Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | EXCEÇÃO DE CASO JULGADO EXTENSÃO NOMEN IURIS DOAÇÃO MODAL ABUSO DE DIREITO EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES CONFUSÃO | ||
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Nº do Documento: | RP202502202689/19.8T8AVR.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Apesar de a escritura pública o designar por compra e venda, os outorgantes celebram um contrato de doação quando um transmite para o outro o direito de propriedade de bens imóveis e o outro aceita essa transmissão, acordando ambos que, não obstante o que consta da escritura pública, não há lugar ao pagamento de qualquer preço. II - Tendo os outorgantes acordado, no âmbito do contrato celebrado, que o adquirente, enquanto o desejasse, teria o direito de habitar no imóvel transmitido que era a sua casa de habitação, estamos perante uma doação modal. III - Essa qualificação não é impedida pelo facto de em anterior acção instaurada pelo transmitente para obter a declaração da invalidade do contrato por vícios da vontade, já julgada improcedente por decisão transitada em julgado, o contrato ter sido qualificado pelas partes e pelo tribunal como de compra e venda. IV - Actua em abuso de direito o transmitente que, apesar de ter celebrado com o adquirente aquele acordo, uma vez proprietário do imóvel exige do adquirente a entrega do imóvel em que se obrigou a permitir-lhe que continuasse a ter a sua habitação. V - Uma das causas de extinção das obrigações é a confusão, que ocorre quando as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação se reúnem em simultâneo na mesma pessoa, v.g. quando o credor adquire por sucessão mortis causa a totalidade das relações patrimoniais do seu devedor. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:2689.19.8T8AVR.P1 * Sumário: ………………………………………………………… ………………………………………………………… …………………………………………………………
ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ...95, instaurou acção judicial contra BB, contribuinte fiscal n.º ...40, ambos residentes em ..., ..., ..., formulando contra este os seguintes pedidos: Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que por escritura pública de compra e venda outorgada em 04.08.2014 declarou vender ao autor e este declarou comprar os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro sob os ns.º …61 e …70, os quais se encontram inscritos nesse registo a favor do autor; aquando da escritura o autor consentiu que o réu continuasse a residir no segundo desses prédios atenta a relação familiar existente entre ambos (o réu foi casado com uma tia do autor entretanto falecida) e uma vez que a casa de morada de família do réu se situara até então nesse prédio; algum tempo depois o autor e o réu desentenderam-se, cortando relações; o autor solicitou ao réu a entrega dos prédios, o que réu se recusa a fazer, não obstante não possuir qualquer título que legitime a sua permanência nos imóveis, causando prejuízos aos autor. O réu foi citado e apresentou contestação defendendo a improcedência da acção, para o que impugnou factos alegados pelo autor e excepcionou: i) a nulidade da compra e venda por falta de consciência da declaração, simulação relativa, erro e dolo; ii) a anulabilidade da compra e venda por negócio usurário; iii) o direito de retenção até ao pagamento do preço dos imóveis declarado na escritura. A título de reconvenção, pede que se declare a existência de um contrato gratuito de comodato até à morte do réu e se condene o autor a pagar ao réu o valor das obras feitas por este num dos prédios, no montante de €40.000,00, acrescido de juros legais desde a notificação até integral pagamento. Na réplica, o autor arguiu a excepção de caso julgado quanto aos fundamentos da defesa do réu. No despacho saneador, a excepção de caso julgado foi julgada parcialmente procedente quanto à invalidade da compra e venda por falta de vontade, vício na formação da vontade e negócio usurário, bem como quanto ao direito de retenção, tendo o autor sido absolvido da instância em relação a estes meios de defesa. Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente; em consequência foi declarado que o autor é o proprietário do prédios urbanos por si identificados e o réu foi condenado a restituí-los no prazo de 10 dias ao autor, a abster-se de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização dos prédios pelo autor, a pagar €5.000,00 de indemnização ao autor. Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: A. […]. B. Manifesta-se a óbvia discordância do recorrente relativamente ao entendimento expresso na decisão recorrida numa tripla vertente, a impugnação da matéria de facto, a crítica ao entendimento jurídico que o tribunal realiza quanto à restituição da coisa / denúncia do contrato de comodato e a crítica ao entendimento jurídico que o tribunal realiza quanto ao direito do réu às benfeitorias realizadas no imóvel. C. Relativamente à matéria de facto, entende o réu/recorrente que os quesitos/factos contidos nos factos não provados constante da alínea b) teria de merecer resposta positiva no sentido de provado, por sobre o mesmo se terem pronunciado o réu nas suas declarações, as testemunhas e ainda por constarem de documentos/certidões nos autos. D. Efectivamente, o tribunal a quo deu como não provado o seguinte facto, constante da alínea b): O autor autorizou o réu a residir naquele imóvel até à sua morte; E. Dado que, segundo a sentença, decorre da circunstância de esse facto ter sido apenas referido pelo réu, durante as declarações prestadas na primeira sessão da audiência final, sem que encontrem corroboração suficiente noutro meio de prova.” F. Ora, não só o próprio réu nas suas declarações afirmou que foi essa intenção do seu sobrinho - aqui autor - (intenção e autorização) como outras testemunhas (CC e DD) confirmaram que o réu poderia lá viver até à sua morte. G. Resulta das declarações melhor transcritas no objecto de recurso que o réu acordou com o autor ficar a viver na casa até morrer e que esse acordo foi feito aquando da outorga da simulada escritura de compra e venda. H. Ambas as testemunhas foram peremptórias ao afirmar que a intenção do réu nunca foi voltar a Alemanha, pois estava já enraizado em Portugal, tendo amigos e sendo muito querido na zona. I. Resultou, assim provado, pelas declarações do réu, pelas declarações das testemunhas que o autor autorizou o réu a residir no imóvel até à sua morte. J. Sem esquecer que tal prova vem concretizada nos factos dados como provados no âmbito do processo Proc. nº 1603/15.4T8AVR (factos 11 a 19). K. Pelo que deverá ser alterada a fundamentação de facto da sentença em conformidade com o que resulta supra exposto, dando como provado o facto constante da alínea b) o qual teria de merecer resposta positiva no sentido de provado. L. Já quanto à discordância jurídica, entende o réu/apelante que, por um lado, a sentença de que ora se recorre dá como provado que os factos f) e p) foram confessados pelo autor e que se subsumem ao consentimento dado pelo autor ao réu para este continuar a viver no imóvel, M. Por outro lado, a sentença recorrida reforça esse facto e refere que já na outra acção que correu termos sob o n.º 1603/15.4T8AVR Juízo Central de Aveiro - Juiz 1 ficou provado o facto 19 que dizia precisamente que o réu poderia continuar a viver na casa de morada de família como se fosse sua enquanto o desejasse. N. No entanto, o Mmo. Juiz a quo acaba por concluir que as partes não convencionaram um prazo certo para a restituição do imóvel e também não delimitaram a necessidade temporal que o comodato visava satisfazer. O. Entende o tribunal a quo que sendo celebrado um contrato de comodato para uso habitacional de um imóvel para além do uso ter de estar expresso de modo inequívoco, esse uso também terá que ter uma duração limitada sob pena de o contrato de comodato encobrir um direito de uso e habitação. P. Não pode concordar com esta definição dada na sentença, nomeadamente quanto ao uso e duração do contrato de comodato. Q. Acresce que é mister referir, tal como é alegado na impugnação da matéria de facto que o réu entende que deve ficar provado que o autor o autorizou a residir no imóvel até à morte. R. Mas mesmo que V. Exa. não acolham essa alteração, o que por mera cautela de patrocínio se admite, a sentença refere que ficou confessado pelo réu que ele poderia habitar o imóvel enquanto assim desejasse. S. Portanto, seja até à morte do réu, seja enquanto o réu desejar, o recorrente entende que não poderia o autor pedir a restituição do imóvel. T. Não só porque não é essa a interpretação que deve ser feita ao artigo 1137º do Código Civil. U. Como face aos factos dados como provados e confessados pelo autor é evidente, na opinião do réu / apelante, que o contrato de comodato não poderia ter sido denunciado (por estar vigente!). V. Resulta dos factos provados da sentença que ora se recorre (e resulta igualmente dos factos provados no âmbito da sentença proferida no processo ...03/15.4T8AVR) que houve acordo entre autor e réu e que o réu poderia usar e viver no bem imóvel enquanto o desejasse. W. Entende o recorrente que o uso acordado ficou limitado no tempo – até que o réu desejasse habitar o imóvel (aqui, novamente até à sua morte, caso V. Exas entendam dar como provado o facto b)) X. No caso em apreço, tendo em conta que foi estipulado que o réu podia habitar o imóvel até à morte ou até quando desejar, não se pode dizer que as partes tenham convencionado prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa (do prédio urbano). Y. O prazo é certo, sempre que, além de haver a certeza da verificação do facto, se sabe antecipadamente o momento da sua verificação – dies certus an certus quando. Z. Neste caso, ficou provado que o réu poderia usar o imóvel enquanto desejasse (e pretende o Apelante que fique provado que o autor autorizou que o réu reside no imóvel até à sua morte). AA.O que vale o mesmo por dizer que este dia (até que o réu deseje / até à sua morte), o dia da sua ocorrência é incerto, pelo que estamos perante a fixação de um prazo incerto. BB. Quanto ao uso da coisa foi acordado (e resulta igualmente dos factos provados) que a casa comodatada se destinava à habitação do réu. CC. É verdade que um comodato com a estipulação deste uso, tendencialmente prolongado no tempo, pode assemelhar-se, quanto aos seus efeitos com o direito real de habitação (artº 1484º e seg., do C.C.) DD. Mas, não tendo o legislador optado por fixar um prazo máximo para a duração deste tipo contratual, nada obsta a que as partes fixem prazos ou usos de longa duração EE. Deste modo, verifica-se que foi incorrecta a decisão da sentença recorrida em julgar procedente a acção, com fundamento em que a ocupação pelo réu da casa reivindicada é ilegítima FF. Há um contrato de comodato celebrado com o autor, que se encontra vigente. GG. Veja-se, nesse sentindo, o entendimento expresso no douto Acórdão da Relação do Porto de 15.01.2007, proc. 0652373, os Acórdãos da Relação do Porto de 24.05.2005, proc. 0520792 e de 18.12.2013, proc. 7571/11.4TBMAI.P1 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça … de 05.06.2018, proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. HH. Só com base neste entendimento é que se pode garantir o cumprimento do direito constitucional de habitação, bem como os princípios da confiança e da segurança jurídica. II. A douta sentença recorrida enferma de manifesto erro de julgamento porquanto errou na interpretação e aplicação do art. 1137.º n.º 1 do Código Civil, devendo ser revogada. JJ. A não se entender desta forma, estar-se-ia a sancionar a interpretação dos arts. 278º; 1129º; 1135º; 1136º, 1137º e 1140º todos do CC, porquanto, ao não fazer uma correcta interpretação do regime legal, não só entra em contradição com o art. 203º da CRP, que determina sujeição dos tribunais à aplicação da lei, como dos arts. 13º e 20º da CRP ao potenciar um tratamento discriminatório, denegando desta forma justiça. KK. Relativamente às benfeitorias, não pode o réu concordar que não possa, neste caso, ser aplicado o seu regime, conjugado com um direito de crédito tal como foi definido no despacho saneador. LL. O preço da (simulada) escritura compra e venda) nunca foi pago…O que aliás resultou provado no âmbito do processo n.º …03/15.4T8AVR MM. Se o preço não foi pago não pode o réu aceitar como é referido na douta sentença que o valor das benfeitorias feitas “pelo titular do direito não atribui ao proprietário outro benefício que não seja o de este pode repercutir esse valor no preço da alienação da coisa. NN. No âmbito do despacho saneador, o Mmo Juiz entendeu que o objecto do litígio, no que à reconvenção diz respeito é C) Reconhecimento de um direito de crédito do reconvinte sobre o autor por obras realizadas no imóvel identificado no artigo 1º, n.º 1, a b), no valor de € 40.000,00 e condenação do autor/reconvindo no seu pagamento, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal, a contar da notificação da reconvenção e até efectivo pagamento OO. No decorrer do processo foi feita perícia ao imóvel e foi elaborado o competente relatório pericial, tendo o Sr. Perito esclarecido as obras feitas no valor total de 19.650.00 € (a este valor deve acrescer o valor da caixilharia: 5.500,00€ e da construção do muro – 3.770,55, conforme explica o Sr. Perito nos seus esclarecimentos juntos ao processo em 29.05.2023 – requerimento com referência 14627689. PP. As obras e melhoramentos efectuados pelo réu aumentaram o valor do imóvel. QQ. De acordo com o disposto no art. 1138º, nº 1, do C. Civil, o comodatário é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé. RR. Mas, dispõe o art. 1273º do C. Civil que tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. SS. Estabelece o art. 216º do C. Civil quais os tipos de benfeitorias. TT. As obras dadas por provadas e que constam do relatório pericial não são, salvo o devido respeito, obras voluptuárias, já que, valorizaram o imóvel, melhoraram-no, parecendo nítido que não se destinaram a mero recreio dos benfeitorizantes. UU. Destinaram-se a conferir melhores condições de habitabilidade ao imóvel (como é o caso, do sistema de aquecimento, a instalação de os painéis solares, do portão). VV. Estamos perante benfeitorias úteis. WW. Apesar de estarmos perante uma situação de comodato, que é um contrato gratuito (art. 1129º do C. Civil), a lei consagra a possibilidade de o comodatário ser indemnizado pelo valor das benfeitorias de acordo com as regras do enriquecimento sem causa (arts. 1138º, conjugado com o 1273º do C. Civil) XX. Na douta sentença recorrida, o assunto foi tratado de forma “singela” e que, com o devido respeito, merece desconcordância. YY. De acordo com a sentença recorrida parece que o comodatário, beneficiando das virtualidades de um contrato gratuito, não deveria exigir, de quem lhe proporciona esse benefício, uma indemnização por benfeitorias, nem pode exigir tal valor porque vendeu o imóvel, segundo a sentença nesse estado. ZZ. Ora, tal conduziria, porém, a que, afinal, de forma indirecta, se acabasse por pagar o uso da coisa, ao arrepio do inicialmente acordado. AAA. Pelo que, também neste ponto deve a douta sentença ser revogada por outra que determine que o réu tem um direito de crédito sobre o A. correspondente às benfeitorias feitas que melhoraram o imóvel e aumentaram o seu valor e que, de acordo com o relatório pericial, têm um valor de 19,650.00€ (acrescido do valor da caixilharia de 5.500,00€ e da construção do muro, no valor de 3.770,55€, conforme explica o Sr. Perito nos seus esclarecimentos juntos ao processo em 29.05.2023 – requerimento com referência 14627689). Termos em que deve conceder-se integral provimento ao recurso, revogando-se a sentença, como é de Justiça. O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada. ii. Como deve ser qualificado o contrato celebrado entre autor e réu e a autorização para o réu continuar a habitar no prédio objecto desse contrato onde se situava a sua habitação. iii. Se em resultado dessa qualificação a retenção desse imóvel pelo réu é ilícita. iv.Se o réu tem um direito de crédito de indemnização por benfeitorias de que seja devedor o autor.
III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto: O recorrente impugnou a decisão de julgar não provado o facto da alínea b) do elenco respectivo, defendendo que o mesmo seja julgado provado. Foram cumpridos os requisitos específicos desta impugnação - artigo 640.º do Código de Processo Civil - nada obstando à sua apreciação. O facto em questão tem a seguinte redacção: «o autor autorizou o réu a residir naquele imóvel até à sua morte». Este facto está relacionado com o facto que foi julgado provado no ponto f., segundo o qual, em 4 de Agosto de 2014, data da escritura de compra e venda, «o autor consentiu que o réu continuasse a residir no prédio … atenta a relação familiar existente entre ambos e uma vez que aquele prédio havia sido a casa de morada de família do réu até então». Portanto, o tribunal a quo julgou provado que o réu foi autorizado a continuar a residir no prédio que era a respectiva casa de morada de família, mas julgou não provado que essa autorização fosse para toda a vida do réu (outra forma de dizer, até à sua morte). Na sentença recorrida o tribunal a quo julgou não provados dois factos relativos ao âmbito, extensão ou duração da autorização. Na alínea a) julgou não provado que a autorização fosse para «morar na habitação … enquanto … não regressasse à Alemanha, por ser intenção do réu regressar a esse país num prazo de um a dois anos contados desde aquela data»; na alínea b) já referida não provado que a autorização fosse para «residir naquele imóvel até à sua morte». Antes de entrar na apreciação da impugnação é necessário esclarecer um aspecto que contende com o âmbito do poder de cognição do tribunal quanto à matéria de facto e, por isso, releva para saber aquilo que pode e deve ser julgado provado. Na fundamentação de direito da sentença recorrida afirma-se que «para além da matéria de facto provada nestes autos (…), as partes encontram-se vinculadas pela matéria de facto julgada provada no âmbito do processo n.º …03/15.4T8AVR (…), concretamente, nessa acção foi julgado provado o seguinte facto: “19 - E acordaram verbalmente que o R. podia continuar a viver na casa de morada de família, como se fosse sua, enquanto o desejasse. (…)”». Com todo o devido respeito, não podemos concordar com esta afirmação. O efeito do caso julgado apenas cobre a decisão proferida sobre as questões jurídicas apreciadas. Mesmo que se entenda, como parece dever fazer-se, que o caso julgado compreende também os fundamentos da decisão, na medida em que a decisão não subsiste à margem dos seus fundamentos, trata-se tão somente dos fundamentos da decisão proferida. O objecto da anterior acção eram apenas os vícios de vontade alegados pelo autor para pedir a declaração da invalidade do negócio jurídico celebrado, pelo que os aludidos factos não traduziam a invocação de qualquer excepção, eram somente uma forma de impugnação motivada. Na anterior acção não se discutiu, nem se decidiu se o aqui réu tinha um título válido para continuar a morar na casa, pelo que sobre essa questão ou sobre os respectivos fundamentos a anterior sentença não formou caso julgado. O caso julgado dessa sentença não abrange pois o julgamento dos factos alegados na acção que não constituíam fundamento de facto das questões jurídicas ali apreciadas e decididas, não estando as partes, por isso mesmo, vinculadas por esses factos (rectius, pela sua prova ou não prova) ou impedidas de demonstrar factos diferentes e/ou incompatíveis em qualquer nova acção com outro objecto. Trata-se, aliás, segundo cremos de um entendimento que não oferece dúvidas ao Supremo Tribunal de Justiça. Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2024, proc. n.º 2985/20.1T8FNC.L1.S1, in www.dgsi.pt: «… como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos - e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão. Ou noutra formulação: os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado - enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi. Simplesmente, no tocante aos factos, aqueles que forem considerados como provados nos fundamentos de uma decisão – sentença ou acórdão – não podem ser considerados isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de se extrair deles outras consequências, que excedam ou ultrapassem as contidas na decisão final. Ou, dito de outro modo: os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, não valem por si mesmos quando desligados da respectiva decisão, valendo apenas enquanto fundamentos da decisão da acção em que foram adquiridos e em conjunto com essa mesma decisão. Numa proposição ainda mais incisiva: o caso julgado não abrange os factos adquiridos na acção: um enunciado de facto julgado provado numa acção é indiscutível enquanto fundamento da decisão nela proferida; fora dessa relação entre fundamento e decisão, o facto não é indiscutível; o objecto do caso julgado é a decisão referente ao pedido – não cada uma das suas premissas, designadamente de facto, pelo que se não estende a essas premissas, quando consideradas de forma isolada e separada da decisão, dado que não é possível desligar ou destacar esses fundamentos da respectiva decisão para lhes conferir a indiscutibilidade característica do caso julgado. (…) Em absoluto remate: a decisão proferida num processo anterior, não prova plenamente, no âmbito de uma acção posterior, os factos tidos como provados na acção em que foi proferida e, por isso, não provam, plenamente, qualquer dos factos controvertidos. Considerados a partir do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados no processo em que foi proferida, não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento – dos actos praticados pelo juiz – mas não a realidade dos factos dado como provados, do que decorre, como regra, a rejeição de qualquer eficácia probatória das premissas, máxime de facto, de uma decisão16. A ordem jurídica processual portuguesa não aceita, pois, que o caso julgado incida sobre factos. Pode compreender-se que o caso julgado abranja os fundamentos directos da decisão, mas isso é completamente diferente de concluir que o caso julgado abrange todo e qualquer facto que tenha sido adquirido na acção. Se assim fosse, nem sequer se compreenderia o regime da eficácia extraprocessual das provas, dado que, em vez de se invocar a prova produzida num processo, seria suficiente invocar-se o caso julgado constituído sobre o facto provado.»[1] Contudo, a circunstância de não se poder entender que na presente acção as partes estão vinculadas a aceitar como provados os factos provados naquela acção (i.e., no fundo, que tais factos devem considerar-se provados também para efeitos da presente acção), não impede que esses factos possam ser efectivamente julgados provados na presente acção a propósito da pretensão da recorrente de que se julgue provado o facto da alínea b) que se vem apreciando. Na presente acção, a alegação de factos destinados a demonstrar a existência de um título válido para o réu continuar a viver na casa que era a casa de morada da família composta por ele e pela falecida mulher e que deixou de lhe pertencer constitui, relativamente à pretensão do autor, um meio de defesa por excepção, na medida em que é composto por factos novos impeditivos do direito do proprietário do imóvel a obter a sua entrega. Sucede que o réu não está onerado com o ónus de na contestação alegar a totalidade dos factos essenciais necessário à procedência da excepção. Esse ónus só compreende os factos principais ou nucleares, aqueles que são necessários para caracterizar a excepção arguida e individualizar o tipo legal que a regula; não os factos meramente complementares ou concretizadores dos factos essenciais porque estes podem ser considerados pelo juiz mesmo que não tenham sido alegados e desde que resultem da instrução da causa (artigo 5.º do Código de Processo Civil). O mesmo sucede com os factos instrumentais em relação aos quais não existe ónus de alegação [a sua não alegação não preclude a possibilidade de o tribunal os considerar desde que resultem da instrução da causa – artigo 5.º, n.º 2, alínea a)] nem de impugnação [a não impugnação dos mesmos não impede a parte de na instrução da causa produzir prova destinada a demonstrar que eles não são verdadeiros – parte final do artigo 574.º, n.º 2]. Nessa medida, é possível julgar provado o facto da alínea b), como ainda julgar provados os demais factos complementares e concretizadores que permitam definir de forma mais próxima o teor e o âmbito da autorização dada ao réu para habitar na casa. Com efeito, estes factos resultam, como vimos, da instrução da causa, na medida em que estão denunciados nos documentos juntos, os quais são um dos meios de prova a apreciar no decurso da instrução da causa. Para além disso, no âmbito deste recurso as partes foram ouvidas sobre essa possibilidade e pronunciaram-se como lhes aprouve. Dito isto, regressemos à impugnação que cumpre apreciar. Na motivação da decisão o Mmo. Juiz a quo afirma o seguinte: «(…) o réu conseguiu demonstrar a inexactidão do enunciado constante da alínea a) dos factos não provados, pois nenhuma testemunha, incluindo as arroladas pelo autor, corroborou as afirmações feitas por ele durante o depoimento de parte. Só a mãe do autor, testemunha EE, referiu ter ouvido uma conversa em que se terá afirmado que o réu tinha interesse em regressar à Alemanha, mas não se atribuiu credibilidade a esta parte do seu depoimento por aquela testemunha não ter sido peremptória em dizer que foi o réu quem efectuou essa afirmação. Pelo contrário, as testemunhas arroladas pelo réu (amigos e familiares da falecida com que ele ainda se relaciona) afirmaram, de forma segura, que o réu nunca manifestou vontade de regressar à Alemanha. (…) A não prova do enunciado sob a alínea b) decorre da circunstância de esse facto ter sido apenas referido pelo réu, durante as declarações prestadas na primeira sessão da audiência final, sem que encontrem corroboração suficiente noutro meio de prova.» O réu defende no seu recurso que esta última afirmação não é correcta porque o facto em questão não foi afirmado apenas pelo réu, foi afirmado também pelas testemunhas CC e DD. Todavia, é evidente que a razão está do lado do Mmo. Juiz a quo porque estas duas testemunhas não se referiram ao facto da alínea b), pronunciaram-se sim sobre o facto da alínea a), refutando-o. Aliás, não se percebe sequer como pode o recorrente defender o contrário, quando as próprias passagens dos depoimentos daquelas testemunhas que transcreve para sustentar a sua tese não contém qualquer referência ao facto da alínea b) objecto da impugnação, o que se confirma ouvindo a gravação dos depoimentos. Daí que a questão que se deve colocar é se o depoimento do próprio réu é insuficiente para julgar provado algo que respeite ao âmbito, extensão ou duração da autorização que lhe foi dada para continuar a residir naquela que era a sua habitação. Não há regra legal nem princípio epistemológico que impeçam que um facto possa ser julgado provado com fundamento no depoimento do principal ou mesmo único interessado ou beneficiário do mesmo. Não é por terem interesse num facto que todas as pessoas estão dispostas, moral, ética ou deontologicamente, a fazer tudo o que for necessário para que ele seja reconhecido, mesmo que seja falso ou que para isso tenham de mentir, enganar, falsear. Basta, aliás, que o facto seja verdadeiro para que a sua afirmação pelo interessado seja igualmente verdadeira, por maior que seja o seu interesse no facto ou mesmo a sua predisposição para tudo fazer para quele ele seja reconhecido! Mesmo o mentiroso mais contumaz não mente sempre, designadamente se e quando não tem nenhuma necessidade de o fazer. E o inverso também é, em regra, verdadeiro: mesmo a mais honesta das pessoas pode ser levada a mentir, designadamente por questões sociais de mera cortesia (na educação cristã somos educados a agradecer todas as prendas … mesmo quando elas nos desagradam profundamente) ou porque considera que a mentira não tem relevância no contexto em que o facto se coloca. Por isso, em abstracto, apesar do manifesto interesse do réu na causa, uma vez que é o próprio titular do interesse em contradizer a pretensão do autor, e do cuidado que é necessário ter na avaliação do valor probatório do respectivo depoimento, do ponto de vista probatório não é correcto julgar não provado um facto apenas porque o mesmo apenas foi afirmado pela parte a quem o mesmo beneficia ou aproveita. Como sempre, em sede de prova, tudo depende do contexto, das circunstâncias, dos pormenores. A avaliação dos meios de prova é o resultado global de um somatório de aquisições gnosiológicas, constituindo essencialmente um processo dinâmico de estabelecimento, com recurso aos meios de prova, de uma relação epistemológica entre o facto perscrutado e o agente do seu conhecimento e afirmação (o juiz). O estabelecimento dessa relação epistemológica exige, desde logo, curiosidade, atenção e abertura para atender aos pormenores que permitirão apreender o sentido do indício oferecido por cada meio de prova (mesmo o aparentemente menos relevante), aceitar o valor indiciário do meio, compreender a realidade indiciada e ponderar o valor ou grau de comprovação. O caso apresenta as seguintes particularidades. Uma cidadã portuguesa conhece um cidadão alemão que veio viver para Portugal deixando na Alemanha filhos de outra relação anterior dissolvida. Casaram e passaram a viver num imóvel que pertencia à mulher e que foi sendo melhorado e adaptado à vida de ambos. Não tiveram filhos. Ainda nova a mulher adoeceu com um cancro, começou a realizar tratamentos oncológicos e não muito tempo depois morreu. Durante a doença e antevendo o seu fim ela preocupou-se com o destino do seu património e manifestou o desejo de que os seus imóveis “ficassem” para um sobrinho com o qual tinha uma relação mais próxima, e não acabassem nos filhos do seu marido e único herdeiro. Mas não fez nem testamento nem doação desse património, limitando-se a deixar notas escritas onde relatou esse seu desejo. Falecida a senhora, o seu marido e único herdeiro herdou a totalidade do respectivo património, designadamente o prédio urbano que constituía há mais de uma década a respectiva casa de morada de família. Apenas 13 dias (!) após o óbito, quando o viúvo se encontrava ainda afectado pela perda da mulher, o viúvo e o sobrinho da falecida deslocaram-se a um cartório notarial e celebraram uma escritura pública intitulada de compra e venda, transferindo para o sobrinho a titularidade do património imobiliário da falecida herdado pelo viúvo. Apesar de celebrarem uma intitulada compra e venda, o viúvo ter declarado que já recebera o preço e este ter sido feito corresponder apenas ao valor matricial dos imóveis, a verdade é que o viúvo deixou de ser o titular dos bens que acabara de herdar sem ter recebido qualquer contrapartida. Desse modo, apenas 13 dias depois de ficar viúvo, o réu ficou ainda sem o património imobiliário que se tornara seu, sem qualquer contrapartida económica apesar do valor daquele património, e mesmo sem a titularidade da casa de morada de família que era a sua há mais de uma década. Tudo isso sucedeu porque o viúvo decidiu ser fiel à vontade da mulher manifestada no fim da sua vida. E qual era essa vontade? Segundo foi deixado escrito pela falecida mulher nos documentos que acompanham a contestação (onde revelou preocupar-se até com os contratos de serviço de telemóvel ou com a … cremação do marido quando este morrer), a sua vontade era que os bens imóveis que lhe pertenciam fossem transferidos pelo marido para o seu sobrinho AA, o aqui autor (segundo o escrito junto com a contestação, por «doação ou venda»), mas que este deixasse o marido «viver lá», isto é, viver nos imóveis. Daqui resulta que a proprietária dos imóveis e mulher do réu não desejava que este ficasse privado do direito de habitar na casa onde morava com ela, que era a residência de ambos, mas apenas que a propriedade dos imóveis que eram seus fosse transferida do marido (que herdaria tais bens por ser o seu único herdeiro) para o sobrinho, mantendo aquele o direito de habitar a casa. Estas circunstâncias são fundamentais para compreender o que se passou e o seu valor indiciário não pode ser desprezado. A decisão do réu de entregar ao sobrinho da mulher todos os bens imóveis que herdou desta sem receber qualquer contrapartida e correndo o risco de inclusivamente perder o direito de habitar na casa que era a morada da sua família e que por morte da mulher passara pertencer-lhe por herança, só não é um absurdo total, um acto verdadeiramente incompreensível que nenhum cidadão normal e minimamente cuidadoso praticaria, porque se filia na vontade aceitável de cumprir os desejos da mulher que acabara de perder em resultado de um cancro, conforme se apura levando em consideração o curto espaço de tempo que decorreu entre esse falecimento e a celebração da escritura pública de transferência da titularidade dos bens. Essa circunstância era igualmente do conhecimento da restante família da falecida e por isso do sobrinho aqui autor, pelo que este não podia deixar de estar consciente dos motivos e do contexto em que o tio recém-viúvo se predispôs a celebrar aquela escritura. Por isso, para determinar os motivos e o contexto do acto jurídico celebrado não é indispensável saber o que os contraentes da escritura falaram entre si porque mesmo que nada tivessem falado ambos conheciam a razão pela qual o acto jurídico estava a ser celebrado e por vontade de quem ele estava a ser celebrado. Quando o aqui réu se apercebeu do despautério que poucos dias depois da morte da mulher tinha feito, tentou reverter os efeitos jurídicos do acto praticado, através de uma acção judicial (processo n.º 1603/15.4T8AVR) na qual invocou, sem sucesso, a nulidade desse acto por vícios da vontade ou da declaração. O aqui autor contestou essa acção e na contestação afirmou o seguinte: «40.º - E se é verdade que não foi entregue pelo réu ao autor qualquer quantia monetária, não é menos verdade que o autor assim quis, salientando frequentemente junto de toda a família e do réu que nada mais fazia do que cumprir e respeitar a vontade da sua falecida esposa, anseio que bem conhecia e com o qual anuía. 41.º - Ademais, se por um lado, as aqui partes transmitiram os já referidos bens para a esfera patrimonial do réu, por outro, em igual respeito pelo desejo da falecida esposa do autor e tia do réu e como contrapartida do negócio celebrado, acordaram que o autor, se quisesse, poderia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal.» Por outras palavras, nessa acção o aqui autor declarou nos articulados que sabia que o acto jurídico praticado visava concretizar o desejo da tia mas também que foi igualmente para o respeitar que o sobrinho e o tio viúvo acordaram que este, se quisesse, podia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal. O aqui autor vai ainda mais longe e afirma mesmo que esse acordo foi mesmo a contrapartida de ter adquirido os bens sem pagar qualquer preço por eles, estabelecendo entre ambas as coisa um nexo de correspectividade ou sinalagmaticidade. E foi o aqui autor que juntou com a aludida contestação os já referidos escritos da tia onde esta manifesta que deseja que o marido continue a poder viver na casa que era a morada de família de ambos. Não é por isso de estranhar que na referida acção tenham sido julgados provados o seguintes factos: 10- O A. sentiu a morte da mulher, tendo ficado perturbado e transtornado com a mesma. 11- A falecida … desejava que os imóveis de que já era proprietária … ficassem para o sobrinho, mas que o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família. 13- O A. outorgou a escritura sem receber qualquer preço pela transmissão dos imóveis, ... 14- A compra e venda … foi outorgada para cumprir, por acordo entre A. e R., uma última vontade da FF sobre o destino dos imóveis de forma a que os filhos do A. não pudessem herdar os bens que este herdara por óbito da mulher. 15- Nos termos desse acordo, o R. não pagou o preço dos bens constante da escritura, … e o A. continua a residir na casa que serviu de morada de família dele com a ora falecida esposa. 17- Após tomar conhecimento da doença … a FF manifestou, por diversas vezes, ao marido a vontade de doar os bens de que era proprietária ao R.. 18- Após a morte da FF, o A. e o R. acordaram que seriam celebradas … transmissão de bens a favor deste (R.), para cumprir a vontade da falecida FF … 19- E acordaram verbalmente que o R. podia continuar a viver na casa de morada de família, como se fosse sua, enquanto o desejasse. 22- O A. continua a viver na casa que foi morada de família dele com a ora falecida …. E nesta acção o que dizem agora as partes? O autor afirma no artigo 3.º da petição inicial que «não obstante a outorga da… escritura e … transmissão da propriedade dos … prédios do réu para o autor, este … consentiu que aquele continuasse a residir no prédio … atenta a relação familiar existente entre ambos e uma vez que aquela havia sido a casa de morada de família dele até então». Por comparação com a anterior acção, o aqui autor deixa de esclarecer que isso sucedeu «em respeito pelo desejo da falecida esposa do autor e tia do réu» e «como contrapartida do negócio celebrado» e deixa de referir que a autorização foi dada para o autor «se quisesse, poderia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal.» Na contestação o réu afirma que «na altura da celebração da escritura de compra e venda, o autor referiu expressamente ao … réu … que ele poderia ficar lá até à morte» (artigos 169.º e 170.º) e ainda que «o autor assumiu o compromisso verbal de que concedia ao réu o direito de, no futuro, continuar a habitar a casa até ao fim dos seus dias, de forma gratuita» (artigo 171.º). Na réplica, o autor alarga o que alegou na petição inicial e afirma que permitiu que o réu continuasse a viver naquela que era a sua casa de morada de família (artigo 74.º e 75.º) e esclarece que isso foi porque o réu pretendia regressar à Alemanha e ele não necessitava no imediato da casa para si (artigos 76.º e 77.º), concluindo que «autorizou e permitiu que o réu … continuasse a residir na casa que havia sido até então a sua casa de morada de família, até que o mesmo regressasse à Alemanha ou em momento anterior se assim entendesse mudar-se» [o que corresponde à alínea a) dos factos julgados não provados]. Deste modo existem entre as partes pontos de convergência e pontos de divergência. O primeiro aspecto aceite por ambos é que a transferência da propriedade dos imóveis foi a forma encontrada para procurar respeitar a vontade da falecida, independentemente de saber se a forma escolhida era a adequada e/ou foi adoptada de forma livre e consciente por ambos. O segundo é o de que a falecida não pretendeu que por morte dela o marido aqui réu ficasse sequer sem poder habitar a casa que era a morada de família de ambos, ao invés pretendeu que ele ali continuasse a viver, se fosse essa a sua vontade. O terceiro aspecto é o de que foi nesse contexto que o autor autorizou efectivamente o réu a manter a sua morada nessa casa. O facto em que existe divergência não é sobre a possibilidade de utilização da casa (a autorização conforme à vontade da tia foi dada pelo autor, ou, nas palavras do próprio autor nos articulados da anterior acção, essa utilização foi acordada entre autor e réu), nem sobre a finalidade dessa utilização (o réu ali continuar a habitar, a ter a sua residência), é apenas sobre a duração dessa utilização: enquanto o réu decidisse (quisesse) continuar a ter a sua habitação na casa e, portanto, no limite, até ao fim da sua vida; ou apenas pelo período de um ou dois anos em que o réu anunciava tencionar regressar ao seu país natal. Como se viu, não foi produzida nenhuma prova que corrobore esta segunda hipótese, razão pela qual a decisão de a julgar não provada não é sequer impugnada. Mas, afastada a tese defendia pelo autor de que o réu pretendia regressar à Alemanha (decorridos estes anos ainda não regressou), pergunta-se: - porque haveria o réu de prescindir do seu património sem qualquer contrapartida e a favor de quem não lhe era nada?, porque haveria o réu de declarar vender o seu património sem receber o respectivo preço (nisso ambas as partes estão de acordo e o autor inclusivamente parece defender … em simultâneo a validade - e os efeitos - da compra e venda e a inexistência da obrigação de pagamento do preço, como se pudesse haver compra e venda sem … preço!)? - porque haveria o réu de fazer tudo isso e inclusivamente ficar sem casa para viver, ter de abandonar sem qualquer contrapartida a casa de morada de família que tinha e cuja propriedade exclusiva havia adquirido por herança da mulher? A resposta, fazendo apelo às regras da experiência e presumindo um declarante medianamente esclarecido e atento, mas actuando como um ser dotado da inteligência própria dos seres humanos, é a de que isso só sucedeu porque, tal como desejou e expressou a pessoa que, com boa intenção, acabou por estar na origem do problema criado (a anterior proprietária dos imóveis falecida, a qual como assinalámos até chegou a querer dispor que o marido seja cremado … quando morrer), em simultâneo foi acordado entre autor e réu que este continuaria a poder viver na casa na casa que até esse momento constituía a sua morada de família enquanto fosse essa a sua vontade. A prova destes factos não advém apenas do depoimento do próprio réu, resulta igualmente dos documentos juntos aos autos composto por cópia de páginas do diário onde a falecida manifestava e descrevia aquela sua vontade e ainda do teor das declarações feitas pelo aqui autor no articulado da anterior acção documentadas na certidão judicial junta aos autos. Tais meios de prova, em conjunto, permitem perfeitamente que se julguem provados os seguintes factos (complementares, concretizadores e instrumentais) que agora se aditam à fundamentação de facto (com a numeração destinada a enquadrá-los nos demais factos provados): b.1. Ao sentir a morte próxima, a FF manifestou à família o desejo de que os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família. d.1. Não obstante o declarado na escritura, autor e réu acordaram que este não receberia, como não recebeu, qualquer preço pela transmissão dos imóveis. d.2. Tendo a escritura pública sido celebrada com a intenção comum de cumprirem as últimas vontades da FF. f.1. Essa utilização foi acordada entre o autor e o réu no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública outorgada nesse dia. f.2. Tendo ficado acordado que o referido prédio continuaria a ser utilizado pelo réu, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, até à sua morte.
IV.Fundamentação de facto: Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos: a. O réu casou com FF, em 31 de Março de 2001, sem convenção antenupcial. b. A referida FF faleceu em ../../2014. b.1. Ao sentir a morte próxima, a FF manifestou à família o desejo de que os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família. c. Em 4 de Agosto de 2014, BB declarou, por escrito, perante notário que é o único e universal herdeiro de sua falecida mulher, FF, não havendo quem lhe prefira ou com ele concorra à sucessão. d. Em 4 de Agosto de 2014, BB, na qualidade de herdeiro da falecida mulher, e AA declararam, por escrito, perante notário, o primeiro que vende ao segundo, pelo preço global de cento e quatro mil seiscentos e dezasseis euros, entre outros, o prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro e quintal, sito na Rua ..., lugar de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...95 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro com o número ...70, da freguesia ..., tendo o segundo declarado aceitar a venda. d.1. Não obstante o declarado na escritura, autor e réu acordaram que este não receberia, como não recebeu, qualquer preço pela transmissão dos imóveis. d.2. Tendo a escritura pública sido celebrada com a intenção comum de se cumprirem as últimas vontades da FF. e. O réu casou e viveu no prédio identificado na precedente alínea d) com a referida FF, tia do autor. f. Naquela data (4 de Agosto de 2014), o autor consentiu que o réu continuasse a residir no prédio identificado na precedente alínea d), atenta a relação familiar existente entre ambos e uma vez que aquele prédio havia sido a casa de morada de família do réu até então. f.1. Essa utilização foi acordada entre o autor e o réu no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública outorgada nesse dia. f.2. Tendo ficado acordado que o referido prédio continuaria a ser utilizado pelo réu, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, enquanto for vivo. g. Ainda nessa data (4 de Agosto de 2014), o autor residia com e na casa de sua mãe. h. O prédio urbano, composto de casa, dependências, pátio e quintal, sito no lugar das Cruzes, inscrito na matriz sob o artigo ...89 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, freguesia ..., com o número ...61, encontra-se registado a favor de AA pela AP. ...74 de 11/08/2014. i. O prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro e quintal, sito na Rua ..., lugar de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...95 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, freguesia ..., com o número ...70, encontra-se registado a favor de AA pela AP. ...74 de 11/08/2014. j. O réu não faculta ao autor as chaves dos identificados prédios. k. O autor e o seu agregado familiar (companheira e filha menor de ambos), como consequência da não entrega do imóvel identificado na precedente alínea d), tiveram de arrendar uma habitação desde 15/04/2017. l. Em 13 de Abril de 2017, GG e HH, na qualidade de senhorios, e AA, na qualidade de inquilino, ajustaram entre si, por escrito, o arrendamento da fracção autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos com o n.º ...69, da União de Freguesias ... e ..., pela renda anual de €4.260,00, conforme instrumento de contrato que constitui o doc. 11 da petição inicial (junto de fls. 33 a 37), cujos dizeres se dão integralmente reproduzidos. m. Em 23 de Julho de 2018, o autor expediu para o réu, que a recebeu, a carta com os dizeres do documento de fls. 25 (doc. 4 PI), que se dão por integramente reproduzidos. n. É o autor quem suporta todos os custos fiscais inerentes aos prédios acima identificados, designadamente o Imposto Municipal sobre Imóveis. o. O autor necessita do prédio identificado na precedente alínea d) para habitação do seu agregado familiar (companheira e filha menor de ambos). p. De acordo com a vontade da tia (a referida FF), o réu poderia morar na habitação em questão o tempo que ele necessitasse. q. Quando o réu conheceu a falecida esposa, esta trabalhava como contabilista na sociedade A..., S.A.. r. O réu era Engenheiro Cerâmico na Sociedade B..., auferindo mensalmente cerca de 500.000$00. s. Em data não apurada, o réu vendeu as máquinas que eram propriedade de uma sociedade alemã da qual era sócio-gerente (com a denominação “C... GmbH”), tendo sido usado parte do dinheiro dessa venda na casa, designadamente, na colocação de caixilharia na marquise, no valor de cerca de €1.970,00, e na colocação de aquecimento em toda a casa, incluindo painéis solares, no valor de cerca de €1.780,00, tendo por referência os anos de 2000 e 2007. t. O réu transferiu para a conta titulada pela sua falecida esposa diversas quantias, concretamente, em 01.07.2007 transferiu para a conta da falecida esposa a quantia de 40.000,000 escudos, em 01.08.2002 ordenou a transferência da quantia de €250,00, em 23.01.2007 ordenou a transferência da quantia de € 500,00, em 13.09.2007 ordenou a transferência da quantia de €1.500,00, em 30.04.2008 ordenou a transferência da quantia de €1.000,00, em 06.09.2001 ordenou a transferência da quantia de 100 mil escudos, e em 26.02.2001 ordenou a transferência de 100 mil escudos.
V. Matéria de Direito: A. Do dever de restituição do imóvel ao autor: No que concerne à lide do autor, a presente acção apresenta os contornos de uma acção de reivindicação: o autor alega ser titular do direito real de propriedade dos dois imóveis que identifica por os ter adquirido do anterior proprietário por compra e venda e por esse direito se encontrar inscrito no registo predial a seu favor e alega que o réu se encontra a deter ilicitamente o imóvel, formulando em correspondência os pedidos de condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor e a restituir-lhe os imóveis. O autor beneficia da presunção da titularidade desse direito decorrente da sua inscrição no registo predial, nos termos do artigo 7.º do Código de Registo Predial, presunção que não foi afastada pelo réu na medida em que este se encontra já inclusivamente vinculado pela força do caso julgado da sentença da anterior acção onde foi apreciada a invalidade do negócio jurídico celebrado por escritura pública e, consequente, não pode mais arguir os vícios ali arguidos e apreciados no sentido da validade do negócio jurídico. Nos termos do artigo 1311.º, n.º 2, do Código Civil, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, ou seja, nas situações em que o detentor tenha um qualquer direito cujo conteúdo lhe confira a posse ou a detenção da coisa e, por essa via, um título legítimo de retenção da coisa, seja ele um direito real menor, um direito real de gozo ou de garantia ou apenas um direito obrigacional de gozo. No caso concreto, atenta a defesa do réu e o objecto do recurso, a discussão centra-se no imóvel adquirido pelo autor que constituía a casa de morada de família do réu e no qual o réu continuou a residir. Para se opor à entrega do mesmo ao autor, o réu, para a hipótese de não procederem todos os demais argumentos da sua defesa, invocou ter celebrado com o autor um contrato de comodato do imóvel que antes era e continuou a ser o seu lar e defendeu que ao abrigo do regime jurídico desse contrato não está (ainda) obrigado a devolver ao autor o imóvel. O autor respondeu defendendo que não foi celebrado qualquer contrato de comodato mas apenas dada uma autorização temporária para o réu residir no referido imóvel, mas que caso haja contrato de comodato resulta do respectivo regime jurídico que o réu já está obrigado a devolver o imóvel por não ter fixado um tempo fixo de duração da referida autorização. Na sentença recorrida entendeu-se, sem mais, que «como resulta da matéria de facto provada, as partes celebraram verbalmente um contrato de comodato relativamente ao imóvel identificado na alínea b) do artigo 1.º da petição inicial, tendo ficado determinado nesse contrato, que o mesmo imóvel seria usado para habitação do réu». E de seguida através da interpretação e aplicação das normas do respectivo regime jurídico entendeu-se que o autor, comodante, já pode exigir do réu, comodatário, a entrega do imóvel, tendo-se julgado improcedente a reconvenção e procedente o pedido do autor de entrega do imóvel. Afigura-se-nos, contudo, que nas relações jurídicos entre o autor e o réu existem contornos que tornam a qualificação dos contratos uma tarefa mais complexa e a qualificação que as partes e o tribunal lhes dão menos óbvia. Vejamos mais em pormenor. Na escritura pública que celebraram no Cartório Notarial e que formaliza as suas declarações de vontade, o contrato celebrado entre o autor e o réu é designado por «compra e venda». Por sua vez, as declarações feitas pelos outorgantes foram, pelo réu, a de que «vende» ao autor, e por este, a de que «aceita a venda» - o que é uma fórmula notarial algo imperfeita porque o comprador não aceita a venda, ele compra -. Deste modo, no próprio documento autêntico que formaliza o negócio, as partes denominaram a sua relação contratual como compra e venda, tendo usado nas suas declarações negociais termos convergentes com os actos típicos sociais transpostos para o tipo legal da compra e venda, isto é, qualificaram o contrato como uma compra e venda. Pedro Pais de Vasconcelos, in Contratos Atípicos, Almedina, 2002, pág. 133, alerta que «a qualificação pode todavia não coincidir com a estipulação do tipo. A estipulação do tipo pode corresponder a uma “falsa qualificação” (..), sempre que a estipulação do tipo não corresponda verdadeiramente ao tipo, sempre que, não obstante a estipulação do tipo, o contrato, tal como celebrado e de acordo com a sua disciplina efectiva, não pertença ao tipo estipulado, ou porque pertence a outro tipo, ou porque é atípico. Tal pode suceder numa variedade de casos, de entre os quais avultam os de erro na qualificação, os de contratos de tipo modificado ou de tipo múltiplo, os de simulação relativa, os de fraude à lei, os de contratos indirectos e os de contratos fiduciários». Daí que o autor sublinhe que «a estipulação do tipo, sendo embora um factor importantíssimo de qualificação, não passa todavia de um índice (..). Como índice que é, contribui mais ou menos intensamente para a qualificação. Na generalidade dos casos contribui muito e quase sempre é decisiva. Pode, todavia, ser afastada, em concreto, quando, interpretado o contrato e ponderados os demais índices, se deva concluir de modo diferente. Não deve, contudo, ser afastada sem uma ponderação cuidada e sem que caiba a quem a queira afastar o ónus de demonstrar convincentemente que o afastamento se impõe. É, assim, incorrecta a afirmação muito vulgarizada de que a qualificação atribuída pelas partes é irrelevante». Este autor refere que a tipificação dos contratos «pressupõe a existência de elementos susceptíveis de individualizar os tipos» porque estes se distinguem «pelas respectivas características, configuração e sentido» e que para esse efeito existem «índices do tipo» que são «aquelas qualidades ou características que têm capacidade para o individualizar, para o distinguir do outros tipos e para o comparar, quer com os outros tipos, na formação de séries e de planos, quer com o caso, na qualificação e na concretização», logo advertindo que essas características «dão alguma contribuição útil, quer à individualização, quer à distinção, quer à comparação, ainda que esse contributo não seja, por si só, determinante» porquanto «os índices do tipo são plurais» e «não existe um traço distintivo único capaz de, por si só e sem o concurso de outros, individualizar, distinguir e servir de critério de comparação de todos os tipos contratuais» (loc. cit, págs. 112 a 114). Os índices mais frequentemente usados são «a causa, entendida como função, o fim, o “nomen” dado pelas partes, o objecto, a contrapartida, a configuração, o sentido, as qualidades das partes e a forma do contrato». A propósito da contrapartida, o autor escreve, a pág. 140 e seguintes, que « o que distingue, em princípio, os contratos gratuitos dos onerosos, como classes de contratos, o que caracteriza os contratos comutativos e os sinalagmáticos é a estipulação de um sistema de contrapartidas. A doação, como contrato gratuito mais importante, não tem uma contrapartida. O seu conteúdo típico resume-se a uma deslocação patrimonial unilateral e simples. (…) Os contratos gratuitos comportam todavia a estipulação de “modos” que podem tornar menos clara a sua gratuidade e atenuar a sua unilateralidade patrimonial. Os contratos onerosos, comutativos, sinalagmáticos, também impropriamente denominados bilaterais (..), caracterizam-se, como classe, por conterem um sistema de contrapartidas. Na compra e venda, o preço é a contrapartida económica da coisa (…). A estipulação de uma contraprestação, de uma deslocação patrimonial de sentido contrário, não significa, só por si, que uma seja o correspectivo ou a contrapartida da outra. O modo ou encargo é exemplo de contraprestação que não é correspectivo ou contrapartida da outra (…). As diferentes modalidades da contrapartida são reveladoras e indiciantes do tipo. (…). A contrapartida, como índice do tipo, enfrenta dificuldades em casos duvidosos como são o da doação modal e o da compra por preço baixo (ou alto). Na doação modal, o modo perturba a gratuidade e a unilateralidade económica típica da doação. O modo não é a contrapartida económica da coisa doada. Se o fosse, seria um preço, e o contrato seria então qualificável como compra e venda ou como troca. O modo é ainda mais perturbante porque pode não consistir numa deslocação patrimonial em favor do doador: pode não ter natureza económica e pode ser a favor de terceiro. O modo, como índice do tipo, não afasta a qualificação da doação e, pelo contrário, constitui, ele próprio, um índice de doação, de legado ou de outro acto gratuito. É preciso, todavia, distinguir, primeiro, o modo do preço e da condição resolutiva, o que se consegue por interpretação.» (loc. cit., págs. 140 a 143). Deve ainda invocar-se o ensinamento de Baptista Machado, in Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Almedina, 2008, pág. 110 e 11, onde a propósito da técnica legislativa de estabelecer definições legais de determinados conceitos, escreve que os «enunciados legais que se limitam a estabelecer definições e classificações não são, evidentemente, normas autónomas ou completas: contêm apenas partes de normas que hão-de integrar outras disposições legais, resultando dessa combinação uma norma completa. Há quem afirme que as definições legais são inúteis e quem entenda, pelo contrário, que elas representam verdadeiras disposições com valor prescritivo. Aqueles que entendem que as definições legais são inúteis, ou lhes pretendem recusar carácter prescritivo, são normalmente induzidos a tal atitude pela ideia, em princípio exacta, de que não cabe ao legislador fazer construções conceituais (tal tarefa cabe à doutrina), mas estipular regimes jurídicos. Só que, no caso das verdadeiras definições legais, se trata de, por uma forma indirecta, constituir as hipóteses a que se ligam as consequências jurídicas de determinadas normas, e não de puras construções conceituais. Pelo que, a nosso ver, à técnica legislativa da definição só pode fazer-se a tradicional reserva de que, em direito, ommis definitio periculosa. Entendemos, pois, que as definições legais têm carácter prescritivo. (…) Mesmo que incompleta ou imperfeita, a definição do legislador não é como que uma simples noção provisória e revisível de uma realidade que se pretende categorizar: ela compreende sempre uma vontade ou intenção normativa, uma decisão – por isso que o legislador, ao dar de certa situação de facto uma definição, o que faz antes do mais é formular a sua resposta a uma questão normativa. Como vimos, na escritura pública as partes declararam vender, o réu, e comprar (aceitar a venda), o autor, cinco imóveis que pertenciam ao réu por aquisição mortis causa da anterior proprietária e titular inscrita no registo predial. Mais declararam terem fixado um preço para a transmissão da propriedade dos imóveis e que o mesmo «já foi recebido». Por fim no cabeçalho da escritura pública o negócio jurídico que a mesma formaliza é denominado «compra e venda». A reunião destes elementos parece não consentir dúvidas que as partes declararam na escritura pública celebrar um contrato passível de ser qualificado como compra a venda. O artigo 874.º do Código Civil define a compra e venda como sendo «o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço». Deste modo, este tipo de negócio jurídico pressupõe dois sujeitos - o vendedor ou transmitente e o comprador ou adquirente -; a transmissão da propriedade de uma coisa ou de outro direito; a existência de um preço que constitui a contrapartida da transmissão da propriedade ou outro direito. Todos eles parecem encontrar-se na escritura pública. Todavia, quando vemos melhor a fundamentação de facto reparamos que a escritura pública não traduz a vontade real das partes, que existem diferenças entre a vontade declarada e a vontade real. Mais concretamente, verificamos que apesar de na escritura ter sido declarado um preço e de o vendedor ter declarado inclusivamente que já o tinha recebido, na realidade o preço declarado não foi pago e, para além disso, as partes acordaram mesmo que não seria pago qualquer preço (facto d.1.). Esta situação suscita alguma perplexidade que se desvanece, no entanto, assim que se apreende o contexto em que o negócio jurídico foi decidido. Resultou provado que quem manifestou a vontade de que a propriedade dos imóveis viesse a ser transmitida para o aqui autor foi a tia deste, mulher do réu e anterior proprietária dos imóveis que viriam, por morte desta a serem herdados pelo marido e único herdeiro. A anterior proprietária não queria desalojar, despejar o marido e futuro viúvo, privá-lo da habitação que há mais de uma década se situava num dos imóveis (facto p.). O que ela pretendia era que em simultâneo os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho (mas não manifestou que isso tivesse de ser feito de imediato, nem definiu como seria feito) mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família. O autor e o réu quiseram concretizar a última vontade da falecida a esse respeito (facto d.2.). Existe, portanto, uma ligação genética entre o negócio celebrado entre os respectivos outorgantes e a vontade da anterior proprietária, que estabelece fios condutores da interpretação da vontade dos outorgantes, ou seja, interpretar a vontade destes como sendo a de estabelecer uma ligação, uma conexão, uma simultaneidade entre a transmissão da propriedade e conservação pelo réu do direito de continuar a habitar a casa que era sua e era a sua morada de família (facto f.). Sendo assim devemos concluir que o contrato celebrado por autor e réu não pode afinal ser qualificado como uma compra e venda … por lhe faltar uma dos elementos essenciais para a recondução da vontade das partes a este tipo legal de contrato: o preço! Não se trata, sublinhe-se, de uma situação de incumprimento da obrigação principal do comprador de pagamento do preço (aspecto que não interferiria com a qualificação do contrato porque não está relacionado com a configuração do acordo negocial, apenas com o momento posterior à celebração do cumprimento das respectivas obrigações), trata-se mesmo de o real acordo de vontades ter compreendido a estipulação («acordaram») de que não seria devido qualquer preço pela transmissão da propriedade (facto d.1.). Ao invés do preço, o que as partes acordaram foi que, como pretendia a falecida cuja vontade quiseram concretizar, o autor adquiriria a propriedade dos imóveis mas o réu podia continuar a residir no prédio, a utilizá-lo, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, enquanto fosse vivo (factos f., f.1., f.2. e p.). Este acordo não foi um mero acordo complementar, acessório do negócio jurídico celebrado, foi um acordo de vontades estabelecido «no âmbito do acordo para a celebração da escritura pública» que veio a ser celebrada (facto f.1.). Recorde-se o que já se assinalou acima na fundamentação da decisão sobre a impugnação da matéria de facto. Na anterior acção o aqui autor alegou mesmo «que não foi entregue … qualquer quantia (porque o aqui réu) assim quis» e ainda que os bens foram transmitidos sem pagamento do preço tendo as partes acordado que «como contrapartida do negócio celebrado… o autor, se quisesse, poderia continuar a residir naquela que foi a morada de família do casal.» Uma vez que a autorização para o vendedor continuar a utilizar o bem vendido não configura uma disposição patrimonial do comprador em benefício do vendedor (não há uma transferência de um bem com valor económico do património do comprador para o património do vendedor; o que há é uma redução das utilidades do bem que o vendedor transmite para o comprador por comparação com as utilidades próprias do direito de propriedade), a expressão contrapartida não é juridicamente correcta, mas a alegação do aqui autor tem o significado de aceitar a existência de um nexo essencial entre o acordo da transferência da propriedade e o acordo da continuação da utilização, que uma coisa não foi querida sem a outra e que é o conjunto de ambas que corresponde à vontade real inteira. Para Júlio Gomes, Comentário ao artigo 874.º do Código Civil, in Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações/Contratos em Especial, UCE, Lisboa, 2023, pág. 23 e seguintes, a determinação dos «elementos essenciais ou traços identitários» do tipo da compra e venda pressupõe a visão conjunta dos artigos 874.º e 879.º do Código Civil. Segundo ele, «para além do pressuposto relativo aos sujeitos - um, que intervém como vendedor; outro, que actua como comprador -, a compra e venda reclama, como traços identitários: (i) a transmissão da propriedade de uma coisa ou de outro direito; e (ii) a existência de um preço (…). Assim, e em termos singelos, a compra e venda, na sua fisionomia típica, pressupõe uma coisa ou um direito titulado por um sujeito (o vendedor), e que é transmitido a outrem (o comprador), em contrapartida do pagamento de um preço.». Mais à frente, assinala que o «contrato de compra e venda enquadra-se na categoria dos contratos onerosos, na medida em que as atribuições patrimoniais do vendedor e do comprador se caracterizam por um nexo de reciprocidade (…) A relação entre as atribuições patrimoniais do vendedor e do comprador não deve, no entanto, ser entendida no sentido de uma estrita equivalência objectiva, em termos que conduzam a rejeitar a qualificação como contrato oneroso no caso de a referida equivalência não se verificar (…). Com efeito, não é critério de validade negocial a existência de uma simetria absoluta entre as prestações contratuais; antes, reconhece-se às partes a faculdade de, no exercício da liberdade contratual, estipularem prestações de conteúdo não equivalente. Esta desproporção pode, de resto, ser sustentada em motivos e interesses legítimos, que não justifiquem, por isso, qualquer intervenção fiscalizadora pelo Direito. (…). O correspondente equilíbrio negocial ou a correspetividade das prestações tem de ser demonstrado, antes de mais, tendo por referência a comum intenção das partes (…). Em situações-limite, a equivalência entre as prestações patrimoniais acordadas pelas partes pode resultar afectada de modo expressivo e significativo, segundo um critério objectivo; nesta eventualidade, a qualificação do contrato, que se havia determinado à luz das declarações negociais, pode ser corrigida, cabendo ponderar, designadamente, a hipótese de celebração de um contrato misto, nos termos autorizados pelo artigo 405.º, n.º 2, ou, mesmo, de um contrato indirecto. Neste cenário, o tipo negociai da compra e venda é adoptado como tipo de referência pelas partes, mas, na situação individual, evidencia-se que o contrato está a prosseguir a função negocial correspondente a outro tipo negocial, v.g., a doação.» Depois no Comentário ao artigo 879.º do Código Civil, da mesma obra, pág. 50, Júlio Gomes torna a sublinhar que a obrigação de pagamento do preço - artigo 879.º, b), do Código Civil) é «um dever primário de prestação a cujo cumprimento se vincula o comprador. A existência de «um preço» eleva-se como um dos elementos essenciais da compra e venda. Como tal, se não for possível individualizar uma prestação contratualizada com a natureza de preço, deve ser rejeitada a qualificação do negócio como uma compra e venda. (…) Em concreto, a ausência de preço (assim como de uma contrapartida pecuniária) permite distinguir a compra e venda da doação (cfr. artigos 940.º e ss.), que constitui o tipo negocial gratuito paradigmático. Já a circunstância de se individualizar uma troca de um bem por outro permite qualificar o contrato como uma troca (e não como uma compra e venda), sem prejuízo da aplicabilidade das disposições relativas à compra e venda nos termos autorizados pelo artigo 939.º». No fundo, não é diferente do que sucede com outro dos elementos essenciais da compra e venda: a transmissão da propriedade. Pedro de Albuquerque, in Direito das obrigações. Contratos em especial, vol. I, Compra e venda, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 95 e seguintes, afirma que não poderá nunca qualificar-se como compra e venda o contrato do qual não decorra a transmissão da titularidade de uma coisa ou de um direito, porque o efeito translativo, previsto nos artigos 874.º e 879.º, alínea a), é um elemento essencial do tipo de contrato de compra e venda. Se há acordo das partes sobre a produção do efeito real, translativo do contrato, o contrato poderá valer como compra e venda; se não há esse acordo não poderá valer como tal. O contrato poderá valer como contrato, poderá valer como um contrato imperfeito, como um contrato preliminar ou como um contrato definitivo atípico mas não poderá valer como um contrato definitivo típico de compra e venda. Para C. A. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, 2020, págs. 400/401, “a distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o conteúdo e finalidade do negócio (…). Os negócios onerosos ou a título oneroso pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a perspectiva destas, um nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais (normalmente traduzidas em prestações). Cada uma das partes faz uma atribuição patrimonial que considera retribuída ou contrabalançada pela atribuição da contraparte. Cada uma das prestações ou atribuições é o correspectivo (a contrapartida) da outra, pelo que, se cada parte obtém da outra uma vantagem, está a pagá-la com um sacrifício que é visto pelos sujeitos do negócio como correspondente. (…). Os negócios gratuitos ou a título gratuito caracterizam-se, ao invés, pela intervenção de uma intenção liberal (animus donandi, animus beneficiandi). Uma parte tem a intenção, devidamente manifestada, de efectuar uma atribuição patrimonial a favor da outra, sem contrapartida ou correspectivo. A outra parte procede com a consciência e vontade de receber essa vantagem sem um sacrifício correspondente”. Para Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5.ª edição, pág. 447, o critério que permite fazer a classificação dicotómica entre negócios jurídicos gratuitos e onerosos é «a existência, ou não, no conteúdo do negócio, de um sistema de contrapartidas. (…) Os contratos onerosos são aqueles em que é estipulado um sistema contrapartidas. Na compra e venda, o preço é a contrapartida da coisa vendida, na locação a contrapartida é a renda, no contrato de trabalho é o salário. A contrapartida é o correspectivo da outra prestação estipulada como o seu contravalor de modo a que, pelo menos tendencialmente, na perspectiva das partes, a equilibre. O tipo paradigmático do contrato oneroso é a compra e venda. Contratos gratuitos são aqueles em que à prestação principal não corresponde uma contrapartida, em cujo conteúdo se estipula uma atribuição patrimonial unilateral. O tipo paradigmático dos contratos gratuitos é a doação”. Por aqui se vê que apesar do declarado pelos outorgantes e da denominação na escritura do contrato como uma compra e venda, o contrato celebrado não pode ser qualificado como uma compra e venda, mas, ao invés, como uma verdadeira doação, isto é, como um contrato gratuito de transmissão da propriedade de bens imóveis. A questão que se coloca é se o acordo para o transmitente continuar a ter a sua habitação no imóvel que até esse momento habitava e depois continuou a habitação não obstante ter transmitido a respectiva propriedade, altera essa qualificação e/ou como deve ser qualificado juridicamente. Cremos não suscitar dúvida que esse acordo não perturba a qualificação do contrato como uma doação. Desde logo, porque essa utilização não constitui sequer uma contrapartida, mas antes de uma limitação do conteúdo do direito transmitido. A contrapartida deve ser, por definição, uma prestação da outra parte da relação contratual. O preço, exemplo ideal da contrapartida, é uma disposição patrimonial do devedor em benefício do credor através de uma prestação de natureza pecuniária que realiza uma deslocação entre os patrimónios dos contraentes: o vendedor fica sem a coisa ou o direito mas recebe o montante pecuniário que representa para si o valor da coisa ou direito que transmitiu; o comprador adquire a coisa ou o direito mas fica sem o valor que despendeu para essa aquisição. Com aquele acordo o adquirente não dispõe do seu património em benefício do transmitente, nem se obriga perante aquele a qualquer prestação de natureza pecuniária ou outra. O que sucede é que por efeito do contrato ele adquire a propriedade dos imóveis, mas não a totalidade das faculdades inerentes a esse direito, designadamente a de usar livremente os bens adquiridos porque um deles vai continuar a ficar afecto à utilização do transmitente. No fundo, o adquirente não dispõe de nada seu em benefício do transmitente, apenas recebe deste menos que receberia em condições normais (rectius, não reduzidas por acordo das partes) por efeito do contrato. Pais de Vasconcelos, loc. cit., assinala que «a classificação dos negócios jurídicos em gratuitos e onerosos é francamente defeituosa, porque dificulta concepção dos contratos que não sejam puramente gratuitos nem perfeitamente onerosos. Uma das prestações pode não corresponder valorativamente à outra, por variadíssimas razões. Uma compra e venda pode ser celebrada por um preço inferior ao valor da coisa vendida, ou porque o vendedor está animado por um espírito de liberalidade ou de caridade, ou porque deseja mobilizar stocks, ou porque as condições do mercado lhe não permitem vendê-la por um preço superior. As doações podem ser oneradas com modos ou encargos que podem até atingir ou mesmo ultrapassar o valor da coisa doada. A gratuidade e a onerosidade são qualidades impermeáveis, são dois pólos numa série infinitamente graduável, na qual se inserem negócios mais ou menos gratuitos, como a doação modal, e mais ou menos onerosos, como as vendas por preços baixos, ou mesmo por preços vis. A distinção mantém todavia a sua utilidade, desde que entendida de modo polar, admitindo entre um pólo, onde se situará a gratuidade e outro pólo, constituído pela onerosidade perfeita, uma série de situações intermédias, mais ou menos gratuitas ou mais ou menos onerosas.» Também Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, pág. 390, citando Pais de Vasconcelos, loc. cit. Mota Pinto, in Onerosidade e gratuitidade das garantias, pág. 238, Antunes Varela, in Ensaio sobre o conceito do modo, pág. 131 e segs., e Galvão Teles, in Manual dos contratos em geral, pág. 399, e in Obrigações, pág. 97, sustenta que a classificação entre negócios onerosos e negócios gratuitos deve ser entendida em termos polares, já que entre o paradigma da onerosidade constituído pela compra e venda e o paradigma da gratuitidade, constituído pela doação, se encontram negócios que não são nem plenamente gratuitos nem puramente onerosos, podendo assumir essa natureza na relação entre as partes e não a assumir na relação com terceiros e vice-versa. Por outro lado, a doação é compatível com o estabelecimento de condições, modos, encargos ou cláusulas modais, as quais, mesmo quando possuem valor económico, não retiram à doação a sua natureza de liberalidade, de contrato gratuito, ainda que, não perfeitamente gratuito. A condição é a subordinação da eficácia do negócio (da produção ou da resolução dos seus efeitos), por vontade das partes, a um evento futuro e incerto; o termo é a subordinação da existência ou da exigibilidade dos efeitos de um negócio (os efeitos não começam ou cessam) a um acontecimento futuro mas certo. Já o modo é uma cláusula acessória típica das doações e liberalidades testamentárias, «mediante a qual o disponente impõe ao beneficiário da liberalidade um encargo, isto é, a obrigação de adoptar um certo comportamento no interesse do disponentes, de terceiro ou do próprio beneficiário» - C. A. Mota Pinto, loc. cit., pág. 583 -. O acordo de vontades no sentido de o doador do imóvel continuar a utilizar o imóvel doado que já era a sua casa de morada de família para essa finalidade constitui uma cláusula modal. Tal cláusula não possui autonomia em relação ao contrato de doação, porque foi celebrada no âmbito do acordo de vontade que constitui a doação, ou seja, ainda como parte integrante do modo como as partes entenderam definir e estabelecer a situação de vida concertada por via contratual e não como a resposta a um aspecto ou problema distinto e independente daquele. Ainda que a cláusula consagre uma prestação com valor económico (o valor de mercado da utilização da habitação, v.g. por arrendamento), como vimos, ela não tem a natureza de contrapartida, na medida em que não traduz uma transferência de património do adquirente para o transmitente correspectiva do valor da coisa ou direito transmitido. Ela traduz somente uma limitação de natureza negocial das faculdades que, em regra, acompanham a transferência da propriedade de um bem para outrem (a transferência da propriedade acarreta a transferência da faculdade do proprietário de usar e fruir o bem adquirido como entender; no caso as partes estabeleceram uma limitação consensual do âmbito dessa faculdade jurídica). Essa limitação é válida na medida em que a lei permite a doação modal, isto é, a possibilidade de a doação ser acompanhada da imposição de um encargo designadamente em benefício do doador e ainda que relacionado com a própria coisa doada (como ocorre, por exemplo, nas situações frequentes em que uma pessoa doa um imóvel a uma entidade pública para que esta nele construa um equipamento de uso público específico ou quando um pai doa um imóvel a um filho para que este nele instale a sua casa de morada de família, etc.). Feito este percurso, podemos então concluir que autor e réu celebraram um contrato válido, mas cuja qualificação jurídica não corresponde ao tipo legal da compra e venda, mas sim ao tipo legal da doação modal, ou doação sujeita ao encargo de o donatário permitir ao doador continuar a ter no imóvel doado a sua casa de habitação o tempo que desejar, enquanto for vivo. Sendo assim, nos termos do artigo 965.º do Código Civil o doador tem legitimidade para exigir do donatário o cumprimento desse encargo, sendo que a recusa da entrega do bem consubstancia uma forma legal de autotutela do direito ao cumprimento dessa prestação. Por esse motivo, devem ser julgados improcedentes os pedidos do autor, deduzidos com fundamento no direito de exigir a entrega do bem que, como acabamos de demonstrar não existe, de condenação do réu a restituir ao autor o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...95 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro com o número ...70, de condenação do réu a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização desse prédio pelo autor e de condenação do réu a pagar ao autor uma indemnização pela retenção desse prédio. Nessa parte procede o recurso. Da mesma forma, deve ser julgado improcedente o pedido reconvencional de que se declare a existência de um contrato gratuito de comodato até à morte do réu tendo por objecto esse prédio uma vez que, como procurámos justificar, não foi celebrado nenhum contrato de comodato do mesmo (a utilização do imóvel tem outro fundamento jurídico). Nesta parte improcede o recurso. Pode perguntar-se se o caso julgado formado pela decisão que pôs termo ao processo n.º …03/15.4T8AVR impede esta diferente qualificação jurídica do contrato celebrado e as consequências jurídicas dessa distinta qualificação. Salvo melhor opinião, não. Pese embora na anterior acção as partes hajam tratado sempre o contrato celebrado como uma compra e venda, o que nela foi alegado, discutido e decidido foi somente se o contrato padecia de vícios da vontade, se foi celebrado por erro, dolo ou com simulação relativa. Os vícios da vontade podem existir em qualquer declaração de vontade. Sendo elementos exteriores à própria vontade, eles condicionam a liberdade de decisão e a declaração de vontade, se existirem, mas não qualificam a declaração de vontade. Daí que os factos que consubstanciam os vícios não interfiram com o significado da declaração, isto é, com a definição dos efeitos jurídicos decorrentes da declaração. O erro ou dolo podem existir, seja o contrato uma compra e venda ou uma doação, e, em qualquer dos casos, por efeito dos mesmos factos. Não é por estar viciado por erro, dolo ou simulação que a declaração deixa de poder ser qualificada como compra e venda ou doação, conforme as circunstâncias e o conteúdo da declaração proferida. Acresce que na anterior acção não foi formulado qualquer pedido nem foi proferida qualquer decisão que pressuponha que o contrato seja uma compra e venda ou outro contrato diferente. Por conseguinte, não se formou caso julgado sobre a decisão de qualquer questão de que decorra essa qualificação ou que pressuponha essa qualificação do contrato. Na anterior acção apenas ficou decidido, com força de caso julgado, que o contrato celebrado pelas partes não era nulo com fundamento nos vícios alegados pelo autor, isto é, que na formação da vontade não ocorreram os factos consubstanciadores dos vícios alegados pelo autor, sendo por isso (rectius, nessa medida) o contrato válido; não ficou decidida a qualificação do contrato, nem essa qualificação foi determinante para a decisão de julgar não verificados os vícios da vontade alegados. Logo, nada impede que na presente acção a relação contratual seja qualificada da forma que acima se expôs, com as consequências enunciadas. Refira-se que estas consequências se imporiam de qualquer modo por aplicação da figura do abuso do direito, instituto que é de conhecimento oficioso e para cujo conhecimento se avisaram antecipadamente as partes. Conforme foi escrito pelo ora Relator no Acórdão de 12-09-2024, proc. n.º 5390/22.1T8MTS.P1, in www.dgsi.pt, para uma situação com contornos muito aproximados e que, tal como esta, parece «um exemplo de escola de uma situação de abuso do direito, passível de ser integrada na figura da supressio»: No caso resultou provado que foi a falecida tia do autor e esposa do réu que manifestou à família o desejo de que os imóveis de que era proprietária viessem a ficar para o sobrinho mas o marido pudesse continuar a residir na casa de morada de família; que a escritura pública foi celebrada com a intenção comum de cumprirem as últimas vontades da falecida; que apesar do que consta da escritura autor e réu acordaram que este não receberia, como não recebeu, qualquer preço pela transmissão dos imóveis, e ainda que o prédio continuaria a ser utilizado pelo réu, como se fosse seu, para nele manter a sua habitação e domicílio, o tempo que desejasse, até à sua morte. Perante estes factos parece claro que a pretensão do autor afronta directa e intoleravelmente o acordo estabelecido aquando da celebração do negócio, contraria de modo frontal a utilização da casa definida de forma válida pelos titulares do respectivo direito real e representa uma ruptura unilateral com a utilização que esse acordo permitiu e que foi posta em prática desde a celebração do contrato. Permitir o objectivo almejado pelo autor seria privar o réu do direito de habitar casa que era a sua casa de morada de família e de que, sem qualquer obrigação de o fazer que não fosse de natureza meramente moral ou afectiva, dispôs em favor do autor, em conjunto com outro património imobiliário, sem receber qualquer contrapartida e apenas para cumprir a vontade da falecida, mediante o acordo que era também o desejo dela, conhecido de ambas as partes, de poder continuar a habitar nessa casa enquanto o desejasse. Ao adquirir os imóveis sem suportar qualquer contrapartida, fazendo-o inclusivamente de um modo que foi orientado para impedir os filhos do réu de virem mais tarde, falecido este, suscitar questões sobre a redução da disposição gratuita por inoficiosidade, mediante o acordo com o réu de que este continuaria a poder viver naquela que era a sua casa de morada de família, o autor prescindiu em favor do réu de parte das faculdades jurídicas inerentes à propriedade em favor do anterior proprietário do imóvel. Deve, por isso, sob pena de intolerável abuso do direito, (ser obrigado a) cumprir a palavra dada. Eis porque nos parece que independentemente da qualificação jurídica do contrato e/ou do respectivo regime jurídico, à luz do direito e dos valores jurídicos que caracterizam o nosso sistema jurídico, jamais o pedido do autor para que o réu seja condenado a entregar-lhe o prédio onde habitava e habita podia ser julgado procedente.
B. Das alegadas benfeitorias: O recorrente insiste que o seu pedido reconvencional no sentido da condenação do autor a pagar-lhe €40.000 a título de benfeitorias realizadas num dos prédios deve ser julgado procedente. Esta pretensão é, no mínimo, desatenta uma vez que não existe na fundamentação de facto qualquer facto que permita sequer concluir que o réu realizou obras no prédio da mulher com dinheiro próprio. De acordo com a alegação do réu, esse eventual direito referia-se a obras realizadas pelo réu no imóvel pertencente à mulher na pendência do casamento e para melhoria das respectivas condições de habitabilidade. O facto do ponto s. apenas nos diz que o réu vendeu máquinas que pertenciam a uma sociedade alemã da qual era sócio-gerente. Como as sociedades comerciais são pessoas colectivas dotadas de personalidade jurídica, se as máquinas pertenciam à sociedade o produto da respectiva venda pertencia igualmente à sociedade, não ao réu, mesmo que este fosse sócio-gerente da mesma, qualidade que pode dar-lhe legitimidade para decidir a venda mas não o transforma em titular do … património social. Desse modo, se a aplicação do produto dessa venda tiver gerado algum direito de crédito por benfeitorias (ou por enriquecimento sem causa) sobre o proprietário do imóvel que foi melhorado com esse produto, ele teria de ser reclamado pela respectiva titular, a sociedade comercial, não pelo réu. Logo, ainda que parte desse produto haja servido para pagar a colocação, nos anos de 2000 e 2007, de caixilharia e sistema de aquecimento na casa, o réu não seria titular de qualquer direito de indemnização (aliás, a ter algum direito seria o de ser compensado, no momento da dissolução do casamento, pelo outro cônjuge, do valor com que o património próprio deste houvesse sido incrementado com dinheiro próprio do cônjuge: artigo 1726.º, n.º 2, do Código Civil). Como quer que seja, essa questão nem sequer se chega a colocar. Qualquer que tenha sido o direito que a realização de obras no imóvel da FF, na pendência do seu casamento com o réu, com dinheiro próprio do respectivo cônjuge aqui réu, tenha gerado (de indemnização ou compensação, por benfeitorias ou com outro fundamento jurídico), esse direito de crédito teria como credor o réu e como devedora a FF. Sucede que existem vários modos de extinção dos direitos para além do respectivo cumprimento e entre eles conta-se a confusão. Nos termos do artigo 868.º do Código Civil, esta ocorre quando na mesma pessoas se reúnam as qualidades de credor e devedor das mesma obrigação, caso em que se extinguem o crédito e a dívida. Essa extinção não se dá por efeito da vontade nem exige uma declaração receptícia nesse sentido, ela ocorre ex lege por mero efeito da reunião da mesma pessoa da posição de sujeito da obrigação e de titular do direito à prestação. Sucede que o réu era o único herdeiro do respectivo cônjuge, tendo por isso sucedido mortis causa na titularidade da totalidade dos direitos e deveres de natureza patrimonial e/ou que não se extinguiram com o óbito (artigos 2024.º e 2025.º do Código Civil). Essa sucessão ocorreu no momento em que após a abertura da herança (artigo 2031.º do Código Civil), o réu, único e universal herdeiro, aceitou o chamamento (artigos 2032.º, 2046.º e 2050.º do Código Civil), facto que se tem de considerar verificado, no máximo, aquando da outorga da escritura de habilitação de herdeiros que permitiu depois a formalização do negócio jurídico celebrado com o autor. Por isso, quando o réu transmitiu para o autor os bens adquiridos por sucessão, o seu eventual direito sobre a falecida relacionado com a execução das obras mencionadas já estava extinto por confusão. Daí que esse alegado direito tenha deixado, nesse momento, de ser exigível ao respectivo sujeito passivo ou obrigado, muito menos ao autor que anteriormente à escritura pública que celebrou com o réu não tinha qualquer relação jurídica com o imóvel e, como tal, não se tornou ele mesmo, em circunstância nenhum sujeito passivo da obrigação que pudesse onerar a proprietária do bem anterior titular de quem adquiriu o bem (da qual não era sequer herdeiro e, portanto, não pode ter-se tornado responsável pelas respectivas dívidas). Este pedido podia pois ter sido julgado improcedente logo no despacho saneador, razão pela qual foi bem julgado improcedente na sentença recorrida, que, nessa parte, não pode deixar de ser confirmada.
VI.Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida na parte em que condena o réu a restituir ao autor o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...95 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro com o número ...70, condena o réu a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização desse prédio pelo autor, e condena o réu a pagar ao autor a indemnização de €5.000,00 pela retenção desse prédio, absolvendo o réu desses pedidos e confirmando no mais a sentença. Custas do recurso por autor e réu na proporção do respectivo decaimento. * Porto, 20 de Fevereiro de 2025. * Os Juízes Desembargadores Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 876) 1.º Adjunto: Maria Manuela Esteves machado 2.º Adjunto: Judite Pires
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] ___________________________ |