Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2719/22.6T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO FACULTATIVO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
REGIME LEGAL
IMPERATIVIDADE DA LEI
Nº do Documento: RP202406182719/22.6T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No seguro obrigatório de responsabilidade civil, ao contrário do seguro facultativo, no qual as partes são livres de modelar o conteúdo negocial, a cobertura dos actos dolosos depende do regime previsto na lei ou no regulamento aplicáveis.
II - Na hipótese de serem omissos quanto ao dolo, é aplicável a excepção ao princípio da não cobertura dos actos dolosos (art. 46.º/1 da LCS), i.é, a cobertura da actuação ou omissão dolosa do segurado decorre do regime legal, de natureza imperativa, não sendo permitido, por isso, estabelecer cláusulas no contrato que o desrespeitem.
III - As cláusulas contratuais que contrariem o regime legal (imperativo) são nulas como sucede, no presente caso, com a cláusula de exclusão do dolo no seguro de responsabilidade profissional obrigatório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2719/22.6T8AVR.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunta: Maria da Luz Teles Meneses de Seabra

Adjunto: Fernando Vilares Ferreira


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - RELATÓRIO

“A..., S.A.”, pessoa coletiva n.º ...96, com sede na Rua ..., ... ..., ..., propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e “B... – Companhia de Seguros, S.A”, pedindo que:

a) os réus sejam solidariamente condenados a pagar a quantia de 8.639,25€, acrescida de juros legais de mora desde 14.05.2021, até efetivo e integral pagamento;

b) o primeiro réu seja condenado na perda do direito de honorários no respetivo processo.

Para o efeito, e em síntese, alegou que o primeiro réu, na qualidade de agente de execução nomeado no âmbito de processos executivos instaurados pela autora contra terceiros, fez seu o montante global de 8.639,25€. Acrescentou ainda que a responsabilidade civil por atos ilícitos ou omissões do primeiro réu se encontrava transferida para a segunda ré, razão pela qual sustenta deverem ser ambos condenados solidariamente ao pagamento de tal quantia.


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Apenas a segunda ré contestou, sustentando que a factualidade alegada pela autora não encontra cobertura na apólice em vigor, pugnando pela improcedência da ação.

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O primeiro réu informou que foi declarado insolvente, no âmbito do processo de insolvência n.º 3986/22.0T8AVR, que correu termos no Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz 1.

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Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual e além do mais:

- a autora declarou desistir do pedido acima descrito sob a alínea b), tendo sido proferida sentença homologatória de tal desistência;

- foi proferida sentença, que declarou extinta a instância em relação ao primeiro réu, por inutilidade superveniente da lide.


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Proferiu-se sentença que julgou a presente acção totalmente procedente e, em consequência:

- declarou a nulidade da cláusula constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea f), das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre a “C... Companhia de Seguros, S.A.” e a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, que exclui do âmbito da cobertura da respetiva apólice «a responsabilidade decorrente de quaisquer atos ou omissões dolosos do Segurado, seus auxiliares e substitutos e de todos aqueles por quem o Segurado seja civilmente responsável, exceto quando a sua cobertura resulta da lei», por violação do disposto no artigo 18.º, alínea c), do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais;

- condenou a segunda ré, “B... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar à autora, “A..., S.A.”, a quantia de 8.639,25€ (oito mil, seiscentos e trinta e nove euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa prevista para os juros civis, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.


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Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

I. A matéria expressamente aceite pela recorrente e alegada pela Autora nos artigos 3 a 7 e 9 da petição inicial, vai mais além do que aquilo que foi dado como provado pelo tribunal a quo nos pontos 2.º a 5.º da sentença recorrida.

II. O tribunal recorrido deixou de fora do elenco dos factos provados factos relativamente aos quais as partes estão de acordo e que são relevantes para a boa decisão da causa.

III. Pelo que os factos provados 4.º e 5.º devem ser alterados passando os mesmos a ter a seguinte redacção:

4.º Ao invés de proceder à entrega dessas quantias à autora, o primeiro réu transferiu os respetivos montantes para a sua própria conta bancária ou de familiares com o IBAN PT50  ...5, o que fez recorrendo a um expediente processual “Levantamento de Honorários”.

5.º Com a conduta fraudulenta, ilícita e delituosa supra descrita o primeiro réu fez seu o montante global de 8.639,25€, recuperado nos processos n.os 76/19.7T8OVR, 1867/17.9T8OVR, 2353/18.5T8OVR, 246/18.5T8OVR, 643/17.3T8OVR, 2274/17.9T8OVR, 1865/17.2T8OVR, 1745/20.4T8OVR, 536/17.4T8OVR, 2294/18.6T8OVR e 731/18.9T8OVR do Juízo de Execução de Ovar, n.º 4152/16.0T8VNF do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz 2 e n.º 4109/18.6T8LLE do Juízo de Execução de Loulé – Juiz 1, apropriando-se dele como se de levantamento de honorários de tratasse.

IV. Mais se devendo ser aditado o facto 4.º-A com a seguinte redacção:

Detetada tal situação pelo Mandatário da A. em 04 de Junho de 2021, no imediato foi contactado o R. AA no sentido de devolver tais valores, porém, até ao presente sem sucesso.

V. A contratação de um seguro de responsabilidade civil profissional não cobre – nem pode cobrir – a atuação dolosa e criminosa do Segurado, desde logo pela não existência de qualquer sinistro propriamente dito nessas situações.

VI. Um sinistro para efeitos de um contrato de seguro é, na sua essência, um facto aleatório e fortuito, que não se coaduna com a cobertura de atos criminosos praticados com dolo e intenção de prejudicar terceiros. O que tudo redundaria na celebração contratos de seguro com o fim único e exclusivo de assegurar as consequências da prática de actos criminosos e tendo em vista os mesmos. Com uma clara protecção dos agentes de actos dolosos contrária à ordem pública.

VII. Nos termos do clausulado do contrato de seguro celebrado - n.º 1 da cláusula 2.ª, nº 2 da mesma cláusula e artigo 1.º - o objecto do mesmo são os erros ou faltas profissionais praticadas no exercício da sua atividade profissional do segurado. E apenas estes, não se incluindo ali nem atos dolosos nem atos praticados fora do âmbito da profissão.

VIII. A apropriação das quantias recuperadas pelo Co-Réu para além de não consistir numa qualquer falta ou erro – mas antes um ato intencional e doloso - não faz parte das suas funções enquanto Agente de Execução, pelo que tal não cabe no âmbito do exercício da sua atividade profissional, não se enquadrando, também por esta razão, no seguro contratado.

IX. O comportamento do réu/segurado AA não se enquadra não só na lei, como também no objeto do contrato de seguro, não aceitando, pois, a Ré que a apólice de seguro seja sequer acionada por ausência dos pressupostos legais e contratuais para o efeito.

X. Mesmo que não se considere como supra, sempre se diga que opera aqui a exclusão prevista na alínea f) do nº 1 do artigo 4º do contrato de seguro, que não poderá ser afastada por alegada nulidade como o faz a sentença recorrida, porquanto a exclusão ali prevista em momento algum obsta a que o contrato de seguro cumpra a sua obrigação legal e a função para a qual foi idealizado e implementado.

XI. A inclusão de atos dolosos em qualquer cobertura de um contrato de seguro deverá ser objecto de uma interpretação restritiva desde logo por estarem naturalmente em causa interesses de ordem pública. Impondo-se uma interpretação ainda mais restritiva quando os atos dolosos não sejam subsumíveis à atividade ou situação segura, como é o caso.

XII. Nada na lei impõe ou prevê a cobertura de atos dolosos ou criminoso dos agentes de execução ou de atos praticados fora das funções que lhe são incumbidas. Pelo contrário!

XIII. Tanto o Código Deontológico dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (regulamento 202/2015, de 28.04), como o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução pressupõem que a atuação do segurado seja no âmbito das suas funções.

XIV. Não se podendo afirmar, como o faz o tribunal recorrido, que o ato em causa praticado pelo agente de execução foi a cobrança de importâncias pecuniárias no âmbito de uma acção executiva. Este é, em si, perfeitamente legítimo e não foi o mesmo que deu causa à responsabilidade do segurado. O que deu azo à presente acção foi a apropriação pelo mesmo de tais quantias em proveito próprio. Este sim, totalmente alheio às suas funções de agente de execução.

XV. É errado afirmar que a não cobertura de atos dolosos e, em concreto, a alínea f) do nº 1 do artigo 4º das condições gerais do contrato de seguro, contraria as regras previstas nos artigos 146º e 148º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro ou as disposições dos artigos 294º do CC e dos artigos 12º e 18º alínea c) do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, uma vez que a mesma em momento algum limita ou altera quaisquer obrigações assumidas pelas partes ou prejudica o segurado ou terceiros.

XVI. A clausula de exclusão em análise não é, pois, ferida de qualquer nulidade, o se requer seja aqui reconhecido, revogando-se sentença recorrida e substituindo-se a mesma por outra que, considerando válida e aplicável ao caso concreto a exclusão prevista na línea f) do nº 1 do artigo 4º das condições gerais do contrato de seguro, absolva a recorrente do pedido formulado contra a mesma.

XVII. No mais, o entendimento preconizado pelo tribunal recorrido quanto à nulidade da exclusão em causa destinaria ao insucesso o Fundo de Garantia dos Agentes de Execução previsto no artigo 176.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, inexistindo situações práticas em que o mesmo pudesse ser accionado ou chamado a intervir.

XVIII. Não se podendo afirmar o mesmo – como o faz o tribunal recorrido na página 15 da decisão recorrida – quanto à norma que prevê seguro obrigatório de responsabilidade civil profissional dos solicitadores e agentes de execução, porquanto o mesmo terá aplicações práticas que irão muito além da falta de provisão nas contas clientes ou irregularidades na respectiva movimentação.

XIX. A apropriação ilegítima levada a cabo pelo réu AA não integra uma mera perda por causas fortuitas, desconhecidas ou não apuradas. Constitui, pelo contrário, e sem sombra de dúvidas, um desvio, descaminho e subtracção fraudulenta, integrador do conceito de extravio tal como definido no dicionário da língua portuguesa e comumente entendido por um normal declaratário.

XX. Nessa medida a decisão recorrida ser, também neste ponto, revogada e substituída por uma outra que, aplicando as exclusões previstas na alínea p), nº 1 e na alínea d), nº 2, ambas do artigo 4º das condições gerais à situação dos autos, considere a conduta do co-réu excluída do âmbito de cobertura do contrato de seguro, absolva a recorrente do pedido.


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II - Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, para além da reduzida alteração da matéria de facto, consiste em saber se os actos dolosos praticados pelo agente de execução, no âmbito das suas funções, está coberto pelo contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado pela Ré com a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução.


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Da modificabilidade da decisão de facto

Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Na perspectiva da Recorrente, o tribunal não incluiu, no elenco dos factos provados, aqueles que foram alegados em relação aos quais as partes estão de acordo e que são relevantes para a boa decisão da causa.

Sustenta, por isso, que os factos provados 4.º e 5.º devem ser alterados passando os mesmos a ter a seguinte redacção:

4.º Ao invés de proceder à entrega dessas quantias à autora, o primeiro réu transferiu os respetivos montantes para a sua própria conta bancária ou de familiares com o IBAN PT50  ...5, o que fez recorrendo a um expediente processual “Levantamento de Honorários”.

5.º Com a conduta fraudulenta, ilícita e delituosa supra descrita o primeiro réu fez seu o montante global de 8.639,25€, recuperado nos processos n.os 76/19.7T8OVR, 1867/17.9T8OVR, 2353/18.5T8OVR, 246/18.5T8OVR, 643/17.3T8OVR, 2274/17.9T8OVR, 1865/17.2T8OVR, 1745/20.4T8OVR, 536/17.4T8OVR, 2294/18.6T8OVR e 731/18.9T8OVR do Juízo de Execução de Ovar, n.º 4152/16.0T8VNF do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz 2 e n.º 4109/18.6T8LLE do Juízo de Execução de Loulé – Juiz 1, apropriando-se dele como se de levantamento de honorários de tratasse.

Devendo ser aditado o facto 4.º-A com a seguinte redacção:

Detetada tal situação pelo Mandatário da A. em 04 de Junho de 2021, no imediato foi contactado o R. AA no sentido de devolver tais valores, porém, até ao presente sem sucesso.

Os factos constantes dos pontos n.ºs 4 e 5 são os seguintes:

4.ºAo invés de proceder à entrega dessas quantias à autora, o primeiro réu transferiu os respetivos montantes para a sua própria conta bancária ou de familiares.

5.º O primeiro réu fez seu o montante global de 8.639,25€, recuperado nos processos n.ºs 76/19.7T8OVR, 1867/17.9T8OVR, 2353/18.5T8OVR, 643/17.3T8OVR, 1865/17.2T8OVR, 246/18.5T8OVR, 2274/17.9T8OVR, 1745/20.4T8OVR, 536/17.4T8OVR, 2294/18.6T8OVR e 731/18.9T8OVR do Juízo de Execução de Ovar, n.º 4152/16.0T8VNF do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz 2 e n.º 4109/18.6T8LLE do Juízo de Execução de Loulé - Juiz 1.

Por considerar insuficientes os factos constantes da fundamentação, a Recorrente sugere uma nova redação dos pontos 4) e 5) praticamente igual, sendo que a alteração pretendida inclui o “expediente” utilizado pelo 1.º Réu para se ter apossado das quantias na execução. O aditamento em causa, salvo o devido respeito, não assume relevância para a decisão da causa como também sucede com o aditamento pretendido no 4.º-A.

Com efeito, apenas interessa saber que o 1.º Réu se apropriou, em benefício próprio, de quantias que foram recuperadas na execução e que se destinavam ao exequente, e essa matéria já se encontra demonstrada.

Pelo exposto, não se impõe qualquer alteração ao quadro factual consignado na decisão.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)

1.º O primeiro réu exercia a profissão de agente de execução.

2.º A autora, na qualidade de exequente, instaurou várias ações executivas contra terceiros para pagamento de quantia certa, tendo o primeiro réu sido nomeado, em todas elas, para o exercício do cargo de agente de execução.

3.º Nos processos executivos adiante identificados, o primeiro réu recuperou várias quantias pecuniárias.

4.º Ao invés de proceder à entrega dessas quantias à autora, o primeiro réu transferiu os respetivos montantes para a sua própria conta bancária ou de familiares.

5.º O primeiro réu fez seu o montante global de 8.639,25€, recuperado nos processos nºs 76/19.7T8OVR, 1867/17.9T8OVR, 2353/18.5T8OVR, 643/17.3T8OVR, 1865/17.2T8OVR, 246/18.5T8OVR, 2274/17.9T8OVR, 1745/20.4T8OVR, 536/17.4T8OVR, 2294/18.6T8OVR e 731/18.9T8OVR do Juízo de Execução de Ovar, n.º 4152/16.0T8VNF do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz 2 e n.º 4109/18.6T8LLE do Juízo de Execução de Loulé - Juiz 1.

6.º A “C... Companhia de Seguros, S.A.” e a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução celebraram um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, o qual tem como segurados os agentes de execução – cfr. apólices de seguro juntas como documentos n.os 1 a 4 com a contestação, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

7.º O contrato tem sofrido sucessivas renovações, sendo que, no que aos períodos a que se reportam os factos desta ação, as apólices vigentes era as seguintes:

- RC...96 – início em 27/10/2017 e fim em 31/12/2018;

- RC...01 - início em 01/01/2019 e fim em 31/12/2019;

- RC...64 – início em 01/01/2020 e fim em 31/12/2020; e

- RC...10 - início em 01/01/2021 e fim em 31/12/2021 – cfr. mesmos documentos.

8.º A cobertura base prevista é de 100.000,00€ anuais por segurado, prevendo-se ainda uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, com um mínimo de 1.000,00€ e um máximo de 2.500,00€, a cargo do segurado – cfr. mesmos documentos.

9.º Nos termos do artigo 1.º das condições gerais do contrato de seguro referido em 6.º, constitui «erro ou falta profissional: erro, omissão ou ato negligente cometido pelo Segurado no exercício da sua atividade profissional expressamente referida nas Condições Particulares da Apólice» – cfr. condições gerais da apólice juntas como documento n.º 5 com a contestação.

10.º No artigo 2.º, n.º 1, das mesmas condições gerais, diz-se que «o presente contrato tem por objeto a garantia da responsabilidade que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado por erros ou faltas profissionais cometidas no exercício da sua atividade profissional expressamente referida nas Condições Particulares ou nas Condições Especiais da Apólice» - cfr. mesmo documento.

11.º Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, das mesmas condições gerais ficam excluídos do âmbito de cobertura da apólice:

«f) a responsabilidade decorrente de quaisquer atos ou omissões dolosos do Segurado, seus auxiliares e substitutos e de todos aqueles por quem o Segurado seja civilmente responsável, exceto quando a sua cobertura resulta da lei; (…)

j) a responsabilidade criminal, contraordenacional ou disciplinar;

p) as reclamações resultantes de perda ou extravio de valores monetários, objetos preciosos ou outros bens ou valores confiados ao Segurado ou aos seus sócios, associados, empregados colaboradores, mandatários, auxiliares ou àqueles por quem o

Segurado seja civilmente responsável» (…) - cfr. mesmo documento.

12.º Afirma-se ainda no referido artigo 4.º, n.º 2, alínea d), que o contrato não garante «os danos resultantes de perda ou extravio de valores monetários, objetos preciosos ou outros bens ou valores confiados ao Segurado ou aos seus sócios, associados, empregados, colaboradores, mandatários, auxiliares ou àqueles por quem o Segurado seja civilmente responsável» - cfr. mesmo documento.

13.º A “C... Companhia de Seguros, S.A.” foi incorporada por fusão na segunda ré, assumindo esta última todos os direitos e obrigações daquela – cfr. certidões permanentes indicadas pela segunda ré na nota de rodapé n.º 1 da sua contestação, cujo teor dou por integralmente reproduzido.


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IV - DIREITO

A questão de direito nuclear suscitada neste processo consiste em saber se a Seguradora está obrigada a satisfazer o pedido de indemnização exigido pela Autora em razão do contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado com a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução.

A sentença, fundamentada no regime legal do seguro obrigatório, concluiu em sentido afirmativo.

Por seu turno, a Seguradora continua a defender, em sede de recurso, que o contrato de seguro não cobre a actuação ilícita dolosa (criminosa) do segurado.

Discutida a causa ficaram demonstrados os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual, determinantes da obrigação de indemnizar que compete ao 1.º Réu satisfazer, porquanto, no exercício das suas funções de agente de execução, apropriou-se de diversas quantias, por si recuperadas na execução, em proveito próprio, causando à exequente, aqui Autora, o correspondente prejuízo patrimonial.

O Réu praticou um acto ilícito e culposo, violador dos artigos 70.º, n.º 1, do Código Civil e 62.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa bem como dos artigos 124.º, n.º 1, alínea d) e 168.º, n.º 1, alínea c), do EOSAE (Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução), que, respectivamente, o obrigavam a ser rigoroso na gestão dos valores que lhe são confiados ou que administrava no exercício das suas funções, bem como a prestar contas da actividade realizada, entregando prontamente as quantias, os objectos ou os documentos de que fosse detentor por causa da sua actuação como agente de execução.

A responsabilização da Ré Seguradora pelo pagamento da indemnização devida à Autora alicerçou-se, como já referimos, nas normas que regem o seguro obrigatório, razão pela qual se concluiu que a cobertura de actos dolosos não pode ser contratualmente excluída, por vontade das partes.

A Recorrente discorda deste entendimento, argumentando, pelo contrário, que o contrato de seguro, para além de não prever a cobertura de uma actuação ilícita dolosa, expressamente a exclui na cláusula inserta no art. 4.º, n.º 1, al. f).

Nos termos do art. 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008 de 16.04 (Lei do Contrato de Seguro-LCS), por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador de seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.

O contrato de seguro, como é reconhecido de forma consolidada pela doutrina e jurisprudência, caracteriza-se como um contrato de natureza aleatória, oneroso, bilateral, formal e de execução continuada.

Também não suscita qualquer controvérsia o enquadramento deste contrato nos contratos de adesão atendendo a que contém cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, o que corresponde à orientação dominante da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria-cfr. art. 1.º do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10 alterado pelos Dec.-Leis n.ºs 220/95 de 31.10 e 249/99 de 07.07.

Na verdade, o Dec.-Lei n.º 446/85 é um diploma que atravessa, longitudinalmente, todo o ordenamento jurídico português, aplicável a todo o tipo de negócio em cujos contratos se incluam cláusulas contratuais gerais, só cedendo perante os casos previstos no seu artigo 3.º.[1]

Dentro dos limites da lei, vigora o princípio da liberdade contratual, ou seja, as partes têm a liberdade de fixar o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no código civil ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (v. art. 405.º do CCivil).

O contrato de seguro também se rege por este princípio. Em regra, o regime instituído pelo Dec.-Lei n.º 72/2008 de 16.04 (LCS) tem carácter supletivo, com os limites indicados na secção II (imperatividade) e os decorrentes da lei geral-cfr. art. 11.º do LCS.

No que tange ao conteúdo, e na parte que nos interessa reter, vigora o princípio da não cobertura dos actos dolosos, salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, como preceitua o art. 46.º, n.º 1 da LCS.

A Recorrente Seguradora celebrou com a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução um acordo denominado “Seguro de Responsabilidade Civil Profissional–Agentes de Execução”, por via do qual aquela assumiu a responsabilidade civil por actos ilícitos ou omissões dos agentes de execução, inscritos naquela ordem.

Por forma a decidir o presente pleito, importa distinguir entre o contrato de seguro facultativo, ou seja, em que a vontade das partes é livre para definir o conteúdo contratual em conformidade com os interesses contrapostos em causa, e o seguro de natureza obrigatória, cujo regime aplicável decorre da lei, não sendo admissível firmar cláusulas que a desrespeitem.

O regime comum do seguro de responsabilidade civil, que, neste caso, é de grupo, por ser tripartido (arts. 76.º e segs. da LCS), está contemplado nos arts. 137.º e segs. da LCS.

Dispõe o mencionado art. 137.º que, neste tipo de seguro de responsabilidade civil, “o segurador cobre o risco de constituição no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros.”

BB[2] observa que se trata de um “preceito sem correspondência na legislação anterior, apenas o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (…) dispunha de acervo normativo substancial.”

Acrescenta[3], com interesse para o presente caso, que o seguro de responsabilidade civil é classificado pelo novo regime jurídico em:

a) Seguro facultativo-quando a celebração deriva exclusivamente da autonomia das partes e a que são aplicáveis as disposições relativas ao regime comum do seguro de responsabilidade civil (arts. 137.º a 145.º, sem prejuízo, naturalmente, da aplicação das disposições constantes dos arts. 123.º a 136.º, que integram a parte geral do título II, dedicado ao seguro de danos, bem como das disposições do regime comum); deve considerar-se seguro facultativo o que exceda, e na medida em que o faça, o seguro obrigatório;

b) seguro obrigatório-quando resulta de obrigatoriedade prevista em disposição legal ou regulamentar, e a que se aplicam, para além dos regimes contratuais que dele disponham, os arts. 146.º a 148.º, expressamente previstos como especiais do seguro obrigatório, quando não sejam incompatíveis com esses regimes.”

Com efeito, “Nos seguros obrigatórios, apesar da existência de propostas contratuais e da verificação de todo o processo de formação do contrato, a relação de seguro resulta da lei, sendo que os termos dos contratos que os suportam se impõem às seguradoras e aos segurados que não os podem acertar entre si.”[4]

Uma das classificações deste seguro, nas palavras daquele autor, é justamente a dos seguros de responsabilidade civil profissional “que garantem a indemnização dos prejuízos causados a terceiros no exercício de uma profissão…”.

Para assegurar a eficácia desta garantia, que beneficia o terceiro lesado, estabeleceu-se no artigo 140.º, n.º 2 da LCS o direito à acção directa, isto é, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.

Com a introdução deste preceito inovador “o legislador dissipou pela afirmativa todas as dúvidas sobre se, no nosso sistema, o terceiro lesado goza ou não de um direito de ação direta contra o segurador em todos os seguros obrigatórios de responsabilidade civil”[5].

Como sabemos, a Autora, na qualidade de lesada, demandou conjuntamente o segurado e a seguradora para a qual a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução havia transferido, por contrato de seguro, a obrigação de indemnizar que competiria àquele satisfazer em resultado de erros ou faltas profissionais cometidas no exercício da sua profissão de agente de execução.

O artigo 1.º das condições gerais, define erro ou falta profissional como o “erro, omissão ou ato negligente cometido pelo Segurado no exercício da sua atividade profissional expressamente referida nas Condições Particulares da Apólice”.

Com fundamento nas referidas cláusulas contratuais, que limitam a responsabilidade da seguradora ao risco consubstanciado em actos negligentes, a Recorrente reafirma, nesta sede, que a apropriação ilícita das quantias monetárias, recuperadas pelo agente de execução, não se enquadra no âmbito meramente profissional e, sendo um acto ilícito criminal, não está abrangido pelo contrato de seguro.

Decorre do artigo 123.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução[6] (e do art. 15.º, n.º 2, do Código Deontológico dos Solicitadores e dos Agentes de Execução) que “O associado com inscrição em vigor, as sociedades de profissionais e as sociedades multidisciplinares devem celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional, tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos inerentes à sua atividade.” (sublinhado nosso)

Neste particular, importa salientar que o acórdão desta Relação, de 27/09/2022,[7] apreciou efectivamente um caso similar ao presente com a diferença que, à data desses factos, ainda não era obrigatório[8], por diploma legal, a celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional dos agentes de execução.

Por conseguinte, tendo em consideração a data dos factos aqui em apreço, e tal como recentemente foi decidido no Acórdão de 07/05/2024, desta Relação do Porto[9], conclui-se que estamos perante um seguro de responsabilidade civil profissional, de carácter obrigatório, e como tal, sujeito à disciplina dos artigos 146.º a 148.º da LCS com a epígrafe “Disposições especiais de seguro obrigatório”.

O Supremo Tribunal de Justiça[10] teve oportunidade de se pronunciar sobre este tipo de seguro:

“A consagração da obrigatoriedade deste seguro acompanhou o novo paradigma do processo civil executivo, centrado na figura do solicitador/agente de execução a quem passaram a ser atribuídos relevantes poderes públicos para a efectivação coactiva dos direitos patrimoniais dos cidadãos e das empresas, que constitui um âmbito persistentemente crítico da prestação do sistema de Justiça.

Ao exercício dessas funções que envolvem poderes de iniciativa funcional para praticar os actos necessários à satisfação do direito do credor exequente, alguns dos quais são gravemente intrusivos no património dos executados, anteriormente cometidos a oficiais de justiça sobre a imediata direcção do juiz do processo – incluindo, a penhora, a venda executiva, a  arrecadação e a guarda de valores e bens afectos aos fins da execução –, é inerente o risco de causar danos aos intervenientes processuais ou a terceiros, por erro, negligência ou conduta desviante, como aquela que deu azo ao presente processo.”

Neste particular, cumpre notar que, tal como no regime comum, a lei confere ao lesado, nos seguros obrigatórios, o direito de demandar directamente a seguradora com vista a exigir o pagamento da indemnização (art. 146.º/1 da LCS).

Concretamente sobre a matéria em discussão, o artigo 148.º, n.º 1 da LCS estabelece que a cobertura de actos ou omissões dolosas depende do regime estabelecido em lei ou regulamento.

Na hipótese de serem omissos sobre a cobertura dos actos/omissões dolosas, o n.º 2 do citado preceito legal declara expressamente que “há cobertura” desses actos ou omissões dolosas do segurado.

Este preceito do n.º 2 deve ser articulado com o artigo 46.º, n.º 1 acima citado porque constitui precisamente a excepção ao princípio de não cobertura dos actos dolosos.

Margarida Lima Rego[11], analisando a norma, em moldes coincidentes com a doutrina acima explanada, esclarece: “Há uma importante diferença de regime entre os seguros obrigatórios e os seguros voluntários: aos seguros voluntários aplica-se uma regra geral de exclusão da cobertura de danos dolosamente causados pelo segurado.

A sua natureza meramente supletiva permitiria, em teoria, o afastamento pelas partes. No entanto, não é usual as partes darem uso a essa faculdade. Aos seguros obrigatórios aplica-se antes a regra geral de cobertura dos danos dolosamente causados pelo segurado, apenas se ressalvando a possibilidade de disposição legal ou regulamentar em sentido distinto. A sua natureza injuntiva abre ainda assim a porta a uma intervenção do legislador ou mesmo do regulador – o Instituto de Seguros de Portugal – mas não se atribui às partes a liberdade de afastarem essa regra.” (sublinhado nosso)

Acrescenta que “A ratio da cobertura injuntiva dos danos dolosamente causados em todos os seguros obrigatórios está em que, se estes seguros são obrigatórios, são-no para proteção dos lesados. O mesmo é dizer que estes seguros não existem para proteger o segurado, e que portanto, em última análise, deverá ser este a sofrer as consequências da sua própria conduta dolosa. Nestes seguros prevalece a proteção do lesado, que assim será ressarcido pelo segurador, embora este seja também secundariamente tutelado mediante a estatuição genérica de um direito de regresso contra o segurado.

É da existência deste direito de regresso que se retira a conclusão de que, no que respeita aos atos dolosos, estes seguros não tutelam, de todo, o património do segurado. O efeito económico visado com a obrigatoriedade do seguro é o de transferir dos potenciais lesados para o segurador o risco de insolvência do segurado.

Aqui reside a razão de ser – e a justificação da admissibilidade – da consagração da cobertura do dolo.” (sublinhado nosso)

A mesma autora,[12]reflectindo sobre o tema, escreveu: “A questão é distinta no domínio dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. O fenómeno da multiplicação dos seguros obrigatórios é mais intenso nuns sistemas jurídicos do que noutros. A transição do seguro facultativo para o obrigatório reflete uma significativa alteração da ponderação dos interesses em jogo, da primazia dos interesses do segurado para os do terceiro lesado. A legislação atual resolve de forma direta o problema. Veja-se o disposto no art. 146.º da Lei do Contrato de Seguro («LCS»), que integra a secção dedicada aos seguros obrigatórios de responsabilidade civil.”

Partilhando deste entendimento, António Menezes Cordeiro[13] refere sobre a temática que: “No que concerne aos “seguros obrigatórios, a regra é geral: a lei pretende acautelar a posição dos lesados, o que pressupõe a possibilidade de estes agirem, por si.”

Na jurisprudência, especificamente sobre os seguros de responsabilidade civil automóvel,  a posição jurídica consignada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-05-2009,[14] transponível para todos os seguros obrigatórios, não deixa margem para dúvidas : «Sendo o objectivo central do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel garantir a protecção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos por elas sofridos, esse desiderato subsiste mesmo naqueles casos em que os danos resultam de acidente dolosamente provocado, porquanto o conceito de acidente tem de ser perspectivado a partir da vítima.

(…) Ademais, esta interpretação não viola o disposto no art. 280.º, n.º 2, do CC, que diz ser nulo o negócio contrário à ordem pública; desde logo porque no seguro obrigatório de responsabilidade civil a componente negocial, enquanto expressão da autonomia privada, está fortemente esbatida sendo nula a possibilidade que as partes têm de conformar o conteúdo do seguro obrigatório; depois porque o art. 19.º do DL referido em I prevê, taxativamente, as únicas situações em que a seguradora, satisfeita a indemnização, tem direito de regresso.

Este direito de regresso é mais propriamente um direito de reembolso do que a seguradora teve que pagar em circunstâncias que tornam o risco assumido legalmente inaceitável; é um direito que, deixando incólume o objectivo social do seguro obrigatório, de algum modo repõe o equilíbrio contratual rompido pela obrigatoriedade deste e evidencia que, contrariamente ao alegado pela ré, o legislador não “pactua” com contratos de seguro «que dão cobertura a actos criminosos».”

Nesta conformidade, não colhe o argumento da Recorrente no sentido de que a inclusão de actos dolosos na cobertura deste tipo de contrato facilitaria a sua prática.

É que a ratio da lei de protecção do lesado conjugada com o direito de regresso contra o segurado quando ocorram actos dolosos impõem à seguradora a cobertura do dolo (que naturalmente constitui um risco resultante do exercício profissional em causa) mas confere-lhe, satisfeita a indemnização ao lesado, direito de exigir subsequentemente ao segurado o respectivo pagamento.

Nos termos do art. 146.º n.º 5 da LCS “Sendo celebrado um contrato de seguro com carácter facultativo, que não cumpra a obrigação legal ou contenha exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, não se considera cumprido o dever de cobrir os riscos por via de um seguro obrigatório.”

E a norma imperativa do n.º 1 do artigo 45.º da LCS sobre o conteúdo do contrato expressamente declara que “As condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado.”

Como se refere na sentença “A própria Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, na divulgação de entendimentos referentes a seguros obrigatórios (acessível em https://www.asf.com.pt/NR/exeres/DFA7DF5E-F2E0-48B3-8A9E-9AE65F0D1586.htm) expressa a opinião de que:

- a responsabilidade civil decorrente das condutas criminais não pode ser excluída da cobertura obrigatória do seguro de responsabilidade civil, uma vez que continua a ser passível de criar a obrigação de indemnização, nos termos do artigo 14.º, n.º 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril;

- a exclusão dos danos decorrentes de condutas dolosas apenas poderá ocorrer nos estritos termos do disposto no artigo 148.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril. Com efeito, nos termos do n.º 1 do referido preceito legal, quando se trate de seguro obrigatório de responsabilidade civil, a cobertura de atos dolosos depende do regime estabelecido em lei e regulamento, dispondo o n.º 2 que, caso a lei ou o regulamento sejam omissos na definição do regime, há cobertura de atos ou omissões dolosos do segurado.”

Diferentemente da finalidade que o contrato de seguro obrigatório visa alcançar (protecção do lesado em consequência de uma actuação dolosa praticada no exercício das funções de AE) o Fundo de Garantia dos Agentes de Execução, previsto no artigo 176.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, é um  património autónomo, “solidariamente responsável pelas obrigações do agente de execução perante determinadas entidades, resultantes do exercício da sua atividade, se houver falta de provisão em qualquer das suas contas-cliente ou irregularidade na respetiva movimentação, respondendo até ao valor máximo de (euro) 100 000 por agente de execução.”

Segundo os arts. 3.º e 4.º do Regulamento 172/2014 de 23.04 é accionado o Fundo de Garantia dos Agentes de Execução quando se constate que os valores existentes em contas-cliente de agente de execução, que já não exerça funções, são insuficientes para assegurar as respectivas responsabilidades, a requerimento de agente de execução, ou de uma comissão, nomeada para liquidação do respectivo escritório, que reporte o apuramento de insuficiência dos valores existentes na conta-cliente de ex-agente de execução que tenha falecido, sido expulso ou suspenso por período superior a seis meses nos seguintes termos:

a. O requerimento deve demonstrar:

i. O total do valor em dívida;

ii. Que estão esgotadas as verbas não consignadas existentes em

contas-cliente;

iii. Que foi emitida certidão, pela entidade considerada competente, relativa a cada um dos processos judiciais pendentes no exagente de execução.

O quadro factual em análise, de apropriação ilícita de dinheiro destinado à exequente, por parte do agente de execução, não se integra nos pressupostos regulamentares previstos para accionar o Fundo de Garantia.

Não estamos perante meras irregularidades das contas-clientes de um agente de execução que já não exerce funções.

Pelo contrário, no pleno exercício das suas funções, o agente de execução integrou, na sua esfera patrimonial, quantias monetárias que pertenciam à exequente, fazendo-as coisa sua, violando, assim, o direito patrimonial, para além das normas que regem a profissão, tornando-se responsável pelo prejuízo causado pela sua conduta ilícita e culposa.

Acresce que as disposições do artigo 45.º, n.º 1 da LCS sobre o conteúdo do contrato, e do artigo 148.º, n. 2 sobre a cobertura do dolo nos casos em que a lei ou o regulamento sejam omissos, são absolutamente imperativas, não admitindo, por isso, convenção em sentido contrário.

Sobre a imperatividade, o artigo 12.º, n.º 1 da LCS contém um elenco não taxativo das normas absolutamente imperativas.

A este respeito, Pedro Romano Martinez[15] alertou que “O elenco das normas imperativas não pretende ser totalmente exaustivo, podendo, ainda assim, da interpretação resultar que certa regra, num dado contexto, é imperativa;” e expressamente declara “(…) que a imperatividade pode resultar da relação entre a norma deste diploma e a de outro que a completa ou preenche o seu sentido; assim, quando no art. 148.º se determina que a cobertura de actos dolosos depende do regime estabelecido em lei ou regulamento, será pela via deste que se conclui pela imperatividade da solução”.

Nesta linha argumentativa, a imperatividade da solução, decorre ainda quando a própria lei, na sequência da ligação que estabelece com outra lei/regulamento, determina que, se forem omissos no que respeita à definição do regime, há efectivamente cobertura do dolo do segurado.

Sendo o contrato de seguro qualificado como um contrato de adesão, e por isso sujeito ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais, impõe-se declarar tais normas como absolutamente proibidas uma vez que excluem, de modo directo, a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais, causados na esfera de terceiros (artigo 18.º, alínea b)).

Perante o quadro normativo exposto, podemos concluir, em primeiro lugar, que a actuação dolosa do segurado, no exercício das suas funções de agente de execução, encontra-se coberta pelo contrato de seguro mediante a aplicação directa do acima mencionado regime legal imperativo.

A cláusula contratual (artigo 4.º, al. f), das condições gerais das apólices), que exclui expressamente o dolo do segurado contraria as normas imperativas decorrentes dos artigos 45.º, n.º 1, 146.º, n.º 5 e principalmente do art. 148.º, n.º 2 da LCS e, por esse motivo, é nula face ao disposto no art. 294.º do CC e absolutamente proibida.

Por último, duas explicitações a propósito da exclusão da responsabilidade criminal e da perda ou extravio de valores monetários confiados ao segurado e aos danos daí emergentes respectivamente contempladas no art. 4.º, n.º 1, al.j) e alínea p), e n.º 2, alínea d).

 A responsabilidade criminal, excluída no art. 4.º, n.º 1, al.j) do contrato, corresponde literalmente à disposição do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da LCS, que proíbe a celebração de contrato de seguro que cubra a responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou disciplinar.

Cumpre sublinhar que a proibição de contratar está limitada ao risco da responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou disciplinar, o que não se confunde com o risco (obrigação de indemnizar) resultante da prática de actos ilícitos (que podem integrar ilícitos criminais, contra-ordenacionais ou disciplinares) enquadráveis na responsabilidade civil extracontratual.

Na verdade, o art. 14.º, n.º 2 da LCS ressalva da proibição constante do n.º 1 a responsabilidade civil eventualmente associada.

Esta proibição, segundo Pedro Romano Martinez,[16] “destina-se a salvaguardar o efeito punitivo pretendido pelas leis que consagram essas formas de responsabilidade. O legislador entende que se o custo de uma eventual punição pudesse ser substituído por um prémio de seguro, a lei punitiva seria defraudada máxime na sua função preventiva geral.”

A finalidade de “preservação do próprio sistema legal”, acrescenta o mencionado autor, “é distinta da finalidade da não cobertura, em princípio, de actos dolosos, a que se referem os arts. 46.º, 141.º, 148.º, 191 e 193.º”.

A sentença, na análise e interpretação da lei, não merece o mínimo reparo.

Não preenche a supra mencionada cláusula de exclusão, invocada pela Ré, a responsabilidade civil e consequente ressarcimento dos danos decorrente de uma conduta qualificada pela lei penal como crime.

Por último, as cláusulas de exclusão, previstas no artigo 4.º, n.º 1, alínea p), e n.º 2, alínea d), das condições gerais da apólice, incidentes sobre a perda ou extravio de valores monetários confiados ao segurado e aos danos daí emergentes não são aplicáveis porquanto a apropriação em benefício próprio do agente de execução não é subsumível na noção de extravio ou perda; e mesmo que assim não se entendesse, não há dúvida que tais disposições, contidas no contrato, não poderiam contrariar, como vimos, o regime imperativo legal.

Por todas as razões expostas, impõe-se a confirmação da sentença de condenação da Recorrente no pagamento da indemnização exigida neste processo pela Autora.


*


V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a sentença.

Custas pela Recorrente.

Notifique.


Porto, 18/6/2024.

Anabela Miranda

Maria da Luz Seabra

Fernando Vilares Ferreira


________________________
[1] Cfr. Acórdão do Trib. Rel. Lisboa de 03.12.1998, Direitos do Consumidor, Colectânea de Jurisisprudência, Deco, 2003, pág. 107.
[2] Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2011, Almedina, Pedro Romano Martinez e outros, pág. 474, nota 1.
[3] Pág. 476.
[4] Vasques, José, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, pág. 208.
[5] Rego, Margarida Lima, “Contrato de Seguro e Terceiros”, Estudos de Direito Civil, Coimbra Editora, págs. 678/679.
[6] Estabelecido na Lei n.º 154/2015 de 14.09, que revogou o DL 88/2003 e foi alterada pela Lei n.º 7/2024 de 19.01.
[7] Disponível em www.dgsi.
[8] Vigorava, como se refere nesse acórdão, o Estatuto da Câmara dos Solicitadores, aprovado pelo DL 88/2003 de 26.04.
[9] N.º 2719/22.6T8AVR.P1, por nós relatado, sendo a aqui 2.ª adjunta, 1.ª naquele.
[10] Ac. de 14/07/2022 disponível em www.dgsi.pt
[11] In “Novos Temas de Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas”, “A Lei 67/2007 e os seguros de responsabilidade civil”, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 163.
[12] A Acção Directa nos Seguros de Responsabilidade Civil: o Sistema Português”, Rev. Direito Comercial, Abril 2020, p. 726.
[13] Direito dos Seguros, Almedina, 2017, pág. 819.
[14] Disponível em www.dgsi.pt, citado na sentença; v. ainda sobre a finalidade do seguro obrigatório dos agentes de execução que é a protecção do lesado o Ac. STJ de 14/07/2022, disponível no mencionado site.
[15] Anotação ao artigo 12.º, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2011, pág. 67, nota III.
[16] Ob. cit., pág. 73, anotação.