Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17090/24.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: DECISÃO SURPRESA
ATUALIZAÇÃO DE RENDA
ADMINISTRAÇÃO DAS PARTES COMUNS DO PRÉDIO
Nº do Documento: RP2025101417090/24.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o tribunal recorrido dado a conhecer às partes que tencionava proferir decisão de mérito e ordenado a notificação das mesmas para exercerem o contraditório e tendo a R. percebido que o exercício do contraditório por escrito era uma alternativa à discussão em sede de audiência prévia, não se tendo oposto a tal agilização do processado, não há decisão-surpresa.
II - Se o tribunal recorrido conheceu do mérito da causa no despacho saneador quando o estado do processo o não permitia por haver ainda factos controvertidos relevantes segundo as várias soluções plausíveis de direito, haverá erro de julgamento e não nulidade da decisão.
III - A redação da cláusula sexta do contrato de arrendamento é diferente da redação do art. 24º NRAU, mas o sentido é semelhante: o coeficiente de atualização aplicável é o apurado e publicado pelo Instituto Nacional de Estatística.
IV - É de aplicar o art. 270º-E do C.S.C., com as devidas adaptações, à administração das partes comuns do prédio quando todas as frações autónomas pertencem à mesma pessoa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 17090/24.3T8PRT.P1

Sumário
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Na presente ação declarativa que A..., Unipessoal, Lda move contra B... - Sucursal em Portugal., a R. interpôs recurso do despacho saneador pelo qual foi julgada a ação procedente e improcedente o pedido reconvencional e, em consequência, foi declarado:
«a) Que a atualização da renda ao abrigo da cláusula sexta do contrato de arrendamento em vigor entre as partes deve ser feita de acordo com os coeficientes legais de atualização da renda apurados pelo Instituto Nacional de Estatística publicados em Diário da República, e, por via disso, que os novos montantes de renda exigidos pela Ré à Autora, desde a primeira missiva de atualização datada de 23/12/2022, não são devidos.
b) Que os montantes exigidos pela Ré à Autora a título de despesas de conservação e fruição das partes comuns, não havendo nenhuma deliberação da Assembleia de Condóminos a aprová-las, não são devidos.»
Em reconvenção, o R. tinha pedido que fosse “reconhecido e declarado o direito da ré a:
a) Actualizar a renda, ao abrigo da Cláusula Sexta do Contrato de Arrendamento para Fins não Habitacionais, de acordo com a aplicação do Índice de Preços no Consumidor, sem habitação, e não de acordo com os coeficientes legais de actualização da renda publicados em Diário da República.
b) Ser paga pela autora pelo valor das despesas de conservação e fruição das partes comuns conforme contratualmente estipulado e sem depender de deliberação da assembleia de condóminos e da apresentação prévia de justificação, orçamentos ou contratos em que as mesmas se baseiem.”
Na alegação de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1. A sentença recorrida enferma de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por ter sido proferida sem a realização da audiência prévia obrigatória, em violação dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b), e 593.º, n.º 1, do mesmo diploma, e sem que as partes tivessem sido previamente notificadas da sua dispensa ou não realização, o que configura uma decisão surpresa, vedada pelo artigo 3.º, n.º 3, do CPC, e uma preterição de formalidade essencial com influência na decisão da causa, nos termos do artigo 195.º do CPC.
2. A decisão recorrida é igualmente nula por ter conhecido do mérito da causa sem permitir a produção da prova testemunhal requerida pela Recorrente - que não foi rejeitada expressamente pelo Tribunal a quo -, essencial à reconstituição da vontade real das partes, violando os princípios do contraditório, da livre apreciação da prova e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 410.°, 411.° do CPC e artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.
3. A "interpretação" contratual efectuada pelo Tribunal a quo desconsiderou os elementos subjectivos e contextuais da formação do contrato, violando os artigos 236.º a 239.º do Código Civil, ao não apurar a vontade real das partes nem admitir prova para esse efeito.
4. O Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto e na respectiva subsunção ao direito, ao desconsiderar elementos essenciais constantes dos autos, nomeadamente a prática contratual, a prova testemunhal requerida e a interpretação sistemática das cláusulas contratuais, o que impõe a revogação da decisão.
5. A Cláusula Sexta do contrato de arrendamento estipula expressamente que a actualização da renda será feita com base no índice de Preços no Consumidor, sem habitação, publicado pelo INE, nos termos do artigo 1077.º, n.º 1, do Código Civil, afastando o regime supletivo previsto no artigo 24.º da Lei n.º 6/2006.
6. A decisão recorrida incorre em erro de julgamento ao aplicar o regime legal supletivo, ignorando a autonomia privada e a literalidade da cláusula contratual, em violação artigo 405.º do Código Civil.
7. A Cláusula Nona do contrato prevê a imputação ao arrendatário das despesas com conservação e fruição das partes comuns.
8. A inexistência de assembleia de condóminos, por todas as frações pertencerem à Recorrente, não impede a exigibilidade das despesas contratualmente previstas, sob pena de impor ao senhorio um sacrifício patrimonial desproporcionado.
9. A decisão recorrida viola os princípios da boa-fé (art. 762.º do CC) e do equilíbrio contratual, ao impedir a Recorrente de ser ressarcida por encargos efectivamente suportados e contratualmente previstos.
10. A sentença recorrida, ao exigir uma deliberação da assembleia de condóminos como condição para a exigibilidade das despesas, restringe o exercício pleno do direito de propriedade da Recorrente, consagrado no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, ao impedir a recuperação de encargos legítimos e contratualmente previstos, sem fundamento legal.
11. A interpretação acolhida pelo Tribunal a quo conduz a um enriquecimento da Recorrida ao permitir-lhe beneficiar das partes comuns sem suportar os encargos correspondentes.
12. Por todo o exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando- -se a sentença recorrida e sendo proferida nova sentença que declare o direito da Recorrente a:
i. Actualizar a renda, ao abrigo da Cláusula Sexta do Contrato de Arrendamento para Fins não Habitacionais, de acordo com a aplicação do índice de Preços no Consumidor, sem habitação, e não de acordo com os coeficientes legais de actualização da renda publicados em Diário da República.
ii. Ser paga pela Recorrida pelo valor das despesas de conservação e fruição das partes comuns conforme contratualmente estipulado e sem depender de deliberação da assembleia de condóminos e da apresentação prévia de justificação, orçamentos ou contratos em que as mesmas se baseiem.»
A recorrida respondeu à alegação da recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
No despacho de admissão do recurso, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre a arguição da nulidade da sentença da seguinte forma:
“Compulsados os autos considera-se não incorrer a sentença proferida nas invocadas nulidades.
Nos autos foi proferido despacho - Referência: 468195192 – constatando que dos mesmos resultavam os elementos para que seja proferida decisão de mérito e notificando-se expressamente as partes ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3 do CPC.”
São as seguintes as questões a decidir:
- da nulidade da sentença;
- da interpretação da cláusula sexta do contrato; e
- da interpretação da cláusula nona do contrato.
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Na decisão recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
«1. A Autora celebrou, em 22/04/2022, um contrato de arrendamento com as sociedades C..., Lda. e D..., S.A.
2. Por meio desse contrato, as aludidas sociedades deram de arrendamento à Autora a fração autónoma E, correspondente ao armazém designado pelo n.º ..., no rés-do-chão e sobreloja, com ligação interior, e um aparcamento na frente, com 91 metros quadrados, do prédio sito na Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, registado na Conservatória do Registo Predial do Porto com o número ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana com o artigo ....
3. O contrato teve início de vigência em 1/11/2020 com a ocupação do local arrendado pela Autora ao abrigo do contrato promessa de arrendamento celebrado entre as partes.
4. Da cláusula Segunda do contrato de arrendamento consta:
“(Duração) 1. Arrendamento é celebrado pelo prazo inicial de 8 (oito) anos, doravante o "Período Inicial", o qual se considera que teve início em 01.11.2020 com a ocupação do local Arrendado pela Arrendatária ao abrigo do Contrato Promessa de Arrendamento referido no Considerando C), doravante "Data de Início", renovável sucessivamente por sucessivos períodos de 5 (cinco) anos, caso nenhuma das Partes se oponha à sua renovação mediante comunicação escrita enviada à outra Parte com uma antecedência mínima de 180 (cento e oitenta) dias relativamente ao termo do Período Inicial ou ao termo de qualquer uma das eventuais renovações do Contrato de Arrendamento. 2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, as Senhorias não poderão denunciar o Contrato de Arrendamento, seja durante o Período Inicial, seja durante as eventuais renovações do Contrato de Arrendamento, sem prejuízo do direito de resolver o contrato, em caso de violação, de acordo com o estabelecido na Cláusula Décima Segunda. 3. Sem prejuízo do disposto no número 4 da presente Cláusula, a Arrendatária não pode denunciar o Contrato de Arrendamento antes do fim do seu prazo, sob pena de ser responsável pelo pagamento de todas as rendas mensais que se vençam até ao fim do Período Inicial ou de qualquer das suas renovações, conforme o caso. 4. Decorridos os primeiros cinco anos de duração do presente Contrato de Arrendamento, a Arrendatária pode denunciá-lo através do envio de uma carta registada com aviso de receção às Senhorias com 120 (cento e vinte dias) de antecedência face à data em que essa denúncia deva produzir efeitos jurídicos. 5. O exercício do direito de denúncia previsto no número anterior implicará o pagamento pela Arrendatária às Senhorias de uma compensação no valor de € 60.000,00 (sessenta mil euros) num prazo de 30 (trinta) dias após a receção pelas Senhorias da referida denúncia. 6. A Arrendatária será responsável por efetuar o registo do presente contrato nos termos da alínea m), do n.º 1, do artigo 2.º do Código do Registo Predial.
5. Como contrapartida do arrendamento, a Autora obrigou-se a pagar às senhorias, na proporção de metade para cada uma, a renda mensal de € 15.030,00 (quinze mil e trinta euros) até ao oitavo dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito.
6. Da cláusula sexta consta: (Atualização da Renda) “A atualização da Renda será efetuada anualmente um ano após a Data de Inicio e as atualizações posteriores no dia 1 (um) do mesmo mês dos anos seguintes, de acordo com a aplicação do índice de Preços no Consumidor, sem habitação, correspondente aos últimos 12 meses anteriores, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística ou entidade que o substitua, nos termos da atual redação do número 1, do artigo 1077º, do Código Civil, devendo as Senhorias comunicar à Arrendatária, com a antecedência mínima de 30 (trinta) dias, o coeficiente de atualização e a nova renda dele resultante.”
7. Da cláusula nona do contrato de arrendamento consta: Cláusula Nona (Obrigações Específicas da Arrendatária) “1. A Arrendatária compromete-se a: a) Pagar a Renda atempadamente e sem atrasos nos termos da Cláusula Quarta; b) Executar e pagar as obras de sua responsabilidade previstas no número 2 da Cláusula Oitava; c) A Arrendatária pagará diretamente à Senhoria as despesas mensais relativas à conservação e fruição das partes comuns (despesas de condomínio) referentes ao local Arrendado, que atualmente correspondem a € 150,30 (cento e cinquenta euros e trinta cêntimos), acrescidas de IVA à taxa legal em vigor, no prazo de oito dias a contar da correspondente fatura. As despesas serão definidas anualmente nos termos de deliberação da assembleia de condóminos; d) Contratar os serviços de fornecimento de água, gás, eletricidade, comunicações e outros serviços, e pagá-los atempadamente, ainda que faturados em data posterior ao termo do Contrato de Arrendamento mas respeitante a período da sua vigência, e cumprir com os referidos contratos. 2. Será da exclusiva responsabilidade da Arrendatária a obtenção das licenças e autorizações inerentes à prossecução da sua atividade. 3. Será da exclusiva responsabilidade da Arrendatária a obtenção das licenças e autorizações necessárias, designadamente das entidades públicas, para a execução de obras e reparações de sua iniciativa e responsabilidade. Caso tais licenças e autorizações não sejam obtidas, a Arrendatária: a) Assumirá integralmente a responsabilidade pelos eventuais custos, danos e perdas incorridos pela Senhoria em resultado da falta das mesmas, nomeadamente (mas sem limitar) se as autoridades impuserem qualquer coima ou penalidade à Senhoria em resultado de tal facto; b) Removerá tais obras no final do Contrato de Arrendamento (ou imediatamente após tal ter sido solicitado pelas autoridades competentes) de forma a que o local Arrendado seja entregue à Senhoria nos termos em que tenha sido licenciado.”
8. Pela AP n.º ... de 30/12/2021, foi registada a aquisição do direito de propriedade pela Ré, por compra e venda, sobre a fração autónoma E.
9. Após a referida aquisição, a Ré, na qualidade de nova senhoria, enviou uma missiva à Autora com data de 23 de dezembro de 2022, a comunicar que iria proceder à atualização da renda do imóvel acima descrito, com efeitos a partir de março de 2023.
10. Por carta datada de 18 de janeiro de 2023, a Autora comunicou à Ré que não poderia aceitar a atualização da renda nos termos propostos, por entender que a fórmula de cálculo utilizada pela Ré carece de sustentação legal e contratual.
11. No dia 26/12/2023, a Ré enviou um e-mail à Autora, dando conta de que havia sido implementado um sistema de gestão das áreas comuns do edifício sito na Rua ..., em que se insere a fração E e contratado um Property Manager, pelo que passaria a faturar as despesas relacionadas com os serviços comuns do edifício, em função do orçamento anual.
12. Relativamente a 2023, a Ré imputada à fração E, de que a Autora é arrendatária despesas que perfazem a quantia de 9.501,23 €.
13. A Ré emitiu e enviou à Autora as seguintes faturas relativas às despesas de manutenção e fruição das partes comuns do prédio sito na Rua ... • Fatura n.º ..., emitida em 27/02/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de abril de 2024, no valor de 791,76 € • Fatura n.º ..., emitida em 20/03/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de maio de 2024, no valor de 791,78 € • Fatura n.º ..., emitida em 26/04/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de junho de 2024, no valor de 791,78 €; • Fatura n.º ..., emitida em 31/05/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de Julho de 2024, no valor de 791,78 €; • Fatura n.º ..., emitida em 27/06/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de agosto de 2024, no valor de 791,78 €; • Fatura n.º ..., emitida em 30/07/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de setembro de 2024, no valor de 791,78 €; • Fatura n.º ..., emitida em 27/08/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de Outubro de 2024, no valor de 791,78 €. • Fatura n.º ..., emitida em 04/09/2024, respeitante às despesas de conservação e fruição das partes comuns no mês de novembro de 2024, no valor de 791,78 €.
14. A Autora solicitou à Ré orçamentos e/ ou contratos justificativos das despesas faturadas.
15. A Ré é a única proprietária do prédio sito na Rua ....
16. O prédio está constituído em propriedade horizontal, sendo composto por oito frações autónomas (A, B, C, D, E, F, G e H).
17. Não foi realizada assembleia de condóminos.»
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Com interesse para a decisão, importa ainda ter presente o seguinte:
1 - No dia 6 de fevereiro de 2025, foi proferido o seguinte despacho:
“Compulsados os autos constata-se que dos mesmos resultam os elementos para que seja proferida decisão de mérito. Nestes termos determina-se a notificação das partes nos termos e para os efeitos do artigo 3º n.º 3 do CPC.”
2 - Notificada nos termos do referido despacho, a R. apresentou requerimento no qual se pode ler:
«15. Considera este Tribunal que “Compulsados os autos constata-se que dos mesmos resultam os elementos para que seja proferida decisão de mérito.”
16. Assim, pode a Ré exercer o contraditório, ou seja, discutir de facto e direito o caso sub judice, conforme o poderia fazer caso tivesse sido agendada audiência prévia para esse efeito conforme preceitua a alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.»
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Nas conclusões recursivas, pode ler-se:
“A sentença recorrida enferma de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por ter sido proferida sem a realização da audiência prévia obrigatória, em violação dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b), e 593.º, n.º 1, do mesmo diploma, e sem que as partes tivessem sido previamente notificadas da sua dispensa ou não realização, o que configura uma decisão surpresa, vedada pelo artigo 3.º, n.º 3, do CPC, e uma preterição de formalidade essencial com influência na decisão da causa, nos termos do artigo 195.º do CPC.”
O art. 195º nº 1 do C.P.C. dispõe o seguinte:
“A prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
“É postulado tradicional, que o próprio Supremo tem várias vezes proclamado: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se (…). A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo” (Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 424)
“A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”.
“Se a justificação dos postulados é fácil, nem sempre é fácil fazê-los funcionar com segurança. Há casos nítidos em que a aplicação dos referidos princípios não dá lugar a embaraços.”
“Há outros casos em que o funcionamento concreto dos postulados jurisprudenciais levanta dúvidas. São os casos em que por trás da irregularidade cometida está um despacho, mas este não contem uma pronúncia expressa sobre a irregularidade” (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, pág. 507).
“… são possíveis três situações bastante distintas:
- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso - como aliás resulta expressamente da passagem transcrita de Alberto dos Reis -, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso.”
“No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões”.
“O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida - hipótese em que o recurso é procedente - ou não há vícios da decisão impugnada - situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão- -surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula - isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer - ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual - situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.” - Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 28/01/2019, Jurisprudência 2018 (163) acessível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html
Nos termos do art. 3º nº 3 do C.P.C., “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
“O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efetiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa” (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Volume I, anotação ao art. 3º).
“… a regra do contraditório deixa de estar exclusivamente associada ao direito de defesa, no sentido negativo de oposição à actuação processual da contraparte, para passar a significar um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Acórdão do Tribunal Constitucional 19/2010).
O art. 591º nº 1 al. b) do C.P.C. é uma manifestação do princípio do contraditório.
Este artigo dispõe o seguinte:
“Concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada… a facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.
No caso dos autos, o tribunal recorrido deu a conhecer às partes que tencionava proferir decisão de mérito e deu-lhes a possibilidade de exercerem o contraditório, mas não o fez mediante a convocação de audiência prévia, mas ordenando a notificação das partes.
O tribunal recorrido não referiu expressamente que, se não houvesse oposição, conheceria do mérito da causa sem convocação da audiência prévia, mas do requerimento que a R. apresentou na sequência de tal notificação resulta que a mesma percebeu que o exercício do contraditório por escrito era uma alternativa à discussão em sede de audiência prévia e não se opôs a tal agilização do processado.
Não há, pois, decisão-surpresa (cf. ponto VI do sumário do acórdão do STJ proferido a 16 de dezembro de 2021, no processo 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
Nas conclusões recursivas, pode ler-se ainda:
“A decisão recorrida é igualmente nula por ter conhecido do mérito da causa sem permitir a produção da prova testemunhal requerida pela Recorrente – que não foi rejeitada expressamente pelo Tribunal a quo –, essencial à reconstituição da vontade real das partes, violando os princípios do contraditório, da livre apreciação da prova e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 410.º, 411.º do CPC e artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.”
A apreciação dos requerimentos probatórios e a fase de instrução ficaram prejudicadas pelo conhecimento do mérito da causa no despacho saneador.
Conforme resulta do art. 595º nº 1 al. b) - 1ª parte - do C.P.C., é possível conhecer do mérito da causa no despacho saneador “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas”.
Se o tribunal recorrido conheceu do mérito da causa no despacho saneador quando o estado do processo o não permitia por haver ainda factos controvertidos relevantes segundo as várias soluções plausíveis de direito, haverá erro de julgamento e não nulidade da decisão.
Improcede, pois, a arguição da nulidade da decisão recorrida.
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Nos termos do art. 236º do C.C., “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, sendo que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
Conforme resulta do art. 237º do C.C., “em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.
O art. 238º do C.C. dispõe o seguinte:
“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”
“… a interpretação das cláusulas contratuais só envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito, quando, no desconhecimento de tal vontade, se deve proceder de harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 236º do Código Civil” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 4 de junho de 2002, no processo 02A1442).
A recorrente afirmou que o depoimento das testemunhas por si arroladas era essencial para apurar aquela que foi a vontade da parte na data da celebração do contrato de arrendamento.
Contudo, conforme resulta do art. 341º do C.C., “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos” e, na alegação recursiva, a recorrente não especificou quaisquer factos alegados pelas partes nos respetivos articulados relevantes para a reconstituição da vontade real das partes.
Da cláusula sexta do contrato de arrendamento consta que “a atualização da Renda será efetuada…, de acordo com a aplicação do índice de Preços no Consumidor, sem habitação, correspondente aos últimos 12 meses anteriores, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística ou entidade que o substitua, nos termos da atual redação do número 1, do artigo 1077º, do Código Civil”.
O art. 1077º do C.C., sob a epígrafe “atualização de rendas”, dispõe o seguinte:
“1 - As partes estipulam, por escrito, a possibilidade de atualização da renda e o respetivo regime.
2 - Na falta de estipulação, aplica-se o seguinte regime:
a) A renda pode ser atualizada anualmente, de acordo com os coeficientes de atualização vigentes;
b) A primeira atualização pode ser exigida um ano após o início da vigência do contrato e as seguintes, sucessivamente, um ano após a atualização anterior;
c) O senhorio comunica, por escrito e com a antecedência mínima de 30 dias, o coeficiente de atualização e a nova renda dele resultante;
d) A não atualização prejudica a recuperação dos aumentos não feitos, podendo, todavia, os coeficientes ser aplicados em anos posteriores, desde que não tenham passado mais de três anos sobre a data em que teria sido inicialmente possível a sua aplicação.”
Na decisão recorrida, pode ler-se:
“perante um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a cláusula sexta do contrato não se afasta do regime legal supletivo, antes adota-o, pelo que terá de ser esse o sentido em que deve ser interpretada.”
Do texto da cláusula sexta consta a expressão “nos termos da atual redação do número 1, do artigo 1077º, do Código Civil”, o que significa que as partes estipularam regime de atualização da renda, não sendo, por isso, aplicável o regime supletivo.
Na cláusula sexta, não houve uma reprodução fiel e total do regime supletivo.
No art. 1077º nº 2 al. a) do C.C., é empregue a expressão “coeficientes de atualização vigentes” e, na cláusula sexta, é referido “índice de Preços no Consumidor, sem habitação, correspondente aos últimos 12 meses anteriores, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística ou entidade que o substitua”, mas também “coeficiente de atualização”.
O art. 24º do NRAU dispõe o seguinte:
“1 - O coeficiente de atualização anual de renda dos diversos tipos de arrendamento é o resultante da totalidade da variação do índice de preços no consumidor, sem habitação, correspondente aos últimos 12 meses e para os quais existam valores disponíveis à data de 31 de agosto, apurado pelo Instituto Nacional de Estatística.
2 - O aviso com o coeficiente referido no número anterior é publicado no Diário da República até 30 de outubro de cada ano.”
No aviso nº 23099/2024/2, de 18 de outubro, pode ler-se:
“O artigo 24.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), na sua redação atual, …, atribui ao Instituto Nacional de Estatística o apuramento do coeficiente de atualização anual de renda dos diversos tipos de arrendamento, o qual deve constar de aviso a ser publicado no Diário da República até 30 de outubro.
Nestes termos, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 24.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, …, torna-se público que o coeficiente que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, …, é de 1,0216.
15 de outubro de 2024 - O Presidente do Conselho Diretivo, AA.”
A redação da cláusula sexta do contrato de arrendamento é diferente da redação do art. 24º NRAU, mas o sentido é semelhante: o coeficiente de atualização aplicável é o apurado e publicado pelo Instituto Nacional de Estatística.
Da cláusula nona nº 1 al. c) do contrato de arrendamento consta que “a Arrendatária pagará diretamente à Senhoria as despesas mensais relativas à conservação e fruição das partes comuns (despesas de condomínio) referentes ao local Arrendado, que atualmente correspondem a € 150,30 (cento e cinquenta euros e trinta cêntimos), acrescidas de IVA à taxa legal em vigor, no prazo de oito dias a contar da correspondente fatura. As despesas serão definidas anualmente nos termos de deliberação da assembleia de condóminos”.
Resulta da matéria de facto provada que “a Ré é a única proprietária do prédio sito na Rua ...” e que “não foi realizada assembleia de condóminos”.
Nas conclusões recursivas, a recorrente defendeu que “a inexistência de assembleia de condóminos, por todas as frações pertencerem à Recorrente, não impede a exigibilidade das despesas contratualmente previstas, sob pena de impor ao senhorio um sacrifício patrimonial desproporcionado”.
Nos termos do art. 270º-E do C.S.C., “nas sociedades unipessoais por quotas o sócio único exerce as competências das assembleias gerais, designadamente, nomear gerentes”, sendo que “as decisões do sócio de natureza igual às deliberações da assembleia geral devem ser registadas em ata por ele assinada”.
É de aplicar esta norma, com as necessárias adaptações, à administração das partes comuns do prédio quando todas as frações autónomas pertencem à mesma pessoa.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida com a seguinte alteração da redação da alínea b) do dispositivo:
Que os montantes exigidos pela Ré à Autora a título de despesas de conservação e fruição das partes comuns, não havendo nenhuma deliberação da Assembleia de Condóminos ou, pertencendo todas as frações autónomas à mesma pessoa, decisão desta a aprová-las, não são devidos.
Custas da apelação pela recorrente.

Porto, 14 de outubro de 2025
Maria do Céu Silva
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró