Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | EUGÉNIA CUNHA | ||
Descritores: | ÓNUS DA PROVA ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR JUROS LEGAIS | ||
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Nº do Documento: | RP20250224428/23.8T8ETR.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/24/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O critério de distribuição do ónus da prova (v. art. 342º, do Código Civil) tem por base a relação material e orienta-se em função da natureza dos factos alegados, sendo que, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, a este competindo a prova dos factos constitutivos do seu aparecimento (nº1), e os factos impeditivos (aqueles que, contemporâneos à formação do direito, obstam ao seu aparecimento), modificativos (os que alteram o direito depois de constituído) e extintivos (os que fazem cessar a produção dos seus efeitos) do direito alegado são pelo Réu (nº2). II - Alegada falta de causa para a transferência bancária verificada de conta da Autora para conta bancária do Réu, negando este tal falta, é à Autora que cabe a prova da afirmada falta de causa, facto constitutivo do seu direito (nº1, do art. 342º e art. 473º, ambos do Código Civil). III - Provada a deslocação patrimonial e a ausência de causa justificativa da mesma, cabe, através do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, repor, na justa medida, o equilíbrio. IV - Na ação de restituição com base no enriquecimento sem causa, os juros legais da dívida pecuniária em que se traduza a obrigação de restituir são devidos a partir do momento de constituição do devedor em mora em relação à obrigação de restituição. E fica o devedor constituído em mora a partir da citação para a ação de restituição ou, em momento anterior, em que passe a saber do enriquecimento sem causa (sendo este facto, a ter de ser alegado, de mais difícil prova para o credor) - cfr. art. 480º, do Código Civil, a consagrar hipóteses de constituição em mora do devedor. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 428/23.8T8ETR.P1 Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível) Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível do Porto - Juiz 4 Relatora: Des. Eugénia Cunha 1º Adjunto: Des. Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais 2º Adjunto: Des. Carla Jesus Costa Fraga Torres Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC): …………………………………………… ……………………………………………. …………………………………………….
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Recorrente: o Réu, AA Recorrida: a Autora, BB * Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar a presente acção procedente, por provada, e em consequência condenar o R. a restituir à A. a quantia € 14.975,000 (catorze, novecentos e setenta e cinco euros), acrescida dos juros, à taxa de 4%, desde 22/10/2022 até integral pagamento. Decido igualmente condenar o R. como litigante de má fé na multa de 6 (seis) UC e a indemnizar a A. dos prejuízos por ela sofridos, designadamente o reembolso das despesas a que a má-fé do litigante a tenha obrigado, incluindo os honorários do seu mandatário. Custas pelo R. (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC)”. * CONCLUSÕES: (…) * Não foram apresentadas contra-alegações. * Pronunciou-se o Tribunal a quo no sentido de não padecer a sentença das arguidas nulidades. * Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto. * II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal. Assim, as questões a decidir são as seguintes: * 1. FACTOS PROVADOS Foram os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição): 1) No início do mês de outubro de 2022, a Autora andava à procura de uma solução para adquirir ou construir uma habitação, pois estava a residir com os seus pais; 2) No sítio online www.olx.pt visualizou um anúncio de venda de casas pré-fabricadas (estrutura móvel) que se situava em ..., ..., Porto; 3) Tendo contactado o anunciante, que usava a designação comercial de “A...”, combinou visitar as instalações do mesmo, para ver e aí avaliar melhor os produtos que este tinha para venda; 4) Ali chegada, em ..., foi recebida por uma representante do comerciante, que lhe mostrou os vários produtos que tinha disponíveis; 5) A autora mostrou-se interessada num dos produtos, mas desde logo manifestou junto da representante do estabelecimento que a eventual aceitação e concretização do negócio estaria sempre dependente da verificação e conformidade de todos os requisitos necessários à implantação da casa móvel no seu terreno; 6) A representante do estabelecimento informou a Autora de que, para reservar a casa pela qual se interessou e garantir que não seria vendida a outra pessoa, teria de efetuar uma transferência bancária no valor de metade do seu preço; 7) Esclareceu, ainda, que, caso de o negócio não se viesse a concluir, por qualquer motivo, seriam devolvidas as quantias entregues; 8) Nenhum contrato de compra e venda foi realizado entre as partes e nada foi assinado; 9) Nem foi firmado nenhum negócio entre as partes para a compra da dita “casa móvel” uma vez que a A. teria de aferir das condições que eram necessárias para se poder concluir o negócio; 10) No dia 20/10/2022 a Autora efetuou na sua agência bancária do Banco 1..., sito na ..., uma transferência bancaria a partir da sua conta de depósitos à ordem com o IBAN ...92, no valor de 14.975,00€ para a conta bancária indicada pela representante do estabelecimento com o IBAN nº ...14, cujo titular é o Réu; 11) Esta conta bancária titulada pelo Réu está aberta junto do Banco 2... S.A.; 12) A Autora desconhece a relação do Réu com o estabelecimento comercial onde estavam os produtos e a representante/vendedora que forneceu o número da conta bancária; 13) Após diligências para apurar da viabilidade da implantação do produto “casa móvel” no terreno onde pretendia, a A. apurou que tal implantação se mostrava impossível e como tal não era viável prosseguir o negócio; 14) Tendo informado a representante do estabelecimento que tinha desistido da compra da casa móvel; 15) E que, tal como acordado entre as partes anteriormente, pretendia a devolução do valor que havia entregue no dia 20/10/2022; 16) Apesar das inúmeras insistências da Autora, a referida representante do estabelecimento comercial nunca mais respondeu aos pedidos de devolução da quantia entregue; 17) E nunca devolveu qualquer valor à Autora; 18) A Autora nunca falou com o Réu e não o conhece; 19) A Autora nunca fez qualquer negócio com o Réu; 20) Mas o Réu recebeu na referida conta bancária do Banco 2... a importância de 14.975,00€, que fez sua. * 2. FACTOS NÃO PROVADOS Não resultaram provados outros factos com relevo para a boa decisão da causa, designadamente que: a) A representante do estabelecimento informou a Autora que para início de negociações, esta teria de efetuar uma transferência bancária no valor de metade do imóvel que eventualmente pretenderia adquirir, para comprovar da veracidade da intenção de negociar; b) Na altura referida em 9) ficou acordado entre as partes prosseguir as negociações; c) Foi em 03/11/2022 que a Autora informou a representante do estabelecimento do referido em 14); d) O Réu não é a pessoa responsável pela venda da dita “casa móvel”; e) O Réu apenas surge como facilitador do recebimento da quantia pecuniária em causa; f) O Réu entregou a quantia de €14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o favor de receber a sobredita quantia. * 1º- Da nulidade da sentença por: insuficiência de fundamentação de facto, contradição entre fundamentos e decisão e omissão de pronúncia. Arguiu o Réu/Apelante, no recurso que apresentou, a nulidade da sentença por a mesma padecer dos vícios de falta de fundamentação e de contradição entre os fundamentos e a decisão, previstos nas als b) e c), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência. Analisemos, em primeiro lugar, das invocadas nulidades, pois que as mesmas contendem com a validade da própria decisão. Começa por se referir que as “Causas de nulidade da sentença”, vêm taxativamente consagradas no referido preceito que estabelece: “1 - É nula a sentença quando: … b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”. As nulidades da sentença são, assim, tipificados, vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1]. Trata-se de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. E, como vícios intrínsecos daquela peça processual, as nulidades da sentença são apreciadas em função do texto da sentença e do discurso lógico que nela é desenvolvido, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes o mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[2]. Os vícios da sentença são, portanto, aqueles que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo. Os referidos vícios respeitam à “estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[4]. Analisemos os invocados vícios, que se reportam quer à estrutura quer aos limites, exarando-se, desde já, que, fundamentada é a decisão, quer de facto quer de direito, consequente com os fundamentos, não contendo qualquer ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível. * 2º. Da reapreciação da decisão da matéria de facto Analisemos, agora, a impugnação da decisão de facto para que, ante a definitiva definição dos contornos fácticos do caso, possamos entrar na reapreciação da decisão de mérito. Verifica-se que, para tanto, o Réu apresentou alegações, observando os ónus de alegar e de formular conclusões, consagrados no nº 1, do artigo 639º, e deu cumprimento aos ónus impostos pelo nº1 e 2, do artigo 640.º, referindo os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados (e tal é efetuado nas conclusões, assim delimitado estando o âmbito do recurso na vertente da impugnação da matéria de facto), indicando elementos probatórios a conduzirem à alteração dos pontos impugnados nos termos por si propugnados e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida e exarando, ainda, as passagens da gravação em que fundamenta o recurso, preenchidos se mostrando os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, os requisitos habilitadores a tal conhecimento. Tem de se entender que o Recorrente, ao cumprir esses ónus, circunscreveu o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador e interpretados pelos Tribunais Superiores, sendo, por isso, de apreciar, o recurso, na vertente de mérito, da impugnação. * Em matéria de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, para o caso de erro, estatui o nº1, do art. 662º, com a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” que Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto: “… se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, podendo, como referido, ainda, a decisão da matéria de facto sofrer alterações no caso de divergência na apreciação probatória, sendo que, “dentro dos limites definidos pelo recorrente, a Relação goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais. Ou seja, (…) a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413º), sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão (cf. Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 288-293)”.[10]. Os objetivos visados pelo legislador com o duplo grau de jurisdição em matéria de facto “designadamente quando esteja em causa decisão assente em meios de prova oralmente produzidos, determinam o seguinte: reapreciação dos meios de prova especificados pelo recorrente, através da audição das gravações (…); conjugação desses meios de prova com outros indicados pelo recorrido ou que se mostrem acessíveis, por constarem dos autos ou da gravação; (…) formação de convicção própria e autónoma quanto à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão da matéria de facto que se considere erradamente julgada as modificações que forem consideradas pertinentes (cf. STJ 14-5-15, 260/70, STJ 29-10-13, 298/07, STJ 14-2-12, 6823/09 e STJ 16-12-10, 170/06). Cf. ainda Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, pp. 187-189, no sentido de que a Relação pode fazer uso de presunções judiciais que o Tribunal de 1ª instância não utilizou, bem como que alterar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida com base em presunções judiciais”[11]. Deste modo, “a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o Tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levaram a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância[12], sendo que “a Relação goza dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 607º, nº5, e a que especificamente se alude no arts. 349º (presunções judiciais), 351º (reconhecimento não confessório), 376º, nº3 (certos documentos), 391º (prova pericial) e 396º (prova testemunhal), todos do CC, bem assim nos arts. 466º, nº3 (declarações de parte) e 494º, nº2 (verificações não qualificadas) do CPC”[13]. Cumpre referir que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve obedecer ao seguinte: i) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente (a menos que se venha a revelar necessária a pronúncia sobre facticidade não impugnada para que não haja contradições); ii) sobre essa matéria, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento; iii) nesse novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes). Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, como verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, e, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas se distinguindo dele quanto a fatores de imediação e de oralidade. Assim, deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação a, após audição da prova gravada e da reanálise de toda a prova convocada para a decisão dos concretos pontos impugnados, concluir, com a necessária segurança, no sentido de os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova, apontarem para direção diversa e justificarem, objetivamente, outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. E cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação com os demais, sendo que o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida, pelo que toda ela tem de ser revisitada. Ponderando os critérios e balizas que deverão conduzir o julgamento da Relação e os argumentos apresentados pelo apelante e debruçando-nos sobre a parte da sentença onde vem motivada a decisão de facto, entendemos não se justificar alterar a decisão de facto pelas razões que se passam a expor. * Revisitada a prova, adianta-se não ser a prova produzida, a indicada pelo apelante e toda a restante, suficiente para dar uma resposta diversa aos factos impugnados e não pode deixar de se considerar que bem decidiu o Tribunal a quo a matéria que, agora, vem impugnada, não podendo, por isso, a impugnação da decisão de facto deixar de improceder. Analisemos. Impugna o Réu/apelante a decisão da matéria de facto pretendendo que, face ao depoimento prestado pela sua testemunha CC, que corroborou o seu depoimento de parte não confessório, e porque as declarações de parte da Autora e o depoimento das testemunhas desta não foram credíveis nem convincentes se considere: - não provados os factos provados dos pontos 5., 9., 13 a 16. e, ainda, a parte final do ponto 20º da matéria de facto provada e provados os constantes das alíneas d) a f) dos factos não provados; - existir contradição insanável entre a matéria de facto provada dos pontos 6., 7., 9., 14. e 15., e os factos não provados das alíneas d) e e), tanto se dando como provado que não existiu negócio entre as partes, como se dá como provado que existiu. Têm os itens provados e os não provados impugnados a seguinte redação: - Provados: “5) A autora mostrou-se interessada num dos produtos, mas desde logo manifestou junto da representante do estabelecimento que a eventual aceitação e concretização do negócio estaria sempre dependente da verificação e conformidade de todos os requisitos necessários à implantação da casa móvel no seu terreno”;”6) A representante do estabelecimento informou a Autora de que, para reservar a casa pela qual se interessou e garantir que não seria vendida a outra pessoa, teria de efetuar uma transferência bancária no valor de metade do seu preço;” “7) Esclareceu, ainda, que, caso de o negócio não se viesse a concluir, por qualquer motivo, seriam devolvidas as quantias entregues;”, ““9) Nem foi firmado nenhum negócio entre as partes para a compra da dita “casa móvel” uma vez que a A. teria de aferir das condições que eram necessárias para se poder concluir o negócio;”. “13) Após diligências para apurar da viabilidade da implantação do produto “casa móvel” no terreno onde pretendia, a A. apurou que tal implantação se mostrava impossível e como tal não era viável prosseguir o negócio;” “14) Tendo informado a representante do estabelecimento que tinha desistido da compra da casa móvel;” “15) E que, tal como acordado entre as partes anteriormente, pretendia a devolução do valor que havia entregue no dia 20/10/2022;” e “16) Apesar das inúmeras insistências da Autora, a referida representante do estabelecimento comercial nunca mais respondeu aos pedidos de devolução da quantia entregue”. E tem o ponto 20, impugnado quanto à parte final, a seguinte redação: “20) Mas o Réu recebeu na referida conta bancária do Banco 2... a importância de 14.975,00€, que fez sua”. - Não provados: “d) O Réu não é a pessoa responsável pela venda da dita “casa móvel”; “e) O Réu apenas surge como facilitador do recebimento da quantia pecuniária em causa;” “f) O Réu entregou a quantia de €14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o favor de receber a sobredita quantia”. Quanto aos referidos factos, após justificar a sua convicção referindo que a mesma se fundou “… no depoimento de parte do R., AA, nas declarações de parte da A., BB, nos depoimentos das testemunhas DD, amigo da A., EE, amiga da A. e mulher da anterior testemunha, e CC, conjugados com os documentos juntos aos autos, analisados criticamente e à luz das regras de experiência comum”, o Tribunal a quo considerou, a fundamentar a sua convicção quanto à resposta que deu aos referidos factos provados e não provados, esclarecendo que disseram as partes e as testemunhas: “O R. AA referiu foi o Sr. CC, que trabalha em França, que lhe pediu o número da conta para uma senhora entregar o dinheiro da compra de uma casa A.... A conta bancária era do Banco 2.... Em Novembro de 2023 levantou o dinheiro com um cheque da própria conta e entregou o dinheiro ao Sr. CC. Afirmou não saber onde está a casa, não chegou a ver a casa. Não sabe onde reside o Sr. CC. Conhece o Sr. CC de ele ir comprar vinho ao armazém "Agência B...", onde trabalha. Foi citado e contestou antes de devolver o dinheiro ao CC. Sabia qual era a origem do dinheiro. O amigo não conseguiu comprar o terreno e teve de vender a casinha que trouxe de França. Mais à frente referiu que deu o dinheiro ao Sr. CC em Novembro de 2022. O Sr. CC estava a divorciar-se e não queria que a mulher soubesse deste negócio. Soube que era o sinal da casa. O Sr. CC está a viver em França. Vinha para Portugal viver na "casinha" e ia comprar um terreno para lá viver. Não sabia que estavam várias casas à venda. (…) A A. BB relatou que andava à procura de um apartamento ou algo onde pudesse ter um cantinho. Andava à procura na internet. Encontrou no OLX um anúncio destas casas móveis. Aparecia o nome de uma FF. Foi o anúncio que viu, onde aparece uma tal de FF. Não sabe o último nome. Não entrou de imediato em contacto. Andou a ver apartamentos. Falou com os pais para saber se tinham algum terreno que lhe pudessem doar ou vender. Ficou com a esperança de uma resposta dos pais. Pediu a um casal para ir com ela ver a casa móvel. Foram ver a ... a A.... Tirou a morada através do OLX. Colocaram no GPS. Era em .... Ali tinha várias casas expostas. Foram ao escritório e estava fechado. Andaram a ver as casas de fora, até que ao descer viram dois camiões estacionados e veio uma senhora chamada GG que se ofereceu para mostrar alguns items. Mostrou duas ou três casas. Pretendia um T3s porque tem dois filhos. Houve um T3 que lhe agradou. Não assinou nada. Disse que tinha de falar com os pais dela. A senhora GG ficou com o contacto dela e continuou sempre a insistir, mas disse-lhe que tinha de falar com os pais e que não se podia comprometer. No outro dia de manhã essa D. GG mandou-lhe uma SMS a dizer que, para reservar a casa, tinha dar um sinal porque havia um interessado. Disse-lhe que não, porque tinha de falar com os pais. Sentiu-se pressionada e fez a reserva, fazendo a transferência de 14.975,00 €. Ela mandou-lhe pelo WhatsApp o número da conta. Foi ao banco fazer a transferência, reservou a casa. Não se com que concretizou a venda porque os pais não lhe deram nem venderam o terreno, até porque não era possível implantar lá uma casa móvel. Falou com a D. GG para lhe devolver o dinheiro um mês depois e ela disse que ia falar com o patrão, empatou-a. Ficou à espera, até que lhe ligou a D. FF a quem disse que queria a devolução de dinheiro e que não tinha qualquer contrato. A D. FF disse-lhe que não iam devolver valor nenhum. Este telefonema foi 1 ou 2 meses depois de pedir a restituição do dinheiro. Ninguém mais a contactou. O preço da casa era o dobro do que entregou. A D. GG disse-lhe que, caso não se chegasse à concretização do negócio, que lhe devolvia o dinheiro. Pediu-lhe um documento da entrega do dinheiro e a D. GG disse-lhe que isso era tudo entregue no dia da entrega da casa. A D. FF ou a D. GG nunca disseram o nome do patrão. A casa que pretendia não está nas fotos juntas com petição inicial. O valor da casa era de 30.000 e tal euros já com a colocação e posicionamento no terreno. Entregou metade do valor. Não sabe quem era a Sr.ª FF que a contactou por telemóvel e que se identificou como representante da empresa que vende casas. Não voltou ao sítio onde havia visto as casas. A testemunha DD referiu que foi com a A. ver casas a .... Veio uma senhora e os chamou para dar uma volta e ver as casas. Tinha lá muitos modelos. A BB mostrou interesse por uma casa, mas não queria dizer que sim sem falar com os pais. Não fizeram contrato e a A. não assinou qualquer documento. Sem falar com os pais, a A. não se quis comprometer. No caminho de regresso a casa houve uma pressão para a A. comprar a casa. Ligaram para ela a pressioná-la para fazer a reserva da casa. Ia conduzir e ouviu o telefonema. Ouviu a tal senhora a dizer que podia fazer reserva e que se o negócio não se concretizasse devolviam o dinheiro. Soube que a A. fez a reserva. Acha que não devolveram o dinheiro à A. A testemunha EE referiu que foi ela e o marido que foram com a A. ver casas. Andaram a ver várias casas. A A. interessou-se por uma. Veio uma senhora, GG, que mostrou à A. a casa pelo qual se interessou. A D. GG disse-lhe que ela tinha de fazer uma reserva porque podia aparecer alguém interessado. Disse que se o negócio não se concretizasse lhe devolviam o dinheiro. A A. disse que tinha de falar com os pais porque o terreno não era dela, era dos pais. Vieram embora e, na viagem de regresso, a D. GG ligou a pressionar a A. para fazer um negócio. Na presença dela não foi assinado nada. Acha que não se concretizou o negócio. O preço da casa era 30.000 e tal euros. A A. escolheu um T3 porque tem dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A testemunha CC referiu que reside e trabalha em França há 10 anos e que conhece o R. há mais de 20 anos. Conheceu-o no futebol. O R. era guarda-redes num clube em .... Jogava noutra equipa. Sabe que o R. trabalha em vinhos. Não conhece a A., mas já ouviu falar dela. A D. BB e fez uma compra de uma A... que era dele. Não vende casas. Vendeu esta casa em concreto que era dele. Ia alugar um terreno, o que não se concretizou e pediu à sobrinha GG para falar com o patrão dela para pôr a casa no estaleiro e vendê-la. O estaleiro fica em .... A sobrinha chama-se GG. Pelo que sabe, ela está a trabalhar na Suíça. Só tinha aquela casa para vender. O preço era 29.950 €. A casa já foi vendida. Os documentos não foram assinados pela A. . Recebeu o dinheiro da A. e fez alterações à casa. Vendeu-a por um valor irrisório. Os documentos não foram assinados pela A. porque ela não apareceu mais no local. A Sr.ª pagou metade do valor da casa. Fez alterações na casa com o dinheiro da A. e teve imensos prejuízos. O dinheiro que entrou na conta do R. foi um favor que este lhe fez. Recebeu o dinheiro passado um mês, em Novembro de 2022. A sobrinha vendeu-lhe a casa. A A. pagou metade do valor da casa - 14.975,00 € - e ficou de pagar outra metade um mês depois. Quando a sobrinha lhe ligou disse que já não queria a casa. O R. entregou-lhe aquela quantia em dinheiro. Não sabe o nome do patrão da GG, da sobrinha. Quando o confrontado com o documento n.º 1 junto com a petição inicial, disse que é ele que é o utilizador da OLX. Os anúncios correspondem a algumas casas que anunciou. É intermediário destes negócios. Quando lhe foi perguntado se a rescisão do contrato foi comunicada à A., respondeu que não enviou qualquer carta para a A. a rescindir o contrato. Na altura estava a divorciar-se. Trabalha no estrangeiro. Ganha comissões por aquilo que vende, ganha comissões em dinheiro. Anuncia várias coisas de várias pessoas. Não tem contas em Portugal. Recebe as comissões em dinheiro. Trabalha lá fora, não tem contas bancárias nem a Portugal nem a França devido a determinados problemas. Não passou o recibo da quantia que recebeu”. Revisitada a referida prova resulta que bem motiva o Tribunal a quo estarem o depoimento do Réu e o depoimento da testemunha CC eivados de contradições e inverosimilhanças, bem mencionando: “Aliás, as contradições do R. começam logo na contestação. Assim, no art.º 9.º da contestação, o R. alega que "desconhece a situação vertida na petição inicial" e no art.º 11.º que "O facto de alguém, que o R. desconhece, ter indicado a sua conta bancária para pagamento de um determina quantia". Contudo, no art.º 23.º do mesmo articulado, o R. alega "Pois, o Réu entregou a quantia de € 14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o especial favor de receber a sobredita quantia". Na audiência, no seu depoimento de parte, o R. identifica "a pessoa" a quem alegadamente deu o número da sua conta bancária para receber o dinheiro da A., afirmando que essa pessoa é o Sr. CC, que trabalha em França, e que lhe terá pedido o número da conta para uma senhora entregar o dinheiro da compra de uma casa A.... Referiu ainda que conhecia o Sr. CC de ele ir comprar vinho ao armazém "Agência B...", onde trabalha, e que o Sr. CC vinha para Portugal viver na "casinha" e ia comprar um terreno para lá viver. O amigo não conseguiu comprar o terreno e teve de vender a casinha que trouxe de França. O Sr. CC estava a divorciar-se e não queria que a mulher soubesse deste negócio. Referiu ainda que deu o dinheiro ao Sr. CC em Novembro de 2022. Mas esta versão, além de não se afigurar verosímil (desde logo porque as regras da experiência revelam que uma pessoa medianamente inteligente e diligente não autoriza que a sua conta bancária seja utilizada por conhecidos ou mesmo amigos para receber dinheiro de terceiros, que não é seu nem é para si, para depois lhe entregar), foi contrariada em vários pontos pelo referido CC. Em primeiro lugar, porque este CC referiu que conhece o R. há 20 anos e do futebol e não do local onde o R. trabalha. Depois, porque acabou por dizer, quando confrontado com o doc. 1 junto com a petição inicial, contrariamente ao que inicialmente havia dito e ao que o R. referiu, que é intermediário de vendas e que ganha comissões pelas vendas que concretiza, o que nos leva a concluir que a venda da casa que foi mostrada à A. não seria uma venda isolada, a venda da sua "casinha" que ia implantar num terreno para viver em Portugal. Dos extractos bancários da conta do R. no Banco 2... juntos aos autos em 09/02/2024, é possível verificar que a A. fez uma transferência de 14.975,00 para essa conta em 22/10/2022 e que foi levantada da mesma conta 15.005,00 em 23/11/2022. Contudo, não existem elementos que nos permitam saber - com certeza - qual o destino que foi dado a essa importância, mormente se foi entregue na totalidade aquele CC”. Considerou o Tribunal a quo credíveis, esclarecedores e convincentes as declarações de parte da A. e os depoimentos das testemunhas DD e EE, depoimentos estes que foram “consonantes entre si e com as declarações de parte da A. e não apresentaram, no essencial, contradições”. E, na verdade, também assim entende este Tribunal, tendo-se os depoimentos destas testemunhas revelado seguros, coerentes e conformes com as declarações de parte da Autora, bem mostrando, ter tais testemunhas acompanhado a Autora na sua deslocação para ver as casas em causa, tendo assistido quer às conversas presenciais havidas em ..., ..., quando aí se deslocaram, quer às havidas pelo telemóvel durante a viagem de regresso a casa, bem sabendo que a Autora nenhum contrato pretendia celebrar e que a nada se vinculou, pois nenhum compromisso assumiu nem queria assumir sem ter um terreno onde pudesse instalar a casa. Além disso, a versão dos factos que relataram é verosímil à luz das regras do normal suceder, pelo que, face aos referidos depoimentos das testemunhas DD e EE, e declarações de parte da A., coerentes, credíveis e convincentes, bem foram os factos provados acima referidos, que o recorrente impugna no recurso, julgados provados. Não considerou o Tribunal a quo os depoimentos do Réu e da testemunha CC credíveis e, pelo modo como foram prestados, com imprecisões e não convincentes, não podem ser considerados suficientes para dar uma resposta positiva aos factos provados constantes das alíneas d) a f). Os factos não provados impugnados foram considerados e bem não provados por ausência de prova, pois que não tendo sido confirmados nem pelas testemunhas nem pela A., sendo certo que os documentos juntos aos autos nada revelam sobre os mesmos, o depoimento de parte do Réu e o da testemunha CC nenhuma credibilidade, como vimos mereceram. O depoimento de parte do Réu revelou-se lacónico, inseguro e inverosímil, mostrando o Réu hesitações e incertezas, designadamente quanto a datas, tendo este Tribunal ficado com a convicção, pelo modo inseguro como falou, que não disse a verdade e que tudo não passou de um esquema para conduzir à apropriação, pelo Réu, de dinheiro da Autora. Não resultou, na verdade, efetuada qualquer prova minimamente credível e convincente de o Réu não ser a pessoa responsável pela venda da dita “casa móvel”, de o Réu apenas ter surgido como facilitador do recebimento da quantia pecuniária em causa e de o Réu ter entregue a quantia de €14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o favor de receber a sobredita quantia. Com efeito, não houve prova que permita que seja dada aos factos considerados não provados impugnados uma resposta no sentido de se terem como provados, pelo que bem foram levados ao elenco dos factos não provados. Na verdade, as declarações de parte da Autora foram pormenorizadas, esclarecedoras, assertivas e convincentes, e o depoimento das testemunhas da Autora, DD e EE também o foram, no sentido de nenhum contrato ter a Autora celebrado com o Réu, sequer com o terceiro que o Réu refere, e que a Autora, em momento algum, se quis vincular ou vinculou ao que quer que fosse relativamente à compra da casa, estando tal dependente de ter terreno para poder montar a casa que decidisse comprar. Afirma o apelante nas suas alegações de recurso a sua opinião sobre a prova produzida. Ora, com o convencimento pessoal do Réu, infundado, inverosímil e parcial, não pode este Tribunal concordar. Na verdade, nenhuma prova credível e convincente resulta que permita a alteração pretendida, bem tendo a Autora logrado provar os referidos factos dados como provados e, ao invés, não logrou o Réu a prova dos factos constantes do elenco dos não provados que impugna que, por falta de prova, se têm de julgar não provados. Bem fundou o Tribunal a quo a sua convicção, que também é a nossa, não colhendo as razões do apelante, bem se fundando nas declarações de parte da Autora corroboradas pelos depoimentos das duas mencionadas testemunhas DD e EE, credíveis, convincentes e isentos, nenhum interesse tendo as mesmas no que se discute nos autos. Nenhuma contradição existe entre os apontados factos provados e os indicados não provados, antes bem resultou provado nunca a Autora ter celebrado qualquer negócio com o Réu, com quem nunca falou e não conhece, não existindo causa para uma transferência de dinheiro para o Réu, que este fez seu. * 3ª. Da reapreciação da decisão de mérito: 3.1- Da observância das regras do ónus da prova. Ora, a Autora invocou, como fundamento do seu direito, inexistir qualquer causa para a transferência e verifica-se que, a ela competindo fazer a prova de tais factos constitutivos do direito à restituição que invocou, os mesmos resultaram provados. Verifica-se que, não se provando a celebração de contrato com o Réu (nem mesmo com CC), demonstrado ficou haver enriquecimento do mesmo, sem qualquer causa justificativa, à custa da Autora, enriquecimento esse injusto e, como tal, inaceitável para o Direito, tendo, por isso, de ser restituído como bem foi decidido na sentença recorrida. * 3.2 – Da mora do devedor e do momento de constituição em mora.
Verificando-se ausência de uma qualquer causa justificativa da transferência para o Réu, tem a Autora direito à quantia que peticiona em que o Réu foi condenado, acrescida de juros de mora a contar da data da citação[25], data em que se deu a interpelação para a restituição da importância transferida pela Autora (cfr. arts. 473º, 479º, al. a), do art. 480º e 559º, do Código Civil), não antes, pois que se desconhece a data em que o Réu teve conhecimento da transferência e da falta de causa do seu enriquecimento. Estabelece o art. 480º, do Código Civil, com a epígrafe “Agravamento da obrigação”: “Verificadas algumas das circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do art. 480º, do CC, a responsabilidade do devedor passa a aferir-se pelos elementos fornecidos por esta disposição legal”[26]. “A lei regula os termos da obrigação de restituir a partir do momento em que o enriquecido/devedor esteja de má fé, isto é, sabia que o seu enriquecimento não tem causa jurídica ou, dito de outro modo, é injustificado. (…) Nessas hipóteses e a partir de qualquer dos momentos previstos nas alíneas deste preceito, à obrigação de restituição, calculada nos termos do artigo 479º, acresce uma obrigação de indemnizar que tem por objeto: … ii) os juros legais da dívida pecuniária em que se traduza a obrigação de restituir; fica, pois, constituído em mora a partir da citação para a ação de restituição ou do momento em que passe a saber da falta de causa do enriquecimento (facto de prova mais difícil para o credor), hipóteses de constituição em mora que se aditam às do nº2, do art. 805…”[27] do Código Civil. Logrou a Autora demonstrar a verificação dos pressupostos do instituto jurídico em que fundamenta a sua pretensão, como decidiu o Tribunal a quo, impondo-se a confirmação de decisão recorrida no que concerne à obrigação de restituição, sendo, contudo, os juros de mora devidos pelo atraso no cumprimento da obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa apenas a contar da data da interpelação judicial para a restituição efetuada com a citação (referida al. a), do art. 480º, do Código Civil). * 3.3 – Da litigância de má fé do Réu. Analisemos agora da responsabilidade processual. Condenou o Tribunal a quo o Réu “como litigante de má fé na multa de 6 (seis) UC e a indemnizar a A. dos prejuízos por ela sofridos, designadamente o reembolso das despesas a que a má-fé do litigante a tenha obrigado, incluindo os honorários do seu mandatário”, por o mesmo ter alterado a verdade dos factos, negando factos que resultaram provados, que bem conhecia. A condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando alcançar o respeito pelos Tribunais, a moralização da atividade judiciária e o prestígio da justiça. Entendeu o Tribunal a quo que a conduta do Réu se enquadra no n.º 2, do artigo 542.º, pois que veio apresentar defesa bem sabendo nenhum fundamento existir para a Autora lhe transferir o dinheiro e, apesar disso, em vez de lho devolver, fê-lo seu. Segundo o dever da boa-fé processual estabelecido no artigo 8.º do Código de Processo Civil, as partes têm a obrigação de, conscientemente não articular factos contrários à verdade. A violação deste dever dá lugar a sanção pecuniária: indemnização e multa. Analisemos da responsabilidade processual do Réu, por litigância de má fé. O instituto da má fé processual, regulado nos artigos 542º a 545º, de tal diploma legal, visa sancionar a parte que preencha, com a sua atuação processual, a respetiva previsão. Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, atualmente as condutas passíveis de integrar má fé não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Atingiu-se uma maior responsabilização das partes. Como resulta do preâmbulo do referido diploma, o atual Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que lhe está ínsita, consagrou "expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos". Na reforma processual introduzida por este DL houve uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual - quer a substancial quer a instrumental -, tanto na vertente subjetiva como na objetiva. A condenação por litigância de má fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista. Alberto dos Reis distinguia, em matéria de conduta processual das partes, quatro tipos de lide: lide cautelosa (aquela em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição)), lide imprudente (aquela em que a parte comete imprudência leve ou levíssima), lide temerária (aquela em que a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e lide dolosa (aquela em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada)[28]. Ao sancionar, atualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro[29]. A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público, com um sistema sancionatório próprio, especialmente regulado, não se tratando de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem através de atuações processuais. A responsabilidade por litigância de má fé está sempre associada à verificação de um ilícito puramente processual e constitui o “tipo central da responsabilidade processual”[38]. Atualmente, “considera-se sancionável a título de má-fé, a lide dolosa, tal como preconizava A. Reis, in Código de Processo Civil anotado, II volume, pg.280, e, ainda, a lide temerária baseada em situações de erro grosseiro ou culpa grave. Como refere Menezes Cordeiro “alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo.” (in “Da Boa Fé no Direito Civi”, Colecção Teses, Almedina ). No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida – dolo directo – ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais um uso manifestamente reprovável (v. Menezes Cordeiro, obra citada, pg.380). Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das desaconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (Maia Gonçalves, C.Penal, anotado, pg.48). O dever de litigar de boa-fé, com respeito pela verdade é corolário do princípio da cooperação a que se reporta o art.º 266º do Código de Processo Civil, e vem consignado no art.º 266º-A, do mesmo diploma legal. Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 456º do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça”[39]. A questão da má fé material não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com foros de garantia constitucional, tendo de ser feita uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos. A má fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos. A sustentação de posições jurídicas, mesmo que desconformes com a correta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as propugna. Acresce, também, que, a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se. Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada"[40]. O comportamento do Réu visava impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça de forma intencional, sendo o seu comportamento doloso. Como se referiu, a violação dos referidos deveres dá lugar a sanção pecuniária, a multa, e, ainda, a indemnização, se pedida pela parte lesada. Esta, ao contrário daquela reverte para o pleiteante lesado. * 3.4 – Da questão nova da litigância de má fé da Autora. Pede o apelante a condenação da apelada como litigante de má fé. Cumpre deixar claro que este Tribunal é um Tribunal de recurso pelo que as questões a apreciar são as já suscitadas junto da 1ª Instância e que a mesma apreciou e decidiu. Na verdade, o recurso visa, tão só, o reexame da matéria apreciada pela 1ª Instância na decisão recorrida, não podendo ter por objeto questões novas (cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Os recursos são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se visa a sua modificação. Recurso é, pois, um “pedido de reapreciação de uma decisão judicial apresentado a um órgão judiciário superior”[46]. Assim, não cabe a este Tribunal de recurso conhecer da referida questão nova, não colocada em 1ª instância nem decidida oficiosamente pelo Tribunal a quo.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, salvo no que se reporta aos juros peticionados entre 20/10/2022 e a data da citação do Réu para a presente ação, parte em que a apelação procede, tendo o Réu nesta parte de ser absolvido do pedido. * As custas, quer do recurso quer as relativas à 1ª instância, são da responsabilidade de ambas as partes na proporção do decaimento (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil). * III. DECISÃO Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, confirmam integralmente a decisão recorrida, salvo no atinente aos juros de mora peticionados entre 20/10/2022 e a data da citação do Réu para a ação, indo em relação a esta parte o Réu absolvido do pedido. * Custas, quer do recurso quer em 1ª instância, por ambas as partes na proporção do vencimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza a Autora.
Porto, 24 de fevereiro de 2025 Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores Eugénia Cunha Miguel Baldaia Morais Carla Torres
________________________________ [36] Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., p. 264). |