Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | AMÉLIA CATARINO | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO DEFENSOR | ||
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Nº do Documento: | RP20220112221/21.2PAPNI-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O artigo 32º, nº 5 e 6 da CRP estabelece que a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao principio do contraditório. Na diligência de tomada de declarações para memória futura, apenas é obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público (artigo 271º, nº3, do CPP). A presença dos demais sujeitos processuais, incluindo o arguido, é facultativa. II - A urgência subjacente à norma prevista no artigo 271º, do CPP, determina, no caso concreto, em que o denunciado tem acesso fácil à casa e ao trabalho da vitima sendo um indivíduo de comportamento imprevisível e incontrolável, e considerado de risco elevado, e em que há uma enorme necessidade de proteger a vitima, a observância do princípio do contraditório fica satisfeita com a nomeação de defensor para o acto. III - Ao defensor nomeado incumbe observar e pugnar pelo respeito das garantias de defesa e da legalidade, fiscalizando e garantindo o cumprimento da lei designadamente, assegurando que se verificam os pressupostos que determinaram a inquirição, que esta decorre de acordo com as regras legais, e que o depoimento é prestado de forma livre e sem constrangimentos ou pressões de qualquer tipo. (Sumário eleborado pelo Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo 221/21.2PAPNI-A.P1 Relatora: Amélia Catarino Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto I. RELATÓRIO 1. No âmbito do processo de inquérito (Atos Jurisdicionais) n.º 221/21.2PAPNI-A.P1, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Instrução Criminal de Aveiro, Juiz 1, veio o Ministério Público, recorrer da decisão, datada de 08 de novembro de 2021, que indeferiu o pedido de tomada de declarações para memória futura à ofendida. Apresenta os fundamentos de recurso que constam da respectiva motivação, com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1. Nos presentes autos investiga-se crime de violência doméstica, apurando-se estar em causa avaliação de risco elevada e ter o denunciado características de elevada perigosidade e violência, num quadro de consumos excessivos de álcool, com desorientação e imprevisibilidade. 2. Optou o MP, face aos elementos reunidos, por não constituir ainda o denunciado como arguido e proceder ao seu interrogatório, como forma de proteger a vítima e evitar a precipitação de eventos que a colocariam em perigo, dessa forma também se pretendendo preservar prova, evitando pressão ou coação sobre a vítima para não falar (como já havia sucedido) ou mentir, tomando-se a decisão de promover a tomada de declarações para memória futura (DMF) da vítima com caráter muito urgente. 3. Sucede que o Mmo. JIC entendeu indeferir a diligência, não por motivos relacionados com a necessidade e legalidade das DMF, mas, essencialmente, porque não havia ainda arguido constituído nos autos e só sendo arguido é que poderia exercer os seus direitos, nomeadamente contraditar as DMF, sendo o contraditório, no caso dos autos e a efetivarem-se, meramente formal. 4. A constituição como arguido e interrogatório de um denunciado, na fase de inquérito, insere-se na estrita lógica de estratégia processual do MP, não competindo ao Mmo. JIC imiscuir-se nessa estratégia processual, condicionando-a e impondo um ato de inquérito, sendo que a constituição como arguido de um denunciado nada tem que ver com a diligência de prova requerida e no caso concreto pode colocar a vítima em perigo e /ou inviabilizar prova. 5. Estando os autos em fase de inquérito, e indo-se ainda proceder à constituição como arguido e interrogatório do denunciado (a menos que este o inviabilize), não se vislumbra de que forma é que este fica impedido de tomar conhecimento das DMF e de exercer todos os seus direitos processuais. 6. O "«pleno» contraditório" assume um âmbito muito mais alargado no inquérito e nas fases subsequentes, sendo algo substancialmente mais denso em direitos e robusto do que a "mera" colocação de perguntas nas DMF a que o despacho judicial está a reduzir. 7. Dependendo do conjunto das provas reunidas nos autos, pode dar-se o caso de não existirem motivos para uma constituição como arguido e, consequentemente, pode nem haver sequer uma acusação e julgamento, e, embora não seja esse o espírito legal, nunca estará arredada definitivamente a hipótese de tomada de declarações novamente à vítima, caso isso seja justificado, pelo que o despacho em crise parece antecipar questões que poderão nunca se colocar. 8. As DMF não estão dependentes de vicissitudes ou atos processuais ligados aos denunciados, suspeitos ou arguidos, mas sim, e exclusivamente, ligadas a considerações relacionadas com a vítima - embora sui generis pelo aproveitamento que delas pode ser feito na eventual fase de julgamento - pelo que é indiferente para o seu deferimento haver suspeito, denunciado ou arguido nos autos. 9. Mas mesmo assim, pelas características especiais das DMF, assegurasse o direito ao contraditório, nomeando um defensor para estar presente no ato a quem não é sequer arguido no inquérito, o que não sucederia em nenhum outro caso. 10. Não foi indicada no despacho de indeferimento qualquer norma do CPP de onde decorre que tenha de haver arguido constituído previamente para que tenha lugar a DMF, sendo ainda certo que, nos termos do CPP, podem ser feitas constituições como arguido sem que haja interrogatório ou confrontação com os factos. 11. Nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2020, entre outra decisões e autores citados neste recurso, "É ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária que preside à fase processual em curso, que compete, no âmbito dos seus poderes de direção, definir a estratégia da investigação e da oportunidade de realização do interrogatório de arguido – artigo 261 ° e seguintes do Código de Processo Penal.". 12. Se poderiam existir questões que poderiam ter sido apresentadas à vítima durante a diligência de DMF e não foram, isso já não configura qualquer violação do contraditório, tal como não viola o contraditório a sua realização, mesmo nos casos em que existe arguido constituído e convocado, mas que é afastado da sala nos termos das disposições conjugadas dos artigos 271 º. nº. 6 e 352°, ambos do CPP. 13. O requerimento de DMF efetuado pelo MP encontra-se suficiente e devidamente fundamentado, de facto e de direito, tendo o despacho recorrido exigido um requisito que a lei não impõe nem faz depender para a realização da diligência, não fazendo o CPP qualquer distinção dos motivos pelos quais não existe arguido constituído (não ser encontrado, desconhecido ou outra qualquer situação que se prenda com estratégia processual como é o caso deste inquérito), pelo que não poderá o Mmo. JIC distinguir o que a lei não distingue. 14. Ao decidir como decidiu, o Mmo. JIC violou o princípio da autonomia do Ministério Público, previsto no artigo 219º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e ainda o artigo 32º n. º5 desse diploma, bem como violou os artigos 48º, 262º, n.º 1, 263º, n.º 1, 267º, 268º, n.º 1, alínea f); 271º, n.ºs 1, todos do CPP e ainda o disposto no artigo 33.0 da Lei n.º 112/2009. 15. Devendo, em consequência, ser o despacho colocado em crise revogado e substituído por outro que determine a realização muito urgente da requerida tomada de declarações para memória futura da vítima, sem necessidade de ser levada a cabo, previamente, pelo MP, qualquer constituição como arguido e muito menos o seu interrogatório.” Admitido o recurso, não foi apresentada resposta. O Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto nesta Relação, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso e pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho que determine a realização da diligência de declarações para memória futura da ofendida, considerando a situação de facto evidenciada no processo e os indicadores de perigosidade do arguido indiciam que tal diligência é pertinente e está inteiramente justificada. No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve qualquer resposta. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. II. FUNDAMENTAÇÃO O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP. In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, reconduz-se a saber se deve ou não ser deferida a tomada de declarações para memória futura da ofendida nos termos requeridos pelo Ministério Público. A decisão recorrida, datada de 08.11.2021, tem o seguinte teor, que se transcreve: “Vem o Ministério Público requerer a tomada de declarações para memória futura à ofendida. Alega, além do mais, que «o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem configura a sua verdadeira trave mestra, estabelecendo que todos os cidadãos têm direito a um processo equitativo, sendo que, na perspectiva das vítimas, também devem ser observadas as garantias máximas colocadas à disposição pelos ordenamentos jurídicos nacionais. E uma dessas garantias, a nosso ver, face ao carácter não exaustivo dos direitos conferidos por aquele artigo, passa por dar a possibilidade de os ofendidos e vítimas de crimes serem ouvidos, mesmo que, por circunstâncias que lhes são alheias ou não, se venha a prever que tal possa não suceder ou de forma a aproveitar ao máximo eventuais conhecimentos que possuam e possam transmitir para os autos e para densificação da decisão a tomar no inquérito. Sendo certo ainda que essa mesma inquirição pode servir interesses não só das vítimas, mas também dos arguidos que, assim, podem contraditar, ao vivo e por intermédio de defensor, as declarações que possam vir a ser prestadas por quem, no futuro, as possa não prestar ou prestar da mesma forma (por deterioração da memória, morte, etc.)». Concordamos com o Ministério Público quando defende a necessidade de um processo justo e equitativo -diríamos, materialmente justo e equitativo. Já discordamos, no que ao caso concreto diz respeito, que esse processo justo esteja garantido ao aqui denunciado. Com efeito, tendo o Ministério Público optado, até ao momento, pela não constituição como arguido do denunciado -decisão absolutamente legal do Ministério Público -, não vemos como será possível ao Defensor nomeado para o acto «contraditar ao vivo» as declarações da ofendida. Para o Defensor a nomear para o acto o processo apresentar-se-á como uma novidade absoluta. Pergunta-se então como poderá o Defensor contraditar o que não conhece nem pode conhecer. Só com a constituição do denunciado como arguido poderá este constituir mandatário ou pedir a nomeação de um Defensor, conferenciar com esse Defensor, apresentar-lhe a sua versão dos factos, carrear provas para os autos e alertar para contradições, inverosimilhanças ou lacunas dos depoimentos até então prestados pela ofendida ou testemunhas. Sem esta possibilidade, a tarefa do Defensor na diligência de tomada de declarações para memória futura servirá para sossegar consciências e garantir, apenas formalmente, um «pleno» contraditório. Um contraditório apenas formal em diligência de antecipação da prova a produzir em julgamento coloca sobre o sistema de justiça um risco intolerável de prolação de decisões injustas. Na prática, o Defensor nomeado para o acto pouco poderá fazer na defesa dos interesses do denunciado que, nisto estamos todos de acordo, é também sujeito de direitos, alguns com garantia constitucional. Em casos como o presente, em que o denunciado é pessoa perfeitamente identificada, com morada certa, entendemos que a diligência de tomada de declarações para memória futura tem, obrigatoriamente, de ser precedida da sua constituição como arguido. Só assim não será se a sua constituição como arguido não for possível, e por razões objectivas constantes do processo. E não se diga que a tomada de declarações para memória futura em momento prévio à constituição como arguido do denunciado é fundamental à protecção da vítima. Com efeito, sendo de prever que a constituição como arguido pode, de alguma forma, colocar a vítima em risco, poderá/deverá sempre o Ministério Público, no uso de competência própria, proceder à sua detenção para sujeição a interrogatório e aplicação das medidas de coacção tidas como necessárias e suficientes para afastar qualquer perigo para a vítima. Pelo exposto, porque a tomada de declarações para memória futura em momento anterior à constituição do denunciado como arguido obsta a que o mesmo possa constituir mandatário ou solicitar a nomeação de um Defensor, conferenciar com esse Defensor, apresentar-lhe a sua versão dos factos, carrear provas para os autos e alertar para contradições, inverosimilhanças ou lacunas dos depoimentos até então prestados, entendemos que comprime de forma inaceitável o direito do denunciado a um processo materialmente justo e equitativo. Por esse motivo, indefere-se o promovido.” Declarações para memória futura Sob a epigrafe “declarações para memória futura”, rege o disposto no art. 271°, n°. 1 do Código de Processo Penal, segundo o qual “em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, trafico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”. Nos termos desta norma é possível, na fase de inquérito, com derrogação do principio da imediação, produzir prova oral válida em julgamento. Existindo situações em que esta diligência é obrigatória (artº 271º, nº2, do CPP), e outras em que poderá ser efectuada sob impulso, mormente, do Ministério Público, em casos de vitimas mais vulneráveis de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual ou tráfico de pessoas (artº 271º, nº1, 294º, do CPP, artº 33º, da lei 112/2009, de 16.09, artº 28º da Lei 93/99 de 14 de julho e artº 24º da Lei nº130/2015, de 04 de Setembro). Especificamente para os crimes de violência doméstica, como é o caso do crime que os autos indiciam, as declarações para memória futura estão previstas no artigo 24º da Lei nº 130/2015, de 04/09 e no artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16/09. Conforme se extrai do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 20202: "É ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária que preside à fase processual em curso, que compete, no âmbito dos seus poderes de direção, definir a estratégia da investigação e da oportunidade de realização do interrogatório de arguido - artigo 261 º e seguintes do Código de Processo Penal.". O Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura da vítima com caráter muito urgente, considerando que a estratégia processual seria, após a realização dessa diligência, na qual seriam condensados os factos em conjunto, determinar a eventual detenção do suspeito, fora de flagrante delito, por forma a sujeitá-lo a medidas de coação, sendo aí constituído arguido, momento em que este podia dar a sua versão dos factos, querendo. Fê-lo por resultar da documentação junta aos autos que a avaliação de risco é elevada, que o denunciado é muito agressivo e violento, num quadro de consumos excessivos de álcool, pautando-se pela desorientação e imprevisibilidade. Foi ainda considerado o facto de o denunciado ter acesso às chaves de casa da vítima, dos comandos da garagem e ainda às chaves do seu local de trabalho pelo que, a constituição como arguido antes da tomada de declarações para memória futura poderia precipitar acontecimentos e factos que colocariam a vítima em perigo. Encontra-se, pois, plenamente fundada e justificada a tomada de declarações para memória futura prévia à constituição do denunciado como arguido, atenta a urgente necessidade de protecção da vitima, prevenindo a vitimização secundária, e para evitar que a vitima sofra pressões para não depor ou depor em determinado sentido. Na verdade, a vitima além de sofrer as consequências diretas da conduta do denunciado ainda teve de ir à policia denunciar o crime, com o tempo que demora a denúncia de um crime deste tipo, numa altura em que se encontra muito fragilizada, passar por um exame do corpo para apurar as lesões, prestar depoimento em juízo e estar à disposição do Estado para que o autor do crime seja punido. Considerando tudo isso, a Lei nº130/2015, de 04 de Setembro, veio aprovar o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, e estabelecer normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade substituindo a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001. Esta lei aditou ao Código Processo Penal o artigo 67°-A, que no n° 1, b) define como vítimas especialmente vulneráveis “a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”. E, o n° 3 estabelece que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.° 1”. Por seu turno o artigo 1°, j), do Código Processo Penal define como criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos, onde se integra o crime de violência doméstica, cuja moldura penal abstrata máxima é igual a 5 anos de prisão - art. 152°, n° 1, do Código Penal. Concluindo, as vítimas de violência doméstica têm o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis. E, a vítima especialmente vulnerável tem o direito, enquanto medida especial de protecção, à prestação de declarações para memória futura (artigo 21º, alínea d) do Estatuto da Vitima), podendo, nos termos do artigo 24º, nº1, ser ouvida, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal, a requerimento da própria vitima ou do Ministério Público, tendo o direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões (artigo 17º, nº 1 do Estatuto). No caso concreto o senhor JIC, indeferiu a tomada de declarações para memória futura por entender “que a realização desta diligencia, em momento anterior à constituição do denunciado como arguido, obsta a que o mesmo possa constituir mandatário ou solicitar a nomeação de um Defensor, conferenciar com esse Defensor, apresentar-lhe a sua versão dos factos, carrear provas para os autos e alertar para contradições, inverosimilhanças ou lacunas dos depoimentos até então prestados, comprimindo de forma inaceitável o direito do denunciado a um processo materialmente justo e equitativo.” É contra esta decisão que o recorrente se insurge e, salvo do devido respeito, com razão. Efectivamente, a jurisprudência maioritária defende que a não constituição como arguido do denunciado não é uma condição para o deferimento da tomada de declarações para memória futura e não configura violação do principio do contraditório, porquanto o arguido, em julgamento, terá a possibilidade de contraditar e/ou confrontar o responsável pela produção das declarações, in casu a vitima. O artigo 32º, nº 5 e 6 da CRP estabelece que a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar estão subordinados ao principio do contraditório, e que a lei define os casos, em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento. É o caso da diligencia de tomada de declarações para memória futura, em que apenas é obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público (artigo 271º, nº3, do CPP). A presença dos demais sujeitos processuais, incluindo o arguido, na diligência de inquirição para memória futura, é facultativa. Para o Conselheiro Henriques Gaspar relator do Acórdão do STJ de 07.11.07, disponível em www.dgsi.pt, “o princípio do contraditório tem uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a parte adversa).” Na verdade, de acordo com o artigo 271º, nº 8, do CPP “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”. Para além de que, nos termos do artigo 356º, nº 2, a), do CPP é permitida a leitura de declarações para memória futura tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º. A urgência subjacente à norma prevista no artigo 271º, do CPP, determina, no caso concreto, que a prova antecipada possa ter lugar previamente à constituição de arguido para proteger a vitima. Entendimento este que segue a jurisprudência do Acórdão da Relação de Lisboa, de 04.05.2017, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que “Mesmo com a actual redacção do art.º 271º do CPP, a tomada de declarações para memória futura pode ser feita, verificadas determinadas circunstâncias (nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste) antes de haver Arg. constituído, sem que isso ponha irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, desde que ao Arg. seja posteriormente dada a real possibilidade de contraditar e/ou confrontar o autor de tais declarações.” Na verdade, e no caso concreto, tendo o denunciado acesso fácil à casa e ao trabalho da vitima sendo um individuo de comportamento imprevisível e incontrolável, e considerado de risco elevado, há uma enorme necessidade de proteger a vitima, pelo que a observância do princípio do contraditório fica satisfeita com a nomeação de defensor para o acto. Ao defensor nomeado, cuja presença é sempre obrigatória, incumbe observar e pugnar pelo respeito das garantias de defesa e da legalidade, fiscalizando e garantindo o cumprimento da lei, designadamente assegurando que se verificam os pressupostos que determinaram a inquirição e que esta decorre de acordo com as regras legais e que o depoimento é prestado de forma livre e sem constrangimentos ou pressões de qualquer tipo. O defensor nomeado pode e deve assegurar-se da coerência do depoimento, fazendo as perguntas que entender por pertinentes e sendo tais declarações tidas em consideração no julgamento o contraditório poderá ser exercido na sua plenitude. Seguindo as palavras de António Gama no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.07.2005, disponível em www.dgsi.pt, “É indiscutível que não estando o arguido presente na diligencia Não estando o futuro arguido presente vê restringido indiscutivelmente um seu direito. Agora essa restrição não é, nem desproporcionada, nem intolerável e o certo é que não há outra maneira de acautelar o interesse público da realização da justiça e a descoberta da verdade, quando urge, como no caso, levar a cabo a inquirição mesmo sem que o inquérito corra contra pessoa identificada. A parcela dos direitos do arguido que são afectadas é mínima, o seu direito ao contraditório é afectado numa dimensão menos relevante, sem qualquer cinismo, quase marginal atendendo até a que não se sabe quem é o arguido, pelo que é justo e proporcionado que se restrinjam para dar prevalência ao interesse público da descoberta da verdade e punição dos culpados. O momento essencial do contraditório fica intocado, pois ocorre na audiência de discussão e julgamento. E se é verdade que o não assistir ao depoimento é uma desvantagem, exercer em audiência de julgamento o contraditório a um depoimento para memória futura tem, além das desvantagens da falta de imediação, da ausência da oralidade, etc. comuns à acusação, à defesa e ao próprio tribunal, uma indiscutível vantagem: permite uma defesa organizada e estruturada, o depoimento é conhecido e definitivo, não é uma surpresa, o que não acontece com o depoimento acabado de fazer em audiência de julgamento, e convém lembrar que o contra interrogatório é seguido à inquirição pela acusação, art.º 348º n.º 4 do Código Processo Penal. Depois, e isso para nós releva indiscutivelmente, não se pode esquecer que a intervenção do juiz na fase de inquérito do actual processo penal e no concreto caso de declarações para memória futura caracteriza-se pela tutela das liberdades, alheando-se da actividade investigativa. Ao juiz na fase do inquérito estão reservadas funções jurisdicionais típicas de guardião dos direitos fundamentais dos cidadãos, surgindo aqui na veste de juiz das liberdades. Daí que não é despicienda esta função do juiz como garante dos direitos dos arguidos.” A actividade do juiz de instrução, tal como o preceito se encontra desenhado, é uma actividade vinculada de controlo formal dos pressupostos e não da verificação de qualquer outro elemento formal ou substantivo. Não cabe, pois, nos poderes do juiz de instrução, por a lei não lho permitir, se é adequado ou inadequado requerer a tomada de declarações para memória futura nestas situações. Concluindo, é a própria lei que confere, à vitima do caso dos autos, o estatuto de vitima especialmente vulnerável, e a quem o Estatuto da Vitima confere a medida especial de protecção que consiste na prestação de declarações para memória futura. Pelo que, em observância do imperativo de prevenção da vitimização de vitimas especialmente vulneráveis, e de revitimização de vítimas especialmente vulneráveis expressos pela Lei 130/2015, de 04 de setembro, estatuto da vítima, deve ser acolhida a pretensão do Ministério Público, revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que designe data para a tomada de declarações para memória futura da ofendida. III. DECISÃO Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida a qual deve ser substituída por outra que designe dia e hora para a tomada de declarações para memória futura da ofendida, com a celeridade que a situação exige, conforme requerido pelo Ministério Público. Sem custas. Porto, 12 de janeiro de 2022 Amélia Catarino Maria Joana Grácio (Elaborado pela relatora e revisto por ambas as signatárias - artigo 94º, n.º 2, do CPP) |