Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19164/22.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE FACTORING
CESSÃO DE CRÉDITOS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
RELAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO
OBRIGAÇÕES RECÍPROCAS
COMPENSATIO LUCRI CUM DAMNO
Nº do Documento: RP2023092819164/22.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Mantendo-se na cessão a identidade do crédito cedido, a extinção da obrigação de pagar o preço contratualizado, mesmo quando já vencida, por via da extinção retroativa do vínculo que é consequência da resolução do contrato fonte do crédito cedido, é uma excepção que encontra fundamento no fim das obrigações recíprocas com origem contratual, transmutadas para o domínio da denominada relação de liquidação;
II. É oponível, assim, a resolução do contrato de empreitada ao cessionário factor, ainda quando a resolução seja posterior e se funde em fato posterior ao conhecimento da cessão pelo devedor cedido do crédito, em termos de determinar a inexigibilidade de uma obrigação titulada por fatura relativa à execução do contrato, independentemente da data de vencimento da obrigação de pagar nela inserta.
III - Não é possível, no caso, o conhecimento da afirmação/existência da obrigação da Ré satisfazer o valor constante da fatura cujo crédito foi objeto de cessão por via do princípio em sede de liquidação das obrigações recíprocas emergentes da resolução contratual da compensatio lucri cum damno.
IV - Tal instituto vem invocado perante o tribunal de recurso como questão nova, não colocada anteriormente à apreciação do tribunal a quo; sendo que, mesmo admitindo que tal matéria pudesse ser objeto de conhecimento oficioso, sempre seria indispensável que os factos suscetíveis de integrar adequadamente a figura emergissem do quadro factual alegado oportunamente, o que manifestamente não ocorre no caso dos autos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 19164/22.6T8PRT.P1
(Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto - Juiz 6)

Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: João Venade
2º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira
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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
Banco 1..., S.A., NIPC ..., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A... Unip, Lda, NIPC n.º ..., peticionando a condenação da R. no pagamento da quantia de €61.233,88 (sessenta e um mil duzentos e trinta e três euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros comerciais até efetivo e integral pagamento.
Alegou para tanto ter, no exercício da atividade comercial bancária a que se dedica, celebrado, em 18 de maio de 2021, com a sociedade B...., S.A. um contrato de cessão continuada de créditos com recurso, no qual ficou estabelecido que a sociedade B...., S. A. cederia ao aqui Autor a totalidade dos seus créditos de curto prazo sobre os devedores, constantes da lista anexa ao contrato, que faz parte integrante do mesmo. Nesta lista consta a Ré A... Unip, Lda, sendo que em 28 de julho de 2021, a sociedade B...., S. A. informou a Ré que havia cedido ao Autor todos os seus créditos presentes e futuros sobre aquela. A sociedade B...., S. A. foi declarada insolvente em 19/01/2022 no âmbito do processo n.º 8777/21.3T8VNG, que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Em 28 de janeiro de 2022, o Autor interpelou formalmente a Ré para que este procedesse à liquidação, no prazo máximo de 8 dias, da fatura n.º 261, vencida em 3/12/2021, no valor total de € 57.516,58.
Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da acção, invocando que o valor da fatura reclamado pelo Autor é também reclamado pela massa insolvente da B... numa acção interposta contra a Ré, como se nenhum pagamento lhe tivesse sido feito pelo Autor. Mais aduziu que a fatura respeita a um contrato de empreitada cujo objeto era a realização dos trabalhos de conceção, licenciamento e construção de uma unidade hoteleira, obrigando-se a B... a “realizar o trabalho, fornecer os materiais e prestar todos os serviços necessários para a integral execução da empreitada”. Sendo pois que o alegado crédito do Autor emerge de um contrato de empreitada chave na mão e preço global, significando isto a entrega da obra da construção hoteleira totalmente concluída, consumando-se assim com a “entrega da chave”, que não ocorreu, posto que a resolução do contrato foi desencadeada pelo abandono da obra por parte da B.... Não é, pois, devido o valor reclamado.

Notificadas as partes para se pronunciarem quanto à aventada possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, foi proferido saneador-sentença, em 10/03/2023, que julgou totalmente improcedente a ação intentada. Ali se decidiu que: «o crédito reclamado é inexigível, atento o facto da factura 261 ter por base um contrato de empreitada “chave na mão” existente à data da celebração do contrato de factoring, conjugado com o facto da R. ter resolvido o contrato por incumprimento da cedente de créditos, excepção que é oponível ao Factor, aqui A”; sustentando-se que (…) o acto jurídico que consubstancia o pretenso crédito da cedente e agora da A., reconduz-se não ao acto de elaboração da factura nº 261, com vencimento em 3/12/2021, mas sim a data de celebração do contrato de empreitada celebrado em 19 de Março de 2021. Ora, tendo o contrato de empreitada sido celebrado em 19 de Março de 2021, data anterior à notificação da cessão dos créditos à aqui R., 28 de Julho de 2021, tal significa que a R. pode opor todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra a cedente B..., SA, sendo irrelevante o facto de não ter havido oposição pela R. à cessão de créditos, porquanto o acto jurídico que consubstancia o pretenso crédito da cedente e agora da A. é anterior à data da cedência do crédito, pelo que será de aplicar a primeira parte do artº 585º do CC.
Aduziu-se, em sede argumentativa, que, (…) não se entender assim seria tolerar um abuso de direito e violar o princípio da boa fé consagrado no artº 762º, nº 2, do CC, porquanto se permitia de forma “hábil e ardilosa” afastar a possibilidade da R. invocar as excepções de incumprimento do contrato, ficando a A. com os direitos (adquiridos por €22.625,99), eximindo a cedente às obrigações decorrentes do incumprimento do contrato de empreitada, o qual tinha como pressuposto “contrato chave na mão”.
(…) Sempre a aqui A., aquando da celebração do contrato de factoring com a cessionária sabia e tinha conhecimento da existência do contrato de empreitada existente entre a R. e a cedente dos créditos B..., S. A., bem sendo conhecedora dos termos do mesmo, designadamente da cláusula “chave na mão”, estando sujeita às excepções a que tal contrato podia ser objecto por parte da aqui R. perante a cedente dos créditos.
E, finalmente, (…) ainda que tendo a cedência de créditos do aderente sido efectuada “com recurso” por parte do Factor, neste caso A., caso não receba o crédito no prazo de recebimento estipulado, nada o impede de exigir ao aderente a liquidação do mesmo, na presente situação reclamar o crédito no âmbito do processo de insolvência da cedente B.... SA..

É da decisão que antecede que vem interposto o presente recurso, no qual o recorrente pugna pela incorreta aplicação naquela dos normativos legais aplicáveis, nomeadamente do artigo 585.º, 289.º, 434.º e 435.º do Código Civil e do Decreto-Lei nº 171/95, de 18/07, como pela desconsideração do compromisso pelo qual a Ré se comprometeu perante o A. a pagar, concluindo do seguinte modo:
1.ª - O contrato de factoring não torna o factor, aqui Autor, imediata e automaticamente o cessionário dos futuros créditos da Aderente, operando-se a cessão de créditos, apenas e tão só, em relação às faturas que vão sendo emitidos após a sua celebração, conforme decorre do contrato de factoring, junto como documento 1 e 2 com a petição inicial, e do Decreto-Lei n.º 171/95 de 18/07.
2.ª – Neste sentido a sociedade B...., S.A. cedeu ao Autor o crédito que aquela detinha perante a aqui Ré constante da factura com o n.º 261, emitida em 3/11/2021, com vencimento em 3/12/2021, no valor de € 57.516,58 (cinquenta e sete mil quinhentos e dezasseis euros e cinquenta e oito cêntimos), conforme facto 6 dos factos provados.
3.ª – A Ré recebeu a fatura com o n.º 261 sem qualquer reclamação, conforme facto 7 dos factos provados.
4.ª – Assim, a cessão foi operada com a referida fatura n.º 261, que se venceu em 3 de dezembro de 2021.
5.ª – Uma vez que a resolução do contrato de empreitada celebrado entre a B...., S. A. e a Ré é posterior à cessão da fatura n.º 261, a Ré não pode opor ao aqui Autor a resolução do contrato de empreitada operada em 10 de dezembro de 2021, porquanto os meios de defesa que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão são inoponíveis pelo devedor ao cessionário factor.
6.ª – A exceção invocada pela Ré é inoponível ao aqui Autor.
7.ª – A circunstância do contrato de empreitada configurar um “contrato de empreitada chave na mão e preço global” não altera a configuração do contrato de factoring, nem a transmissão do crédito em causa, que conforme supra alegado ocorreu com a emissão da fatura em causa.
8.ª – Acresce que na cláusula 6.ª do contrato de empreitada (documento 1 junto com a contestação) é referido expressamente que o pagamento ao empreiteiro seria efetuado em prestações, calculadas com base nos autos de medição provisórios de acordo com as quantidades de trabalho executados. A fiscalização e o Dono da Obra procederiam à análise dos autos mensais e, não havendo incorreções, seria emitida a respetiva factura.
9.ª – Deste modo, a fatura n.º 261, objeto de cessão, não corresponde a um mero pagamento parcelar do valor total da obra, mas sim a trabalhos efetivamente prestados pela B... e que foram devidamente validados pela aqui Ré.
10.ª - A Ré declarou, conforme documento 4 junto com a petição inicial, que tomou
conhecimento da cessão de créditos operada pela B..., S.A., e assumiu a obrigação de pagar ao aqui Recorrente os referidos créditos.
11.ª - O Autor confiou na declaração da Ré constante no documento 4 junto com a
petição inicial, sabendo igualmente que do teor do contrato de empreitada não haveria lugar a qualquer retenção relativamente aos valores que seriam faturados.
12.ª - Sem prescindir, caso seja considerado que a resolução operada é oponível ao
aqui Autor, o que não se concede nem se concebe, esta não levaria à mera devolução das verbas recebidas pelo empreiteiro.
13.ª - A doutrina e a jurisprudência têm entendido que no caso dos contratos de empreitada que incumbe “ao dono da obra, no âmbito do falado princípio da retroactividade, compensar o empreiteiro pelo valor dos materiais e trabalho empregues (valor da obra realizada), atento o também denominado princípio “compensatio lucri cum dano” - - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 0733042, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b70230ce0bd1e6f280257 36f004b8d82?OpenDocument.
14.ª – Conforme alegado supra, a fatura n.º 261 não corresponde a um mero pagamento parcelar do valor total da obra, mas sim a trabalhos efetivamente prestados pela B..., S. A. e que foram devidamente validados pela aqui Ré, e como tal seriam sempre devidos por esta mesmo com a invocada resolução do contrato.
15.ª - A douta sentença violou o disposto nos artigos 585.º, 289.º, 434.º e 435.º do Código Civil e do Decreto-Lei nº 171/95, de 18/07.
16.ª - Deve assim a sentença recorrido ser revogado e substituído por uma que julgue a presente ação totalmente procedente e consequentemente ser a Ré condenada nos exatos termos da petição inicial.

Contra-alegou a recorrida, concluindo pela improcedência do recurso, sustentando o bom fundamento da decisão recorrida na parte em que ali se aduziu que: “não sendo necessário o consentimento do devedor para se operar, validamente, a cessão do crédito, aquele não pode, em circunstância alguma, ser prejudicado pela modificação subjectiva do lado activo da relação jurídica, isto é, pela cessão de créditos verificada. Com efeito, o crédito em que o cessionário fica investido é o mesmo que pertencia ao cedente, não se transmitindo para aquele apenas os acessórios e as garantias, mas, também, as vicissitudes da relação creditória, que o podem enfraquecer ou destruir.” Donde, o crédito transfere-se com todas as vicissitudes a ele inerentes, independentemente da sua natureza, logo sempre é oponível a compensação operada com fundamento num contrato de empreitada chave-na-mão definitivamente incumprido. Na senda deste entendimento, convoca outrossim o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.01.2013, de resto citado na decisão recorrida. A resolução opera retroagindo à data da celebração do contrato de empreitada entre a Ré e a B..., pois, o facto que lhe dá causa prende-se com a falta de execução da prestação devida pela B..., que é instantânea (embora prolongada no tempo), sendo tal facto largamente anterior à cessão dos créditos. Sempre a compensação a que a massa insolvente da B... pudesse ter direito, atento o princípio “compensatio lucri cum dano”, em função da obra executada e que não podia ser levantada/devolvida, deverá ser, por sua vez, objecto de compensação com o valor dos prejuízos causados pelo incumprimento e a que a Ré tem direito, o que, de resto, está a ser discutido na acção intentada pela massa insolvente da B... contra a Ré e onde esta peticionou os prejuízos sofridos com o incumprimento directo e a compensação destes com qualquer valor que pudesse vir a ser considerado devido à massa insolvente.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
A. O objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões, como decorre dos arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.., donde, são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) A da (in)oponobilidade da resolução do contrato de empreitada ao cessionário fator, sendo a resolução posterior ao conhecimento pelo dono da obra da cessão da factura cujo pagamento vem reclamado e cujo crédito foi cedido; a envolver:
- (eventualmente) a consideração do tipo de contrato de empreitada outorgado, mormente a circunstância de sê-lo um “contrato chave na mão”, com o estabelecimento de pagamentos parcelares do preço, por sua vez relativos a obra já executada/realizada;
- o relevo ou significado, em sede de comportamento abusivo, implicado pela declaração pela Ré nos termos do documento n.º 4 junto com a petição inicial, i.é., da significação recognitiva do crédito e da obrigação de pagar.
b) Na hipótese de se entender ser a resolução oponível ao A. cessionário, da afirmação de uma obrigação da Ré satisfazer o valor constante da fatura cujo crédito foi objeto de cessão por via do princípio em sede de liquidação das obrigações reciprocas emergentes da resolução contratual da compensatio lucri cum damno (na medida em que correspondente o valor faturado e exigido a trabalhos efetivamente realizados, aceites e medidos pela Ré).
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B. Encontra-se provada a seguinte MATÉRIA DE FACTO:
1) O Autor, no exercício da atividade comercial bancária a que se dedica, celebrou, em 18 de maio de 2021, com a sociedade B...., S.A. um contrato de cessão continuada de créditos com recurso, o qual vigora com as alterações introduzidas pelo acordo de 16 de novembro de 2021, cfr doc 1 e 2 com a petição.
2) No contrato de cessão continuada de créditos com recurso ficou estabelecido que a sociedade B...., S. A. cederia ao aqui Autor a totalidade dos seus créditos de curto prazo sobre os devedores, constantes da lista anexa ao contrato, que faz parte integrante do mesmo.
3) Na lista anexa de devedores consta a Ré A... Unip, Lda, cfr doc 1 com a petição.
4) Em 28 de julho de 2021, a sociedade B...., S. A. informou a Ré que havia cedido ao Autor todos os seus créditos presentes e futuros sobre aquela, cabendo ao Autor, na qualidade de cessionário dos referidos créditos, a competência exclusiva para proceder à cobrança dos mesmos, bem como emitir os respetivos documentos de quitação, cfr doc. 3 junto com a petição inicial.
5) No seguimento da carta datada de 28 de julho de 2021, a Ré confirmou que tomou conhecimento da referida cessão dos créditos presentes e futuros pela B...., S.A. ao aqui Autor no âmbito do contrato de factoring celebrado, “e assumimos a obrigação de pagar os mesmos créditos ao banco, que reconhecemos como única entidade com capacidade legal para dar quitação dos mesmos.”, vide doc. 4 com a petição inicial.
6) No âmbito do contrato supra alegado em 1) e 2), em 12 de novembro de 2021, a sociedade B...., S.A. cedeu ao Autor o crédito que aquela detinha perante a aqui Ré constante da factura com o n.º 261, emitida em 3/11/2021, com vencimento em 3/12/2021, no valor de € 57.516,58 (cinquenta e sete mil quinhentos e dezasseis euros e cinquenta e oito cêntimos).
7) A Ré recebeu a fatura com o n.º 261 sem qualquer reclamação.
8) A sociedade B...., S. A. foi declarada insolvente em 19/01/2022 no âmbito do processo n.º 8777/21.3T8VNG, que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, cfr. Doc. 5 com a petição.
9) Por força do contrato de cessão continuada de créditos com recurso o Autor adiantou à sociedade B...., S.A. a quantia de €22.625,99 relativamente ao crédito cedido constante na factura com o n.º 261.
10) Em 28 de janeiro de 2022, o Autor interpelou formalmente a Ré para que este procedesse à liquidação, no prazo máximo de 8 dias, da fatura n.º 261, vencida em 3/12/2021, no valor total de € 57.516,58, cfr doc 6 com a petição.
11) Em resposta à interpelação efetuada, a Ré comunicou que no dia 10 de dezembro de 2021 havia resolvido o contrato de empreitada celebrado com B...., S. A. por abandono da obra e incumprimento do mesmo.
12) Alega ainda que, relativamente aos créditos que a Ré alegadamente detinha sobre a B...., S.A. proveniente da referida resolução, a Ré pretendia exercer o direito de retenção sobre as verbas facturadas e não pagas, nomeadamente os créditos constantes na fatura n.º 261, “para compensação dos créditos que resultam a nosso favor do dito incumprimento do contrato, créditos estes que são de valor muito superior àqueles.”, cfr doc 7 com a petição.
13) A Ré foi citada, após 05/12/2022, no âmbito do processo n.º 8777/21.3T8VNG-AJ, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 3, para os termos de uma acção onde é igualmente peticionado o pagamento desta alegada factura em dívida e em discussão nos presentes autos, conforme Doc. 4 com a contestação.
14) A 19 de Março de 2021 a Ré celebrou com a cedente – B... – um “contrato de empreitada chave na mão e preço global”, conforme Doc. 1 com a contestação.
15) O objecto do referido contrato de empreitada era a realização dos trabalhos de concepção, licenciamento e construção de uma unidade hoteleira, obrigando-se a B... a “realizar o trabalho, fornecer os materiais e prestar todos os serviços necessários para a integral execução da empreitada” (cfr. Cláusula 1.ª, n.º 2 do contrato junto como Doc. 1).
16) Nos termos da cláusula 5.ª do contrato junto como Doc. 1 “a empreitada será realizada em regime de preço global de € 3.569.000,00 (três milhões, quinhentos e sessenta e nove mil euros) acrescido de I.V.A. à taxa legal em vigor”.
17) Sendo o pagamento global feito à B... “em prestações, calculadas com base nos autos de medição provisórios, a realizar mensalmente…”, conforme cláusula 6.ª, n.º 1 do contrato junto como Doc. 1.
18) Nos termos do disposto na cláusula 17ª, n.º 4 do contrato de empreitada aqui junto como Doc. 1 “o incumprimento dos deveres resultantes deste contrato confere ao contraente não faltoso, nos termos gerais, o direito a vir a ser ressarcido dos prejuízos que lhe advierem da conduta da outra parte”.
19) Nos termos da Cláusula 3, nº 3, do contrato referido em 1), - Créditos Não Cedíveis e Deveres Relativos aos Créditos Cedidos – O “ADERENTE obriga-se a comunicar ao BANCO todos os factos e circunstâncias que possam afectar a cobrabilidade dos créditos cedidos, designadamente, devoluções, compensações, excepções de não cumprimento e reclamações dos DEVEDORES”

C. Do direito
1. Estes os factos assentes, não suscita dúvida a qualificação do contrato outorgado entre o Autor e a B..., conforme factos assentes supra em 1) a 3) (mediante a interpretação das declarações negociais mesmas) e 4) a 7) (mediante a consideração da execução das obrigações contratadas, critério auxiliar da interpretação), assim entendido na decisão recorrida, como contrato de factoring.
Assim é que a cessão de créditos não é em si um contrato, antes um efeito de um negócio jurídico causal de contornos e de âmbito variável (cfr. Assunção Cristas, Transmissão Contratual do Direito de Crédito, págs. 77 e 78, com citação de diversos autores no mesmo sentido, entre os quais Menezes Cordeiro, Menezes Leitão ou Pinto Duarte).
Traduz uma modificação da relação jurídica, passando a titularidade do direito de crédito da esfera do cedente para a do cessionário. Desde que a cessão seja notificada ou aceite pelo devedor ou seja dele conhecida, nos termos do art.º 583º do CC, o cumprimento da correspectiva obrigação deve ser feito perante o cessionário. Em termos económico-sociais, a prática comercial conduz-nos a formas distintas de concretização do instituto da cessão de créditos, conquanto a mesma, assegurando a maior liquidez dos credores iniciais, permite a criação de lucro para os cessionários. A cessão financeira ou factoring é uma delas.
No caso, o negócio causal a considerar caracteriza um contrato de factoring.
A actividade de factoring encontra-se definida no art. 2, nº 1, do DL nº 171/95, de 18.7 (que regula as sociedades de factoring e o contrato de factoring), nos seguintes termos: “a actividade de factoring ou cessão financeira consiste na aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou de prestação de serviços, nos mercados interno e externo”.
Como se explicou no Ac. do STJ de 13/1/05 (em www.dgsi.pt), citando-se Rui Pinto Duarte, “Notas sobre o Contrato de Factoring”, Novas Perspetivas do Direito Comercial, Coimbra, 1988, pag. 144: “Na realidade, quando observado ao longo da sua execução, o contrato de factoring pode ser descrito do seguinte modo: a) uma das partes, conhecida por factor, cobra créditos da contraparte (a que podemos chamar cliente) nascidos de vendas de bens ou serviços feitos por esta; por este serviço de cobrança, o cliente paga uma quantia calculada em função do valor dos créditos que indica para cobrança; b) o factor entrega ao cliente, mediante solicitação deste, quantias correspondentes ao valor dos créditos a cobrar, não aguardando a data do respectivo vencimento; esta antecipação de fundos tem como contrapartida o pagamento de juros; c) o factor, também mediante solicitação do cliente, assume o risco de os créditos a cobrar não serem pagos, assunção de risco essa que é obviamente também remunerada (ainda que essa remuneração possa não ser discriminada relativamente à do serviço de cobrança). Assim delineado, o contrato de factoring, reveste a natureza (não obstante a existência de naturais divergências na doutrina no que concerne à anterioridade ou ulterioridade dos créditos) de um negócio de promessa de cessão de créditos ou de cessão de créditos futuros, pelo que, na ausência de cláusulas contratuais e no silêncio do Dec.lei nº 171/95, lhe são aplicáveis as regras da cessão de créditos (artigos 577º e seguintes do C.Civil).”
É a um negócio com estas obrigações recíprocas que se reconduz o acordo acima caracterizado.
São de resto distintas as modalidades da cessão de créditos no factoring, porquanto cada uma das cessões pode desempenhar funções diversas, variando as suas características de acordo com o estipulado pelas partes no contrato-quadro e/ou mediante a vontade do facturizado, por exemplo, a solicitar para aquele crédito o adiantamento ou a garantia. Sobre estas, Pestana de Vasconcelos, Dos contratos de cessão financeira, BFDUC, Studia Iuridica, Coimbra Editora, UC, n.º 43, 1999[2], ressaltando que a disciplina de cada uma das modalidades de cessões de créditos tem base contratual. Não releva, decisivamente, na situação decidenda, a modalidade adoptada.
Desde logo, o DL nº 171/95 nada dispõe sobre o regime jurídico do contrato de factoring pelo que lhe é aplicável, como vêm entendendo a doutrina e a jurisprudência, o regime próprio da cessão de créditos (cfr. Ac. STJ de 8/11/07, em www.dgsi.pt). Tal como na cessão, existe uma sucessão do Factor (cessionário) na titularidade dos créditos cedidos sendo, em princípio, oponíveis a esse Factor as excepções fundadas na relação subjacente quando ocorridas antes da notificação da cessão.
Assim, é através da figura da cessão que o Factor passa a poder exigir do devedor o pagamento devido ao cliente, na nomenclatura acima utilizada.
De acordo com o art. 577 do C.C., o credor pode ceder, no todo ou em parte, o seu crédito a terceiro, sem necessidade do consentimento do devedor, desde que a cessão não seja proibida por lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela sua natureza, ligado à pessoa do credor. Assim, todos os créditos são, em princípio, transmissíveis, dado o poder de disposição ser um atributo inerente à generalidade dos direitos de carácter patrimonial, mas as partes, no domínio da liberdade contratual (art. 405 do C.C.), podem estabelecer proibições ou restrições a essa cessão, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art. 577 do C.C. (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pág. 304).
A cessão pode, por outro lado, ter por objeto créditos presentes (já vencidos, a vencer, condicionais, etc.) e futuros (art. 211 do C.C.) (Antunes Varela, ob. cit., pág. 316).
Dispõe, ainda, o artigo 582º do CC no seu n.º 1 que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.
A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”, artigo 583 n.º 1 do CC.
Ocorre a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, transmite a terceiro o seu direito. Verifica-se então a substituição de credor originário por outra pessoa – modificação subjectiva da obrigação –, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª Edição, págs. 179 e segs.
Por outro lado, e na medida em que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), exceto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (cfr. art. 585º do C. Civil).
Entre cedente e cessionário vale a regra geral do artigo 408.º do Código Civil, ou seja, produzem-se efeitos por mero efeito do contrato, o que implica que o cedente cumpra o disposto no artigo 586.º do Código Civil, entregando ao cessionário os meios probatórios do crédito, uma vez que o principal efeito da cessão é a própria transmissão do crédito e o cessionário passa a ser o seu novo titular (artigo 577.º do Código Civil). Assim sendo, na esteira de Antunes Varela[2] e Menezes Leitão[3], faz todo o sentido que o cessionário possa exigir ao devedor o cumprimento da sua obrigação, conquanto a este cabem já as garantias e os acessórios do crédito (artigo 582.º do Código Civil), o que pode mesmo implicar o surgimento de efeitos e requisitos específicos na cessão do crédito (leiam-se o n.º 2 daquele artigo e o artigo 578.º, n.º 2).
Sempre caberá ter em conta o contrato subjacente, ou seja, devemos recorrer às regras da prestação de serviços (artigos 1154.º e seguintes do Código Civil), dependendo do negócio cedido.
No que diz já respeito ao âmbito da transmissão, no que concerne aos direitos potestativos integrados na relação contratual a cujo crédito respeita a cessão, terá de distinguir-se entre aqueles ligados ao crédito em si mesmo e os que se integram na própria relação contratual onde o direito de crédito principal se insere. Os primeiros (p. exp., escolha nas obrigações genéricas e alternativas, artigos 542º e 549º do CC, respetivamente) transmitem-se, mas não já os últimos e, assim, o direito de denunciar o contrato ou de o resolver.
No que atine agora à primeira das questões suscitadas nesta sede recursiva, quanto aos meios de defesa oponíveis pelo devedor cedido ao cessionário, o princípio estruturante da cessão de créditos consiste em impedir que o devedor cedido seja prejudicado pela cedência do direito. Sublinhando claramente este aspeto, o Acórdão do STJ de 04/07/2017, acessível na base de dados da dgsi.
Aqui se convoca também a ideia de Menezes Leitão de que a cessão de créditos se apresenta como uma “simbiose” entre duas vertentes: o não consentimento do devedor e a protecção do mesmo, sendo, pois, sobre estes dois aspetos que assentam os requisitos da cessão de créditos e os seus efeitos[4].
Nessa medida, a lei permite-lhe opor ao cessionário todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, ainda que o adquirente do crédito os ignorasse, excetuando somente aqueles que “provenham de facto posterior” ao conhecimento da cessão, visto o art. 585º do CC, o que no factoring sucede quando ele é notificado. Sobre a questão, a título meramente alusivo, o Acórdão do STJ de 02/03/2017, na base de dados da dgsi.
E é na discussão desta proveniência posterior ou anterior da declaração de resolução que se situam quer a decisão recorrida quer as alegações de recurso, como as contra-alegações, a convocarem o regime do contrato de empreitada a que respeita a obrigação cedida, sustentando a “especialidade” de estar em causa uma empreitada “chave na mão” e o estabelecimento do pagamento fraccionado do preço.
Temos para nós que, sendo, como adiantado, imprescindível a consideração do regime do contrato a que respeita o crédito cedido, não releva, decisivamente, na situação versada, que o contrato a que respeita o crédito cedido o seja “chave na mão” e que o pagamento do preço o seja fraccionado e/ou diretamente implicando a execução parcial de obra e consequentemente a medição desta e a aceitação de trabalhos realizados como fato determinante da faturação e vencimento da obrigação de pagar o preço respetivo.
Na verdade, ainda quando em causa um contrato de empreitada sem aquelas características, o regime dos meios de defesa oponíveis pelo devedor cedido ao cessionário é exatamente o mesmo.
Assim, em síntese:
No caso do recurso à compensação (nas situações, como a decidenda, em que existe uma relação contratual entre o devedor e o cedente, emergente do contrato de empreitada, do qual podem surgir contra-créditos) tem-se por essencial que o crédito do devedor sobre o cedente se tenha constituído antes de ter tido conhecimento da cessão pelo primeiro, independentemente do vencimento do referido direito se ter verificado antes ou depois do mesmo conhecimento. Neste sentido, Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, II, Almedina, Coimbra, 1990, p. 537 e ss..
São igualmente oponíveis ao cessionário aqueles meios de defesa que encontrem fundamento no mecanismo sinalagmático do próprio contrato bilateral donde decorre o crédito transferido, o qual se mantém entre o cedente e o devedor cedido, em particular a exceção de não cumprimento do contrato; uma vez que esta encontra a sua razão de ser na relação de correspetividade que se estabelece entre as obrigações de ambas as partes do contrato. Mantendo-se a identidade do crédito, como bem caracteriza a cessão, faz todo o sentido que em relações sinalagmáticas, o devedor possa arguir a excepção de não cumprimento do contrato (artigo 424.º do Código Civil). Sobre a questão, Acórdão da Relação do Porto de 08/10/2009, do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2010, na base de dados da dgsi e ainda do STJ de 24/01/2002, CJSTJ, t. I, p. 107.
Neste ponto é irrelevante que já se tenha produzido o conhecimento da cessão do crédito, uma vez que este meio de defesa, como aliás entre nós decorre com clareza do art. 431º do CC, radica na própria estrutura do mecanismo contratual que liga as partes. Novamente, Ribeiro de Faria, loc. cit., p. 537.
O mesmo se passa com a própria resolução do contrato bilateral por parte do devedor cedido, mesmo quando o facto aquisitivo deste direito se tenha verificado já depois do conhecimento por parte do devedor cedido da transferência do crédito.
E é o que, para nós, justifica se descentre a questão da problemática da anterioridade ou posterioridade da declaração resolutiva, com relação à comunicação da cessão.
Na verdade, não está em causa a arguição/invocação de uma compensação constituída no decurso da relação subjacente, a que respeita o crédito cedido, caso em que relevando a anterioridade ou posterioridade. Está em causa já a afirmação de um contra crédito indemnizatório sobre a cedente pelo devedor, posterior é certo à comunicação da cessão, mas respeitante às relações de liquidação resultantes da resolução contratual operada, quanto à qual, assim, é irrelevante que já se tenha produzido o conhecimento da cessão do crédito. É o que afasta também a relevância da consideração da data de vencimento da obrigação de pagar a fatura cedida.
Com efeito, por via da eficiência da resolução declarada pela Ré à cessionária, o apuramento dos valores a pagar ou satisfazer no domínio da relação subjacente, a de empreitada, ainda quanto a parte do preço cujo vencimento estivesse já verificado, apenas é possível em sede de “liquidação” das relações emergentes daquela resolução.
O direito de resolução insere-se na esfera dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos e esta é vista como sendo uma consequência, que ocorre quando há falhas no cumprimento das obrigações inerentes aos contraentes. Considera-se ainda, que este instituto visa tutelar as relações contratuais na fase executiva, além do vínculo de estabilidade entre a prestação e contraprestação.
E é neste enquadramento que ganha sentido o apelo na decisão recorrida às regras da boa-fé, as quais vão referidas ao sinalagma contratual que justifica a oponibilidade da excepção da resolução do contrato a que se reporta a fatura cujo crédito foi objeto de cessão.
Assim é que a resolução se encontra vinculada a um princípio basilar do direito, o princípio da boa-fé. Este obriga, ambos os contraentes, a estarem vinculados a deveres de cooperação, lealdade entre outros, aquando da relação contratual estabelecida. E, desde logo, vincula-os à obrigação de execução pontual dos deveres ou prestações principais.
Ora, incumprido um contrato e declarada a resolução deste por uma parte à outra, cessam ou extinguem-se as obrigações contratuais recíprocas, mormente a de pagar o preço da obra, ainda que com datas de vencimento anterior à resolução, posto que é no quadro dos efeitos retroativos da resolução que se hão-de resolver as relações de “deve e haver”[5].
Mantendo-se na cessão a identidade do crédito cedido, a extinção da obrigação de pagar o preço contratualizado, mesmo quando já vencida, por via da extinção retroativa do vínculo que corresponde à resolução[6], é precisamente uma excepção que encontra fundamento na evicção do próprio contrato bilateral donde decorre o crédito transferido e no fim das obrigações recíprocas com origem contratual hoc sensu, transmutadas para o domínio da denominada relação de liquidação.
A resolução tem por objetivo a extinção total ou parcial do vínculo contratual.
Em resultado desta destruição unilateral do contrato, as partes deixam de estar obrigadas ao cumprimento das obrigações acordadas. Tal não obsta, saliente-se, ao surgimento de novas obrigações – obrigações pós-contratuais – resultantes do próprio ato resolutivo e do princípio da boa fé.
Surge, com efeito, por efeito da resolução uma nova relação obrigacional, retroativa, de liquidação[7], sendo que a doutrina portuguesa não reconhece uma identidade entre a relação existente antes da resolução e a relação de liquidação posterior àquela.
E perde sentido a argumentação, neste segmento, da (alegada) correspondência entre o valor constante da fatura (cedida) exigido e o da obra executada pela cedente. Na verdade, a questão, operada a resolução da relação subjacente à cessão, como resulta, vem já a ser a da relação de liquidação que resulta daquela resolução, de contornos bem mais complexos que o simplismo da correspondência reclamada. Como o demonstra os termos da acção pendente entre empreiteira e dono da obra, mediante a pretensão do último a receber quantia bem superior ao valor da obra efetivamente realizada e insuscetível de restituição
De todo o modo, como se aflora também na decisão recorrida, não se descura a proteção ou tutela do cessionário, na medida do conhecimento por ele da natureza do contrato subjacente e possíveis vicissitudes e da existência de soluções contratualmente previstas para a falta de cumprimento pela cedida.
No que se antecipa como objeção mais decisiva, a da eventual falta de fundamento da resolução operada, vista a solução do nosso direito, nos termos do qual a resolução, seja ela convencional ou legal, é exercida mediante declaração à outra parte (artigo 436º, nº 1)[8], a qual, nas palavras de Brandão Proença “afasta a necessidade de uma intervenção constitutiva-condenatória do tribunal”[9]/[10], sempre superada mediante a possibilidade de o cessionário reclamar do devedor indemnização, sempre mediante a alegação e prova da falta de fundamento da mesma, situação bem distinta da causa de pedir em apreço nos autos. Tal como afirma Menezes Leitão[11], quer a indemnização seja vista como uma modificação da obrigação primitiva, quer como uma nova obrigação criada pelo ilícito obrigacional[12], ela vem a ser diretamente adquirida pelo cessionário, uma vez que a sua causa é posterior à cessão.
Tudo para concluir da oponibilidade da resolução do contrato de empreitada ao cessionário factor, ainda quando a resolução seja posterior e se funde em fato posterior ao conhecimento da cessão pelo devedor cedido do crédito, em termos de determinar a inexigibilidade de uma obrigação titulada por fatura relativa à execução do contrato, independentemente da data de vencimento da obrigação de pagar nela inserta.
É que, por outro lado, a interpretação da declaração pela Ré sob o facto 5) dos provados não se reconduz à pretendida assunção da obrigação de pagar toda e qualquer fatura emitida pela cedente, nem também, o que é manifesto quando se atente na anterioridade da declaração em relação à fatura em apreço, tem qualquer significado recognitivo da obrigação de pagar aquela.
Estando em causa um ato jurídico não negocial, aplicam-se-lhe, por via da remissão do art. 295º do CC, as regras da interpretação dos negócios jurídicos.
No que concerne à interpretação da declaração negocial rege o art. 236º do Código Civil que dispõe: “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Sobre a aplicação deste artigo, vejam-se os ensinamentos da doutrina, colhidos no Acórdão do STJ de 20/11/2012, proferido no processo 176/06.3TBMTJ.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt: «Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil ensinam: “[...] A regra estabelecida no nº 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Excetuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).
(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efetivamente atribuir.
(...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”
O declaratário normal deve ser uma pessoa com “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” (Paulo Mota Pinto, in Declaração Tácita e comportamento concludente, 1995, p. 208.
Menezes Cordeiro, no seu Tratado de Direito Civil Português l, Parte Geral, Tomo l, 1999, págs. 478 e 479, ensina: “A doutrina actual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objetivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo”...“tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança…” […] “entendemos que a interpretação do negócio deve ser assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. Embora virada para as declarações concretas, ela deve ter em conta o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, as regras supletivas que ele veio afastar e o regime que dele decorra”».
Quando se considere:
- o teor literal da comunicação [confirmação da tomada de conhecimento da cessão dos créditos presentes e futuros pela B...., S.A. ao aqui Autor no âmbito do contrato de factoring celebrado, assunção da obrigação de pagar os mesmos créditos ao banco, reconhecido como única entidade com capacidade legal para dar quitação dos mesmos.];
- o contexto desta, na sequência imediata da comunicação, em 28 de julho de 2021, pela sociedade B...., S. A de que havia cedido ao Autor todos os seus créditos presentes e futuros sobre aquela, cabendo ao Autor, na qualidade de cessionário dos referidos créditos, a competência exclusiva para proceder à cobrança dos mesmos, bem como emitir os respetivos documentos de quitação, cfr doc. 3 junto com a petição inicial, anotando-se que a resposta/comunicação mimetiza o conteúdo da notificação, a saber, reconduz-se ao (re)conhecimento da entidade/cessionária à qual há-de ser feito o pagamento e aos poderes desta para a quitação;
- a circunstância de a notificação da cessão se reportar a créditos futuros, como tal se constituindo, com relação à resposta sob documento n.º 4 com a petição, precisamente, o titulado pela fatura cujo pagamento vem pedido,
perfeitamente ausente a um declaratário normal, sendo outrossim que a declaração o foi no confronto com a cedente, que não com o cessionário, a aptidão recognitiva/confessória de uma obrigação futura, qualquer que ela fosse, numa renúncia antecipada (que o texto não justifica, os usos do comércio renegam e as regras da experiência comum não corroboram) a “discutir” a existência ou subsistência de uma obrigação (futura) cedida, como sustenta o Recorrente.
De resto, sempre discutível a validade mesma de uma tal declaração com o sentido pretendido, nos termos e para os efeitos do art. 809º do CC. Sobre a questão, por todos, AA, Da irrenunciabilidade antecipada a direitos, In Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Volume I, UC, p. 79 a 111.
Tudo para concluir que a declaração sob documento n.º 4 com a petição inicial não é bem assim impeditiva da invocação pela Ré da inexigibilidade da obrigação exigida/peticionada.

2.
Quanto agora à segunda questão a apreciar, entendendo-se, como antecede, ser a resolução oponível ao A. cessionário, a da afirmação de uma obrigação da Ré satisfazer o valor constante da fatura cujo crédito foi objeto de cessão, por efeito do princípio, em sede de liquidação das obrigações recíprocas emergentes da resolução contratual, da compensatio lucri cum damno (na medida em que correspondente o valor faturado e exigido a trabalhos efetivamente realizados, aceites e medidos pela Ré).
A disciplina dos recursos ordinários cíveis conjuga os poderes das partes e do tribunal de forma adequada por um lado, à natureza privada e disponível da generalidade dos direitos a que respeitam e, por outro, ao reconhecimento do papel de condução do processo por parte do tribunal[13].
Em direito português, os recursos cíveis destinam-se a rever a decisão recorrida, nas condições em que foi proferida.
O Processo Civil tem evoluído no sentido da ampliação dos poderes do tribunal. No entanto, essa ampliação não pode alterar a natureza privada e disponível da generalidade dos direitos que são apreciados segundo as respetivas regras.
Confrontamo-nos já com a circunstância da questão que o impetrante pretende sujeitar à censura deste Tribunal não ter sido tratada pelo Tribunal recorrido, o que, s.m.o, deixa a presente apelação sem objeto.
Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Assim é que está nas mãos das partes o poder de delimitação do objeto da acção – e, por essa via, dos poderes de cognição do tribunal e da extensão do caso julgado.
Compete às partes, em primeiro lugar, a definição do objeto da acção: na realidade, é o autor que tem o ónus de identificar o pedido e a causa de pedir, que o integram; o réu pode ampliá-lo, se formular um pedido reconvencional ou se deduzir excepções peremptórias. No entanto, porque a reconvenção não é livre, pois só é admissível se a conexão com o pedido do autor for considerada suficiente por lei (cfr. artigo 266.º), e porque as exceções peremptórias se definem por referência ao direito que o autor pretende exercer (cfr. artigo 576.º), é fundamentalmente o autor que dispõe do objeto do processo, tal como dispõe do direito que assim pretende exercer.
O tribunal está limitado qualitativa e quantitativamente pelo pedido; e não pode senão tomar em consideração a causa de pedir invocada, como bem o revela a impossibilidade de sanação da ineptidão pelo tribunal.
A limitação qualitativa e quantitativa dos poderes de cognição do tribunal ao pedido formulado pelo autor e a reserva da alegação da causa de pedir traduzem claramente a disponibilidade dos direitos em discussão e do correspondente poder de traçar o âmbito da intervenção judicial. É certo que não impedem a apreciação de questões de conhecimento oficioso e que a conjugação desta limitação com a liberdade do tribunal em matéria de direito permite que o tribunal enquadre o efeito prático-jurídico ou o facto invocado como causa de pedir de forma diferente da alegada, mesmo havendo acordo das partes sobre diversa qualificação. O acordo das partes sobre a qualificação jurídica do pedido ou da causa de pedir não vincula o tribunal.
Desde logo, a propósito da questão de saber se o tribunal pode determinar oficiosamente a restituição do que foi prestado em consequência de um negócio jurídico nulo, naturalmente desde que constem do processo os factos necessários para o efeito, não obstante não ter sido pedida, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/02/2015, www.dgsi.pt: “Saliente-se que o problema fulcral não reside sequer na circunstância de tais figuras serem invocadas perante o tribunal de recurso como questões novas, não colocadas anteriormente à apreciação do tribunal a quo: é que, mesmo admitindo que tal matéria pudesse ser objeto de conhecimento oficioso, sempre seria indispensável que os factos suscetíveis de integrar adequadamente tais institutos – do abuso de direito e da desconsideração da personalidade jurídica – emergissem do quadro factual definitivamente fixado pelas instâncias – o que manifestamente não ocorre no caso dos autos”. No Assento (hoje acórdão de uniformização de jurisprudência) n.º 4/95, de 28 de Março de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil”.
No acórdão citado em último lugar escreveu-se, a propósito agora da liberdade da qualificação jurídica da pretensão: “No entanto – e dentro da posição que temos vindo a sustentar acerca da ampla possibilidade de reconfiguração normativa do pedido formulado, permitindo-se ao juiz atribuir os bens realmente peticionados através de uma coloração jurídica das pretensões diversa da feita pelo A. na petição, - assente decisivamente na ideia de que o objetivo da parte se mede pelo efeito prático-jurídico que a mesma visa alcançar, e não pela estrita qualificação jurídica de tal pretensão (cfr. O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Lebre de Freitas, I, pags. 789 e segs.) – não veríamos obstáculo inultrapassável a que se pudesse atribuir ainda à A. uma parcela do valor pecuniário peticionado, embora a título de restituição do preço pago pela transmissão dos títulos, agora invalidada em consequência do decretamento da excepção peremptória da nulidade do negócio de alienação.”
Colocam-se habitualmente restrições à possibilidade de, em recurso, o tribunal conhecer de factos não alegados em primeira instância. Distinguem-se, em geral, por referência ao momento do encerramento da discussão (artigo 611.º), os factos que podiam ter sido alegados até esse momento, cujo conhecimento fica precludido.
Resulta do que antecede, pois, quanto à questão suscitada subsidiariamente pelo recorrente, que, não sendo de conhecimento oficioso[14], não pode este Tribunal emitir um qualquer juízo de reavaliação ou reexame, pois, e como já se disse, constituindo a matéria suscitada pelo recorrente na motivação/conclusões do recurso, inquestionavelmente, questão nova, nos termos acima caracterizados, não pode assim ser apreciada.
Sempre não invocou oportunamente (após a contestação da Ré e no momento em que lhe foi dada a oportunidade de tomar posição quanto ao conhecimento do mérito da causa) o A. ora recorrente, o que sempre seria indispensável (por não estar já em causa uma mera distinta qualificação ou enquadramento jurídico da pretensão/pedido, nem também factos instrumentais ou notórios) os factos suscetíveis de integrar adequadamente o instituto que ora pretende se constitua como fundamento/causa do pedido (a compensatio lucri), com o que sempre vedado agora o conhecimento da questão agora suscitada.
Tudo visto, em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pelo autor e pela consequente confirmação da decisão recorrida, bem como pelo não conhecimento do recurso quanto à questão suscitada sob as conclusões 13ª e 14ª do requerimento de interposição.
III.
Por tudo o exposto, acorda-se em:
- negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida;
- não conhecer do recurso quanto à questão suscitada sob as conclusões 13ª e 14ª do requerimento de interposição.

Custas da apelação pelo recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
Notifique.

Porto, 28/09/2023
Isabel Peixoto Pereira
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
________________
[1] Também J. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, pg. 451 e ss.
[2] Loc. Cit.
[3] Cessão de Créditos, Almedina, Coimbra, 2005.
[4] Op. cit., pp.285-288.
[5] No direito estrangeiro, regra geral, esta situação perde o seu impacto, no momento em que o direito potestativo adquire apenas uma função de desvinculação dos contraentes relativos aos deveres de prestação inerentes aos contratos ou partes destes que ainda não foram cumpridos. Assim, Joana Farrajota, Os efeitos da resolução infundada por incumprimento do contrato, tese de doutoramento, acessível em http://hdl.handle.net/10362/18555, em especial p. 43 a 46. No ordenamento jurídico português a declaração resolutiva produz inelutavelmente a extinção do vínculo contratual, sem distinção e, assim, a desvinculação dos deveres independentemente do cumprimento.
[6] Mesmo quando com as “correcções” que infra ressaltarão.
[7] Neste sentido, veja-se Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimpressão da edição de 1970, Almedina, 1982, p. 417 e s. O Autor ressalva que a posição adotada não implica o reconhecimento de uma extinção retroativa total da relação contratual, em resultado da resolução. Entende, numa posição que acompanhamos, que na sequência da resolução do contrato surge uma nova relação (de liquidação) ao lado da qual pode subsistir, parcialmente, a relação contratual original, podendo designadamente sobreviver determinados deveres de cuidado ou de protecção. Assim também José Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, p. 166.
[8] Forma também usada pelo ordenamento jurídico alemão, através dos números 349 do B.G.B e 80, 2, do Z.G.B.
[9] A Resolução do Contrato no Direito Civil, cit, pp. 151-152.
[10] Esta tem características de unilateralidade recipienda e irrevogabilidade (artigo 224º, nº 1), incondicionalidade natural e concretização, podendo ser manifestada verbalmente e não está sujeita a formalidades especiais.
[11] Loc. cit., p. 337.
[12] Seja porque a declaração infundada da resolução se constitui ela mesma como um ilícito contratual, uma situação de incumprimento definitivo das obrigações do cedido; sendo que parte significativa da doutrina e jurisprudência nacionais tende a aceitar a tese segundo a qual a resolução, operando através de declaração reptícia, se produz no momento em que esta chega ao poder/conhecimento da contraparte, extinguindo nesse momento o contrato, independentemente de a resolução ser fundada ou não. Veja-se, por todos, Martinez, Pedro Romano, Da Cessação do Contrato, 2.ª ed., Almedina, 2006, p. 185: «[a] resolução determina a imediata cessação do vínculo, produzindo o efeito extintivo logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (art. 224º, n.º 1 do CC)».O princípio de liberdade de forma a que o exercício da resolução se encontra sujeito, bem como a natureza potestativa do direito em causa surgem como os fundamentos mais comuns para sustentar a posição adoptada. Assim, declarada a resolução, ainda que em violação da lei, seria o contrato destruído, sem prejuízo de posteriormente o vínculo poder vir a ser «restaurado» por decisão judicial que reconhecesse a ilicitude do acto.
Manifestando já desapontamento quanto ao tratamento da matéria pela doutrina portuguesa, veja-se Assunção Cristas, «É possível impedir judicialmente a resolução de um contrato?», Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, vol. II, Almedina, 2008, p. 59.
Ainda quando se sufrague a tese expendida por Joana Farrajota, Os efeitos da resolução infundada por incumprimento do contrato, tese de doutoramento, acessível em http://hdl.handle.net/10362/18555, para quem a questão da eficácia da declaração resolutiva infundada não tem necessariamente uma resposta única; sendo que na determinação dos efeitos da declaração de resolução sem fundamento como ato de execução do contrato, atendendo, em particular, ao respectivo valor sintomático, enquanto manifestação de uma intenção de não cumprimento, a gravidade desta declaração, enquanto conduta profundamente contrária à tendência natural da relação obrigacional para o cumprimento, impõe a disponibilização ao declaratário das faculdades previstas na lei para o inadimplemento. Donde, na base do acionar destes instrumentos encontrar-se-á a violação de um dever de conduta de abstenção de comportamentos contrários à execução do contrato decorrente do princípio da boa fé, a quebra da confiança base do contrato, a violação da obrigação principal ou ainda a tutela do receio de incumprimento, variando a relevância destes elementos consoante o caso e, em particular, o tipo contratual em questão. De entre aquelas faculdades, reveste especial interesse, face à hipótese em análise caracterizada pela manifestação, por uma das partes, de uma vontade de desvinculação e pela natureza duradoura do contrato, o direito à manutenção do contrato. Este direito à manutenção encontra-se limitado pela ponderação de outros interesses igualmente tutelados pela ordem jurídica, designadamente a protecção da liberdade de desvinculação e das expectativas legítimas das partes, bem como do equilíbrio construído por estas aquando da celebração do contrato. Entendendo-se que o juízo de determinação do ponto em que o direito à manutenção deve ceder em nome de preocupações relacionadas com a tutela daqueles outros interesses é em tudo semelhante ao realizado em sede de apreciação dos limites da vinculação do credor, no quadro da justa causa. Trata-se de avaliar se, atendendo às circunstâncias do caso concreto e à luz do princípio da boa fé, é exigível ao devedor, que exprimiu a sua vontade de pôr termo ao contrato, que se mantenha vinculado ao mesmo. Neste juízo há que ponderar, por um lado, o interesse do credor no cumprimento e, por outro, o esforço de cumprimento do devedor. Este esforço, note-se, não é necessariamente mensurável apenas em termos meramente económicos. Não se trata aqui de apreciar somente o agravamento do custo financeiro da execução da prestação, mas também o esforço moral da manutenção do contrato pelo devedor inadimplente. Na avaliação deste, dever-se-á atender não só aos fundamentos subjacentes à declaração de resolução infundada, mas igualmente ao impacto que a própria declaração tenha tido na relação entre as partes, já que os próprios acontecimentos desencadeados por aquela podem ter tornado insustentável a manutenção do vínculo. Na situação decidenda relevará decisivamente a insolvência da empreiteira, a tornar inviável qualquer repristinação da execução da relação terminada por via da declaração resolutiva.
[13] Cfr. Maria dos Prazeres Beleza, A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis , JURISMAT, Portimão, 2022, n.º 15, pp. 219-232, acessível também sob a localização: file:///C:/Users/MJ01964/Downloads/8625-Texto%20Artigo-24892-1-10-20230119.pdf, cuja lógica e argumentativa seguiremos de muito perto.
[14] Ao contrário do que sucede com a nulidade e suas consequências.