Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MENDES COELHO | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO DANO DA PRIVAÇÃO DE USO DO VEÍCULO EQUIDADE COMPARTICIPAÇÃO DO LESADO NA PERMANÊNCIA DA PRIVAÇÃO DO USO | ||
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Nº do Documento: | RP2024042218092/21.7T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/22/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIAL | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – A privação do uso do veículo, ainda que na ausência de prova de prejuízos efetivos dela decorrentes, constitui um prejuízo de natureza patrimonial, na medida em que, ao menos, retira ao proprietário a possibilidade de fazer uso dos poderes de fruição que lhe advém dessa qualidade jurídica durante um determinado período de tempo que, se acaso não for compensado, jamais terá retorno. II – Não se discutindo a ressarcibilidade de tal dano, nem que a mesma deve partir de um montante diário que pretende estabelecer um valor de uso do automóvel, não se apurando quaisquer factos para que tal valor possa seja obtido com base na teoria da diferença prevista no artigo 566º nº2 do C. Civil há que recorrer à equidade para fixar a respetiva indemnização (art. 566º nº3 do C. Civil). III – O recurso à equidade, porque menos capaz de assegurar uniformidade de critérios, permite uma certa margem de discricionariedade. Todavia, também permite, como contrapartida, uma maior e melhor ponderação das circunstâncias concretas de cada caso. IV – No exercício de tal ponderação, há que relevar a comparticipação do próprio lesado na permanência da situação de privação do uso. V – Tendo a indemnização sido fixada por referência a período temporal cujo termo final ocorreu depois da citação da ré, mas contendo-se o seu montante dentro do montante líquido peticionado pelo autor na petição inicial e, portanto, para o qual a ré foi interpelada para pagar por via da sua citação, são devidos juros de mora sobre aquela quantia indemnizatória desde a citação. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº18092/21.7T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 6)
Relator: António Mendes Coelho 1º Adjunto: Ana Paula Amorim 2º Adjunto: Anabela Maria Mendes Morais
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório
AA propôs ação declarativa comum contra “A... S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de 48.225,00 euros acrescida de juros desde o acidente até total ressarcimento. Alegou para tal ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais para cujo ressarcimento indicou aquele montante na sequência de acidente de viação cuja responsabilidade imputa a veículo automóvel seguro na ré. A ré, sob a denominação de “B... S.A.” – a qual deu conta da alteração da firma “A..., S.A.” para a tal denominação e sua inscrição no registo comercial –, deduziu contestação na qual, embora aceitando a responsabilidade do condutor do veículo por si seguro na eclosão do acidente, impugnou os danos e sua extensão e os montantes indemnizatórios alegados pelo autor. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e ulterior despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Face ao falecimento do autor – ocorrido a 11/1/2022 – foi requerida a respetiva habilitação de herdeiros a 19/3/2022, tendo sido nessa qualidade habilitados BB, sua esposa, e seus filhos CC e DD, conforme decisão proferida a 8/11/2022. Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença cujo dispositivo final é o seguinte: “Nestes termos, julgando a presente ação procedente, por provada, decido: a) condenar a ré a pagar à autora a quantia global de €14.585,00 bem como juros de mora, desde a presente decisão, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento. b) condenar o autor e a ré, nas custas, na proporção do respetivo decaimento.”
De tal sentença vieram os autores habilitados interpor recurso, tendo na sequência da respetiva motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. O QUANTITATIVO DIÁRIO TEM QUE SER FIXADO ENTRE A DATA DO ACIDENTE ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO.
2. A RECORRIDA ESTÁ OBRIGADA A PROCEDER À REPARAÇÃO INTEGRAL DOS DANOS SOFRIDOS PELOS RECORRENTES, O QUE PASSA PELA REPARAÇÃO DA PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO DESDE A DATA DO ACIDENTE ATÉ AO MOMENTO EM QUE O PAGAMENTO DA INDEMNIZAÇÃO PELA PERDA TOTAL DO VEÍCULO DEVERIA TER SIDO SATISFEITO, COMO FORMA DE SE ALCANÇAR OU DE SE APROXIMAR DA RECONSTITUIÇÃO NATURAL DA SITUAÇÃO QUE EXISTIRIA SE ACASO NÃO TIVESSE OCORRIDO O ACIDENTE, NOS TERMOS DO ARTIGO 562º DO CÓDIGO CIVIL.
3. OS RECORRENTES NÃO ACEITAM QUE O QUANTITATIVO DIÁRIA SEJA FIXADO EM APENAS 5.00 EUROS.
4. OS RECORRENTES ENTENDEM SER JUSTO O VALOR DIÁRIO DE 25,00 EUROS, ENTRE A DATA DO ACIDENTE (08-07-2019) ATÉ À DISPONIBILIZAÇÃO DO PAGAMENTO DESSA MESMA INDEMNIZAÇÃO/ ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO.
5. OS RECORRENTES ENTENDEM QUE OS JUROS SÃO DEVIDOS DESDE A CITAÇÃO E ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO.” A ré apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser julgado improcedente o recurso e mantida a sentença recorrida.
Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657 nº4 do CPC. Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar: a) – apurar da indemnização pela privação do uso do veículo; b) – apurar dos termos da contabilização de juros sobre tal indemnização. ** II – Fundamentação
É a seguinte a factualidade a ter em conta (toda a da sentença recorrida, a qual não é posta em causa no recurso; corrige-se a redação de alguns pontos, sendo, quanto a alguns deles, por o autor, como os autos documentam, ter falecido ainda antes do julgamento – o que se faz usando da competência de conformação da matéria de facto também atribuída à Relação pelos arts. 663º nº2 e 607º nº4 do CPC): Factos provados A) - O autor, no dia 08 de Julho de 2019, pelas 11h e 15m, sofreu um acidente de viação, que ocorreu no distrito do Porto, concelho do Porto, freguesia ..., na estrada nacional, via pública, EN..., estrada da circunvalação, na zona do cruzamento com a Rua ... (artigo 1.º da petição inicial); B) - O referido sinistro envolveu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-JH, propriedade de EE e conduzido por este, segurado na Ré, e o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-HX-.., propriedade do autor (artigo 2.º da petição inicial). C) - O local onde se produziu o acidente é uma estrada nacional, estrada com separador, outra via, duas vias direita, no sentido de trânsito em que o acidente ocorreu (artigo 3.º da petição inicial). D)- O trânsito circula na estrada nacional número ... através de dois pares de vias de trânsito, duas delas no sentido ... – ... e outras duas no sentido ... – ... (artigo 4.º da petição inicial). E) - À data do acidente era de dia e não chovia (artigo 5.º da petição inicial). F) - O autor, condutor do veículo HX seguia pela estrada da circunvalação, EN..., sentido ... – ... (.../ ...), com semáforo verde para o autor ao atravessar o cruzamento do ..., o veículo JH, proveniente da esquerda, cortou-lhe a marcha (artigo 7.º da petição inicial). G) - Dando-se o embate entre os dois veículos (artigo 8.º da petição inicial). H) - O que originou a que o veículo automóvel ligeiro de passageiros do autor viesse a capotar (artigo 9.º da petição inicial). I) - O semáforo existente no local estava verde para o autor, pelo que podia atravessar o dito cruzamento (artigo 10.º da petição inicial). J) - O veículo segurado na ré passou o semáforo vermelho ou luz amarela intermitente tendo ido embater no veículo do autor (artigo 11.º da petição inicial). L) - O autor não teve tempo de imobilizar o seu veículo antes da colisão, sendo certo que conduzia a uma velocidade até 50Km/h (artigo 12.º da petição inicial). M)- E impossibilitou o autor de travar no espaço livre à sua frente ou de efetuar uma manobra de evasão atempada (artigo 13.º da petição inicial). N) - O condutor que conduzia o veículo automóvel com a matrícula ..-..-JH não parou na luz vermelha ou luz amarela intermitente de regulação de trânsito antes de atingir a zona regulada pelo semáforo (artigo 23.º da petição inicial). O) - O condutor que conduzia o veículo automóvel com a matrícula ..-..-JH não agiu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz (artigo 24.º da petição inicial). P) – Em virtude da colisão referida o veículo do autor sofreu vários danos (artigo 56.º da petição inicial). Q) - Desde a data do acidente que foi em 8 de julho de 2019, a ré não entregou qualquer veículo de substituição ao autor (artigo 60.º da petição inicial), que não pediu (artigo 14.º da contestação). R) - Por força do acidente e dos danos que o veículo sofreu, ficou o autor impedido de o utilizar em seu proveito, sendo que o havia adquirido para servir de seu meio de transporte, nomeadamente para se deslocar no seu dia-a-dia, para visitar familiares, de visitar os seus filhos e netos, de fazer compras, de lazer (artigo 57 e 68.º da petição inicial). S) - O não uso do veículo determinou inúmeros aborrecimentos e transtornos (artigo 71.º da petição inicial). T) - A sua idade à data do sinistro era de 76 anos (artigo 85.º da petição inicial). U) - Cotejando o relatório do exame de medicina legal, verifica-se que devido ao acidente o autor sofre de danos permanentes constantes - dores pós fratura de arcos costais -, tendo-lhe sido atribuído um défice funcional permanente de integridade físico psíquica fixável em 1 ponto (artigos 83.º e 87.º; 99.º da petição inicial). V) - O autor estava reformado (artigo 95.º da petição inicial). X) - O autor não procedeu à reparação do veículo (artigo 69.º da petição inicial). Z) - O autor, além do abalo moral produzido pelo acidente, sofreu dores no momento do embate do veículo que se prolongaram durante os tratamentos e posteriormente à recuperação física, tendo sido transportado para o Hospital (artigo 97.º da petição inicial). A)’- Era uma pessoa com alegria de viver (artigo 105.º, 133.º da petição inicial). B)’- Cotejando o relatório do exame de medicina legal, verifica-se que: «1. Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano. 2. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 09/09/2019. 3. Défice funcional temporário corresponde ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, excluindo-se aqui a repercussão na atividade profissional. 4. Défice Funcional Temporário Total, anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e ou de repouso absoluto, que se terá situado entre 08/07/2109 e 09/07/2019, entre 18/07/2019 e 28/07/2019, sendo assim fixável num período de 13 dias, correspondente a internamento hospitalar. 5. Défice Funcional Temporário Parcial, anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial, correspondente ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações, que se terá situado entre 10/07/2019 e 17/07/2019, entre 29/07/2019 e 09/09/2019, sendo fixável num período 51 dias, restante período de tempo até à estabilização do quadro clínico. 6. Quantum doloris, correspondendo à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões, fixável no grau 2 numa escala de 7 graus de gravidade crescente considerando o tipo de traumatismo, as lesões resultantes, o tratamento implementado, neste caso conservador, o período de recuperação funcional bem como o sofrimento psíquico certamente vivenciado.» (artigo 127.º da petição inicial). C)’- Nunca mais conduziu (artigo 130.º da petição inicial). D)’- Todos os dias conduzia para ir ter com os amigos, o que lhe permitia manter um bom estado mental, pois convivia com outras pessoas fora do seu ambiente familiar (artigo 145.º da petição inicial). E)’- Enquanto ia ter com os seus amigos lhe dava prazer e bem-estar psíquico e físico e posteriormente ao acidente deixou de conduzir, ficava em casa, sem conviver com os seus amigos (artigo 146.º da petição inicial). F)’- O autor, além do abalo moral produzido pelo acidente, sofreu dores no momento do embate do veículo que se prolongaram durante os tratamentos e posteriormente à recuperação física, tendo sido transportado para o Hospital (artigo 149.º da petição inicial). G)’- Sentia dor quando fazia esforços físicos, o que o obrigavas a um esforço suplementar (artigos 98.º, 151.º e 154.º da petição inicial). H)’- No momento do embate e seguintes, o autor sentiu angústia e medo, sofreu dores fortes (artigos 128.º e 158.º da petição inicial). I)’- Foi transportado de urgência para o hospital (artigo 159.º da petição inicial). * Factos não provados 1.º- Que os danos sofridos pelo veículo importaram que o mesmo não tivesse reparação possível (artigo 56.º da petição inicial). 2.º- Que o autor não tinha meios que lhe permitissem suportar o encargo correspondente ao valor da reparação (artigo 69.º da petição inicial). 3.º- Que os aborrecimentos e transtornos referidos em S) se traduziram na falta de liberdade de movimentos da sua mulher que com tal não se conformava, quando se impunha levar a mulher a qualquer sítio, onde a sua presença era indispensável, supermercados, consultas médicas, compras (artigo 71.º da petição inicial). 4.º- Que ao autor antes do acidente era um homem saudável, robusto e dinâmico (artigo 95.º da petição inicial). 5.º- As lesões sofridas e as sequelas atuais e permanentes que o autor apresentava pudessem agravar-se com o decorrer dos anos, durante toda a sua vida (artigo 101.º e 107.º da petição inicial). 6.º- Antes e à data do acidente de viação dos presentes autos, o autor era uma pessoa saudável, expedita, diligente e dinâmica (artigo 103.º da petição inicial). 7.º- E era uma pessoa calma, amante da vida, confiante, com alegria de viver, dinâmica e detentora de um temperamento afável e generoso que lhe permitia bons relacionamentos com as outras pessoas (artigo 105.º, 133.º da petição inicial). 8.º- Ainda se encontrava traumatizado (artigo 129.º da petição inicial). 9.º- Em consequência das lesões e sequelas supra referidas, o autor padecia de alterações de humor, do sono e alterações afetivas (artigo 131.º da petição inicial). 10.º- O autor, desde a data do acidente de viação dos presentes autos, tornou-se uma pessoa triste, introvertida, abalada psiquicamente, deprimida, angustiada, sofredora, insegura, receosa de que o seu estado de saúde piorasse e desgostoso da vida (artigo 134.º e 137.º da petição inicial). 11.º- O autor desde a data do acidente infeliz sentia-se desgostoso da vida, inibido e diminuído fisicamente (artigo 135.º da petição inicial). 12.º- O referido sob o ponto D)’ fazia com que se aliviasse do stress quotidiano (artigo 145.º da petição inicial). 13.º- Que quando ia ter com os seus amigos não se preocupava com os seus problemas, o que o estabilizava em termos emocionais (artigo 146.º da petição inicial). 14.º- Que o autor desde o momento do acidente se deslocou várias vezes para consultas médicas, o que lhe causou grande transtorno e angústia, pois o fazia relembrar do acidente que lhe podia ter ceifado a vida (artigo 150.º da petição inicial). 15.º- Receou pela própria vida e temeu ficar permanentemente incapacitado e, em resultado das lesões (artigos 128.º e 158.º da petição inicial). 16.º- Que por referência ao ponto I)’ tivesse sido imediatamente radiografado (artigo 159.º da petição inicial). * Analisemos então a primeira questão enunciada. A jurisprudência dos tribunais superiores, quanto à questão da privação de uso de veículo na sequência de acidente de viação, não se revelou pacífica durante largo período, dividindo-se de acordo com três diversas orientações: i) atribuição de indemnização ao lesado apenas se este fizer prova efetiva da existência de prejuízos; ii) rejeição da indemnização quando apenas se prove a paralisação do veículo; e ii) atribuição de indemnização com fundamento na simples privação de uso do veículo, independentemente da prova efetiva de danos materiais[1]. Afirmou-se, entretanto, como claramente maioritária a tese da aceitação da indemnização autónoma da privação do uso, como se sintetiza no sumário do acórdão do STJ de 25.09.2018 (processo n.º 2172/14.8TBBRG.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt): “A jurisprudência do STJ, depois de algumas divergências, passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações de privação do uso do veículo em que este é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do mesmo foi causa de despesas acrescidas”[2]. Tratando a questão, Abrantes Geraldes [in Temas da Responsabilidade Civil, I Volume, - Indemnização do Dano da Privação do Uso, 3.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2007, pág. 79 e 80] chama a atenção para o facto de a tese de negação do direito de indemnização dar por adquirido um facto que não se pode considerar assumido: o de que, na ausência de prova de prejuízos efetivos decorrentes da privação, não existiria qualquer outro dano, sendo certo que a privação do uso constitui um prejuízo de natureza patrimonial, na medida em que, ao menos, retira ao proprietário a possibilidade de fazer uso dos poderes de fruição que lhe advêm dessa qualidade jurídica durante um determinado período de tempo que, se acaso não for compensado, jamais terá retorno. O dano da privação do uso deverá assim ter em conta o facto de a livre disponibilidade do veículo constituir uma das vertentes do direito de propriedade, como se refere, entre outros, nos acórdãos da Relação de Lisboa de 20/12/2017 (proc. nº 1817/16.0T8LSB.L1-2), de 11/12/2019 (proc. nº 3088/19.7YRLSB-2) e de 12.07.2018 (proc. nº3664/15.T8VFX.L1-6), nos acórdãos da Relação de Guimarães de 15/6/2021 (proc. nº2125/18.7T8VNF.G2) e de 24/3/2022 (proc. nº2093/20.5T8VNF.G1), no acórdão da Relação de Coimbra de 6/3/2012 (proc. nº86/10.0T2SVV.C1) e no acórdão desta Relação do Porto de 10/1/2022 (proc. nº602/20.9T8AGD.P1). Tecidas as considerações que antecedem, há que reverter à situação concreta em debate nos autos. Na petição inicial, o autor, com base na equidade, pediu para indemnização do dano da privação do uso do veículo por si sofrido a quantia de 21.225,00 euros, considerando como adequado e proporcional um quantitativo diário de 25,00 euros e a contabilização de um período de tempo decorrido desde o dia do acidente e a data de 2/11/2021 (849 dias), sendo esta última correspondente a 3 dias antes da propositura da ação (esta, como se vê dos autos, deu entrada a 5/11/2021) – artigos 62º e 169º daquela peça. Na sentença recorrida, e, tanto quanto se interpreta, por recurso àquele mesmo critério da equidade (art. 566º nº3 do C. Civil, pois não foi apurado um valor exato para tal dano), fixou-se a indemnização pela privação do uso do veículo em 4.585,00 euros, tendo-se considerado como adequado para chegar a tal montante [sopesando-se, como ali se referiu, “que o autor não mais conduziu, por força do acidente”, “nem pediu veículo de substituição à ré” e que “não obstante, há que ter em conta as alíneas Q), R), S), e B)’ dos factos provados, e ainda os valores normalmente fixados, ponderando, as características do veículo do autor (marca e modelo, constante do auto de participação)”] o quantitativo diário de 5,00 euros entre a data do acidente e a data do falecimento do autor, entretanto ocorrida a 11/1/2022 (5,00 euros x 917 dias). Os recorrentes discordam e pedem que nesta sede recursória seja fixada a quantia diária de 25,00 euros até efetivo e integral pagamento. Cumpre decidir. Na decisão recorrida, considerou-se ser de balizar a responsabilização da ré pelo dano da privação de uso do veículo tendo por referência um período temporal cujo termo inicial é a data do acidente, 8/7/2019, e cujo termo final é a data do falecimento do autor, a 11/1/2022, sendo que o autor, na petição inicial, e como já se referiu, apenas o contabilizou até 2/11/2021 e deduziu pedido de indemnização condizente com a sua contabilização apenas até tal data. A ré não interpôs recurso (ainda que subordinado) do decidido, pelo que, ainda que na sentença se tenha considerado período de tempo superior, há que acatar o decidido (art. 635º nº5 do CPC). De qualquer modo, estando em causa na ação um dano apenas sofrido pelo autor, aquela data do seu falecimento seria sempre o limite possível da ocorrência do mesmo. Efetivamente, os recorrentes, enquanto herdeiros habilitados do autor, sucedem nos direitos de que aquele era titular – no caso, no direito de indemnização decorrente do dano da privação de uso do veículo a si ocasionado pelo acidente que sofreu –, mas não são por si próprios titulares do direito de indemnização por tal dano. Ora, tal dano, tendo nascido na esfera jurídica do autor, com o falecimento deste deixa obviamente de perdurar, pois o falecido deixa de o sofrer. Como tal, improcede a sua indemnização em relação a qualquer período temporal posterior àquele falecimento. Averiguemos agora da fixação do montante indemnizatório. Mostra-se provado que, por causa dos danos que o veículo sofreu (que não se sabe em concreto quais, pois nem sequer foram alegados), o autor ficou impedido de o utilizar como meio de transporte para se deslocar no seu dia-a-dia, nomeadamente a visitar familiares, a ir ter com amigos, a fazer compras e em lazer, o que lhe causou aborrecimentos e transtornos [alíneas R), S) e D)’ dos factos provados]. Passemos para segunda questão enunciada. Os recorrentes, como resulta da conclusão 5 do recurso em correspondência com o ponto 28º da motivação do mesmo[3], defendem que os juros sobre a indemnização pelo dano da privação do uso do veículo devem ser contados desde a citação e não, como fixado na sentença recorrida, a partir da data da prolação de tal sentença. Há que, quanto a tal, reconhecer-lhes razão. Não obstante aquela indemnização ter sido fixada, com base na equidade, por referência a período temporal cujo termo final (data de falecimento do autor) ocorreu depois da citação da ré, o seu montante, de 4.585,00 euros, contém-se dentro do montante líquido peticionado pelo autor na petição inicial (21.225,00 euros) e, portanto, para o qual a ré foi interpelada para pagar por via da sua citação. Assim, por força do disposto nos arts. 805º nº1 e 806º nº1 do C. Civil, são devidos juros de mora sobre aquela quantia indemnizatória desde a citação da ré. Como tal, há que revogar a sentença recorrida quanto aos termos da contabilização de juros sobre aquela quantia indemnizatória de 4.585,00 euros e fixar a contabilização de tais juros desde a citação da ré até integral pagamento.
As custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes e da recorrida na proporção do respetivo decaimento (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC). * Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC): ……………………………… ……………………………… ……………………………… ** III – Decisão
Por tudo o exposto, acordando-se em julgar parcialmente procedente o recurso, decide-se: - manter a indemnização pela privação do uso do veículo fixada na sentença recorrida (na quantia de 4.585,00 euros); - revogar a sentença quanto aos termos da contabilização de juros sobre aquela quantia indemnizatória de 4.585,00 euros e fixar a contabilização de tais juros desde a citação da ré até integral pagamento. Custas do recurso por recorrentes e recorrida na proporção do respetivo decaimento. *** Mendes Coelho Ana Paula Amorim Anabela Morais ___________________ [1] Vide Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, I Volume, - Indemnização do Dano da Privação do Uso, 3.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2007, pág. 48 e seguintes. [2] Já nesse sentido ia o acórdão do STJ de 9.07.2015 (processo n.º 13804/12.2T2SNT.L1.S19, também disponível em www.dgsi.pt), sumariado nestes termos: “A privação do uso de um veículo automóvel, em resultado de danos sofridos na sequência de um acidente de viação, constitui um dano autónomo, indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor, inerente à propriedade que o art. 1305.º do CC lhe confere, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava”. [3] Note-se que, como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, pág. 115, a propósito da delimitação objetiva do recurso, “devem ser desatendidas as conclusões que não encontrem correspondência na motivação”. |