Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14589/21.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: AÇÃO ESPECIAL DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
OBRIGAÇÃO DE PRESTAR CONTAS
DEPÓSITO BANCÁRIO
CONTRATO DE SEGURO
Nº do Documento: RP2023020614589/21.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A obrigação de prestação de contas é um caso corrente de prestação de informações decorrente da obrigação de informação prevista no art. 573º do C. Civil e, estando especificamente prevista em várias disposições legais e podendo derivar de negócio jurídico ou do princípio da boa fé, é de afirmar sempre que alguém trate de negócios alheios ou de negócios ao mesmo tempo alheios e próprios; isto é, o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem;
II – Os depósitos bancários de quantias monetárias, atenta a natureza fungível do respectivo objecto, implicam a transmissão do direito de propriedade para o depositário, in casu, para o banco, gerando na esfera jurídica do depositante um correspondente direito de crédito. Assim, a partir do momento em que o depósito é realizado, o banco passa a actuar em relação às quantias depositadas como verdadeiro proprietário e não como mero administrador de património alheio, não estando por isso obrigado a prestar contas relativamente a tais depósitos;
III – No contrato de seguro, as quantias que o tomador do seguro entrega à seguradora são os prémios do seguro – que são a contrapartida da cobertura acordada e incluem tudo o que seja contratualmente devido por aquele, nomeadamente os custos da cobertura do risco, os custos de aquisição, de gestão e de cobrança e os encargos relacionados com a emissão da apólice, a eles acrescendo os encargos fiscais e parafiscais a suportar pelo tomador (art. 51º nºs 1 e 2 da Lei do Contrato de Seguro) – e, uma vez entregues tais quantias, as mesmas passam a pertencer à seguradora, que, como sua proprietária, administrará e dará rentabilização ou destino às mesmas como bem entender. Assim, à semelhança do que acontece no contrato de depósito bancário, a seguradora, relativamente àquelas quantias, não administra património alheio mas sim património seu, do que decorre que não está obrigada a prestar contas ao tomador do seguro em relação à administração de tais quantias;
IV – Nem o banco nem a seguradora, na gestão das quantias depositadas e na gestão das quantias recebidas a título de prémios de seguro, agem por conta quer do depositante quer do tomador do seguro, não havendo por isso qualquer relação de mandato entre si.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº14589/21.7T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 1)



Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

AA, BB, CC e DD intentaram contra “Banco 1..., SA” e “A..., SA” acção especial de prestação de contas, pedindo que “deverão os Réus prestar contas aos Autores sobre a Administração dos valores mobiliários depositados à ordem dos mesmos para abertura e/ou constituições de contas poupança e/ou aplicações financeiras e de seguros” e que “tal obrigação deverá recair sobre cada uma das contas/aplicações e deverá iniciar-se desde a constituição de cada uma até à data do seu encerramento e/ou liquidação, de forma a apurar como foram distribuídos os valores existentes naquelas contas (capital e respectivos rendimentos)”.
Alegaram para tal:
- que são titulares de contas bancárias constituídas junto da 1ª R. e de apólices de seguro celebrados com a 2ª R.;
- que ocorreram movimentos nessas aplicações financeiras, em virtude de penhoras decretadas em processos judiciais e em compensações directas efectuadas pelas Rés;
- que solicitaram às rés a documentação que lhes permitisse compreender as movimentações efectuadas, não tendo, contudo, sido deferida a sua pretensão;
- e que visam com a presente acção obter tais infirmações.
A R. “Banco 1..., SA” deduziu contestação na qual, além do mais, alegou que não está obrigada a prestar contas aos autores, uma vez que não lhe cabia exercer a administração do dinheiro depositado.
Pugna, assim, pela improcedência da acção.
A R. “A..., SA” também deduziu contestação, na qual, depois de enunciar os contratos de seguro consigo celebrados por cada um dos autores e dar conta da sua actuação no âmbito das penhoras de quantias efectuadas aos autores e a si comunicadas, impugnou que da sua parte tenha sido efectuado qualquer tipo de compensação. Terminou a dizer que não é administradora dos valores mobiliários dos autores nem gestora das suas contas ou investimentos.
Os AA. responderam às contestações apresentadas, reiterando a obrigação de prestação de contas dos RR..
De seguida, considerando-se o regime previsto no art. 942º nº3 do CPC, foi proferida decisão que, concluindo pela inexistência da obrigação de qualquer das rés prestar contas aos autores, julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido.
De tal decisão vieram os autores interpor recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1) A douta sentença sob censura a propósito da peticionada nega a possibilidade de prestação de contas por parte das Apeladas enquanto guardadoras, depositárias, gestoras e administradoras dos produtos financeiros que aconselharam os AA. a subscrever deve ser revogada por violar lei adjectiva e substantiva;
2) Importa que o tribunal, à luz do disposto no art. 596. do CPC e do art.º 942.º, n.º 3. “…, produzidas as provas necessárias,…” do CPC identifique o objecto do litígio e os temas da prova de forma a carrear para estes todos os factos que os Apelantes alegaram por forma a que se avalie convenientemente se as RR. eram meras depositárias dos produtos financeiros em relação aos quais os AA. pretendem que prestem contas ou se eram também gestores e administradores de tais produtos financeiros;
3) Em comentário ao art. 596.º do novo CPC que substituiu o antigo 511., Abílio Neto, Novo Código de processo Civil, Lei n. 41/2013, Anotado, Junho de 2013, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda., Lisboa, página 220, expõe o seguinte: “O comando deste artigo suscita, quanto a nós, uma questão crucial, que pode por em causa toda a arquitectura da presente reforma: a identificação do objecto do litígio, e, por arrastamento, o enunciado dos temas da prova, devem obedecer à regra de ouro antes consagrada no n. 1 do pretérito art. 511., ou seja, atendendo às “várias soluções da questão de direito, que deva considerar-se controvertida”? Ou, ao invés, estamos perante um pré-julgamento cujo resultado se antecipa através da conformação do enunciado do objecto do litígio, o qual, por seu turno, ditará o âmbito dos temas da prova? O âmbito de aplicação das normas de direito material é sempre e incontroversamente tão linear que legitime, em sede processual, esta enorme e fundamental simplicação? E a generalidade dos advogados têm a preparação técnica, o traquejo e a serenidade indispensáveis para, no decorrer de uma audiência prévia, muitas vezes em condições de trabalho adversas, reagir, de imediato, a uma identificação do objecto do litígio perversa, que enviesará o desfecho da lide, de forma praticamente irremediável? Será esta a tão proclamada justiça material que se pretende?”
4) Os factos 1. e 2.º dados como provados na sentença não são suficientes para decidir se as RR. eram apenas meras depositárias dos produtos financeiros dos AA. que detinham sob sua gestão e administração;
5) Tais factos encontram-se contraditados, entre outros, pelo teor dos factos 12.º, 13.º, 14.º e 15.º da PI e pelos factos 2.º, 3.º, 9.º e 12.º da resposta dos Apelantes;
6) Pelo exposto, o tribunal a quo, ao invés de ter proferido sentença devia ter ordenado o prosseguimento dos autos para a fase a que alude o art.º 942.º, n.º 3 do CPC;
7) Porque a provar-se que as RR. exerciam de facto e ou de direito a gestão e a administração dos produtos financeiros às suas ordens, é inegável que a presente acção de prestação de contas deve prosseguir os seus termos legais, não sendo necessário instaurar acção declarativa de condenação para o efeito;
8) Nos termos do disposto no artigo 941.º do CPC, a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las (prestação forçada) ou por quem tenha o dever de prestá-las (prestação espontânea), e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se;
9) A obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa-fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte» (cf. VAZ SERRA, Scientia Iuridica, vol. XVIII, 115);
10) A obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação (cf. ALBERTO DOS REIS, in Processos Especiais, vol. I, pág. 303 Coimbra, 1956;
11) Tendo o mesmo Tribunal, em 09/02/2006, manifestado que:
1. A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (art. 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito
2. Está obrigado a prestar contas o procurador que age com poderes de representação, administrando bens ou interesses do representado, independentemente da existência ou da natureza de negócio de que resultou a procuração.
3. Não é o fim para que procuração é emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador, mas apenas os actos realizados, que justificam a prestação de contas.
4. Do disposto nos artigos 1014º e seguintes do Código de Processo Civil infere-se que a prestação de contas só tem interesse para o requerente (representado) quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos, não sendo de aplicar este processo quando o acto não tenha tido, nas relações entre mandatário e mandante, reflexos patrimoniais.
12) Consideremos ainda o aposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 1076/090TBOER-A.L1-2, de 03-02-2011, decorrendo da sua fundamentação quanto ao antigo artigo 1014.º do CPC, actualmente 941.º do CPC depois da revisão do CPC, que: “deste preceito legal resulta que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem. Este entendimento é pacífico na jurisprudência, invocando-se em muito arestos como justificação para o uso da acção com processo especial de contas “a unilateralidade do dever de uma das partes prestar contas à outra, por imperativo da lei ou disposição do contrato, relativamente a bens ou interesses que lhe foram confiados” . cfr. Ac. S.T.J. de 14.01.75, BMJ 243; Ac. RL, de 15.12.94, C.J., Tomo V, pág. 139”;
13) Todo aquele que administra bens de terceiros, é instituído na figura de seu representante e, como tal, é obrigado a administrar os seus bens diligentemente e a prestar contas, a quem tiver nisso interesse legítimo;
14) E tal obrigação pode resultar de lei especialmente prevista para o efeito, de negócio jurídico ou do princípio geral de boa-fé;
15) Ora, e como decorre da Petição Inicial e da Resposta às Contestações da RR., está em causa a gestão e administração de produtos financeiros sob a guarda, gestão e administração das RR., as quais os destinavam aos fins que bem entendiam e os usavam subscrevendo outros produtos financeiros que muito bem queriam.
16) Pelo que, tal administração poderá ser configurada como uma relação de mandato, por via da qual a mandatária está obrigada a prestar contas, vide artigo 1161.º n.º 1 alínea d) do CC;
17) Pelo exposto, aderindo à sapiente doutrina sobredita e à melhor jurisprudência, entendemos que a causa não podia ser decidida na sentença proferida, devendo ser proferido saneador, ao abrigo do art.º 942.º, n.º 3 do CPC para produzir os meios de prova no sentido de se aferir de as RR. eram gestoras e administradoras de facto e ou de direito dos produtos financeiros à sua guarda e gestão, definindo o objecto do processo, os temas da prova e o processo prosseguir para de julgamento.
18) A douta sentença a quo ofendeu, assim, o disposto nos artigos 5., n.s 1 e 2; 596., 607.º; 941.º, 942.º, n.º3 todos do Código Processo Civil e art.º 227; 1161.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil.”

A Ré “Banco 1..., SA” e a Ré “A..., SA”, cada uma por si, apresentaram contra-alegações, defendendo, uma e outra, que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há uma única questão a tratar: apurar, com base nos dados já constantes dos autos, se há ou não lugar à prestação de contas por parte de qualquer das rés.
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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da questão enunciada.
Os autores, em vista da acção especial de prestação de contas que propõem contra as rés e do pedido que nela formulam, alegam serem titulares de “diversas contas bancárias e outros produtos financeiros, como contas poupança e apólices de seguro, constituídos juntos das Rés” (artigo 1º da p.i.), que os montantes aplicados nessas contas e aplicações foram reduzidos e/ou anulados em face de vários pedidos de penhoras ocorridos em processos executivos e sofreram também compensações directas efectuadas pelas Rés (artigos 3º e 4º da p.i.) e que tendo solicitado às Rés documentação para que pudessem apurar e confirmar todos os movimentos efectuados quer a crédito quer a débito tal não lhes foi deferido, o que motivou a propositura da acção em análise (artigos 7º e 8º da p.i.).
Estão pois em causa depósitos bancários e contratos de seguro e tendo as Rés impugnado que tenham obrigação de prestar contas aos autores, por no âmbito de tais contratos não administrarem dinheiro ou valores mobiliários daqueles, a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida – constituída por dois números e em que se dá como provado sob o nº 1 que “Os AA. celebraram, enquanto depositantes, com a R. “Banco 1..., SA” vários contratos de depósito bancário” e sob o nº2 que “Os AA. celebraram com a R. “A...” vários contratos de seguro, mormente, do “Ramo vida”, enquanto tomadores e pessoas seguras” – é a adequada e suficiente para resolver a questão de saber se, face a tais contratos, há obrigação de prestação de contas por qualquer delas.
Note-se que, ao contrário do defendido pelos recorrentes (conclusão 5 do recurso), é manifesto que aquela matéria de facto dada como provada – em cujos pontos se dá estritamente por provada a celebração de contratos de depósito e de contratos de seguro entre os autores e as rés – não se encontra em qualquer contradição quer com a matéria alegada pelos autores na petição inicial sob os artigos 12º (onde se diz “Não restam dúvidas que era aos Réus, a quem foram entregues as quantias em questão, quem geriram os seus valores mobiliários, fazendo compensações e pagamentos a terceiros por conta de tais valores”), 13º (onde se diz “Não se colocando em questão que, ainda que lhes fosse exigível e legitima a prática de tais actos sobre os dinheiros dos Autos, já não o é a recusa de informação e exibição de documentos que demonstrem inequivocamente como foram usados tais valores (de capital bem como os rendimentos daí derivados”), 14º (onde se diz “E como tal eram os Réus a quem foi entregue a administração e quem tomou todas as decisões relativas aquele acervo patrimonial”) e 15º (onde se diz “Sem nunca terem consultado os Autores e, muito menos, lhe ter prestado contas, como era seu dever”), quer com a matéria pelos mesmos alegada na sua resposta sob os artigos 2º (onde se diz “Como é óbvio e indiscutível, ambos são gestores destes produtos financeiros, principalmente o R. banco, dado que, atenta a relação de confiança que em tempos existiu entre as partes, todos os investimentos realizados pelos Autores eram por si realizados, sem qualquer explicação ou autorização prévia”), 3º (onde se diz “Sendo certo que, como o Réu banco era o beneficiário directo de tais investimentos, os quais tinham sido dados todos como garantia dos financiamentos por si efectuados, com procurações irrevogáveis, quando tais investimentos, por sua livre e espontânea iniciativa, sem qualquer controle, por parte dos Autores, caiam nas contas à ordem associadas, estes os destinavam como muito bem entendiam, algumas vezes os entregando indevidamente a outros credores sem invocar o penhor a seu favor, outras vezes imputando-as a pagamentos por conta das obrigações de divida existentes entre as partes, sem nunca explicar cabalmente os destino de todos valores financeiros que saiam das diversas contas”), 9º (onde se diz “Aliás, na questão da prestação de contas, a responsabilidade do Réu banco é maior porque, aqueles que estavam adstritos à gestão da Ré A... estavam associados a contas à ordem ou a prazo do Réu banco, quer na sua constituição, quer no seu vencimento/resgate/desmobilização, sendo tais contas geridas pelo Réu banco como beneficiário directo, como garantia dos seus empréstimos através da existência de penhor, bem como através de procurações irrevogáveis, cfr. Docs. n.ºs 1 e 2 que ora se junta m e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos”) e 12º (onde se diz “Da leitura das condições contratuais e apólices identificados nos Docs. n.ºs 1 a 48 também não se retira aquelas informações, nomeadamente, o montante inicial aplicado, rendimento gerado e destino final dos valores monetários investidos pelo que se impugna o seu teor, sendo que tais documentos nem sequer se encontram assinados pelos Autores e a suas condições gerais, particulares e especiais jamais foram lidas e explicadas aos autores, que as desconhecem absolutamente, existência que decorre apenas e tão só da gestão arbitrária das RR., bem assim os n.ºs 49 a 68.º”), desde logo porque, como dela se vê, a mesma é integrada por puras considerações conclusivas e opinativas dos autores sobre aquelas relações contratuais e nela não se descortina factualidade concreta alusiva a qualquer de tais relações contratuais (por exemplo, sobre o concreto conteúdo dos contratos celebrados) que infirme ou esteja para além daquela dada como provada na sentença e que, na fase processual dos autos (prolação da decisão prevista no art. 942º nº3 do CPC), seja pertinente apurar sob o prisma da existência de uma obrigação de prestação de contas por parte das rés.
Como se prevê no art. 941º do CPC, que traça o âmbito em que pode haver lugar à acção de prestação de contas, tal acção “pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
A obrigação de prestação de contas é um “caso corrente”[1] de prestação de informações decorrente da obrigação de informação prevista no art. 573º do C. Civil e, estando especificamente prevista em várias disposições legais [como as referidas na sentença recorrida a título de exemplo – arts. 95º, 662º nº1, 1161º d), 1436º j), 1944º nº1, 2093º nº1 e 2332º nº1 do C. Civil e art. 760º nº1 do CPC] e podendo derivar de negócio jurídico ou do princípio da boa fé, é de afirmar sempre que alguém trate de negócios alheios ou de negócios ao mesmo tempo alheios e próprios[2]. Isto é, como se refere na sentença recorrida e se acompanha, “o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem”.
No caso, não se evidenciando estar perante caso legalmente previsto de forma explícita e estando em causa contratos de depósito bancário celebrados pelos autores com a R. “Banco 1..., SA” e contratos de seguro (do ramo vida) celebrados com a Ré “A..., SA”, haverá lugar a obrigação de prestação de contas por parte destes?
Vejamos.
Comecemos pelo contrato de depósito bancário.
Como se diz no Acórdão do STJ de 12/1/2022[3] – na sequência de aí se dar conta de outro acórdão do STJ de 30/4/2019 (proferido no proc. nº17566/16.6T8LSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt) onde se afirma que “(…) a jurisprudência deste Tribunal tem entendido, consensualmente, que o Código Civil de 1966, pondo termo a querelas doutrinárias, classifica o contrato de “depósito” de dinheiro como depósito irregular (art. 1205º), a que é aplicável, atenta a sua semelhança com o contrato de mútuo, as normas relativas a este contrato, na medida do possível (art. 1206º)” e que, “por assim ser, o contrato de “depósito” bancário importa a transferência da propriedade da quantia depositada do depositante para o depositário pelo tempo que dure o contrato, ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade e aquele, portanto, na titularidade de um direito de crédito sobre o valor equivalente à quantia depositada e aos frutos (juros remuneratórios) que tenham sido estipulados (cf. arts. 1144º, 1142º e 1145º do diploma)” –, “[n]o que se refere aos depósitos bancários de quantias monetárias, atenta a natureza fungível do respectivo objecto, implicam os mesmos a transmissão do direito de propriedade para o depositário, in casu, para o banco, gerando na esfera jurídica do depositante um correspondente direito de crédito (cfr. art. 1205.º do Código Civil). Assim, a partir do momento em que o depósito é realizado, o banco passa a actuar em relação às quantias depositadas como verdadeiro proprietário e não como mero administrador de património alheio. Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência deste Supremo Tribunal, designadamente nos acórdãos de 30.04.2019, (proc. n.º 17566/16.6T8LSB.L1.S2), in www.dgsi.pt, de 20.02.2020 (proc. n.º 3587/16.2T8ENT.E1.S1, in www.jurisprudencia.csm.org.pt, e de 14.01.2021 (proc. n.º 17878/16.9T8LSB.L1.S1), in www.dgsi.pt.”.
Nessa linha, conclui-se ali e ora se acompanha, atenta a inexistência de uma situação de administração de património alheio, não está o banco obrigado a prestar contas relativamente aos depósitos em numerário [no mesmo sentido, além dos acórdãos referidos na sentença recorrida – do STJ de 14/1/1975 (in BMJ 243 – 203) e de 3/4/2003 (proc. 03A656) e da Relação de Guimarães de 17/12/2013 (proc. nº174/13.0TCGMR.G1) – vide também o acórdão da Relação de Guimarães de 15/9/2014 (proc. nº1925/13.9TBGMR.G1), disponíveis em www.dgsi.pt], sem prejuízo, como ali também se faz notar, do eventual reconhecimento de uma obrigação geral de informação que, porém, não cabe conhecer em sede de acção de prestação de contas[4].
Vamos agora ao contrato de seguro.
Na sentença recorrida já se delineou os contornos de tal contrato – remetendo para a definição de José Vasques, in “Contrato de Seguro”, Coimbra, 1999, pág. 94, onde refere que o mesmo é o “contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto” – e, admitindo-se que as relações jurídicas de seguro estenderam-se a áreas não típicas deste contrato na sua versão tradicional e particularmente relacionadas com operações financeiras (como são os casos dos instrumentos de captação de aforro estruturados, previstos no art. 206º da Lei do Contrato de Seguro e formalmente qualificados como contratos de seguro, e as operações de capitalização, previstas nos arts. 207º a 209º daquele mesmo diploma, que não sendo contratos de seguro ficam sujeitas à aplicação do regime comum do contrato de seguro)[5], sempre se pode dizer que o mesmo se caracteriza “pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (maxime, pagar uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”, que a sua cobertura é “uma atribuição que se realiza por mero efeito do contrato” e que “[é] com a cobertura que a obrigação de pagar o prémio constitui uma relação sinalagmática ou, noutras terminologias, uma relação de troca (cf. Art. 51º, nº1, na referência à “contrapartida””[6] (este preceito é da Lei do Contrato de Seguro – Decreto Lei 72/2008, de 16/4).
Em sede de contrato de seguro, as quantias que o tomador do seguro entrega à seguradora são os prémios do seguro – que são a contrapartida da cobertura acordada e incluem tudo o que seja contratualmente devido por aquele, nomeadamente os custos da cobertura do risco, os custos de aquisição, de gestão e de cobrança e os encargos relacionados com a emissão da apólice, a eles acrescendo os encargos fiscais e parafiscais a suportar pelo tomador (art. 51º nºs 1 e 2 da Lei do Contrato de Seguro) – e, uma vez entregues tais quantias, as mesmas passam a pertencer à seguradora, que, como sua proprietária, administrará e dará rentabilização ou destino às mesmas como bem entender.
Assim, à semelhança do que acontece no contrato de depósito bancário, a seguradora, relativamente àquelas quantias, não administra património alheio mas sim património seu, do que decorre que não está obrigada a prestar contas ao tomador do seguro em relação à administração de tais quantias.
Deste modo, na sequência do que se vem de referir, e ao contrário do defendido pelos recorrentes sob as conclusões 13 a 16 do seu recurso, não há qualquer relação de mandato (que pressupõe a prática de actos por conta de outra pessoa – art. 1157º do C. Civil) entre qualquer das rés e os autores, pois nem o banco nem a seguradora, na gestão das quantias depositadas e na gestão das quantias recebidas a título de prémios de seguro, agem por conta quer do depositante quer do tomador do seguro.
Os autores/recorrentes, como até se vê da causa de pedir que invocam na petição inicial da presente acção, confundem obtenção de informação/documentação alusiva às contas de depósito na ré “Banco 1..., SA” e aos contratos de seguro celebrados com a ré “A... SA” com prestação de contas por parte destas.
Como se viu, a obrigação de prestação de contas nos termos previstos no art. 947º do CPC pressupõe a administração de bens alheios e tal administração não acontece quer no contrato de depósito bancário de quantias monetárias, quer no contrato de seguro em relação às quantias pagas como prémio, pois quer num quer noutro caso tais quantias constituem, respectivamente, património do banco e da seguradora.
Daí que, como se decidiu na sentença recorrida, seja de concluir pela improcedência da pretensão dos autores e, nessa decorrência, pela manutenção de tal sentença, com a consequente improcedência do recurso.

As custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes, que nele decaíram (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.
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Porto, 06.02.2023
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
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[1] Como o referem Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, 1987, pág. 590.
[2] Neste sentido, vide: “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações”, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 585, anotação V ao art. 573º, da autoria de Mónica Duque; Vaz Serra, in Scientia Iuridica, vol. XVIII, pág. 115, onde se refere que a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva e que o que «importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte».
[3] Proferido no proc. nº2919/19.6T8LRA.C1.S1, em que é relatora Maria da Graça Trigo. Está disponível em www.dgsi.pt.
[4] Como se diz no “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações”, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 586, anotação VII ao art. 573º, da autoria de Mónica Duque, “contrariamente ao que sucede com a obrigação de apresentação de coisas ou documentos (…), bem como com a obrigação de prestação de contas, a que correspondem processos especiais regulados respetivamente nos artigos 1045º a 1047º e nos artigos 941º a 947º do CPC, no que toca à obrigação de informação prevista neste preceito [art. 573º do C. Civil] (…) o meio processual a exercitar será, em regra, a ação autónoma de condenação” (sublinhado nosso).
[5] Seguimos nesta exposição a anotação III de Pedro Romano Martinez ao art. 1º da “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, de Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres, Arnaldo da Costa Oliveira, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado, José Vasques e José Alves de Brito, 2011, 2ª edição, pág. 40.
[6] Obra citada na nota anterior, anotação IV do mesmo autor, pág. 41.