necessária a sua realização para a execução da obra contemplada no concurso público.

Menos ainda por circunstância imprevista.

Com efeito, o mau estado do piso não era uma circunstância imprevista. Aliás, isso mesmo resulta dos depoimentos das testemunhas NN, GG, que fizeram medições para o lançamento do concurso público. E ainda da testemunha EE. Os serviços camarários sabiam. E não o esconderam seguramente ao arguido AA.

Não ficou demonstrado, perante as declarações e testemunhos, que entre o lançamento do concurso e o início das obras ocorresse uma deterioração adicional anormal, abrupta e inesperada do estado do piso do troço ....

E não havia inconvenientes graves para o Município na não realização da pavimentação deste troço.

A demora adicional para a realização de um novo contrato. Tanto mais que a Câmara podia até fazer intervenções pontuais através da equipa de cantoneiros. E, o facto de o preço vir a ser superior, tendo em conta a reduzida dimensão da obra e a boa situação financeira do Município, não era incomportável.

O arguido sabia que os trabalhos determinados não configuravam trabalhos a mais (art. 370º do Código dos Contratos Públicos). E, por isso, que a realização da obra dependia da observância de um dos tipos de procedimento previstos na lei para a formação do contrato (arts. 1º, 16º e 34º e segs. do Código dos Contratos Públicos)

Prosseguindo, cumpre salientar que a empreitada do proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 estava praticamente no início. Veja-se, como já aludido, a data da consignação.

E, ao tempo em que o arguido AA, determinou a pavimentação do troço ... não havia ainda sido tomada, ao contrário do que aquele referiu, a decisão de supressão de outros trabalhos. Ou seja, a determinação de trabalhos a menos. É o que se retira, atentando nas respetivas datas, dos documentos de fls. 88 e 95, 105, 107, 123 a 125, 163, 164 e 152 verso e 152 rosto. Veja-se que de fls. 152 se retira que em 12 outubro de 2017, a supressão de trabalhos ainda não era uma certeza.

Consequentemente, ao tempo em que determinou a pavimentação do troço ... ainda não havia sido decidida a existência de trabalhos a menos, pelo que o arguido não poderia ter cogitado qualquer compensação do custo daquela obra com estes.

De todo o modo o arguido, para o projeto da Estrada ..., não havia dotação orçamental inscrita, cabimento registado e compromisso assumido, em termos contabilísticos, suficientes para acomodar, sem mais, o custo adicional da pavimentação do troço ....

Aqui chegados, do acervo de provas é incontroverso que foi lançado e tramitado o procedimento n.º 60/DPO/SMO/2017, com intervenção dos arguidos CC e BB, atuando em nome e no interesse da sociedade arguida, em comunhão de esforços e intentos, tendo em vista ocultar e dissimular a ilícita pavimentação do troço .... Como se a obra ainda estivesse por realizar. Fazendo ambos constar nos documentos do procedimento factos falsos juridicamente relevantes, atinentes às prestações e obrigações das partes contraentes.

Como a realização da obra não deu observância prévia às regras da contratação pública e das normas contabilísticas, o pagamento ao empreiteiro não se podia legalmente realizar, como ressuma dos depoimentos das testemunhas JJ, KK, LL e MM). A libertação do pagamento é, em si, um benefício. Como benefício é a “regularização” das contas da autarquia e, assim, evitar a deteção da irregularidade e evitar eventual responsabilização dos agentes.

[…]

A arguida CC, nas suas declarações, sustenta o desconhecimento de que a obra fora já feita, que o procedimento foi tratado pelos serviços administrativos e que não tinha conhecimentos do regime da contratação pública.

No que é frontalmente contrariada pela testemunha EE, engenheira que fiscalizava o procedimento por concurso público e que fez as peças para o procedimento por ajuste direto.

Ora, a verdade é que a arguida CC já cumprira dois mandatos como autarca na Câmara, um com vereadora, outro como vice-presidente. As empreitadas de obras públicas e suas vicissitudes, até pela participação nas reuniões de Câmara, não lhe eram seguramente matérias estranhas.

De mais a mais, a necessidade de fazer o pagamento ao empreiteiro em consonância com as regras da contabilidade pública, era tema que lhe dizia respeito e que contendia com a sua atividade autárquica.

Ademais, tendo sido o arguido AA o responsável pela realização da obra sem precedente procedimento contratual e sem observâncias das regras contabilísticas, não havia razão algum para os serviços municipais esconderem a situação à presidente em exercício. A responsabilidade era do anterior presidente.

Estamos, por isso, convencidos que a arguida, deparando-se com um problema, o tentou resolver, mediante um novo procedimento e um novo contrato, por ajuste direito. Aliás, outro procedimento não poderia ser, uma vez que a adjudicatária teria que ser a sociedade arguida, pois ela é que fizera a obra.

Relativamente ao arguido BB, o mesmo colaborou no dito procedimento, sabendo seguramente o que se passava.

O arguido é o gerente da empresa e, retira-se dos depoimentos das testemunhas DD e UU dirige, nos vetores principais, o negócio e acompanha-os. E apesar de a assinatura do arguido ser eletrónica, não sendo ele – disse a testemunha - que pratica a operação informática de assinar, decorre do depoimento da testemunha UU que não é aposta assinatura do arguido à revelia do mesmo.

Ademais, também aqui se não descortina razão para que o que estava a acontecer, e tinha acontecido, fosse omitido ao arguido BB.

Assim, apesar de as testemunhas DD e UU terem tentado, de alguma forma, obnubilar ou mitigar a responsabilidade do arguido BB, seu patrão, da caracterização que fizeram da personalidade deste, sendo ele que assumia a condução dos negócios, adveio-nos a convicção que o referido arguido estava inteirado do que se passava, nada foi feito no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017 à sua revelia, até porque era do seu interesse receber o dinheiro da pavimentação do troço ....

[…].

Prosseguindo, os arguidos CC e BB tinham conhecimento, não havia razão para não saberem, dos contratos antes celebrados entre o Município e a A..., Lda. e, como tal, que esta já havia ultrapassado o preço contratual acumulado de € 150 000 para serviços idênticos, pelo que não poderia ser escolhida no procedimento n.º 60/DPO/SOM/2017. Mas, por ter sido essa empresa a fazer a obra, tinha agora que ser ela a escolhida para apresentar propostas. […]

Prosseguindo, o propósito e vontade de atuação dos arguidos infere-se, à luz de regras de lógica e de experiência, da factualidade objetiva demonstrada.

Resulta também de regras de lógica e de experiência comum que pessoas adultas, como eram os arguidos, com a sua experiência de vida, não ignoravam, não poderiam ignorar, a ilicitude das condutas dadas como provadas».

Analisando a decisão recorrida verificamos que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [52] de que o arguido/recorrente BB adotou os comportamentos descritos na acusação pública e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido com culpa.

Com efeito, resulta claramente do texto do acórdão que o tribunal a quo efetuou um rigoroso e exaustivo exame crítico das provas, descrevendo quais as declarações/depoimentos que lhe mereceram credibilidade ou não, analisando a prova documental e expondo as respetivas razões lógicas e de ciência de forma clara e conforme com as regras da experiência.

Da análise dos elementos de prova de que se baseou para formar a sua convicção, expressamente referidos na motivação, não resulta que o tribunal tenha apreciado arbitrariamente a prova produzida ou que tenha incorrido em qualquer erro lógico – bem pelo contrário.

Na verdade, o que ressalta da motivação do recurso é que os recorrentes têm opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento, e não como um instrumento de substituição da convicção do tribunal de primeira instância, alicerçada no princípio da livre apreciação da prova.
Por outro lado, a prova indicada pelos recorrentes (fundamentalmente, excertos das declarações prestadas pelo arguido AA e dos depoimentos das testemunhas DD, HH, JJ e, ainda, por remissão para o recurso da arguida CC, da testemunha EE) de modo nenhum impõe decisão diversa da recorrida – como se exigiria, para se reconhecer a ocorrência de um erro de julgamento.
Tal como vimos suceder com os arguidos AA e CC, que pretendendo eximir-se das suas responsabilidades, tentaram imputá-las aos serviços técnicos da Câmara Municipal ..., também os recorrentes invocam total desconhecimento por parte do arguido/recorrente BB dos pormenores relacionados com as obras e procedimentos em causa.
Contudo, o alheamento invocado pelo recorrente BB, a par da atuação isolada dos funcionários da empresa (engenheiros DD e II), também por ele insinuado [53], contraria frontalmente princípios de normalidade decorrentes das regras da experiência, afigurando-se totalmente inverosímil.
Como observa a Sra. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, a intervenção do arguido BB, por si e enquanto representante da arguida A..., Lda., nos dois procedimentos - Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 e Proc. n.º 60/DPO/SOM/2017 - encontra-se documentalmente demonstrada – cf. fls. 76-79 e 261-269, e 292-293 do Apenso/Anexo A, declaração da sociedade arguida de fls. 27-55, incluindo proposta e lista unitária de preços e Pasta do contrato de empreitada de fls. 393-397.
Também se encontra documentalmente demonstrado que a sociedade A..., Lda, representada pelo seu sócio-gerente e coarguido BB, desenvolve desde há vários anos e com grande frequência obras públicas, como resulta da prova documental que sustenta o facto provado constante do ponto 32), que não vem impugnado.

Por isso, não podia o tribunal a quo deixar de concluir que o arguido não ignorava os procedimentos legais vigentes em matéria de contratação pública, em cuja violação comparticipou, atuando conscientemente, por si e em representação da sociedade arguida.

Como já fizemos notar a propósito da análise do recurso da arguida CC, na ausência de confissão, a prova do dolo assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. [54] Com efeito, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt).

A prova indiciária constante do processo e analisada pelo tribunal de julgamento é suficientemente clara e precisa para nos permitir afirmar, com a segurança exigível à superação da presunção de inocência ínsita no princípio in dubio pro reo [55], que os factos ocorreram do modo descrito no acórdão recorrido [56].
Na verdade, e como afirma Marieta, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza. É a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas, que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando [57].
No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração de uma atuação consciente e deliberada (e, por isso, dolosa) do arguido BB na execução dos factos que integram o crime de falsificação.
Tais inferências obedecem ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência, não se encontrando, para além disso, “contra-indícios” reveladores de hipóteses divergentes plausíveis, capazes de abalar a elevada convicção probatória em torno da hipótese da acusação.[58]

Em síntese, não podemos deixar de concluir que a decisão recorrida encontra-se perfeitamente suportada pelo princípio da livre apreciação da prova e, ainda, pelo princípio in dubio pro reo [59] (sendo certo que o tribunal de primeira instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável à arguida, nem tal dúvida se evidencia).

Desta forma, e como se salienta no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 [60], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.” [61].

Improcede, assim, o presente fundamento do recurso.


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III) Enquadramento jurídico-penal.
a) Recurso dos arguidos CC, BB e “A..., Lda” – Da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime de falsificação de documento.
Escreveu-se no acórdão recorrido, a propósito do crime de falsificação de documento imputado aos arguidos CC, BB e A..., Lda, o seguinte (segue transcrição):
«Dispõe o art. 256º do Código Penal:
1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
4 - Se os factos referidos nos n.ºs 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
Nos termos da al. a) do art. 255º do Código Penal, documento é “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
O bem jurídico protegido pelo crime de falsificação é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental.
O tipo objetivo pode assumir diversas modalidades, previstas no n.º 1, de que se destacam, pela sua relevância para o presente caso:
i) a declaração de um facto falso juridicamente relevante– al. d);
ii) a utilização de documento fabricado ou falsificado – e).
A nível subjetivo, para além do dolo genérico, em qualquer das suas modalidades (art. 14º do C. Penal), o tipo legal exige a verificação de uma especial intenção do agente.
A saber, a vontade de criar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado; de obter, para si ou para outra pessoa, benefício ilegítimo; ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem patrimonial ou não patrimonial que se obtenha através do ato de falsificação.
É, portanto, um delito intencional.
O documento autêntico ou com igual força é aquele que como tal é definido pela lei civil, bem como todos os outros documentos que tenham origem numa autoridade pública.
Acresce, ainda, que o facto de os factos previstos nos n.ºs 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o crime é agravado.
O conceito de funcionário abrange quem desempenhar uma atividade compreendida na função pública administrativa (art. 386º, n.º 1, al. c) do C. Penal). A função pública administrativa incluir a administração direta, estadual, regional ou local, mas também a administração pública indireta, autónoma e independente.
No caso dos órgãos executivos autárquicos, desempenham os mesmos, em substância, funções administrativas. Sendo por isso de considerar como funcionário o presidente de uma câmara.
A consumação ocorre com a verificação dos sobreditos elementos objetivos e subjetivos.
Independentemente da verificação dos resultados do prejuízo de outrem, da obtenção de benefício ilegítimo ou do cometimento de outro crime. Por isso, este é um crime de resultado cortado.
Aqui chegados, justifica-se deixar uma breve nota adicional relativamente ao crime de falsificação de documentos. Para dizer que comete um só crime o agente que, a coberto da mesma resolução criminosa, realiza “atos de falsificação material e ideológica de diversos documentos”.
Porque quando, segundo o senso da normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários atos são o resultado de um só processo de deliberação da vontade, sem serem determinados por uma nova motivação, então estamos perante um só crime.
Perscrutando agora a factualidade dada como provada, mormente a data como provada nos pontos 20 a 33, 36, 38, 39 a 41, 43 e 44, à luz das considerações de índole jurídica vindas de efetuar, verifica-se que os arguidos CC, esta enquanto Presidente da Câmara, no exercício de funções, e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade arguida A..., Lda. fizeram constar falsamente do processo n.º 60/DPO/SOM/2017, de ajuste direto, factos juridicamente relevantes, em documentos autênticos, como se empreitada correspondente estivesse por realizar, quando a mesma estava já executada, como bem sabiam, o que fizeram com intenção de dissimular que tal execução já decorrera, com a intenção de que o pagamento à sociedade arguida se pudesse realizar, em consonância com as regras da contabilidade pública, e ainda com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e controlo, e assim se eximirem a eventual responsabilização.
Perante o vindo de expor, e tendo presente as considerações de índole jurídica sobre o crime de falsificação de documento, estão preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de falsificação, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, als. d) e e) e n.º 4 do Código Penal, por parte dos arguidos BB e CC, os quais atuaram em comunhão de esforços e intentos. Ou seja, em coautoria (art. 26º do Código Penal).
A qualidade de funcionário é, assim, comunicável ao arguido BB, por força do n.º 1 do art. 28º do Código Penal.
Agiu, ainda, o arguido BB em nome e no interesse da sociedade A..., Lda, Lda., de que era o gerente, tendo na mesma uma posição de liderança.
Pelo que também esta sociedade, A..., Lda. é criminalmente responsável pelo delito cometido, em seu nome e no respetivo interesse, pelo arguido BB (art. 11º, n.º 2, al. a) e 26º do C. Penal).
Os arguidos serviram-se, dando utilização, aos documentos previamente por eles falsificados.
Essa utilização não é jurídico-penalmente indiferente e irrelevante, apesar de a precedente falsificação ser assacável também a esses arguidos, porquanto a colocação em circulação dos documentos falsificados vai atingir de modo mais direto e intenso o bem jurídico protegido.
Embora, naturalmente, para a determinação da moldura do ilícito qualificado se opere apenas com a presença de uma qualificativa, relevando o preenchimento de outras apenas na determinação da pena concreta».  
Alegam os recorrentes que, com a sua conduta, não causaram nem visaram causar prejuízo ao Estado, ou obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, sendo certo que o pagamento do preço sempre teria de ser efetuado à sociedade arguida, uma vez que a obra foi efetivamente executada. Acrescenta a recorrente CC que, de qualquer modo, o tipo subjetivo não se encontra preenchido, dado que atuou desconhecendo que a obra já tinha sido realizada.
É manifesto, porém, que não lhes assiste razão.

O crime de falsificação de documento caracteriza-se por ser um crime de perigo abstrato e um crime formal ou de mera atividade. Com efeito, basta que o documento seja falsificado para o preenchimento do tipo de ilícito, não se exigindo, portanto, que o agente utilize ou integre o documento no tráfico jurídico. Por outro lado, tratando-se de um crime formal, não se torna necessária a produção de qualquer resultado para o preenchimento do tipo legal.

Com a punição da falsificação visa-se proteger a verdade intrínseca do documento enquanto tal e, assim, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico [62].

O tipo objetivo de ilícito previsto no art.º 256.º, n.º 1, do C. Penal comporta diversas modalidades de conduta e, portanto, diversas modalidades de falsificação. Constituem, assim, modalidades de falsificação englobadas no n.º 1 do art.º 256.º: a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; d) fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; e) usar ou por qualquer meio deter ou facultar documento falsificado ou contrafeito.

Integra, assim, uma das modalidades de falsificação a circunstância de alguém, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante.

Por outro lado, o uso de documento fabricado ou falsificado por outra pessoa é equiparado, para efeito de punição, ao ato de falsificação.

Ao nível do tipo subjetivo, o crime de falsificação de documentos caracteriza-se por ser um delito intencional. Assim, ao dolo, enquanto elemento subjetivo geral do tipo, acresce um elemento subjetivo especial, consubstanciado na atuação do agente com "intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo".

Não se exige, contudo, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico.     
No presente caso, é manifesta, em face da factualidade considerada provada pelo tribunal de primeira instância e que decidimos manter inalterada, a verificação de todos os referidos elementos objetivos e subjetivos do crime de falsificação (nas modalidades previstas nas alíneas d) e e), do n.º 1 do art.º 256.º do CP), encontrando-se ainda preenchido o respetivo tipo de culpa.
Com efeito, e como observou o tribunal a quo, os arguidos CC, enquanto Presidente da Câmara, no exercício de funções, e BB, atuando este em nome e no interesse da sociedade arguida A..., Lda, fizeram constar falsamente do processo n.º 60/DPO/SOM/2017, de ajuste direto, factos juridicamente relevantes, em documentos autênticos, como se empreitada correspondente estivesse por realizar, quando a mesma estava já executada, como bem sabiam, o que fizeram com intenção de dissimular que tal execução já decorrera, por forma a que o pagamento à sociedade arguida se pudesse realizar, em consonância com as regras da contabilidade pública, e ainda com a intenção de dificultar a fiscalização das autoridades de auditoria e controlo, e assim se eximirem a eventual responsabilização.
É de notar que, como a realização da obra não deu observância prévia às regras da contratação pública e das normas contabilísticas, o pagamento ao empreiteiro não se podia legalmente realizar.
Com efeito, a celebração de um contrato administrativo de prestação de serviços ou de fornecimento de bens sem a prévia e válida assunção do respetivo compromisso, tem como consequência a sua nulidade. Essa nulidade é sanável por decisão judicial, quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, o Tribunal conclua que a nulidade do contrato ou da obrigação se revela desproporcionada ou contrária à boa-fé (artigo 5.º, n.º 4 da LCPA).
Porém, como se observa no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 19/3/2021 [63], só perante circunstâncias específicas, que não se bastam com o facto de se estar perante um fornecimento realizado ou serviço prestado, e de que a entidade pública tenha beneficiado, é que o Tribunal poderá decidir pela eventual sanação da nulidade decorrente do incumprimento da lei (LCPA).
Por isso, o recebimento do pagamento, naquelas concretas circunstâncias, representou um óbvio benefício para sociedade arguida, evitando o recurso ao tribunal, diligência naturalmente demorada e de desfecho incerto.
Como bem assinalou o tribunal no acórdão recorrido, «a libertação do pagamento é, em si, um benefício. Como benefício é a “regularização” das contas da autarquia e, assim, evitar a deteção da irregularidade e evitar eventual responsabilização dos agentes».  
Verificando-se a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, para além do correspetivo tipo de culpa, impunha-se a condenação do arguido BB e, consequentemente, da sociedade arguida pela prática, em coautoria material, do crime de falsificação de documento agravado [64].
Nenhuma censura merece, assim, nesta parte, o acórdão recorrido, improcedendo o presente fundamento do recurso.

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b) Procedência parcial do recurso do Ministério Público e suas repercussões – da verificação do crime de prevaricação.
Considerando as alterações introduzidas na matéria de facto, como consequência da procedência parcial do recurso interposto pelo Ministério Público, incumbe a este Tribunal da Relação aplicar o direito em substituição do Tribunal de primeira instância.
Os arguidos AA, CC e BB encontravam-se acusados da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de prevaricação, p. e p. pelos artigos 26.º, 28.º e 66.º n.º 1 do Código Penal, e artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/7, em concurso aparente com um crime de abuso de poderes, p. e p. pelo art.º 26.º, n.º 1, do mesmo diploma legal – em conjugação, ainda, com o disposto pelos artigos: - 386.º, n.º 1, al. b), c) do Código Penal; - 1.º, n.º 2, 4.º, als. a) i), a) iii), b) i), b) iii), da Lei n.º 29/87, de 30/06 (na versão instituída pela Lei n.º 53-F/2006, de 29/12); - 33.º, n.º 1, al. f) da Lei n.º 75/2013, de 12/09 (na versão instituída pela Lei n.º 42/216, de 18/12); - 1.º, n.º 1 e 2, 4, 19.º, n.º 1, al. a) do mesmo Código, 36.º, 56.º, 112.º, 113.º, n.º 2, 287.º, n.º 1, 370.º a 382.º do Código dos Contratos Públicos (na versão instituída e em vigor pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10).
Analisemos, assim, se a factualidade que consideramos demonstrada preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de prevaricação imputado aos arguidos.

Como bem observou o tribunal a quo, no acórdão recorrido, resulta do art.º 1º desta Lei n.º 34/87 que nela se procede à determinação dos crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos (e desde a entrada em vigor da redação introduzida pela Lei n.º 41/2010 de 3/9, também titulares de altos cargos públicos) cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhe são aplicáveis e respetivos efeitos.

«Prevê os chamados “crimes de responsabilidade”. Os “crimes de responsabilidade” são, pois, os praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, infringindo bens ou valores particularmente relevantes na ordem constitucional, contrapondo-se assim aos «crimes comuns» que possam cometer fora do exercício das suas funções”.

“Certos crimes só podem ser cometidos por determinadas pessoas, na medida em que possuem uma determinada qualidade ou sobre elas recai um dever especial. São os chamados crimes específicos, como é o caso dos crimes de responsabilidade. Com efeito, é característica essencial destes apenas poderem ser praticados pelos titulares de cargos políticos no exercício das suas funções”.

A delimitação dos titulares de cargos políticos a quem é aplicável a Lei n.º 34/87 de 16 de julho é feita, em termos taxativos, no seu art. 3º, em cujo elenco, na al. i), consta o “de membro de órgão representativo de autarquia local”.

O município é, consabidamente, uma autarquia local, que tem como órgãos representativos a assembleia municipal e câmara municipal (arts. 235º, 236º e 250º a 252º da Constituição da República Portuguesa e arts. 5º e 6º da Lei n.º 75/2013 de 12/9).

Posto isto, dispõe o art.º 11º da citada Lei n.º 34/87 de 16/7 que “o titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos».
Com efeito, o crime de prevaricação visa a punição daquele que se torna infiel ao próprio cargo, em assumida violação dos deveres ao mesmo inerentes, como se extrai da construção do tipo legal contido no artigo 11º da Lei 34/87, de 16/7.
O bem jurídico protegido é a fidelidade à lei e ao direito, no exercício de funções públicas. Neste contexto, o bem jurídico protegido com a incriminação da prevaricação em causa consiste na realização da função administrativa autárquica segundo o direito e no interesse do bem comum, sem ilegalidades, nem compadrios ou malquerenças particulares. [65] Maria do Carmo Silva Dias (in «Comentário das Leis Penais Extravagantes», volume I, página 751), refere que «o que se tutela é a necessidade de garantir a submissão à lei e aos princípios fundamentais do Direito do titular de cargo político que, por virtude do cargo que ocupa, tem a função de conduzir ou decidir processo que lhe está afeto. São, por isso, interesses (coletivos) supra-individuais que se protegem, independentemente de mediatamente também poderem vir a ser afetados interesses (privados) individuais e, nessa medida, estes poderem ser protegidos reflexamente».[66]
É de notar, neste âmbito, que á contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência (artigo 1.º, n.º 4 do Código dos Contratos Públicos) [67].
Por outro lado, não é necessária a existência de prejuízo para a entidade adjudicante, bastando a intenção de beneficiar ou prejudicar alguém.[68]
Deste modo, o crime de prevaricação pressupõe que, em procedimento administrativo inerente às suas funções, o agente cometa atos ou omissões contrários ao direito, entendido este como conjunto de princípios e normas jurídicas vinculativas ao processo e à decisão respetiva. [69]

No que concerne ao tipo subjetivo, torna-se clara a exigência de dolo direto ou necessário, em face da exigência típica resultante da expressão “conscientemente" [70].

Na síntese do acórdão do TRL de 24/6/2020 (João Lee Ferreira, já citado), o crime de prevaricação tem como elementos objetivos do tipo: - condução ou decisão de um processo por titular de cargo político em que intervenha no exercício das suas funções; - conscientemente contra direito. E, como elemento subjetivo: - o dolo (excluindo a forma eventual em face da utilização da expressão “consciente” pela norma legal); e, - especial intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém (o denominado “dolo específico”).

Para o cometimento do crime de prevaricação não é necessária a existência de prejuízo para a entidade adjudicante, mas que o agente, conscientemente, conduza – ou decida [71]– contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém [72]. O benefício – entendido como toda a vantagem que o sujeito ativo pretende retirar da sua atuação -, embora ilegítimo, não tem que ser patrimonial, podendo derivar do mero compadrio, ou mesmo assumir fins caritativos ou altruísticos, como assinala Paula Ribeiro de Faria (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo III, em anotação ao artigo 382.º do Código Penal) [73].
Como reconheceu o tribunal a quo, relativamente ao arguido AA, considerando a matéria de facto apurada, mostram-se presentes todos os elementos objetivos do tipo legal de crime em apreço. E o mesmo sucede, tendo em conta as alterações introduzidas à matéria de facto por força da procedência parcial do recurso do Ministério Público, quanto ao arguido BB.
Com efeito, ficou demonstrado que os arguidos AA e a sociedade A..., Lda, LDA, atuando esta através do arguido BB, concertaram-se, tendo em vista a execução célere do troço ..., cuja exclusão do Proc. n.º 20/DPO/SOM/2017 era por eles conhecida, mas que sabiam desagradar à população local. Cientes que davam preferência à sociedade arguida na execução da empreitada de obras públicas de pavimentação do troço ..., e no pagamento do correspondente preço e inerente lucro, ainda que violando conscientemente as regras e as normas aplicáveis à contratação pública, como bem sabiam ser o caso, pois caso fossem cumpridas não permitiriam a execução dos trabalhos sem um procedimento contratual prévio (cf. ponto 37), devidamente corrigido).
Sabiam os arguidos que AA, enquanto Presidente da Câmara Municipal, e no exercício dessas funções, devia agir tendo exclusivamente em mente o interesse público, e não o seu interesse particular ou de terceiros, atuar com imparcialidade, e respeitar as regras e normas da contratação pública e da contabilidade pública, estando todos cientes que tal não sucedeu (cf. ponto 40). E, ainda, que a contratação pública é regida pelos princípios da transparência, da igualdade e da concorrência, e que o procedimento de formação de qualquer contrato se inicia com a decisão de contratar, a qual cabe ao órgão competente para autorizar a despesa inerente ao contrato a celebrar, precedendo a sua execução, sem que, no caso vertente, existisse fundamento para a retroatividade do contrato de empreitada (ponto 41).
Sabia, pois, o arguido AA que, ao acordar com a sociedade arguida a pavimentação do troço ..., decidia contra o Direito aplicável e, para além disso, que ao solicitar e acordar a extensão da pavimentação do piso da estrada até ..., atuou movido pelo propósito de assegurar para o partido pelo qual se candidatava a maior votação possível nas eleições autárquicas, e com consciência de que, da sua conduta, adviria necessário benefício para a empreiteira (pontos 42) e 42.a), este por nós aditado ao elenco da factualidade provada).
Por seu turno, BB, ciente da factualidade atrás descrita, atuou visando promover as atividades a que se dedicava a A..., Lda., e obter o correspondente pagamento, ainda que violando as regras e normas aplicáveis (ponto 39).
Por fim, ficou demonstrado que os arguidos agiram de um modo livre, deliberado e consciente, cientes de que incorriam em responsabilidade penal (ponto 44).
Ainda que a execução daquela obra fosse necessária, dado o mau estado em que se encontrava o piso da estrada no troço ..., e não tivesse sido causado, ao que tudo indica, prejuízo patrimonial ao Estado [74], não há dúvida de que o arguido AA, atuando de comum acordo e em conjugação de esforços com o arguido BB, violou conscientemente as regras e as normas aplicáveis à contratação pública, [75] com o propósito de assegurar para o partido pelo qual se candidatava a maior votação possível nas eleições autárquicas, e com consciência de que, da sua conduta, adviria necessário benefício para a sociedade “A..., Lda”, tendo, por isso, agido com dolo direto (neste se incluindo o “dolo necessário” [76]).
Encontram-se, por conseguinte, verificados todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de prevaricação previsto e punido pelo art.º 11 da Lei n.º 34/87, de 16/7, e, bem assim, o respetivo tipo de culpa, no que concerne aos arguidos AA e BB [77]– sendo certo que a qualidade de titular de cargo político pressuposta pelo crime específico próprio em causa é comunicável ao arguido BB, por força do disposto no art.º 28.º, n.º 1 do Código Penal.
Permanecendo inalterada a matéria de facto no que concerne à intervenção da arguida CC, torna-se evidente a falta de preenchimento, desde logo, do tipo objetivo do crime de prevaricação em causa, tal como concluiu o tribunal de primeira instância.

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Importa, agora, determinar a medida concreta da pena a aplicar aos arguidos AA e BB, sendo certo que o crime de prevaricação por eles praticado é punido com pena de prisão de dois a oito anos (cf. o artigo 11.º da mencionada Lei n.º 34/87, de 16/7).
A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.

A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[78]

Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).

A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).

Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.

Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [79].

Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.

Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [80], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.

No presente caso, ponderando, sobretudo, a intensidade do dolo de ambos os arguidos, o modo de execução dos crimes em apreço e o respetivo grau de ilicitude (mais gravoso no que diz respeito ao arguido AA, considerando o grau de violação dos deveres sobre ele impostos) [81], o tempo já decorrido desde a prática do ilícito em questão e, finalmente, a circunstância de os arguidos denotarem adequada inserção social, sendo primário o arguido AA e tendo sofrido uma condenação posterior, em pena de multa e por crime diverso, o arguido BB, consideramos adequadas à culpa de cada um deles e necessárias para responder às exigências de prevenção especial de socialização (menos acentuadas quanto ao arguido AA, dada a circunstância de ser primário e de não exercer qualquer cargo político, na atualidade) e geral de integração, as penas de 3 anos e de 2 anos e 6 meses de prisão, respetivamente, para os arguidos AA e BB.

Não excedendo a medida de 3 anos a pena de prisão aplicada ao arguido AA, não se verifica o pressuposto formal da imposição da pena acessória de proibição do exercício de funções (cf. o artigo 66.º, n.º 1 do Código Penal).    


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Uma vez que o arguido BB foi condenado na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, pela prática, em coautoria material com a arguida CC, de um crime de falsificação de documento agravado, impõe-se a determinação da pena conjunta do concurso de crimes. [82]

De acordo com as regras da punição do concurso de crimes, estabelecidas no art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Portanto, no presente caso, a moldura abstrata da pena conjunta de prisão oscila entre o mínimo de 2 anos e 6 meses e o máximo de 3 anos e 9 meses, correspondendo o limite mínimo à pena parcelar mais elevada e o máximo à soma da totalidade das penas determinadas.

Na determinação da medida concreta da pena unitária, o que interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido (cf. o art.º 77.º, n.º 1, do CP).

No presente caso, analisando a globalidade dos factos praticados e a personalidade do arguido neles documentada, decidimos fixar em 3 anos a medida da pena única de prisão, que se afigura ajustada às necessidades preventivas globalmente consideradas, não excedendo a medida da sua culpa, igualmente acentuada.[83]


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Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão [84].

Por outro lado, em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.[85]

A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.

Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).

Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 [86] (igualmente disponível em www.dgsi.pt), reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».

No presente caso, não encontramos qualquer razão para divergir da posição do tribunal a quo quanto à opção pela pena não detentiva, não só quanto ao arguido BB, mas também quanto ao arguido AA.

Com efeito, e apesar de serem inegavelmente elevadas as exigências de prevenção geral, “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", pelas quais se limita sempre o valor da socialização, consideramos que a necessária manutenção da ordem jurídica e da fidelidade do público ao direito ainda consente a condenação dos arguidos numa pena não detentiva.

Decide-se, assim, nos termos do art.º 50º do C. Penal, por ser mais favorável à recuperação social dos arguidos AA e BB e ainda suportável ao nível da comunidade, suspender a execução das penas aplicadas pelo período de três anos, na confiança de que os arguidos se manterão afastados da criminalidade.


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IV) Da perda de vantagens.

O tribunal de primeira instância decidiu condenar unicamente a sociedade arguida A..., Lda no pagamento ao Estado do valor equivalente à vantagem obtida (€2.321,35), considerando que «A responsabilidade pelo respetivo pagamento incumbe unicamente à sociedade arguida, A..., Lda., uma vez que nenhum outro arguido, ou terceiro, obteve benefício económico do crime».

Desta decisão discorda o Ministério Público, salientando que, centrando-se hoje «o regime da perda numa expressão civilística, de produção de efeitos patrimoniais conexos ao crime (como a indemnização por perdas e danos emergentes), que nada tem que ver com a execução de uma pena criminal», e tendo o tribunal a quo dado como provado que os arguidos CC, BB e A..., Lda atuaram em coautoria, tendo sido todos condenados pelo crime de falsificação, impunha-se condenar igualmente todos pela perda das vantagens ocasionadas com a prática do crime.

Importa, desde já, salientar que, muito embora a resolução deste problema não suscite uma resposta uniforme, existindo divergência jurisprudencial sobre tal matéria, também nós defendemos que a perda da vantagem (ou a condenação no pagamento do valor equivalente) deve ser declarada contra aquele agente que, não obtendo para si a vantagem, possibilita e determina, com a prática do ilícito-típico, a sua obtenção por outrem.[87]
Na verdade, no modelo, que é o nosso, de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena. Está em causa, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica. Portanto, o confisco não tem caráter sancionatório – ou não o tem primordialmente -, assumindo-se, antes, quer como um simples mecanismo preventivo análogo à medida de segurança (perda de instrumentos e de produtos), quer como um mero mecanismo civil enxertado no processo penal (confisco das vantagens, das recompensas e do património incongruente) de tutela de uma ordem patrimonial conforme ao direito.[88]
A imposição do confisco ao autor do crime, independentemente da demonstração de um efetivo ganho patrimonial ou enriquecimento na sua esfera jurídica, vem sendo reconhecida pelos tribunais superiores italianos, como nos dá conta Tommaso Trinchera [89].
E a redação do art.º 110.º, n.º 1, alínea b) do CP sugere que esta interpretação é a mais correta, pois nele se prescreve que são perdidas a favor do Estado “as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”.

Como já fizemos notar no acórdão deste TRP de 29/6/2022 [90], a exigência de demonstração de obtenção direta da vantagem patrimonial pelos autores do crime equivale a uma restrição do funcionamento dos mecanismos do confisco que não se encontra legalmente prevista e que, para além disso, colide com a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas.

Para demonstração de que o crime não compensa e que não se pode tolerar a manutenção de uma situação patrimonial contrária ao direito, deve proceder-se à declaração da perda a favor do Estado das vantagens do facto ilícito típico, substituída, no presente caso, pelo pagamento do respetivo valor a cargo de todos os arguidos, nos termos previstos no art.º 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal.

Com efeito, o desvio patrimonial que o legislador pretende corrigir com o instituto da perda de bens ou vantagens foi determinado pelo comportamento ilícito dos arguidos AA, BB e CC. Atuando de forma concertada – o primeiro com o segundo e o segundo com a terceira – possibilitaram a obtenção de uma vantagem indevida pela sociedade arguida, sendo, por isso, todos eles solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Estado do valor equivalente ao da vantagem ilicitamente obtida (ou seja, o valor de € 2.321,35, indicado no acórdão recorrido).

Paralelamente, todos os arguidos – comparticipantes, inicialmente, no crime de prevaricação, os arguidos AA e BB, e, seguidamente, no crime de falsificação de documento, os arguidos BB e CC - teriam de ser condenados solidariamente com a sociedade arguida no pagamento da indemnização devida ao Estado, nos termos próprios da responsabilidade civil extracontratual, caso tivesse sido formulado pedido de indemnização civil: o que ocorreria independentemente da indagação e prova da obtenção de qualquer benefício patrimonial (direta ou indiretamente) pelos próprios arguidos [91].

É de notar que mesmo que os arguidos fossem «terceiros» – e não são, sendo antes os autores dos crimes de prevaricação e de falsificação de documento que ocasionaram a vantagem patrimonial para a sociedade arguida – a perda (ou pagamento ao Estado do respetivo valor) poderia ser decretada, desde que estivesse prevista qualquer uma das situações contempladas nas diversas alíneas do nº 2 do art.º 111.º do CP. E é manifesto que estas hipóteses não se restringem às situações em que o terceiro retirou benefícios do facto ilícito cometido por outrem.

Ou seja, admitir-se a tese sufragada no acórdão recorrido, equivaleria a fazer incidir sobre os terceiros consequências patrimoniais mais gravosas do que as que decorreriam para os autores do crime, o que, como é óbvio, não faz sentido e não pode ter sido pretendido pelo legislador.

Procede, assim, também nesta parte o recurso do Ministério Público, impondo-se a condenação da totalidade dos arguidos no pagamento ao Estado do valor equivalente à vantagem indevidamente obtida pela sociedade arguida.


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto no seguinte:
I) Negam provimento aos recursos dos arguidos CC, BB e A..., Lda, mantendo, consequentemente, a respetiva condenação pela prática, em coautoria material, do crime de falsificação de documento, nos moldes decididos pelo tribunal de primeira instância.
II) Concedem parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência do reconhecimento da verificação do vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP (erro notório na apreciação da prova), determinam:
a) A alteração da decisão recorrida quanto à matéria de facto, nos moldes explicitados no presente acórdão.
b) A condenação do arguido AA pela prática, em coautoria material, de um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/7, em conjugação com o disposto nos artigos 26.º e 28.º, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução suspendem por igual período temporal, nos termos previstos no art.º 50.º do mesmo diploma legal.
c) A condenação do arguido BB pela prática, em coautoria material, de um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16/7, em conjugação com o disposto nos artigos 26.º e 28.º, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico com a pena parcelar de 1 ano e 3 meses de prisão determinada pelo tribunal de primeira instância, decidem pela aplicação ao arguido da pena única de 3 anos de prisão, cuja execução suspendem pelo mesmo período temporal, nos termos previstos no art.º 50.º do Código Penal.
d) A condenação dos arguidos AA, BB e CC, no pagamento ao Estado do montante de € 2.321,35, equivalente ao valor da vantagem indevidamente obtida (art.º 110.º, n.º 1, b) e n.º 4, do Código Penal), obrigação solidária esta que acresce à da sociedade arguida, determinada pelo tribunal de primeira instância.
Custas pelos arguidos/recorrentes CC, BB e A..., Lda, fixando-se a taxa de justiça, respetivamente, em 4 UC para as arguidas CC e A..., Lda e em 5 UC para o arguido BB (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Não são devidas custas pelo arguido AA (cf. o art.º 513.º, n.º 1, do CPP, “a contrario sensu”).
Notifique e comunique ao registo comercial.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)

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Porto, 3 de abril de 2024.
Liliana de Páris Dias (Relatora)
Jorge Langweg (Adjunto)
Raul Cordeiro (Adjunto)
__________________________-
[1] As questões que constituem o objeto do recurso serão conhecidas de acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (cf. o artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 4.º do Código de Processo Penal).
[2] Relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[3] A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objetivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
[4] Relatado pela Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Relatado pelo Desembargador José Adriano e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[6] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP, de 26/5/2015, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt, que teve por relator o Desembargador Neto de Moura.
[7] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[8] Como se observa no acórdão do TRG de 2/11/2017 (relatado pelo Desembargador António Barroca Penha, consultável em www.dgsi.pt).
[9] Relatado pelo Desembargador José Carreto e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[10] Como se refere no acórdão do TRL de 24/6/2020 (relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt), «O exame crítico da prova não exige a exposição descritiva de todas as provas produzidas, nem é necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, havendo vários. O que se tem de deixar claro é o porquê da decisão tomada relativamente a cada facto, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma valoração do processo lógico-mental que serviu de base ao respetivo conteúdo».
[11] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º), e não apenas a permitirem.
[12] Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros fatores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.”.
Não basta, portanto, para que o tribunal possa modificar a decisão quanto à matéria de facto que a solução defendida em recurso, aparentemente, se mostre tão plausível como a assumida pelo tribunal. Neste caso, deve prevalecer a opção do tribunal de primeira instância, que beneficiou da oralidade e da imediação na audiência de discussão e julgamento, ferramentas que não estão ao dispor do tribunal de recurso.
[13] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[14] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[15] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRG de 21/6/2010 (relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso e disponível para consulta em www.dgsi.pt), o prof. Enrico Altavilla já há muito ensinava que "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12.
[16] In “A NECESSIDADE DE REFORMAR O SISTEMA DE RECURSOS NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA. O SISTEMA DE RECURSOS EXIGE REFORMAS?”, Reforma do Sistema de Recursos – Setembro 2019 - Ebook do Cej, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Reforma_Recursos.pdf.
[17] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt.
[18] Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
[19] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[20] Como é salientado no acórdão deste TRP de 4/5/2016 (relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt), “A dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável, objetivável. A dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.”.
Consta também do sumário do acórdão do STJ de 15/12/2011 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt) o seguinte:
“XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art.º 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.”.
[21] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 15/12/2011, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[22] O “proof beyond any reasonable doubt”, com origem na jurisprudência inglesa e depois adotado e desenvolvido nos países do mundo jurídico anglo-saxónico, sobretudo nos EUA, como observa o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP de 9/9/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[23] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[24] Relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt.
Também no acórdão do TRP de 9/1/2020, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes e disponível em www.dgsi.pt, é referido que “O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”.
[25] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[26] Relatado pelo Desembargador Francisco Caramelo, in www.dgsi.pt.
[27] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada.
Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cf. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).
[28] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[29] O artigo 11º da Lei n.º 34/87, de 16/7 dispõe que “o titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos”.
[30] É de notar que a acusação pública imputa ao arguido uma atuação com dolo direto (e específico) e foram os factos integradores dessa modalidade de dolo que o tribunal integrou na matéria de facto não provada.
[31] Cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 9/12/2015, relatado por Renato Barroso e disponível em www.dgsi.pt.
[32] Como é assinalado no acórdão do TRP de 27/1/2021 (disponível em www.dgsi.pt), a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico da pessoa e só a ela se chega através de factos externos ao agente e, assim, através de prova indireta.
[33] Cf., a este propósito, o segmento do acórdão, no qual o tribunal a quo afirma que «o tipo subjetivo só admite dolo direto» (fls. 55).
[34] Como se observa no acórdão do STJ de 31/1/2024 (relatado pelo Conselheiro Ernesto Vaz Pereira e disponível para consulta em www.dgsi.pt), a propósito de uma situação com contornos idênticos à que estamos a analisar, e reconhecendo-se a existência de erro notório na apreciação da prova, «Se a lei exige o recurso a concurso para efetuar determinadas obras, e os arguidos, atropelando essa imposição, verbalmente acordam com o respetivo empreiteiro a realização de obras que implicariam a realização de concurso, então os arguidos já estão a beneficiar esse empreiteiro que, vendo o seu lugar assegurado por um primeiro concurso, acaba por beneficiar da isenção de fazer novo concurso para uma outra obra que nasce da primeira e que deveria ir a concurso. Ou seja, esse empreiteiro “passou à frente”, por assim dizer, de todos os outros possíveis candidatos pois, tendo entrado pela porta para realizar uma determinada obra acaba por lá ficar para fazer todas as demais. Não realizar um concurso quando a lei o exige é beneficiar o candidato que fica com a obra adjudicada fora de concurso e é prejudicar todos aqueles outros candidatos a quem se negou a possibilidade de concorrer. Por outro lado, afigura-se-nos que dos factos dados como provados é perfeitamente possível concluir-se pela vontade eleitoralista dos arguidos e, portanto, o seu próprio benefício».
[35] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[36] Uma vez que, como é sabido, o dolo posterior não é punível.
[37] Relatado pelo Desembargador Vítor Morgado e disponível em www.dgsi.pt.
[38] Sendo certo que o elemento “emocional” do dolo encontra-se já enunciado no ponto 44) da factualidade provada, não carecendo de qualquer aditamento ou correção.
[39] Relatado pelo Desembargador José António Rodrigues da Cunha e consultável em www.dgsi.pt.
[40] A cuja audição procedemos, na íntegra, através do “citius media studio”.
[41] A testemunha DD (cujo depoimento ouvimos, na íntegra, através do citius media studio) referiu que estava em causa um trabalho de rápida execução (não mais do que um dia) e foi logo executado. A testemunha EE, por seu turno, relatou que recebeu um telefonema do arguido AA, num sábado, a transmitir-lhe que tinha decidido “estender” a obra de pavimentação, dando-lhe instruções para tratar do procedimento para se poder efetuar o pagamento, acrescentando que, quando se deslocou ao local, na segunda-feira seguinte, constatou que a obra já tinha sido executada.
[42] Consistindo o papel do tribunal de recurso em apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência, isto é, se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório de que o tribunal dispôs.
[43] A impossibilidade de configuração daqueles trabalhos como “trabalhos a mais” era evidente, inexistindo circunstâncias imprevistas, como salientou a testemunha. Como observa o Ministério Público na resposta ao recurso, citando o acórdão do TCAN de 6/5/2010 (relatado pelo Desembargador Antero Pires Salvador e disponível em www.dgsi.pt), foi sempre evidente que «São considerados trabalhos a mais aqueles, cuja espécie ou quantidade, se destinem à realização da mesma empreitada e se tenham tornado necessários na sequência de uma circunstância imprevista à realização da obra. Circunstância imprevista é aquela circunstância que um decisor normal, colocado na posição do real decisor, não podia nem devia ter previsto, donde decorre que apenas poderão ser considerados trabalhos a mais aqueles cuja necessidade fosse impossível de prever aquando do lançamento do concurso».
Como exemplificou a testemunha, no decurso das escavações efetuadas numa obra, encontra-se uma mina, cuja existência se desconhecia – aqui, sim, ocorre uma circunstância imprevista.
[44] E porque haveria a arguida de transmitir tais ordens à testemunha se desconhecia, segundo alega, que a obra ainda não tinha sido executada? Por outro lado, tendo sido posta ao corrente previamente pelo arguido AA daquela situação, é evidente que este não deixaria de transmitir-lhe a circunstância de a obra em causa já estar executada, muito embora nenhum dos arguidos o haja reconhecido.
[45] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[46] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[47] Cf. José Santos Cabral, in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012.
Como aqui se observa, é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno, é preciso o indício quando não é suscetível de outras interpretações. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão.
[48] A prova indiciária só não terá a virtualidade de afastar a presunção de inocência e constituir prova bastante do facto probandum quando os indícios sejam ambíguos e a inferência seja ilógica ou de tal modo aberta que em si mesmo comporte uma tal pluralidade de conclusões alternativas que nenhuma delas pode dar-se por provada.
Nas palavras de Iacovelo (citado no acórdão do TRP de 9/9/2015, in www.dgsi.pt), a neutralização da acusação pela hipótese defensiva “deve ser razoavelmente possível com base nas evidências disponíveis”, tendo sempre em consideração o caso concreto.
Além disso, deve estar afastada a existência de contra-indícios (ou contra-presunções, na expressão de Mittermaier), pois que tal existência cria uma situação de desarmonia, que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.
O contra-indício destina-se a infirmar a força da presunção produzida e, caso não tenha capacidade para tanto, pela sua pouca credibilidade, mantém-se a presunção que se pretendia elidir (Cf. neste sentido, José Santos Cabral, estudo citado, pág. 31).
Julgamos ser o caso do “contra-indício” invocado pela recorrente na motivação do seu recurso traduzido na resposta por ela dada ao deputado VV (ata n.º ...18 da Assembleia Municipal) e a alegada reação de surpresa mencionada pela testemunha NN, parecendo-nos totalmente especulativa a afirmação, contida na motivação, de que “se a arguida tivesse conhecimento de que a obra já tinha sido realizada quando despachou o processo em causa, seguramente não teria tido tão espontânea reação naquela assembleia municipal”.
[49] Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Como observa o TRL, no acórdão de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[50] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[51] Como se refere no acórdão do STJ de 21/03/2003 (proc. 024324, relator Conselheiro Afonso Paiva): “A admissibilidade da respetiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respetiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado.
c) Apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas”.
[52] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[53] O recorrente parece sugerir que o procedimento n.º 60, por ajuste direto, foi assinado digitalmente pelo engenheiro/funcionário de nome II, sem a sua participação ou conhecimento!
[54] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[55] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt).
[56] E, até, para além deles, como cremos ter demonstrado na sequência da análise do recurso do Ministério Público, sendo para nós evidente que o arguido BB acordou com o arguido AA na execução dos trabalhos “suplementares”, que vieram a ser integrados, formalmente, no procedimento n.º 60.
[57] Como observa o Conselheiro José Santos Cabral, in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012.
Assinala-se no acórdão do TRL de 24/6/2020 (relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt) que a prova indireta passou a ser o tipo de prova por excelência na criminalidade de índole económico-financeira, na criminalidade organizada e nos delitos contra o Estado.

[58] A prova indiciária só não terá a virtualidade de afastar a presunção de inocência e constituir prova bastante do facto probandum quando os indícios sejam ambíguos e a inferência seja ilógica ou de tal modo aberta que em si mesmo comporte uma tal pluralidade de conclusões alternativas que nenhuma delas pode dar-se por provada.
Nas palavras de Iacovelo (citado no acórdão do TRP de 9/9/2015, in www.dgsi.pt), a neutralização da acusação pela hipótese defensiva “deve ser razoavelmente possível com base nas evidências disponíveis”, tendo sempre em consideração o caso concreto.
Além disso, deve estar afastada a existência de contra-indícios (ou contra-presunções, na expressão de Mittermaier), pois que tal existência cria uma situação de desarmonia, que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.
O contra-indício destina-se a infirmar a força da presunção produzida e, caso não tenha capacidade para tanto, pela sua pouca credibilidade, mantém-se a presunção que se pretendia elidir (Cf. neste sentido, José Santos Cabral, estudo citado, pág. 31).
[59] Na síntese de Roxin (in “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111), “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
Importa, ainda, salientar que o que releva é a dimensão objetiva do princípio “in dubio pro reo”. Como observa o TRL, no acórdão de 22/9/2020 (relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), “no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.” – algo que, no presente caso, manifestamente não se verifica, como já tivemos oportunidade de concluir.
[60] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt.
[61] Como se refere no acórdão do STJ de 21/03/2003 (proc. 024324, relator Conselheiro Afonso Paiva): “A admissibilidade da respetiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respetiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado.
c) Apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas”.
[62] Cf. Helena Moniz, in "Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial - Tomo II, artigos 202º a 307º", pp. 662 a 692.
[63] Relatado pela Desembargadora Helena Ribeiro e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Observa-se, por outro lado, no acórdão do Tribunal de Contas n.º 8/2015, de 30/6/2015 (consultável em www.tcontas.pt), que «A opção pelo ajuste direto não significa a formação de um contrato sem quaisquer regras. A inobservância de regras procedimentais implica que não houve ajuste direto, mas tão só uma mera aquisição direta, situação que se enquadra no art.º 133.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA), e que gera a nulidade do contrato, constituindo fundamento de recusa de visto ao abrigo da al. a) do n.º 3 do art.º 44.º da LOPTC».
[64] É de notar, ainda, que como justamente observa o magistrado do Ministério Público na resposta ao recurso, «a responsabilidade financeira é cumulável com outras responsabilidades, vg civil, disciplinar, criminal. São diferentes os interesses e os valores tutelados».
Não faz, por isso, sentido invocar, como faz o arguido AA na resposta ao recurso, que a fiscalização do incumprimento de regras que regem os contratos públicos é matéria que apenas importa ao Tribunal de Contas, não podendo configurar responsabilidade criminal.
Na verdade, e como assinalado no acórdão do TRP de 21/5/2008 (relatado pelo Desembargador Paulo Valério, in www.dgsi.pt), o Tribunal de Contas é o órgão que «fiscaliza a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas, aprecia a boa gestão financeira e efetiva responsabilidades por infrações financeiras» (art.º 1.º da citada Lei 98/97), em suma, o órgão máximo de controle da legalidade financeira do Estado (este entendido no seu sentido amplo). É por isso natural que as suas competências se limitem ao âmbito específico da sua atuação, verificando ele, no domínio sancionatório, os pressupostos relativos às infrações às normas disciplinadoras da atividade financeira-contabilística dos órgãos e agentes do Estado, a fim de assegurar uma boa e correta gestão dos dinheiros públicos e de prevenir práticas desviantes. Mas o juízo de censura que é pressuposto no quadro de sanções da competência do Tribunal de Contas não consome ou exclui o âmbito dos juízos de censura que são postuladas por outras ordens de valores, designadamente penais e disciplinares (cf. Sousa Franco, Finanças Publicas e Direito Financeiro, vol. I, 4.ª ed., 1995, p. 481).
Da autonomia entre responsabilidades de diferente natureza deriva que a imposição a uma mesma pessoa, como consequência de um mesmo facto, de duas sanções diferentes, uma de natureza penal, a outra de natureza disciplinar, financeira, etc, não está a pôr em causa o principio "ne bis in idem". É aliás o que é frequente no domínio da responsabilidade disciplinar dos funcionários ou agentes do Estado, que se cumula com a responsabilidade criminal, ou no campo dos chamados crimes de bolsa, previstos no Código de Valores Mobiliários (abuso de informação, manipulação do mercado, etc), que convivem com sanções acessórias impostas administrativamente. Ou seja, em resumo, tal princípio não tem aplicação quando se impõe a distinção entre sanções de natureza diferente, com decisores diversos e procedimentos distintos.
De resto, a responsabilidade penal só pode ser averiguada e declarada pelos tribunais judiciais (art 209.º- 4), não por uma qualquer instituição administrativa ou político-administrativa (Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 819), o que é, enfim, uma expressão do chamado princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal ou princípio da mediação judicial: as sanções de direito penal e a responsabilidade criminal de uma pessoa só podem ser decididas pelos tribunais, que são órgãos de soberania, independentes, órgãos que julgam com imparcialidade […]».
[65] Cf. o acórdão do STJ de 31/1/2024 (relatado pelo Conselheiro Ernesto Vaz Pereira e disponível em www.dgsi.pt).
[66] Como se observa no acórdão do STJ de 31/1/2024, a razão material que preside à criação de um regime jurídico específico para os titulares de cargos políticos prende-se com a especial intensidade e importância dos deveres de zelo e promoção de bens jurídico-constitucionais, em sentido estrito, a que se encontram adstritos os titulares de cargos políticos, em razão das suas funções e da sua particular legitimidade democrática (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, II, 2006, 322).
[67] Artigo 1.º-A, n.º 1, na versão atual.
Como se observa no acórdão do TRE de 2/10/2018 (relatado pelo Desembargador Alberto Borges, in www.dgsi.pt), «A regra da transparência pressupõe que em todo o procedimento tendente à contratação devem ser seguidas regras que permitam a todos os concorrentes conhecer os termos do contrato a empreender e bem assim as demais propostas apresentadas, devendo haver registo documentado de todos os contactos. Os princípios da igualdade e da concorrência impõem que a entidade adjudicante não dê preferência a um determinado operador económico nem deve dirigir convites a operadores económicos com manifesta diferença ao nível da capacidade instalada. Por outro lado, deve o procedimento tendente à contratação favorecer a concorrência de operadores económicos».
[68] «O tipo legal em análise pode classificar-se como um delito de intenção ou de tendência interna transcendente, no sentido de que o agente persegue um resultado, que determina internamente a sua conduta, sem que, contudo, o preenchimento do tipo dependa da efetiva produção desse resultado» (in “O crime de prevaricação, no âmbito da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos”, Sílvia Marques Alves, RPCC, nº 1, 2015).
[69] Cf. o acórdão do TRL de 9/11/2011, relatado pelo Desembargador Paulo Fernandes da Silva (consultável em www.dgsi.pt).
[70] Neste sentido e a título exemplificativo, cf. o acórdão do TRL de 24/6/2020, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt.
Como observa A. Medina de Seiça, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo III, em anotação ao artigo 369.º do Código Penal, exigindo a lei portuguesa que o funcionário atue “conscientemente”, as situações recondutíveis à dolosidade eventual, isto é, aquelas em que o agente representando a realização do facto como possível conforma-se com a sua realização (art.º 14.º, n.º 3), não se encontram abrangidas pela norma incriminadora, o mesmo é dizer, não são puníveis.
O crime é, por isso, apenas punível a título de dolo direto (aqui incluído o “dolo necessário”).
[71] Para “conduzir” um processo é preciso ter o poder de o orientar, de lhe imprimir um determinado rumo, de acordo com o formalismo legal e “decidir” implica proferir uma decisão de fundo sobre a questão (administrativa) que é colocada (cf. o acórdão do TRP de 9/11/2022, relatado pela Desembargadora Maria Luísa Arantes, in www.dgsi.pt).
[72] O «alguém» de que se fala pode ser uma pluralidade de pessoas, singulares ou coletivas, desde que concretamente determinadas, como se observa no acórdão recorrido.
[73] Como observa a autora (ob. cit, pág. 778), a exigência da patrimonialidade do benefício pode até não fazer muito sentido sob o ponto de vista do bem jurídico protegido, uma vez que o favoritismo ou o compadrio (mesmo que não remunerados) poem ser mais lesivos para o bom funcionamento da administração e para a imagem do Estado, do que a perspetiva da obtenção de um lucro.
[74] O que é irrelevante para a verificação dos elementos objetivos do tipo, pois que a lei não faz depender a incriminação da existência de prejuízo para a entidade adjudicante.
[75] Como justamente assinala o Ministério Público, nas conclusões do seu recurso, no caso dos autos, a antijuridicidade assenta em primeiro plano nos deveres funcionais que obrigavam o arguido AA, positivados na Lei n.º 35/2014, de 20/06 (LGTFP) e Lei n.º 29/87, de 30/06 (EEL), e sobretudo no Código de Procedimento Administrativo, como os da legalidade (art. 3.º), prossecução do interesse público (art. 4.º), boa administração (art. 5.º), e imparcialidade (art. 9.º), obrigando a uma atuação subordinada integralmente ao interesse público sem procurar quaisquer favorecimentos ou interesses pessoais.
[76] Cf., neste sentido, A. Medina de Seiça, ob. cit., pág. 619.
[77] Encontra aqui plena validade o que dissemos a propósito da possibilidade de sobreposição da responsabilidade de natureza financeira, disciplinar, administrativa, civil, etc, com a responsabilidade criminal (cf. a nota de rodapé 64).
[78] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt)[78], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa”.
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[79] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[80] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[81] Como se observa no acórdão do STJ de 31/1/2024, já citado, «O titular de cargo político, aqui autarca, está constituído num dever funcional qualificado, cuja violação se traduz em elevado grau de desvalor e em grave afronta à sua acrescida responsabilidade social».
[82] Ocorrendo uma situação de concurso efetivo entre os crimes de prevaricação e de falsificação de documento, dada a diversa natureza dos bens jurídicos respetivamente tutelados.
[83] Tem sido entendimento pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares - [cf. acórdão do STJ de 05.07.2012 (proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1)] -, o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa.
[84] Como refere Anabela Miranda Rodrigues [In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.], o art.º 70º do C. Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
[85] Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, a socialização não pode sobrelevar a prevenção. Embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
[86] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg.
[87] Cf. “Perda de vantagens versus pedido de indemnização civil – algumas questões práticas”, in Revista do Ministério Público n.º 172, Out-Dez 2022.
[88] Neste sentido, cf. João Conde Correia, “«Non-Conviction Based Confiscations» no Direito Penal Português Vigente”, Revista Julgar nº 32, Maio-Agosto 2017, pág. 94.
[89] In “Confiscare Senza Punire? Uno studio sullo statuto di garanzia della confisca della ricchezza illecita”, G. Giappichelli Editore – Torino, páginas 115, 118 e 406.
[90] Da autoria da ora relatora e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, cf. o acórdão desta Relação, de 19/4/2023 (relatado pelo Desembargador João Pedro Pereira Cardoso, in www.dgsi.pt).
[91] A possibilidade de condenação do arguido AA pelo pagamento ao Estado do valor equivalente ao da vantagem ilicitamente obtida não podia ter sido equacionada pelo tribunal de primeira instância, já que este concluiu pela falta de prova da autoria de qualquer um dos crimes por que havia sido acusado. Este contexto alterou-se, naturalmente, com a alteração da matéria de facto efetuada por este tribunal de recurso e a consequente condenação do arguido pelo crime de prevaricação, consistindo, por isso, a sua responsabilidade patrimonial nestes moldes como mais um dos efeitos daquela condenação.