Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
409/24.4T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE TUTELA DA PERSONALIDADE
COLISÃO DE DIREITOS
NÍVEL DE RUÍDO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: RP20240909409/24.4T8MTS.P1
Data do Acordão: 09/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O não cumprimento do dever de fundamentação da decisão da matéria de facto, imposto no artigo 60, nº4, do Código de Processo Civil, a verificar-se, pode determinar a aplicabilidade da solução prevista no artigo 662º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Civil ou a anulação do julgamento, ao abrigo da al. c) do mesmo normativo, mas não constitui vício da sentença susceptível de gerar nulidade, à luz do artigo 615º, nº1, do Código de Processo Civil.
II - Da tutela geral da personalidade infere-se a existência de uma série de direitos que a lei tutela: o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome, à saúde, ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa.
III - Havendo colisão de direitos, deve ter-se em conta o disposto no artigo 335.º do Código Civil, devendo ser feita uma avaliação dos direitos em abstracto pela comparação entre os bens jurídicos tutelados pelas situações em apreço e verificar, no caso concreto, se um dos direitos se apresenta superior ao outro, ponderando: a) o interesse a satisfazer com o exercício de cada um dos direitos em confronto; b) o critério da minimização dos danos, comparando as consequências negativas do não exercício pleno dos direitos colidentes; c) o critério dos lucros do exercício, averiguando se o exercício de um dos direitos proporciona ao seu titular um bom lucro e o exercício do outro não.
IV - Prevalece o direito à integridade física, de que o direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade é parte integrante, sobre o direito ao exercício de actividade económica da Recorrente que, atendendo ao modo como vem sendo realizada, afecta os identificados direitos dos Recorridos, “passando noites sem dormir, acordando muitas vezes e sem poderem ter um descanso repousante e reconfortante, vivenciando um quadro de constante nervosismo e intranquilidade, de insónias e mal-estar físico e psíquico.
V - O sacrifício e compressão do direito inferior (no caso, o direito da livre iniciativa privada) apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, entendendo-se como adequado e proporcional à coexistência dos dois direitos em conflito, a fixação das 23 horas, como hora limite para o exercício de actividade comercial ruidosa pois, o direito ao repouso e ao sossego não respeita unicamente ao período do sono.
VI - A consagração de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a administração não pode autorizar a instalação de equipamento, nem conceder licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo. Todavia, mesmo que a actividade exercida pela Recorrente provocasse um nível máximo de ruído inferior ao limite administrativamente fixado no Regulamento Geral sobre o Ruído, essa situação não interfere com a salvaguarda dos direitos de personalidade das pessoas, cuja protecção se não esgota no limite do ruído estabelecido em tal diploma.
VII - Uma das matérias em que a sanção pecuniária compulsória pode ter função importantíssima a desempenhar é a dos direitos de personalidade porque “são direitos pessoais, de conteúdo e função não patrimonial, a sua adequada e eficaz tutela passa pela prevenção do acto ilícito lesivo e não pela repressão e remedeio da violação”.
VIII - Consistindo o escopo da sanção pecuniária compulsória em “dobrar ou vergar a vontade do devedor rebelde, o seu montante será fixado sem relação alguma com o dano sofrido pelo credor”, ponderando-se as possibilidades económicas e financeiras do devedor, a sua capacidade de resistência, as vantagens e lucros resultantes do não cumprimento e, também, os interesses do credor na prestação devida”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 409/24.4T8MTS.P1

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Mendes Morais;

Primeiro Adjunto: Desembargador Carlos Gil

Segundo Adjunto: Desembargador Manuel Fernandes

I_ Relatório

AA e BB propuseram, ao abrigo do disposto no artigo 878.º e seguintes do CPC, o presente processo especial de tutela de personalidade contra A... UNIPESSOAL LDA., requerendo que esta seja condenada:

a) A encerrar o estabelecimento denominado B..., ou o que o suceda, por violação dos direitos de personalidade dos Requerentes;

Ou, subsidiariamente,

b) A cessar, de imediato, a utilização do espaço denominado B... a partir das 22:00 horas ou outro período que se repute adequado;

E, sempre,

c) A abster-se de produzir ruídos que sejam audíveis a partir dos prédios dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, ventilação/ar condicionado, som do fogo de artifício e artefactos pirotécnicos semelhantes, som dos veículos ligeiros e autocarros provenientes de qualquer um dos componentes, interiores ou exteriores, do espaço denominado B...;

Ou, subsidiariamente,

d) A absterem-se de produzir quaisquer ruídos que atinjam os prédios dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, ventilação/ar condicionado, som dos veículos ligeiros, motociclos provenientes de qualquer um dos componentes, interiores ou exteriores, do espaço denominado B... ou do que o suceda e que gerem incomodidade e/ou que excedam os valores-limite definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis;

Ainda, e sempre,

e) a pagar a sanção pecuniária compulsória, de €2.500,00 para cada um dos 1ºs e 2ºs autores, por cada dia em que a ré viole a obrigação emergente desses pedidos, ou seja, por cada infração diária.

Alegam, para tanto, que:

_ São proprietários do 1.º andar do prédio sito na Rua ..., em ..., Matosinhos, apartamento da qual são proprietários, desde 2019, e onde residem habitualmente com as suas duas filhas, sendo a requerida proprietária, no mesmo bloco de prédios dos Requerentes, de um estabelecimento comercial denominado “B...”, estabelecimento este que conta com duas entradas, uma em cada parte lateral do bloco de prédio em causa, encontrando-se situado no rés-do-chão do prédio contíguo ao dos Requerentes que residem no primeiro andar;

_ O funcionamento de tal estabelecimento tem perturbado o sono e o descanso dos Requerentes, de forma reiterada e completamente insuportável, sendo constantes as festas com DJ aos fins-de- semana e dias feriados, e mesmo fora destes dias, o funcionamento do estabelecimento prolonga-se sempre pelas primeiras horas da madrugada, sendo perfeitamente audível, quer o barulho provindo da música, da televisão, dos clientes (quer no interior, quer os que se concentram no espaço exterior onde o estabelecimento conta com uma esplanada), tornando impossível o descanso minimamente regular dos requerentes e da sua família, facto que tem prejudicado severamente a sua saúde, desempenho profissional e vida familiar;

_ Pese embora todas as tentativas para resolver a questão extrajudicialmente, pedindo inúmeras vezes aos responsáveis pela exploração do estabelecimento da requerida que reduzissem o ruído e assegurassem que o mesmo, ocorrendo, não colidisse com o período de descanso, tais esforços não surtiram efeito.

I.1_ Admitido o presente processo especial, em cumprimento do disposto no artigo 879.º CPC, foi designada data para a realização da audiência, tendo a R. apresentado oralmente, nessa sede, a sua contestação, em audiência, bem como o requerimento probatório.

I.2_ Realizada a audiência, nos termos do artigo 879.º, n.º 1, CPC, foi proferida decisão, em 26/5/2024 e rectificada em 3/6/2024, constando do dispositivo:

“Face ao exposto, decide o tribunal julgar parcialmente procedente o presente processo especial e, em consequência, condena-se a requerida a:

a) A cessar, de imediato, a utilização do espaço denominado B... a partir das 23 horas, todos os dias;

b) Sem prejuízo do determinado em a), a abster-se de produzir ruídos que sejam audíveis a partir dos prédios dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, ventilação/ar condicionado, som do fogo de artifício e artefactos pirotécnicos semelhantes do espaço denominado B... que excedam os valores-limite definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis;

c) A pagar aos requerentes a sanção pecuniária compulsória de 400 euros, por cada dia em que a requerida viole as obrigações decorrentes de a) e b);

d) Absolver a requerida do demais peticionado.

Custas pelos requerentes e requerida, na proporção de 1/4 e 3/4, respectivamente, atendendo ao decaimento.


*

Em cumprimento do disposto no art.306.º CPC, fixa-se à acção o valor de 30.000,01 euros.”

I.5_ Inconformada com a decisão, a Requerida A... UNIPESSOAL LDA. interpôs recurso da mesma, apresentando as seguintes conclusões:

A-Incide sobre o julgador uma imposição de um dever de especificar os fundamentos de facto e de direito das decisões que profere, em cumprimento desse dever de assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico-racional que conduz à formação da convicção relativamente aos factos que considerou provados ou não provados.

B- Consequência da omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou como não provados e a respectiva fundamentação, demarca os fundamentos de nulidade da sentença previstos no art. 615º nº 1 do CPC.

C-In casu não se nos afigura razoável, nem resulta das próprias regras da experiência que os dos factos não provados assente num único elemento, no caso, ausência de qualquer elemento de prova que os sustentasse ou a demonstração de factos com eles incompatíveis.

D -O Tribunal a quo não fundamentou a decisão, no que toca aos factos não provados e nem quanto ao critério orientador para fixar o quantitativo diário de 400 € a título de sanção compulsória pecuniária.

E- Entendemos que o Tribunal a quo não valorou devidamente toda a prova produzida, e que foi bastante no sentido de provar que foram executadas obras de insonorização no estabelecimento, que existem outros espaços de diversão nocturna naquele local, que o estabelecimento em funcionamento respeita os limites máximos de ruído permitidos por lei, que o estabelecimento é dotado de limitadores até 80 db e que o ruído produzido se verifica até às 2.00h da manhã.

F-Mesmo que razões houvesse para lhe ser aplicada a sanção pecuniária compulsória – o que contesta – sempre se dirá que o quantitativo de 400 € diários fixados é manifestamente exagerado, não respeitando, por isso, o critério legal.

G- A fixação da sanção pecuniária compulsória, na ausência de critérios objectivos para a fixação de um valor exacto, deve ocorrer, assim, por recurso à equidade, constituindo este um critério residual de justiça do caso concreto, apenas aplicável em situações excepcionais tipificadas na lei e que faz apelo a “todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.

H – A operação de fixação da sanção pecuniária compulsória o tribunal deve atender aos seguintes factores: gravidade da conduta e o grau de culpa do devedor; a importância do direito a acautelar pelo credor; a duração da violação do direito do credor; as consequências do incumprimento, incluindo se ocorreram danos ou lucros cessantes; a importância do incumprimento consoante se trate de um caso isolado ou de um caso reincidente; a duração previsível do incumprimento; as vantagens ou lucros resultantes do incumprimento; as condições económicas do devedor de modo a que a sanção seja proporcional e persuasiva .

I- 0 juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão.

J -Portanto, observa-se violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais plasmando no artº 208 nº 1 da CRP e 158 nº 1 do CPC- nulidade que se invoca.

K- Constamos uma colisão de direitos de espécies diferentes, do lado dos Autores o direito à integridade física, ao descanso e ao sono, e do lado da Apelante o direito ao exercício da uma actividade comercial.

L- Estes direitos são assim protegidos contra qualquer ofensa ilícita, não sendo precisa a culpa para se verificar uma ofensa, nem sendo necessária a intenção de prejudicar o ofendido, pois, decisiva é a ofensa em si.

M-O direito ao repouso integra-se no direito à integridade física e a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e, através destes, direito à saúde e qualidade de vida.

N- A Apelante é uma sociedade comercial regularmente constituída e encontra-se devidamente licenciada pelo Município de Matosinhos e o horário de funcionamento autorizado é de Domingo a Quinta, das 10:00h às 2:00 h (estando no inverso a operar desde as 14-30 às 2:00h), e Sextas, Sábados e vésperas de feriado das 10:00h às 4:00H (estando no inverso a operar desde as 14-30 às 4:00h.

O-O imóvel possui alvará de utilização nº ...4/08 emitido pela CM Matosinhos e de insonorização conforme DL nº 555/99 de 16/ 12.

P- A exploração do bar, com o respectivo alvará, faz com que o ruído que é ouvido na fracção da autora seja produzido no exercício do direito à exploração de uma actividade económica-direito de personalidade e que goza de protecção na lei fundamental.

Q- A restrição do horário de laboração do estabelecimento para as 23:00 horas todos os dias, constitui uma mediada desadequada e desproporcional à tutela dos direitos de personalidade, que impossibilita o direito ao exercício de uma actividade económica.

R - Da natureza dos direitos em presença, acresce que as necessidades de protecção da Apelante, se fazem sentir a partir da altura nocturna sendo que é durante o período das 23:00h até às 2:00h que estabelecimento mais labora/factura.

S- A zona circundante ao estabelecimento é uma zona de estabelecimentos de diversão nocturna, procurado com muita frequência por pessoas que pretendem frequentar e usufruir aqueles locais no período após as 23:00h, há vários anos.

T- Certo é que, ao decretar o fecho imediato, do espaço da Recorrente- B... a partir das 23:00 h e todos os dias, não resta para a Apelante outra solução, que não seja a apresentação à Insolvência.

U- Salvo entendimento diferente, o Tribunal a quo interpretou, no sentido de abranger o ruído decorrente de um estabelecimento comercial como denegação da iniciativa económica privada prevista no n.º 1 do artigo 61. ° da CRP, porquanto põe em causa a viabilidade financeira de uma atividade económica essencialmente em funcionamento no horário pós-laboral, o que na prática equivale ao sacrifício total do direito à iniciativa económica privada de quem a explora e à sua consequente denegação.

V- A actividade da Apelante nos presentes autos é, essencialmente, praticada no horário pós 23:00h, quando as pessoas deixam os seus empregos e no fim do jantar, pelo que a decisão de limitar a atividade ao horário de fecho pelas 23:00h revela-se totalmente desproporcionada face ao prejuízo ocasionado à aqui Apelante.

W- Urge frisar, que aquela zona onde fica situado o estabelecimento da Apelante é há mais de 20 anos local procurado pelas suas características, mormente bares/ cafés com esplanada e vista para o mar.

X- A única restrição horária admissível é a partir das 2:00h não só porque, sendo uma limitação que salvaguarda o núcleo essencial dos direitos da Apelante não resulta daqui qualquer denegação da iniciativa económica privada prevista no n° 1 do artigo 61° da CRP, portanto deverá ser revogada a sentença.

Nestes termos e nos demais de direito, que mui doutamente serão supridos, julgando procedente a presente apelação e revogando a sentença recorrida, fará este Venerando Tribunal, como sempre, JUSTIÇA”.

I.6_ Notificados, os Recorridos/Requerentes apresentaram resposta, formulando as seguintes conclusões:

1. O Recurso apresentado não cumpre com as obrigações dispostas nos artigos 639º e 640º do Código de Processo Civil;

2. No Recurso apresentado não existe uma efetiva impugnação da matéria de facto por parte da Recorrente, uma vez que aquilo que esta faz nas suas alegações é aludir ao que deveria ter ficado provado e não provado, sem fundamentar e sem se referir aos concretos factos;

3. A Recorrente coloca em causa a fundamentação que o tribunal a quo se estribou para formar a sua convicção, mas não consegue demonstrar em concreto quais os factos e meios probatórios que deveria levar em consideração;

4. A Recorrente não faz qualquer referência aos concretos meios probatórios que, na sua opinião, deveriam conduzir ao entendimento de que aqueles factos não podiam ter sido dados como provados ou não provados;

5. Posto isto, impõe-se a rejeição da reapreciação da matéria de facto pelo tribunal ad quem, visto que a Recorrente incumpriu com o ónus imposto pelo artigo 640º do CPC;

6. A Recorrente não cumpre com os requisitos legais mínimos para que se possa conhecer do recurso sobre a matéria de direito que apresenta, na medida em que não apresenta quais as normas de direito violadas;

7. Pese embora venha indicar nas suas conclusões normas jurídicas violadas, como é o caso da “Conclusão J”, o certo é que a Recorrente apresenta normas jurídicas que em nada tem a ver com a fundamentação do direito violado;

8. Assim sendo, o recurso encontra-se em desconformidade com os requisitos previstos no Artigo 639º Código de Processo Civil, mormente, pela apresentação de “Conclusões” deficientes, não cumprindo com os requisitos do seu n.º 2, aliena a);

9. Ora, no que concerne à alegação da Recorrente de que se verifica a nulidade da sentença, ao abrigo do artigo 615º, nº1 do CPC, por falta da fundamentação da decisão proferida, a Recorrente alega em erro;

10. A simples análise da motivação da sentença sub judice permite, por si só, decompor completamente as alegações da Recorrente e demonstra, sem sombra para dúvidas, que esta encontra-se superiormente fundamentada;

11. Analisada a fundamentação da Recorrente, facilmente constatamos que a mesma é subsumível a um único argumento repetido à exaustão, que consiste na alegação de que o tribunal a quo não fundamentou a decisão, no que toca os factos não provados;

12. A Recorrente limitou-se ao longo da sua alegação, de forma vaga e genérica, a referir a falta de fundamentação dos factos não provados, não alegando uma única vez os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ou o sentido que no seu entender deveria ter sido interpretadas e aplicadas as normas aos factos;

13. A fundamentação da sentença dispõe de uma aprofundada análise jurídica, bem como dos factos culminando numa correta e admirável aplicação do direito a esses factos, não havendo por parte do douto Tribunal nenhuma violação do artigo 615º, nº1 do CPC;

14. Salvo o devido respeito, a tese da Recorrente não tem fundamento verificando-se todos os requisitos necessários, previstos nas normas do Código de Processo Civil, em especial o Artigo 607º;

15. A Recorrente nos seus esforços infindáveis de tentar atacar processualmente a sentença, argui a nulidade ao abrigo do artigo 615º, nº1, i.e., por falta de fundamento, necessariamente não encontra qualquer veracidade ou fundamento;

16. Sendo notório que nunca poderia a sentença padecer de tal vício, uma vez que os factos dados como não provados, ao longo da Motivação proferida pela douta sentença, não encontram qualquer respaldo nos vários elementos que sustentam a decisão e demonstram-se incompatíveis com os factos dados como provados, e ainda, através da prova produzida;

17. Sendo nosso entendimento, quanto a esta questão isento de dúvidas, estando a Sentença proferida de acordo com as normas de Direito;

18. Vem ainda a Recorrente, alegar que o pagamento da quantia de 400€ a título de sanção pecuniária compulsória respeitante a cada dia em que aquela viole a obrigação de encerrar o estabelecimento denominado “B...” a partir das 23h00 todos os dias, bem como na sua abstenção de produzir ruídos e a ser lhe aplicada a sanção pecuniária compulsória o quantitativo de 400€ diários fixados é manifestamente exagerado, não respeitando, por isso, o critério legal;

19. A Recorrente alega em constante erro sobre as normas e critérios para uma boa decisão da causa, assim sendo a sanção pecuniária compulsória é determinada pelo tribunal a pedido do credor, determinando o valor monetário a ser pago por cada dia de atraso ou por cada infração no cumprimento de obrigações de caráter infungível, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso;

20. A finalidade da sanção pecuniária compulsória será única e exclusivamente o respeito pela decisão judicial, não estando em vista o efetivo pagamento do valor definido, nem se pretendendo esse pagamento;

21. Jurisprudencialmente encontra-se assente pelos Tribunais Superiores, que a sanção reveste-se num meio intimidatório de pressão sobre o devedor para cumprir a obrigação a que está adstrito,

reforçando o interesse do credor e o prestígio dos tribunais;

22. Ora, a decisão proferida reflete tudo quanto exposto na matéria de facto assente, assim como, os princípios versados no Código de Processo Civil, consistindo a decisão judicial num trabalho meritório na aplicação dos mesmos;

23. No decorrer das suas alegações a Recorrente alega, ainda que a sentença violou o seu direito fundamental de iniciativa privada, previsto no artigo 61º. n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, direito este enquadrado nos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, argumentando que a restrição imposta implica a negação do seu direito ao exercício de uma atividade económica;

24. Esta produz ruído no período noturno, violando sobremaneira o direito à integridade física, ao repouso e à saúde dos Recorridos, consagrado no Artigo 24º da Constituição da República Portuguesa.

25. Aliás, esta admite (indiretamente) ao longo das suas alegações de recurso que efetivamente produz ruídos que irradiam do seu estabelecimento para o exterior, bem como ruídos realizados por terceiros nas suas imediações.

26. Subentende-se que a Recorrente efetivamente pretende continuar a fazer tábua rasa ao preceituado pela Constituição da República Portuguesa, bem como o Regulamento Geral do Ruído e demais legislação.

27. Sucede que, em sociedade todos temos direitos e deveres não sendo razoável que cada um de nós pudesse apenas cumprir com alguns deveres.

28. O facto do estabelecimento da Recorrente se encontrar licenciado não dispensa que esta cumpra os deveres relacionados com o ruído que expande para o exterior, tendo reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita nas proximidades, mormente, para a habitação dos aqui Recorridos.

29. O direito à integridade física, ao repouso e à saúde, consagrado no Artigo 24º da Constituição República Portuguesa, é um direito absoluto beneficiando do regime dos direitos liberdades e garantias protegido pelos Artigos 17º e 18º da Constituição República Portuguesa.

30. O direito de exploração de uma atividade económica constitui um direito económico, que só pode ser exercido “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” (nº1 do Artigo 61º CRP), não constituindo assim um direito absoluto.

31. No que concerne na colisão deste direito com direitos absolutos, como são os direitos de personalidade, prevalecem estes últimos, conforme decorre do disposto no Artigo 335º, nº2 do Código Civil.

32. Em caso de colisão entre direitos, deve prevalecer o direito à integridade física, ao descanso e ao sono, direito que envolve a integridade física e moral do indivíduo, isto é, afeta os direitos de personalidade de uma pessoa, devendo assim predominar sobre o direito da livre iniciativa privada.

33. O ruído provocado por música e conversas de um estabelecimento deste tipo, que impede o sono e o descanso de quem habita por cima deste estabelecimento, constitui uma violação de um direito de personalidade dos Recorridos.

34. O Tribunal efetuou de forma sábia a harmonização dos direitos fundamentais em colisão, não deixando os Recorridos de desfrutar do seu direito à integridade física, ao descanso e ao sono, talqualmente a Recorrente não deixa de lograr do seu direito de iniciativa privada.

35. Por conseguinte, a decisão aplicou de modo totalmente correto o direito aos factos, julgou e ponderou de modo correto e adequado os direitos conflituantes e proferiu uma decisão irrepreensível que terá necessariamente que ser mantida nos exatos termos em que foi proferida.

Termos em que, e por tudo o mais que V. Exas. Doutamente suprirão, deve o recurso apresentado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se na íntegra a sentença proferida pelo tribunal a quo, assim se fazendo INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.”.

I.7_ Por despacho de 15/7/2024, foi admitido o recurso.

Nesse despacho, o Tribunal a quo, em cumprimento do disposto no artigo 617º, nº1, do CPC, pronunciou-se sobre a nulidade da sentença, arguida pela Recorrente, referindo que no seu entender não se verifica a nulidade por falta de fundamentação da decisão quanto à matéria de facto porquanto, ao longo de quatro páginas, chamou “à colação todos os elementos probatórios carreados para os autos, coligindo-os, fez exarar o raciocínio (com o qual a recorrente pode naturalmente não concordar) em que assentou a sua decisão, neste particular”.

I.8_ Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II_ Questão a decidir:

Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Os Recorridos invocaram a inadmissibilidade do recurso com fundamento no não cumprimento do disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil, por referência à impugnação da decisão da matéria de facto, e do disposto na alínea a) do nº2 do artigo 639º do Código de Processo Civil, por referência ao recurso sobre a matéria de direito.

Assim, são as seguintes as questões a apreciar:

1_ Rejeição do recurso quanto à reapreciação da decisão da matéria de facto e sobre a matéria de direito com fundamento, respectivamente, na não verificação dos pressupostos de índole formal, referidos no artigo 640º do Código de Processo Civil e na omissão das normas de direito violadas.

2_Nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, nº 1, do CPC, por ausência de fundamentação.

3_ Impugnação da decisão da matéria de facto por referência aos seguintes factos considerados não provados e que pretende ver transferidos para a matéria de facto provada:
(i) Foram executadas obras de insonorização no estabelecimento;
(ii) Existem outros espaços de diversão nocturna naquele local;
(iii) O estabelecimento em funcionamento respeita os limites máximos de ruído permitidos por lei;
(iv) O estabelecimento é dotado de limitadores até 80 db;
(v) O ruído produzido verifica-se até às 2.00h da manhã”.

4 _ Ponderação entre o direito à integridade física, ao repouso e à qualidade de vida, dos Recorridos, e o direito ao exercício da uma actividade comercial, da Recorrente: desadequada e desproporcional à tutela dos direitos de personalidade a restrição do horário de laboração do estabelecimento da Recorrente, até às 23:00 horas, todos os dias.

5_ Sanção pecuniária compulsória: verificação dos pressupostos para a sua aplicação e, em caso afirmativo, saber se o quantitativo fixado respeita o critério legal.

III_ Fundamentação de facto

Consta da decisão recorrida que:

Para a prolação da presente decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1) Os Requerentes residem no primeiro andar do prédio sito na Rua ..., em ..., Matosinhos, apartamento da qual são proprietários desde 2019 e onde residem habitualmente com as suas duas filhas.

2) A Requerida é, no mesmo bloco de prédios dos Requerentes, proprietária de um estabelecimento comercial denominado “B...”.

3) O Bar da Requerida tem duas entradas distintas, uma em cada parte lateral do bloco de prédio em causa.

4) E encontra-se situado no rés-do-chão do prédio contíguo ao dos Requerentes, que residem no primeiro andar.

5) Os Requerentes adquiriram este apartamento em frente ao mar, numa zona tranquila, para que pudessem usufruir da tranquilidade que uma residência em frente ao mar proporciona.

6) Sucede que, o estabelecimento comercial da Requerida, o B..., apesar de não estar imediatamente por baixo do apartamento dos Requerentes, tal qual devidamente identificado supra, a verdade é que tem perturbado o sono e o descanso dos mesmos de uma forma reiterada e completamente insuportável,

7) Que neste momento já ultrapassou o limite da capacidade dos Requerentes.

8) O bar tem realizado festas com DJ todas as sextas, sábados à noite, vésperas de feriado e durante o verão diariamente.

9) O estabelecimento está equipado com um aparelho de televisão e aparelhagens de som, sendo que as referidas festas iniciam às 22 horas e prolongam-se até às 4 da manhã, sendo frequentado especialmente neste período noturno.

10) A música durante as festas produz enorme barulho, assim como é intenso o ruído provocado pelos clientes a cantar, quer no seu interior quer quando se concentram no exterior, após o encerramento do estabelecimento comercial.

11) É usual também o ruído das motas a circular, algumas vezes em corridas, após o encerramento do bar, até porque o bar é muito frequentado por motards.

12) O ruído provocado pelos veículos automóveis e pelas motas em recreio, são sistemáticos, causando um barulho ensurdecedor.

13) A situação agrava-se particularmente nas noites de sexta e sábado.

14) Os autores sentem com muita intensidade, na sua habitação, o barulho produzido pelo estabelecimento durante a noite.

15) Tais barulhos e ruídos impedem os autores de descansar normalmente, passando noites sem dormir, acordando muitas vezes e sem poderem ter um descanso repousante e reconfortante.

16) Foram várias as vezes que os Requerentes comunicaram tal situação à gerente do Bar.

17) Fizeram-no de viva voz e fizeram-no via mensagem escrita por WhatsApp.

18) Isto até ao momento em que a gerente do bar deixou simplesmente de responder.

19) Este quadro traz os autores sob constante nervosismo e intranquilidade, traz-lhes insónias e mal-estar físico e psíquico.

20) Os autores têm de tomar medicação para poderem descansar e dormir e, mesmo assim, existem vezes que não conseguem dormir.

21) A situação torna-se intolerável a cada dia que passa, sendo certo que, os Requerentes quando sentem que se aproxima o fim de semana, começam a entrar em estado de ansiedade, optando agora muitas vezes por ter de passar os fins-de-semana na ..., na casa dos Pais da Requerente.

22) Na verdade, os pais do Requerente, que residem na Guarda, aquando da passagem de ano 2023/2024, deslocaram-se para passar o ano em família e até eles tiveram que dormir em casa dos Pais da Requerente, de forma a evitar o ruído que se esperava para aquela noite.

23) E tal acontece recorrentemente quando se deslocam para passar o fim de semana com o filho.

24) Acresce que os Requerentes têm duas filhas menores, uma criança de 3 anos e outra de criança de 7 anos, cujo quarto é o mais afetado pelo barulho, porque é aquele que fica junto à parede colada ao bar, sendo que o apartamento é no 1.º e o bar no r/c, tal como já explicado.

25) As crianças acordam várias vezes por noite, tendo muitas vezes dormido na sala de estar, pois aí o ruído é um pouco menor.

26) Em virtude disto, os Requerentes e alguns vizinhos apresentaram queixas na Câmara Municipal de Matosinhos, na Junta de Freguesia ... e fizeram participações à PSP e Polícia Municipal.

27) Numa das respostas a própria PSP faz alusão a inúmeras queixas efetuadas relativamente ao bar dos autos, identificando as do ano 2023 e referindo as do ano 2022.

28) Numa outra resposta, a PSP comunica o seguinte: “Ora, após todas estas diligências, e do desenvolvimento de um teste de ruído pela Camara Municipal de Matosinhos, foi notificada a Requerida de que não cumpria os requisitos legais sobre a lei do ruído e para proceder à sua regularização.

29) Porém, tudo continuou na mesma, nada se alterando, com os Requerentes a sofrer com o ruído que lhes entra pela casa dentro, sentindo-o com muita intensidade, na sua habitação, o barulho produzido pelo estabelecimento, especialmente durante a noite.

30) Tais barulhos, ruídos e músicas (que os Requerentes conseguem identificar quais são, inclusivamente, tal a altura a que se encontra a mesma) impedem os autores de descansar normalmente, passando noites sem dormir, acordando muitas vezes e sem poderem ter um descanso repousante e reconfortante.

31) Este quadro traz os autores sob constante nervosismo e intranquilidade, traz-lhes insónias e mal-estar físico e psíquico, estão exaustos e completamente desgastados, sendo certo que como médicos que são (ambos), temem que o descanso que não lhes é possível obter, possa afetar a sua clarividência no exercício da sua profissão, com o risco acrescido de as suas funções poderem colocar em causa a vida de terceiros.

32) E assim vão mais de dois anos neste inferno, não só com a música estridente, mas também com o barulho provocado pelos clientes na saída do estabelecimento, onde se instalam após a saída do bar.

33) Os Requerentes e os seus vizinhos tentaram de tudo até este momento, tendo até o signatário escrito a ameaçar com recurso à via judicial, o que simplesmente foi ignorado.

34) Efetivamente, é impossível que o direito ao sono e ao descanso seja constantemente violado pela Requerida, sem o mínimo respeito pelo descanso e sono dos requerentes.

Factos não provados:

a) A R. procedeu à quase integral insonorização do estabelecimento.

b) Na zona circundante do estabelecimento, existem outros estabelecimentos de diversão nocturna.

c) O funcionamento do estabelecimento ocasiona a produção de ruído com picos máximos que respeitam os limites máximos legais.

d) O estabelecimento encontra-se dotado de limitadores de ruído até 80 decibéis.

e) O ruído produzido pelo estabelecimento verifica-se até às 2 da manhã”.

III. Fundamentação de direito

1ª Questão

Advogam os Recorridos que o recurso interposto pela Recorrente está ferido de nulidade [ponto II da resposta] por “não existir uma efetiva impugnação (…) por parte da Recorrente, uma vez que aquilo que esta faz nas suas alegações é aludir ao que deveria ter ficado provado e não provado, sem fundamentar e sem se referir aos concretos factos”.

Caso assim não se entenda, pugnam pela rejeição do recurso na parte da reapreciação da matéria de facto por não se mostrarem reunidos os pressupostos de índole formal, exigidos pelo artigo 640º do Código de Processo Civil, sustentando que a Recorrente “coloca em causa a fundamentação que o tribunal a quo se estribou para formar a sua convicção, mas não consegue demonstrar em concreto quais os factos e meios probatórios que deveria levar em consideração; (…) não faz qualquer referência aos concretos meios probatórios que, na sua opinião, deveriam conduzir ao entendimento de que aqueles factos não podiam ter sido dados como provados ou não provados”.

Pugnam, igualmente, pela rejeição do recurso sobre a matéria de direito por não se mostrarem cumpridos os requisitos legais mínimos “na medida em que não apresenta quais as normas de direito violadas”, acrescentando que, pese embora a Recorrente, nas suas conclusões, indique normas jurídicas que considera violadas, como é o caso da “conclusão J”, tais normas “nada tem a ver com a fundamentação do direito violado”. Concluem que o recurso encontra-se em desconformidade com os requisitos previstos no artigo 639º do Código de Processo Civil, mormente, pela apresentação de “conclusões deficientes, não cumprindo com os requisitos do seu n.º 2, aliena a).”.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o nº1 do artigo 639º do Código de Processo Civil que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.

Nos termos do artigo 640º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a. Os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados;

b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Dispõe o n.º 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil, do Código de Processo Civil, ”No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) …”

Ensina António Abrantes Geraldes[1] que o sistema actual de apelação que envolva a impugnação sobre a matéria de facto exige ao impugnante, o seguinte:

“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; (…)

e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos e pendor genérico e inconsequente;…”.

Como se decidiu no Acórdão de 14/11/2022, proferido por este Tribunal[2], em que a ora relatora teve intervenção como adjunta, “em face do teor do citado artigo 640º, do CPC, a lei é clara ao assinalar ao recorrente a obrigatoriedade de especificar nas conclusões do recurso (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (b) em caso de, na sua perspectiva, a resposta a tais factos dever ser diversa da proferida pelo Tribunal, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida; (c) os concretos meios probatórios, constantes do processo, do registo ou da gravação, que imponham decisão diversa da recorrida e (d) caso a impugnação da decisão de facto se baseie em prova pessoal gravada, a indicação das passagens ou segmentos da respectiva gravação que demonstrem o erro em que incorreu o Tribunal, sendo certo que quanto aos ónus referidos nas sobreditas alíneas (c) e (d) julgamos que os mesmos podem ser cumpridos apenas nas alegações.

Trata-se, através do estabelecimento de tais ónus a cargo do recorrente, em primeiro lugar, a título de ónus primário, nos termos das ditas alíneas (a) e (b) de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso indicando os concretos segmentos da decisão que considera viciados por erro e a resposta alternativa eventualmente proposta. Em segundo lugar, a título de ónus secundário, através das ditas alíneas (c) e (d) estará já em causa a fundamentação ou motivação, em termos concludentes, das razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação e que, no seu entender, impunham uma decisão diversa.

Este ónus, no seu todo, decorre não apenas dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa-fé processuais, mas visa garantir, ainda e em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado, evitando o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão que porventura esteja inquestionavelmente correcta.

Por outro lado, como já se referiu, as apontadas divergências sobre o julgamento da matéria de facto têm de constar em termos especificados das conclusões do recurso, seja pela indicação específica/concreta de cada um dos factos que, por referência ao elenco da sentença, tenham sido incorrectamente julgados…”.
Transpondo tais princípios para o caso dos autos, a Recorrente, nas conclusões (ponto e),refere que “o Tribunal a quo não valorou devidamente toda a prova produzida, e que foi bastante no sentido de provar que foram executadas obras de insonorização no estabelecimento, que existem outros espaços de diversão nocturna naquele local, que o estabelecimento em funcionamento respeita os limites máximos de ruído permitidos por lei, que o estabelecimento é dotado de limitadores até 80 db e que o ruído produzido se verifica até às 2.00h da manhã”.
Tais factos constam da matéria de facto considerada não provada, pelo Tribunal a quo. Assim, poder-se-á considerar que a Recorrente enunciou quais os factos que, no seu entender, se encontram demonstrados e, consequentemente, devem constar da matéria de facto considerada provada, cumprindo o ónus imposto pela alínea a) do nº1 do artigo 640º do CPC. Em síntese, pretende que os factos considerados não provados sejam transferidos para a matéria de facto provada.
Contudo, não concretizou qualquer meio de prova que, no seu entender, permite a demonstração da factualidade que consta dos factos não provados, limitando-se a referir que o “Tribunal a quo não valorou devidamente toda a prova produzida, e que foi bastante” e que este Tribunal tem “a possibilidade de sindicar a convicção do julgador de primeira instância, uma vez que as provas foram gravadas e porque dispõe de todos os elementos que serviram para formar a mesma, designadamente toda a prova testemunhal e documental”, acrescentando “o que resulta da douta motivação da sentença é que o Tribunal a quo se limitou a escrever num simples parágrafo: “No mais, e quanto aos factos não provados, o tribunal estribou a sua convicção na ausência de qualquer elemento de prova que os sustentasse ou a demonstração de factos com eles incompatíveis. O que resulta num descrédito das testemunhas apresentadas pela Apelante, (e que não foram poucas) descurando as suas razões de ciência e aquilo que melhor resultou da globalidade dos seus depoimentos”.
Como referido no Acórdão de 13/9/2017, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-09-2017[3], “[n]a impugnação da matéria de facto, ao recorrente não basta fazer uma apreciação geral de toda a prova, fazendo dela a sua interpretação e tirar a conclusão de que todos os factos impugnados devem ser dados como provados na forma por si apontada. (…) [E]sta não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla, ou seja com base em erro de julgamento, em que na reapreciação da concreta prova se vai constatar se a testemunha disse ou não o que foi vertido na sentença, que não tem a ver com a valoração que o tribunal dá ao depoimento”.
Para demonstrar a existência de erro na apreciação da matéria de facto, o recorrente tem de contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo (v.g. a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário), apresentando as razões objectivas pelas quais se pode verificar que a mesma foi incorrectamente realizada, não bastando para o sucesso da sua pretensão a mera indicação dos meios de prova antes produzidos e ponderados na decisão recorrida [4].
Todavia, a Recorrida não especificou qualquer meio de prova para alicerçar a sua pretensão de ver carreados para os factos provados os factos considerados não provados, pelo que assiste razão aos Recorridos, nesta parte. Não indicou qual ou quais os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida. Refere que da valoração da prova efectuada resulta um “descrédito das testemunhas apresentadas pela Apelante, (e que não foram poucas) descurando as suas razões de ciência e aquilo que melhor resultou da globalidade dos seus depoimentos”, mas não consta da peça recursiva a indicação de qualquer passagem ou segmento da gravação dos depoimentos e declarações do legal representante da Requerida, nem a análise crítica desses meios de prova e dos considerados pelo Tribunal a quo que demonstrem o alegado erro na apreciação da prova.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17/3/2014[5]:
“I _Pretende-se que o advogado apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se «impunha» a formação de uma convicção no sentido pretendido pelo recorrente.
II - A razão pela qual se afirma que o advogado deve produzir uma análise crítica é esta: indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, pelo que nada se acrescenta ao que já existe nos autos, nem se mostra a razão pela qual se «impunha decisão… diversa da recorrida»”.
Assim, sem necessidade de mais considerações, é manifesto o não cumprimento do ónus imposto na alínea b) do nº1 e na alínea a) do nº2 do artigo 640º do CPC, sendo a consequência a rejeição do recurso, nesta parte, e não a nulidade da peça recursiva, como pugnam os Recorridos no ponto II da sua resposta.
Pelo exposto, não se mostrando cumprido, pela Recorrente, o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, rejeita-se o recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto.
E quanto ao recurso com fundamento em erro na aplicação do direito?
Dispõe o artigo 639º do Código de Processo Civil que:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada”.

Como decorre do disposto no artigo 639º, nº1, do Código de Processo Civil, a interposição de um recurso em processo civil sujeita o recorrente a dois ónus:
a) O ónus de alegação, no cumprimento do qual o Recorrente deve identificar as questões suscitadas e relativamente às quais pretende uma resposta diversa daquela que foi dada pelo Tribunal a quo; indicar as normas violadas, o sentido que deve ser atribuído às normas cuja aplicação e interpretação determinou o resultado que pretende impugnar e, perante eventual erro na determinação das normas aplicáveis, indicação das que deveriam ter sido aplicadas; e deve expor os fundamentos da sua pretensão no sentido da alteração, anulação ou revogação da decisão.
b) O ónus de conclusão, no cumprimento do qual o Recorrente deve condensar os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão em função da resposta que deve ser dada às questões de direito suscitadas.

Ensinava o Professor Alberto dos Reis[6], a palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: Que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta.”, acrescentando “As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (…). O que importa essencialmente, é que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso”.

A falta absoluta de alegações ou de conclusões gera o indeferimento do recurso [artigo 641.º, nº 2, al. b), do CPCivil], não sendo essa a situação dos autos.

O legislador isolou a falta das indicações referidas no nº2 do artigo 639º do CPC como um dos vícios que pode afectar as conclusões. Sendo as mesmas reputadas como deficientes quando nelas se omite, total ou parcialmente, a indicação das normas jurídicas violadas, o legislador adoptou uma solução paliativa que possibilita a supressão das deficiências através de despacho de convite ao aperfeiçoamento.

Ensina António Santos Abrantes Geraldes[7], “[a] prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorrecções, em conjugação com a efetiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais”.

Da leitura das conclusões apresentadas pela Recorrente facilmente se constata que não existiu a preocupação de indicar todas as normas que considera violadas. Além da menção constante dos pontos B), J) e O), indicou na conclusão U), o n.º 1 do artigo 61.° da CRP, qual o sentido atribuído a esta norma pelo Tribunal a quo e qual o sentido que, no seu entender, deve ser atribuído por forma a salvaguardar o núcleo essencial do seu direito. Por referência à aplicação da sanção pecuniária compulsória e quantitativo fixado, não indicou, nas conclusões, todas as normas constantes do corpo das alegações e que considera violadas, mas, apenas, o artigo 208º, nº 1, da CRP e o artigo 158º, nº 1, do CPC, para sustentar a nulidade da decisão por falta de fundamentação, normas que efectivamente não respeitam ao objecto do recurso.

Ponderando os fins das conclusões, o princípio do contraditório que, nos autos, não foi posto em causa, e, bem assim, o critério da celeridade processual, entende-se não se justificar o convite ao aperfeiçoamento.

Pelo exposto, improcede a pretensão recursiva dos Recorridos de rejeição do recurso quanto ao erro na aplicação do direito, com fundamento no artigo 639º, nº2 alínea a) do CPC.

2ª Questão

A Recorrente invoca a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, nº 1, do Código de Processo Civil que esteou na ausência de fundamentação:
a. “no que toca os factos não provados”; e
b. “quanto ao critério orientador para fixar o quantitativo diário de 400€ a título de sanção compulsória pecuniária”.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 615.º n.º 1, alínea b) [8], do Código de Processo Civil que “É nula a sentença quando [n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial. A errada, incompleta ou insuficiente fundamentação não integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos da mesma, não se confundindo com erros de julgamento. Como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 3/3/2021[9], “É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito: as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual [nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma] ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”

Ensinava o Professor Alberto dos Reis[10], “O que a lei comina de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocricidade da motivação é espécie diferente; afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.

Em anotação ao artigo 615º do Código de Processo Civil, referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[11], “é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito ou que se caracterize pela sua ininteligibilidade (quanto a um caso de fundamentação ininteligível ou imperceptível, previsões que a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 10-5-21, 3701/18, STJ 9-9-20, 1533.17, STJ 20-11-19, 62/07, STJ 2-6-16, 781/11)”.

Transpondo tais princípios para o caso dos autos, da leitura da decisão recorrida resulta, claramente, que da mesma constam os fundamentos de facto e de direito e só a falta absoluta desses elementos é que gera a nulidade invocada.

Consta da decisão recorrida: “Na sua fixação, deve o julgador ponderar as possibilidades económicas do devedor, as vantagens resultantes do não cumprimento, e o real interesse do credor ao cumprimento. Assim, considerando a natureza pessoal dos direitos que se pretendem ver acautelados, por um lado, e a circunstância da requerida se tratar de uma pessoa colectiva, por outro, e tendo em conta também que a sanção pecuniária compulsória constitui um meio de coerção ao cumprimento e ao respeito da decisão judicial ora proferida, entende o tribunal fixar o valor diário de 400 euros por cada dia que viole as obrigações ora fixadas”.

Assim, contrariamente ao defendido pela Recorrente, o Tribunal a quo enunciou os critérios por si considerados para a fixação do quantitativo diário da sanção compulsória. Poder-se-á discordar da decisão ou considerar insuficiente a fundamentação, mas não é inexistente.

E no que tange à alegada falta de fundamentação da decisão de facto, por referência aos factos não provados?

Advoga a Recorrente que o Tribunal a quo ao mencionar que a ausência de elementos de prova que sustente ou demonstre os factos não provados não fundamentou a decisão, no que toca os factos não provados.

Conforme resulta do exposto, a ausência de fundamentação que tem como sanção a nulidade da decisão respeita à fundamentação de facto ou de direito. A falta de motivação da decisão da matéria de facto não constitui vício da sentença susceptível de gerar nulidade, à luz do artigo 615º, nº1, do Código de Processo Civil. O não cumprimento do dever de fundamentação da decisão da matéria de facto, imposto no artigo 607º, nº4, do Código de Processo Civil, a verificar-se, pode determinar a aplicabilidade da solução prevista no artigo 662º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

Nem a falta de fundamentação da decisão de facto, nem a omissão de análise crítica da prova, constituem fundamento da nulidade da sentença, sendo que, nestas situações ou há remessa dos autos à primeira instância nas circunstâncias previstas no artigo 662.º, nº 2 al. d), do CPC ou há anulação do julgamento, ao abrigo da al. c) do mesmo normativo.

Desde já se adianta que não se verificam, no caso dos autos, os pressupostos que justificam a aplicação da solução prescrita no artigo 662º, nº 2, d) do CPC, estando a devolução do processo guardada para casos em que, além de serem efectivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.

Lida a decisão recorrida, constata-se que o Tribunal a quo expôs a razão de ciência das testemunhas inquiridas, incluindo as testemunhas arroladas pelas Recorrente e especificou o motivo pelo qual considerou que os depoimentos prestados pelas testemunhas CC, DD e EE, frequentadores do estabelecimento da Recorrente, não se mostraram suficientes para formar a convicção em sentido diverso. Consta, ainda, da decisão recorrida que foram apreciados e valorados as “participações à PSP e, bem assim, o teor dos ofícios da Câmara Municipal de Matosinhos (datados de 24.05.2023 e 24.11.2023), documentos dos quais se retira que, de tais esforços, resultou um processo inspectivo no âmbito do qual foram feitas medições acústicas no estabelecimento que revelaram infracções aos limites máximos legais de ruído que, à data do ultimo ofício, se mantinham e não se mostravam corrigidas”.

Atenta a motivação exposta na decisão recorrida, poder-se-á discordar da mesma – o que ocorre, no caso da Recorrente – mas, não se verificam, no caso dos autos, os pressupostos que justificam a aplicação da solução prescrita no art. 662º, nº 2, d) do CPC, resultando claramente, da leitura da motivação, o processo lógico da decisão da matéria de facto, proferida pelo Tribunal a quo.

Pelo exposto, improcede a nulidade da sentença recorrida, com fundamento na alínea b) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

3ª Questão

Dissente a Recorrente da decisão da matéria de facto, advogando que “o Tribunal a quo não valorou devidamente toda a prova produzida, e que foi bastante no sentido de provar que foram executadas obras de insonorização no estabelecimento, que existem outros espaços de diversão nocturna naquele local, que o estabelecimento em funcionamento respeita os limites máximos de ruído permitidos por lei, que o estabelecimento é dotado de limitadores até 80 db e que o ruído produzido se verifica até às 2.00h da manhã”. (alínea e) das conclusões).

Tendo sido decidido, por este Tribunal, rejeitar o recurso por referência à impugnação da decisão da matéria de facto, mostra-se prejudicada a apreciação desta questão.

4ª Questão

Dissente a Recorrente da decisão proferida pelo Tribunal a quo por referência à colisão entre o direito à integridade física, ao descanso e ao sono, e o direito ao exercício da uma actividade comercial, qualificando de desadequada e desproporcional à tutela dos direitos de personalidade dos Recorridos, a restrição do horário de laboração do estabelecimento até às 23:00 horas, todos os dias, medida que impossibilita o direito ao exercício da sua actividade económica.

Advoga que é uma sociedade comercial regularmente constituída e que se encontra devidamente licenciada pelo Município de Matosinhos, com horário de funcionamento autorizado de Domingo a Quinta, das 10:00h às 2:00 h (estando no inverso a operar desde as 14-30 às 2:00h), e Sextas, Sábados e vésperas de feriado das 10:00h às 4:00H (estando no inverso a operar desde as 14-30 às 4:00h). O imóvel possui alvará de utilização nº ...4/08, emitido pela Câmara Municipal de Matosinhos, e de insonorização conforme o Decreto-Lei nº 555/99 de 16/ 12. A exploração do bar, com o respectivo alvará, faz com que o ruído que é ouvido na fracção dos Recorridos seja produzido no exercício do direito à exploração de uma actividade económica e que goza de protecção na lei fundamental.

Sustenta, ainda, que é durante o período das 23:00h até às 2:00h que o estabelecimento mais labora/factura e que a zona circundante ao estabelecimento é uma zona de estabelecimentos de diversão nocturna, procurada por pessoas que pretendem frequentar e usufruir aqueles locais no período após as 23:00h, há vários anos, e que ao ser decretado o fecho imediato, do espaço da Recorrente, a partir das 23:00 h e todos os dias, não lhe resta outra solução que não seja a apresentação à insolvência.

Conclui que a interpretação efectuada pelo Tribunal a quo resulta na denegação da iniciativa económica privada prevista no n.º 1 do artigo 61. ° da CRP, porquanto põe em causa a viabilidade financeira de uma actividade económica essencialmente em funcionamento no horário pós-laboral, o que na prática equivale ao sacrifício total do direito à iniciativa económica privada de quem a explora e à sua consequente denegação e que a única restrição horária admissível é a partir das 2:00h não só porque, sendo uma limitação que salvaguarda o núcleo essencial dos direitos da Apelante, não resulta daqui qualquer denegação da iniciativa económica privada prevista no n° 1 do artigo 61° da CRP.

Cumpre apreciar e decidir.

Conforme referido pelo Tribunal a quo, a questão essencial a dirimir neste processo centra-se na ponderação entre direitos fundamentais: por um lado, o direito à integridade física, ao repouso e à qualidade de vida; do lado da Recorrida, o direito ao exercício de uma actividade comercial.

Dispensamo-nos de repetir as considerações jurídicas feitas na decisão recorrida a propósito dos direitos em colisão e da solução a procurar em caso de colisão porquanto, tratam-se de fundamentos jurídicos que, em rigor, não se questionam.

A dignidade humana tem como corolários os direitos da pessoa à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado.

Estabelece a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 16º nº 2, que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e são directamente aplicáveis, conforme previsto nos artigos 17º e 18º.

Preceitua aquela Declaração, nos seus artigos 3º, 24º e 25º, nº 1, que todo o indivíduo tem direito à vida, ao repouso e a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar.

Nos termos do artigo 25º da Constituição da República Portuguesa, “[a] integridade moral e física das pessoas é inviolável”, dispondo o artigo 66º, nº1, “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”, encontrando-se o direito à protecção da saúde, previsto no artigo 64º da constituição.

Dispõe o nº1 do artigo 70º do Código Civil que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

Desta norma de tutela geral da personalidade infere-se a existência de uma série de direitos que a lei tutela: o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome, à saúde, ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa configuram-se manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do direito fundamental de personalidade.

Como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 12/10/2023 [12], o direito ao descanso, ao sono e à tranquilidade dos Requerentes e, portanto, dos seus direitos de personalidade, mostram-se tutelados pelo n.º 1 do artigo 70.º do Código Civil, e «pelo n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, seja porque a interpretação conjunta deste n.º 1 com o princípio fundamental da dignidade humana (cfr. nomeadamente, o artigo 1.º da Constituição) resulta a tutela geral da personalidade, seja porque se encontram abrangidos pelo direito “ao desenvolvimento da personalidade”, expressamente previsto no citado n.º 1 do artigo 26.º». O direito fundamental à iniciativa económica privada, com protecção constitucional no seu artigo 61º, «tem uma dimensão de liberdade pessoal que, nessa medida, o permite enquadrar nos direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17, º da Constituição) ou, até, também no direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Tem, no entanto, uma outra dimensão – que é a que agora está em causa –, que é a da “liberdade de gestão e actividade da empresa (liberdade da empresa, liberdade do empresário” (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/85; cfr. ainda, por exemplo, o acórdão n.º 187/2001).»

A colisão entre o direito invocado pelos Recorridos e o direito que a Recorrente lhes contrapõe deve ser resolvida, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 335.º do Código Civil.

Escreve Elsa Vaz Sequeira [13] que, embora deva ser feita uma avaliação dos direitos em abstracto pela comparação entre os bens jurídicos tutelados pelas situações em apreço – que constituirá um indício da possível superioridade de um dos direitos ou da igualdade entre ambos –, importa verificar no caso concreto se, em rigor, um dos direitos se apresenta superior ao outro, indicando três critérios: a) critério do interesse ou fim do exercício em concreto: na graduação dos direitos impõe-se apreciar o interesse a satisfazer com o exercício de cada um dos direitos em confronto. Se em concreto, for de considerar que um dos direitos visa realizar um interesse mais valioso do que outro, então deve aquele beneficiar da prevalência referida no nº2; b) critério da minimização dos danos: para aferir da eventual inferioridade de um dos direitos colidentes cabe ainda comparar as consequências negativas do seu não exercício pleno, mormente apurar qual o prejuízo que advém para o titular, devendo dar-se prevalência àquele que sofreria um menor dano caso fosse impedido de exercitar o seu direito; c) critério dos lucros do exercício: se o exercício de um dos direitos proporciona ao seu titular um bom lucro e o exercício do outro não, então deve prevalecer aquele. Concluindo-se pela superioridade de um direito em relação ao outro, deve ainda assim procurar-se uma solução que, sem prejuízo de dar prevalência ao superior, acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido.

Pronunciando-se sobre a colisão entre o direito à integridade física, à saúde e ao repouso, e o direito ao exercício de uma actividade comercial, refere o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 7/11/2019 [14]:

«Sobre o tema em análise, Pedro Pais de Vasconcelos pronunciou-se do seguinte modo:

“São muitas as sentenças judiciais de “casos de ruído”. Os tribunais têm-se pronunciado numa orientação jurisprudencial constante, no sentido de que o ruído que impeça o sono, constitui violação do direito de personalidade, direito ao repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no respectivo Regulamento.
Esta orientação é correcta, dado que o direito de personalidade não pode ser restringido por um simples regulamento. A compatibilização jurídica do Regulamento do Ruído com o direito de personalidade deve ser feita no sentido de que todos devem limitar e emissão de ruídos, em geral, ao estabelecido no Regulamento; mas desse Regulamento não resulta um “direito a fazer ruído” e muito menos a ilicitude do impedimento do repouso alheio. O direito de personalidade prevalece sobre o regulamento do ruído.
É também frequente na controvérsia judiciária a invocação do direito fundamental à liberdade e iniciativa económica para contrariar ou bloquear o direito à integridade física e psíquica sempre que o ruído, o mau cheiro ou outra emissão nociva provêm de uma actividade empresarial. Os tribunais não têm atendido a essa argumentação.
A integridade física e psíquica são de uma vastíssima amplidão e abrangem a saúde em geral, quer a saúde física, quer a psíquica. Sempre que a saúde de alguma pessoa esteja ameaçada ou agredida, quer por condições ambientais concretas, como por exemplo, lixeiras a céu aberto ou emissões industriais venenosas, pode essa pessoa requerer ao tribunal que adopte as providências adequadas à prevenção ou cessação da ofensa, ou à atenuação dos seus efeitos”.

Ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 29/11/2016[15]:

“A dignidade da pessoa humana constitui, evidentemente, o valor constitucional supremo em torno do qual gravitam os demais direitos fundamentais porquanto se refere às exigências básicas, no sentido de que a todos os seres humanos sejam oferecidos os recursos, materiais ou espirituais, para uma existência digna, bem como sejam propiciadas as condições para o desenvolvimento das suas potencialidades.

Todavia, uma das principais características dos direitos fundamentais, enquanto princípios que são, é a sua relatividade, ou seja, não se revestem de caráter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.

Realmente, são frequentes as colisões entre direitos fundamentais: os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão-de ser solucionados pelo poder judicial mediante a respectiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.

A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: - i) a sua adequação ao fim em vista; - ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade); - iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens.

Por fim, nessa ponderação, para além da máxima otimização e do menor sacrifício dos valores em confronto, também não pode olvidar-se que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir, ainda, um instituto norteador da solução do caso concreto”.

No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no já citado Acórdão de 12/10/2023:

VIII. O direito fundamental à iniciativa económica privada tem uma dimensão de liberdade pessoal que, nessa medida, o permite enquadrar nos direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17. º da Constituição) ou, até, também no direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Tem, no entanto, uma outra dimensão, que é a da “liberdade de gestão e actividade da empresa (liberdade da empresa, liberdade do empresário” (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/85).

IX. Em qualquer caso, a colisão entre o direito à integridade física, de que o direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade é parte integrante, e o direito à iniciativa económica privada deve resolver-se com prevalência do primeiro.

X. Todavia, essa prevalência deve traduzir-se numa composição que acautele, na medida do possível, o exercício do direito à iniciativa económica privada”.

Pronunciando-se sobre a questão, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 13/1/2022[16]:

Também se tem entendido que não obstante o direito ao repouso, descanso e saúde, enquanto dimensões do direito de personalidade, terem um valor superior ao direito de propriedade da ré e ao direito económico de exercer e explorar a sua actividade - e deverem por isso prevalecer sobre estes últimos -, tal não significa que não se deva procurar uma solução que, ainda assim, equacione os direitos inferiores (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2016, proc. n.º 1219/11.4TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt).

De facto, havendo colisão de direitos, deve ter-se em conta o disposto no artigo 335.º do Código Civil, onde se estabelece que «havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes» (n.º 1), e que «se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (n.º 2).

Para esse efeito, importa proceder a uma concreta e casuística ponderação judicial, usando como critério o princípio da proporcionalidade e tomando como referência a intensidade e relevância da lesão do direito de personalidade, designadamente para apurar se a prevalência dos direitos de personalidade não estabelece no caso concreto uma desproporção intolerável com os demais direitos em conflito, sendo certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante (Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-03-2007, proc. n.º 07B585, e de 19-04-2012, proc. n.º 3920/07.8 TBVIS.C1.S1, www.dgsi.pt).

Como defende Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, 1995, Coimbra Editora, pág. 547, em «caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo (v.g. um direito real, um direito de crédito, um direito familiar ou um direito público da Administração), face sobretudo à ainda mais acentuada diversidade dos bens tutelados e à frequente ocorrência de contraposições entre bens pessoais e bens patrimoniais, verifica-se normalmente um diferente peso jurídico em tais direitos. A respectiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores ínsitos nas proposições normativas referentes aos direitos conflituantes, adentro (…) do conjunto de bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, máxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo. Assim, quando num prédio de habitação seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja produção de ruídos ou cheiros susceptíveis de incomodar gravemente os habitantes do prédio, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes deve considerar-se superior ao direito de exploração de actividade comercial ou industrial ruidosa ou incómoda. Mas, já o direito ao sossego, à tranquilidade e ao repouso dos moradores não prevalece sobre o direito de propriedade alheio, face aos ruídos normalmente provocados por vozes de aves domésticas legitimamente mantidas em quintais de residências vizinhas». Mais à frente, este autor afirma ainda que «mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses».”.

Pronunciando-se sobre a colisão entre direitos de personalidade (de repouso, sono) e o direito de propriedade (aproveitamento das utilidades do seu prédio) e o de livre exercício da iniciativa privada (exploração de actividade económica), decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 5/3/2024[17], que “deverá implementar-se uma solução de compressão possível, razoável e proporcional dos direitos em conflito, em ordem à sua co-existência, não obstante a preponderância dos direitos de personalidade”.

Transpondo tais princípios para o caso dos autos e considerando a matéria de facto provada, concorda-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Resulta da matéria de facto provada que
a. O estabelecimento comercial da Requerida, o B..., tem realizado festas com DJ todas as sextas, sábados à noite, vésperas de feriado e durante o verão diariamente. O estabelecimento está equipado com um aparelho de televisão, e aparelhagens de som, sendo que as referidas festas iniciam às 22 horas e prolongam-se até às 4 da manhã, sendo frequentado especialmente neste período noturno.
b. A música durante as festas produz enorme barulho, assim como é intenso o ruído provocado pelos clientes a cantar, quer no seu interior quer quando se concentram no exterior, após o encerramento do estabelecimento comercial.
c. Os autores sentem com muita intensidade, na sua habitação, o barulho produzido pelo estabelecimento durante a noite.
d. Tais barulhos e ruídos impedem os autores de descansar normalmente, passando noites sem dormir, acordando muitas vezes e sem poderem ter um descanso repousante e reconfortante.
e. Os Requerentes quando sentem que se aproxima o fim de semana, começam a entrar em estado de ansiedade, optando agora muitas vezes por ter de passar os fins-de-semana na ..., na casa dos Pais da Requerente.
f. Os Requerentes têm duas filhas menores, de 3 e 7 anos e idade. As crianças acordam várias vezes por noite, tendo muitas vezes dormido na sala de estar, pois aí o ruído é um pouco menor.
g. Esta situação motivou queixas, pelos Requerentes e alguns vizinhos, na Câmara Municipal de Matosinhos, na Junta de Freguesia ... e fizeram participações à PSP e Polícia Municipal. Numa das respostas apresentada pela PSP, comunicou que “após todas estas diligências, e do desenvolvimento de um teste de ruído pela Camara Municipal de Matosinhos, foi notificada a Requerida de que não cumpria os requisitos legais sobre a lei do ruído e para proceder à sua regularização”.
h. Tudo continuou na mesma, com os Requerentes a sofrer com o ruído que lhes entra pela casa dentro, sentindo-o com muita intensidade, na sua habitação, o barulho produzido pelo estabelecimento, especialmente durante a noite. Tais barulhos, ruídos e músicas (que os Requerentes conseguem identificar quais são, inclusivamente, tal a altura a que se encontra a mesma) impedem os autores de descansar normalmente, passando noites sem dormir, acordando muitas vezes e sem poderem ter um descanso repousante e reconfortante.
i. Este quadro traz os autores sob constante nervosismo e intranquilidade, traz-lhes insónias e mal-estar físico e psíquico; têm de tomar medicação para poderem descansar e dormir e, mesmo assim, existem vezes que não conseguem dormir. Estão exaustos e completamente desgastados, sendo certo que como médicos que são (ambos), temem que o descanso que não lhes é possível obter, possa afectar a sua clarividência no exercício da sua profissão, com o risco acrescido de as suas funções poderem colocar em causa a vida de terceiros.
j. Esta situação perdura há mais de dois anos.
Tendo em atenção todas as considerações anteriores e os factos dados como provados, não se pode deixar de acompanhar a decisão sob recurso, no sentido da prevalência do direito à integridade física, de que o direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade é parte integrante, pois a actividade da Recorrente, atendendo ao modo como vem sendo realizada, afecta os identificados direitos dos Recorridos, “passando noites sem dormir, acordando muitas vezes e sem poderem ter um descanso repousante e reconfortante”, vivenciando um quadro de constante nervosismo e intranquilidade, de insónias e mal-estar físico e psíquico.
Aqui chegados e tendo presente que o sacrifício e compressão do direito inferior (no caso, o direito da livre iniciativa privada) apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, importa aquilatar se o fecho do estabelecimento da Recorrente, às 23horas, constitui uma solução razoável e proporcional à coexistência dos direitos em conflito ou, como sustenta a Recorrente, uma medida desadequada e desproporcional.
Convocando a factualidade provada, entende este tribunal que não se mostra possível respeitar o direito prevalecente com medida menos gravosa, limitativa do direito da Recorrente. Em causa está um prédio de habitação no qual residem os Requerentes e as suas filhas de três e sete anos de idade. No estabelecimento da Recorrente verifica-se a produção de ruídos susceptíveis de incomodar gravemente os Requerentes, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes. O direito ao repouso e ao sono e, concomitantemente, à tranquilidade da vida familiar, inscrevem-se no conjunto de direitos imprescindíveis à existência de qualquer cidadão, desde logo porque indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, ao seu desenvolvimento sadio e integral, pelo que a tutela razoável destes direitos impõe uma medida que impeça a produção de ruído, entendendo-se como adequado e proporcional a fixação das 23 horas, como hora limite para o exercício de actividade comercial ruidosa. Importa ter presente que o direito ao repouso e ao sossego não respeita unicamente ao período do sono.
Advoga a Recorrente que a restrição do horário de laboração do estabelecimento para as 23:00 horas, todos os dias, impossibilita o direito ao exercício de uma actividade económica. No entanto, esta afirmação conclusiva da Recorrente é contrariada pela conclusão N) constante da peça recursiva. Dispondo de licença para funcionar com o horário, de Domingo a Quinta, das 10:00h às 2:00 h, e às Sextas, Sábados e vésperas de feriado, das 10:00h às 4:00h, a Recorrente não se encontra impossibilitada de exercer a sua actividade entre as 10 horas e as 23 horas.

Argumenta a Recorrente que o imóvel possui alvará de utilização nº ...4/08 emitido pala CM Matosinhos e de insonorização conforme DL nº 555/99 de 16/ 12. A exploração do bar, com o respectivo alvará, faz com que o ruído que é ouvido na fracção dos Recorridos seja produzido no exercício do direito à exploração de uma actividade económica-direito de personalidade e que goza de protecção na lei fundamental.

Dir-se-á, desde logo, que a protecção conferida pela Lei fundamental assenta no pressuposto que pela Recorrente são observados os preceitos que regulamentam a actividade por si exercida. Ora, a Recorrente não logrou demonstrar que “procedeu à quase integral insonorização do estabelecimento” (facto não provado constante do ponto a) ou que “o funcionamento do estabelecimento ocasiona a produção de ruído com picos máximos que respeitam os limites máximos legais” (facto não provado constante do ponto c) ou que “o estabelecimento encontra-se dotado de limitadores de ruído até 80 decibéis” (facto não provado constante do ponto d), sendo sobre si que impende o ónus de prova desse quadro factual.

Como referido pelo Tribunal a quo, “importa, antes de mais, não perder de vista que a ponderação de compatibilização dos direitos pressupõe que o direito económico em causa da requerida apenas possa ser exercido em conformidade com a lei, ou seja, que respeite os limites máximos previstos no Regulamento Geral do Ruído (DL 9/2007 de 17.01) e, bem assim, o Regulamento Municipal do Ruído do Município de Matosinhos (Regulamento 1071/2020). Acresce, além do mais, que o funcionamento do estabelecimento, na senda da solução abstracta que o disposto no art.24.º do aludido Regulamento Geral do Ruído, e considerando as concretas circunstâncias situacionais do estabelecimento – integrado num bloco de apartamentos, de cariz essencialmente habitacional, portanto – e, afora a solução radical de encerramento que implicaria a supressão total do direito da requerida, apenas poderá subsistir nas circunstâncias horárias ali previstas e que acautelam o direito ao descanso dos requerentes, em situação de vizinhança. Com efeito, a diminuição do horário de laboração tem impacto na diminuição da lesão dos direitos de personalidade dos requerentes, assegurando o seu repouso mas não impede que, no período de laboração, se ouçam dentro da sua habitação, ainda que com as janelas fechadas o som da música e das conversas ocorridas no estabelecimento explorado pela requerida. Ora, a tutela dos direitos de personalidade dos requerentes impõe que sejam adoptadas medidas com vista à cessação da lesão do direito ao repouso, ao sossego e à qualidade de vida, o que implica que não sejam incomodados dentro de sua casa por conversas e músicas alheias e que, no caso, e tratando-se de um estabelecimento onde seja passada música ao vivo, ou proveniente de aparelhos de som, com potência suficiente para se fazer ouvir nas habitações vizinhas, terá que acautelar que a forma de exploração do seu estabelecimento (alterando-a ou adoptando soluções técnicas que o garantam) observe limites legais máximos do ruído”.

Por último, a consagração de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a administração não pode autorizar a instalação de equipamento, nem conceder licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo. Todavia, mesmo que a actividade exercida pela Recorrente provocasse um nível máximo de ruído inferior ao limite administrativamente fixado no Regulamento Geral sobre o Ruído (aprovado pelo DL 9/2007, de 17/1), que regulamenta a tarefa cometida ao Estado, nos termos da Constituição e da Lei de Bases do Ambiente, na salvaguarda da saúde humana e do bem-estar das populações, através da prevenção do ruído e no controlo da poluição sonora, esse diploma, como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 29/11/2016, «apenas tem efeitos dentro da actividade administrativa e no seu âmbito, não podendo interferir com a salvaguarda dos direitos de personalidade das pessoas, cuja protecção se não esgota no limite do ruído estabelecido em tal diploma»[18].

No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 7/11/2019 [19]:

“III-O direito à integridade física, à saúde, ao repouso e ao sono, prevalece, nos termos do artigo 335º do Código Civil, sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício da actividade comercial da sociedade ré, titular do posto de abastecimento de combustíveis, onde se encontra colocado o sistema de lavagem de veículos automóveis do tipo “Jet Wash”.

IV – Perante a lei civil, o direito de oposição face à emissão de ruídos subsiste, mesmo que o seu nível sonoro seja inferior ao legal e a respectiva actividade tenha sido autorizada pela autoridade administrativa competente, sempre que implique ofensas de direitos de personalidade”.

Ainda sobre a questão, pode ler-se, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/9/2019[20], “Os tribunais têm-se pronunciado numa orientação jurisprudencial constante, no sentido de que o ruído que impeça o sono, constitui violação do direito de personalidade, direito ao repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no respectivo Regulamento.

Por último, sustenta a Recorrente que é durante o período das 23:00h até às 2:00h que estabelecimento mais labora/factura e que a zona circundante ao estabelecimento é uma zona de estabelecimentos de diversão nocturna, procurados com muita frequência por pessoas que pretendem frequentar e usufruir aqueles locais no período após as 23:00h, há vários anos, e ao ser decretado o fecho imediato, do espaço da Recorrente, a partir das 23:00h e todos os dias, não lhe resta outra solução, que não seja a apresentação à insolvência, sendo que do quadro factual demonstrado não consta qualquer facto que permita extrair a conclusão que o fecho a partir das 23horas terá como consequência a declaração da sua insolvência.

Advoga a Recorrente que a “única restrição horária admissível é a partir das 2:00h não só porque, sendo uma limitação que salvaguarda o núcleo essencial dos direitos da Apelante não resulta daqui qualquer denegação da iniciativa económica privada prevista no n° 1 do artigo 61° da CRP”. Em rigor, a solução do conflito proposta pela Recorrente passa por deixar incólume o seu direito e suprimir o direito dos Recorridos ao repouso, ao sono e à tranquilidade, em manifesta oposição com o disposto no artigo 335º, nº2, do Código Civil.

Pelos fundamentos expostos, concorda-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

5ª Questão

Insurge-se a Recorrente contra a aplicação da sanção pecuniária compulsória, sustentando que “[m]esmo que razões houvesse para lhe ser aplicada a sanção pecuniária compulsória – o que contesta – (…) o quantitativo de 400€ diários fixados é manifestamente exagerado, não respeitando, por isso, o critério legal”.

Advoga que [conclusão g] a fixação da sanção pecuniária compulsória, na ausência de critérios objectivos para a fixação de um valor exacto, “deve ocorrer por recurso à equidade, constituindo este um critério residual de justiça do caso concreto, apenas aplicável em situações excepcionais tipificadas na lei e que faz apelo a “todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”, devendo o tribunal atender aos seguintes factores: “gravidade da conduta e o grau de culpa do devedor; a importância do direito a acautelar pelo credor; a duração da violação do direito do credor; as consequências do incumprimento, incluindo se ocorreram danos ou lucros cessantes; a importância do incumprimento consoante se trate de um caso isolado ou de um caso reincidente; a duração previsível do incumprimento; as vantagens ou lucros resultantes do incumprimento; as condições económicas do devedor de modo a que a sanção seja proporcional e persuasiva”.

Cumpre apreciar e decidir.

Prescreve o nº1 do artigo 829º-A, do C. Civil que “Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.”.

Escreve Calvão da Silva[21] que “a sanção pecuniária compulsória é a condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger e determinar o devedor recalcitrante a cumprir a sua obrigação. É, pois, um meio de constrangimento judicial que exerce pressão sobre a vontade lassa do devedor, apto para triunfar da sua resistência e para determiná-lo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob a ameaça ou compulsão de uma adequada sanção pecuniária, distinta e independente da indemnização, susceptível de acarretar-lhe elevados prejuízos.”

É, assim, “um meio indirecto de constrangimento decretado pelo juiz, destinado a induzir o devedor a cumprir a obrigação a que se encontra adstrito e a obedecer à injunção judicial.”

Como referido pelo Tribunal a quo, a sanção pecuniária compulsória é fixada apenas nos casos de prestação de facto infungível.

Como ensina Calvão da Silva[22], as obrigações negativas (non facere, pati), “pela natureza do seu objecto – tolerância ou abstenção de um determinado comportamento -, não podem ser realizadas por terceiro. São por isso, infungíveis. Domínio por excelência de aplicação da sanção pecuniária compulsória”. Acrescenta que “se a obrigação negativa é duradoura, de natureza continuada ou periódica, a aplicação da sanção pecuniária compulsória é de grande utilidade” e “sempre que a violação da obrigação negativa possa continuar ou ser repetida, impõe-se que a sentença condene o devedor a cumpri-la no futuro, ordenando-lhe que cesse e/ou não renove a sua infração”. Conclui, “[é] nesta parte que a sanção pecuniária compulsória é útil, como meio de prevenir a continuação ou a renovação do incumprimento, provocando a obediência do devedor à condenação inibitória e o respeito pela devida prestação originária de non facere ou de pati”.

Assim sendo, contrariamente ao defendido pela Recorrente, verificam-se os pressupostos para a sua aplicação da sanção pecuniária compulsória, concordando-se, assim, com a decisão recorrida.

Escreve João Calvão da Silva[23] que uma das matérias em que a sanção pecuniária pode ter função importantíssima a desempenhar é a dos direitos de personalidade porque “são direitos pessoais, de conteúdo e função não patrimonial, a sua adequada e eficaz tutela passa pela prevenção do acto ilícito lesivo e não pela repressão e remedeio da violação”, sendo “imprescindível a condenação inibitória, a injunção de cessação do facto ilícito perdurante e de prevenção de facto ilícito futuro, isto é, noutra formulação, a ordem judicial de condenação no cumprimento futuro do dever de abstenção. Injunção a que o titular do direito de personalidade ofendido ou ameaçado tem o direito (…), como o juiz tem o poder-dever de a pronunciar, a fim de impedir a consumação da ameaça ilícita, a continuação da lesão ou a repetição do ilícito no futuro.

E quanto ao valor fixado?

Prescreve o nº2 do artigo 829º-A, do C. Civil que a sanção pecuniária compulsória “será fixada segundo critérios de razoabilidade….

Como ensina João Calvão da Silva [24], o juiz deve, em função das «circunstâncias do caso» (artigo 829º-A, nº1) e «segundo critérios de razoabilidade»(artigo 829º-A, nº1), decretar uma sanção pecuniária compulsória que possa ser eficaz na consecução dos objectivos que são a sua razão de ser – levar o devedor a respeitar a injunção judicial e a cumprir a obrigação a que está adstrito. Trata-se de “um convite do legislador à colaboração do juiz segundo a equidade (cfr. artigo 4º, al. a)), a fim de que, tomando em consideração os dados concretos da relação jurídica controvertida e a situação das partes, fixe um montante adequado que permita à sanção pecuniária compulsória ser eficaz na realização dos objectivos que lhe são próprios – o cumprimento da obrigação e a obediência ao tribunal”.

Consistindo o escopo da sanção pecuniária compulsória em “dobrar ou vergar a vontade do devedor rebelde, o seu montante será fixado sem relação alguma com o dano sofrido pelo credor”, é essencial atender “às possibilidades económicas e financeiras do devedor e à sua capacidade de resistência, às vantagens e lucros resultantes do não cumprimento – a fim de calcular, com conhecimento de causa, um montante suficiente para o dissuadir de pagar a sanção pecuniária e a indemnização em vez de cumprir a obrigação principal – sem deixar de ter em conta também os interesses do credor na prestação devida”.

Em anotação ao artigo 829º-A, do C. Civil, escreve Ana Prata[25] que o critério essencial é o da razoabilidade, devendo ser ponderado o tipo de prestação, os motivos do atraso e a relevância do interesse do credor.

Refere Maria Victória Rocha[26] que “[o] critério da fixação é o da razoabilidade, o que implica grande margem de decisão para o tribunal, que deverá ter em conta o tipo de prestação, os motivos do atraso, a relevância do interesse do credor, a condição social do devedor, o seu comportamento anterior, entre muitos outros aspectos norteados pelo princípio da proporcionalidade, tendo em vista uma solução equitativa”.

No mesmo sentido, Antunes Varela e Pires de Lima [27] referem que “os critérios de razoabilidade (equidade) que devem nortear o julgador na sua determinação hão-de naturalmente ter em conta as possibilidades económicas do devedor (pois só assim será possível calcular, com verdadeiro conhecimento de causa, o quantum da sanção pecuniária capaz de subjugar a sua resistência), sem perder de vista, por uma questão de equilíbrio ou de sentido das proporções, o valor do interesse do credor na prestação em dívida”.

Revertendo ao caso dos autos, pelo Tribunal a quo foi ponderado (a) a natureza pessoal dos direitos que se pretendem ver acautelados e (b) a circunstância da Requerida se tratar de uma pessoa colectiva, além da natureza da sanção pecuniária compulsória enquanto meio de coerção ao cumprimento e ao respeito da decisão judicial proferida.

Conforme referido pelo Tribunal a quo, o interesse dos Recorridos respeita ao direito ao repouso e ao sono e, concomitantemente, à tranquilidade da vida familiar os quais se inserem no conjunto de direitos imprescindíveis à existência de qualquer cidadão, desde logo porque indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida.

Não consta dos factos provados qualquer elemento quanto à capacidade económica da Recorrente/devedora. Trata-se de uma sociedade comercial e, consequentemente, a actividade por si exercida tem como finalidade o lucro. Sobre o comportamento anterior da Recorrente, encontra-se demonstrado que: (i) a situação objecto destes autos persiste desde 2022, com violação do direito ao repouso dos Recorridos, não só com a música proveniente do estabelecimento da Recorrente, mas também com o barulho provocado pelos clientes na saída do estabelecimento; (ii) os Requerentes e os alguns vizinhos apresentaram queixas na Câmara Municipal de Matosinhos e na Junta de Freguesia ... e fizeram participações à PSP e Polícia Municipal; (iii) efectuado um teste ao ruído, pela Câmara Municipal de Matosinhos, e notificada a Recorrente de que não cumpria os requisitos legais sobre a lei do ruído e para proceder à sua regularização, a situação não se alterou, continuando os Requerentes a sofrer com o ruído que lhes entra pela casa dentro, sentindo com muita intensidade, na sua habitação, o barulho produzido pelo estabelecimento, especialmente durante a noite. Todo este comportamento da Recorrente, anterior à decisão, espelha resistência à consideração dos direitos que se mostram em colisão com o seu direito.

Por último, conforme se referiu, na fixação do quantum, importa ter presente a eficácia da sanção em provocar o cumprimento e o acatamento da decisão judicial. A sanção pecuniária compulsória não cumprirá a sua função se o devedor considerar mais vantajoso pagar a sanção ao invés de cumprir a decisão.

Importa salientar que este valor só é devido pela Recorrente, no caso de não cumprimento da decisão.

Ponderando tais elementos, considera-se razoável e adequado o valor diário de €400 por cada dia que viole as obrigações ora fixadas.

Improcede, assim, na íntegra, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas

Considerando a total improcedência das pretensões recursivas, as custas do recurso são da responsabilidade da recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe possa vir a ser concedido (artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC).


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IV-Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, julga-se o presente recurso totalmente improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas do recurso pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe possa vir a ser concedido (artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


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Sumário:

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Porto, 9/9/2024.

Anabela Morais

Carlos Gil

Manuel Domingos Fernandes


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[1] António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 7ª ed. actualizada, págs. 197 e 198.
[2] Acórdão de 14/11/2022, proferido por este Tribunal, no Processo nº5632/21.0T8PRT.P1, acessível em www.dgsi.pt,
[3] Acórdão de 13/9/2017, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no processo nº 390/14.8PCLRA.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[4]Acórdão de 19/12/2023, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo nº 1526/22.0T8VRL.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Acórdão de 17/3/2014, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Professor Alberto dos Reis, “ Código de Processo Civil Anotado ”, vol. V, pág. 359.
[7] António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 7ª ed. actualizada, págs. 188.
[8] Embora a Recorrente não tenha especificado a alínea do nº1 do artigo 615º do CPC na qual fundamenta a nulidade da decisão por si invocada, considerando o teor das alegações, releva para os presentes autos a alínea b).
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3/3/2021, proferido no processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, acessível em dgsi.pt.
[10] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1952, vol. V, Pág. 141.
[11] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2022, 3ª ed., vol. I, Pág. 793.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2023, proferido no processo nº 247/19.6T8FVN.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[13]  Comentário ao Código Civil - Parte Geral, coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Portuguesa, 2014, págs. 792 e 793.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7/11/2019, proferido no processo nº 1386/15.8T8PVZ.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,  de 29/11/2016, proferido no processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/1/2022 , proferido no processo nº15750/17.4T8PRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[17] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto,  de 5/3/2024, proferido no processo nº 667/20.3T8PNF.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/11/2016, proferido no processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 13/1/2022, proferido no processo nº 15750/17.4T8PRT-A.P1:
constando da nossa ordem jurídica um Regulamento Geral do Ruído que fixa os limites de ruído a emitir por todo um conjunto de actividades humanas que se entendeu carecerem de regulamentação para compatibilizar os interesses humanos conflituantes, em princípio esse Regulamento define em que medida e em que condições tais actividades podem produzir ruído.
Daí resulta que se o nível do ruído de determinada actividade fica aquém do limite imposto legalmente por aquele conjunto de normas, essa actividade está a ser desenvolvida de acordo com as regras legais, sendo, por isso, em princípio, legítima, não constituindo a prática de um facto ilícito gerador de responsabilidade civil.
Tem-se, no entanto, entendido que os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade constituem uma emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente à integridade física e moral da pessoa e a um ambiente de vida sadio (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-2013, proc. n.º 110/2000.L1.S1, www.dgsi.pt), que perante a lei civil os particulares se podem opor à emissão de ruídos, ainda que o seu nível seja inferior ao legal e a actividade tenha sido autorizada pelas entidades administrativas, desde o ruído que implique ofensa a direitos de personalidade (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2014, proc. n.º 166/05.3TBMIR.C1.S1, e de 26-09-2017, proc. n.º 117/13.1TBMLG.G1.S1, www.dgsi.pt) e que a emissão de ruído que prejudique o repouso, a tranquilidade, o sono e a saúde de terceiros, está eivado de ilicitude pelo facto de, injustificadamente, e para além dos limites do que é, socialmente, tolerável, lesar o princípio da integridade pessoal (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2015, proc. n.º 311/04.6TBENT.E1.S1, e de 22-03-2018, proc. n.º 184/13.8TBTND.C1.S2, www.dgsi.pt)”.
[19]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7/11/2019, proferido no processo nº1386/15.8T8PVZ.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/9/2019, proferido no processo nº1935/18.0T8CHV.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[21] João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, Coimbra, Almedina,  1995, págs. 355 e 393.
[22] João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 1995, pág.460.
[23] João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 1995, pág.463.
[24] João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, Almedina, págs.415 e 420.
[25] Ana Prata, Código Civil Anotado,  2ª edição, revista e actualizada, Almedina, 2022, vol. I, pág.1079.
[26] Maria Victória Rocha, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, coordenação de José Brandão Proença, Universidade Católica Portuguesa, 2021/reimpressão, pág. 1237.
[27] Antunes Varela e Pires de Lima,  Código Civil Anotado, 3ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, 1986,  vol. II, 107.