Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18686/23.6YIPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CASO JULGADO
EXCEÇÃO DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Nº do Documento: RP2024070418686/23.6YIPRT-A.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O instituto do caso julgado encerra em si duas vertentes, que, embora distintas, se complementam: uma, de natureza positiva, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; a outra, de natureza negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal.
II - A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir -, aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.
III - Para efeitos de repetição da causa, quanto à identidade dos sujeitos não se exige uma identidade física ou nominal, mas antes uma mesma identidade na perspectiva dos interesses que se debatem.
IV - A determinação da identidade do pedido faz-se em função do efeito jurídico que se pretende obter com a acção; tanto os efeitos imediatos como os efeitos mediatos concorrem para a determinação do pedido, não interessando tanto o efeito o efeito jurídico que a parte visa alcançar na acção, mas antes o seu efeito prtático.
V - Existe identidade de causa de pedir quando o substrato factual de ambas as acções é precisamente idêntico, radicando a única diferença entre ambas no modo como se procede ao respectivo enquadramento jurídico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 18686/23.6YIPRT-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto  

Juízo Local Cível de ... – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.

A..., S.A., NIPC ..., com sede na Rua ... Vila Real, propôs acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra AA, NIF ......, com domicílio na Rua ..., ..., pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de €146,52 (cento e quarenta e seis euros cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos no montante de €1,22 (um euros e vinte e dois cêntimos) e juros de mora vincendos à taxa legal.

Alega, sumariamente, que prestou serviços de saneamento ao Réu, que o mesmo não pagou.

O Réu AA, regular e pessoalmente citado, apresentou contestação, na qual invoca a excepção da autoridade de caso julgado, impugnando o contrato e as facturas invocadas pela Autora.

Concluiu, propugnando a absolvição da instância ou improcedência da ação.

Depois de ter a Autora exercido o direito ao contraditório relativamente à autoridade de caso julgado, foi proferido despacho que julgou improcedente a invocada autoridade de caso julgado.

Prosseguiram os autos e, após realização do julgamento, foi proferida sentença que julgando parcialmente procedente a acção, condenou o Réu AA a pagar à Autora A..., S.A. a quantia de €146,52 (cento e quarenta e seis euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal aplicável com referência às obrigações civis, computados desta a data da citação até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.

Veio, entretanto, o Réu interpor recurso da decisão que julgou improcedente a excepção de caso julgado/autoridade de caso julgado, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“O Recorrente invocou nos presentes autos a exceção dilatória de caso julgado e autoridade de caso julgado.

O despacho Recorrido julgou improcedente a arguição das referidas excepções.

Ao assim decidir o despacho Recorrido violou entre outros mas sem limitar o preceituado nos artigos 278º/1/e), 576º/2, 577º/i), 580º e 581º, todos do Código de Processo Civil.

O Recorrente invocou as supra referidas exceções e pugnou pela sua procedência alegando que no âmbito do processo nº 9933/19.0YIPRT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de ... - Juiz 1 foi proferida sentença transitada em julgado em 14 de Julho de 2020, que julgou improcedente, por não provada a ação e absolveu o Recorrente da instância.

Nesta e naquela ação, estão as mesmas partes e nas mesmas posições, A..., S.A., como requerente ora Recorrida e AA, como requerido ora Recorrente, assim como naquela ação como nesta é peticionada a condenação do requerido/Recorrente, entre o mais, no pagamento de quantias em divida pelo fornecimento de serviços de saneamento ao Réu ora Recorrente.

No confronto entre ambas as ações, verifica-se que, existe identidade de partes e de causa de pedir uma vez que na anterior ação, também se discute a necessidade da existência de um contrato celebrado entre Recorrida (Requerente) e Recorrente  (Requerido) - que veio a considerar não existir - para legitimar a cobrança por aquela de pretensos serviços de saneamento alegadamente prestados, bem como o mesmo pedido ou seja o pagamento de quantias a título de pretensos serviços de saneamento,  pois muito embora se reporte a serviços prestados em diferentes períodos a verdade é que os pedidos da presente ação estão numa relação de decorrência lógica face ao pedido da outra ação.

Aliás, esta questão referente à verificação da execpção dilatória de caso julgado/autoridade de caso julgado invocada pelo Recorrente foi já dirimida em sede judicial num outro processo judicial, processo esse de contornos totalmente sobreponíveis ao dos presentes autos, tendo o Tribunal entendido que mesmo não existindo a tríplice identidade retro enunciada – nomeadamente por ter considerado que os pedidos eram diferentes de causa para causa – se verificava a excepção dilatória de autoridade de caso julgado.

Efectivamente, tal questão – verificação da excepção dilatória da autoridade de caso julgado – foi tratada no processo judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de ... - Juiz 1 sob o nº 67367/21.2YIPRT que por sentença transitada em julgado em 8 de Dezembro de 2021, julgando procedente a arguição da referida excepção, proferiu decisão no sentido de julgar improcedente, por não provada a ação intentada pela então A. ora Recorrida e, em consequência, absolveu um outro Réu da instância.

Em situação análoga à destes autos e no sentido do perfilhado e defendido pelo Recorrente, lapidarmente, decidiu a 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto por Acordão proferido em 20/04/2023, no processo n.º 52169/22.7YIPRT.P1 decidiu erse por verificada a excepção peremptória inominada do efeito de caso julgado e, em consequência, absolveu-se a então ré BB do pedido que contra si foi formulado nos autos pela aqui Recorrida A... S.A. Acordão que antecede e que entretanto já foi confirmado igualmente pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 12-10-2023, no processo n.º 52169/22.7YIPRT.P1.S1, 2.ª SECÇÃO relatatado pelo brilhante Juiz Conselheiro João Cura Mariano que pode ser consultado in www.dgsi.pt.

Concluindo-se assim pela existência de uma verdadeira e própria repetição de causas, relevante para a existência da exceção de caso julgado.

Destarte, deve julgar procedente por provada a exceção de caso julgado invocada e revogando-se o despacho Recorrido, deve ser o Recorrente absolvido da instância.

É, por todos, sabido que julgada em termos definitivos certa matéria, numa ação que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objeto desta primeira causa impõe-se necessariamente em todas as outras ações que venham a correr termos entre as mesmas partes, incidindo sobre um objeto diverso, mas cuja apreciação depende decisivamente do objeto previamente julgado, perspetivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda ação.

De outra forma, apesar de a Recorrida ter decaído no primeiro processo, poderia propor nova acção sobre a mesma temática jurídica, como se o sistema jurídico admitisse, sem limites, a discussão eterna de questões jurídicas.

O que significaria que as sentenças transitadas em julgado não conferiam aos seus beneficiários direitos efectivos, ficando eternamente submetidas aos efeitos da litigiosidade, ou da chicana processual, promovida pela parte vencida.

Em suma, mostrava-se impedido o prosseguimento desta acção, por via do caso julgado excepção dilatória, que expressamente se invocou nos termos dos artigos 577.º, alínea i) do CPC, e que conduziria à absolvição da instância do Recorrente nos termos e para os efeitos do art.º576.º, n.º 2.

Se assim se não entendesse,

Considerando o fato jurídico de que procede a causa de pedir e os fundamentos de facto daquelas outras sentenças e ora alegados pelo Recorrente, assumem inequivocamente valor de autoridade de caso julgado, autonomizados da decisão de que são pressuposto,

Pelo que dando-se assim razão, nesta parte ao Recorrente, procedendo a arguição de autoctonidade de caso julgado, deve revogar-se o despacho recorrido absolvendo-se o Réu da instância.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado nessa parte o Despacho recorrido e substituído por decisão que julgue procedente a excepção dilatória de caso julgado/excepção de caso julgado e absolva o Recorrente dos pedidos”.

O recorrido apresentou contra-alegações, sustentando a inadmissibilidade de recurso da decisão impugnada, pugnando, em todo o caso, pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se, no caso, se mostra ou não verificada a excepção de caso julgado ou de autoridade caso julgado, invocado pelo Réu.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Após realização do julgamento, foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância (transcrição):

1. Em 2 de novembro de 1999, o Município ... subscreveu um escrito em que declarou conceder à B..., pelo prazo de 35 anos, a gestão e exploração do Sistema Municipal de Abastecimento de Água do Concelho ..., com referência ao “Serviço Público de Abastecimento de Água”, dentro do perímetro territorial do Concelho de ..., em zonas inseridas na União de freguesias ..., ... (... e ...) e ..., União de freguesias ..., ..., ... e ..., freguesia ..., freguesia ..., freguesia ..., freguesia ..., freguesia ..., freguesia ..., União de freguesias ... e ..., freguesia ... e freguesia ....

2. A A..., S.A. tem como objeto é a realização de serviços de fornecimento de água e saneamento.

3. Em 5 de julho de 2013, o Estado Português, como primeiro outorgante, e os Municípios ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., na qualidade de segundos outorgantes, subscreveram um escrito com a epígrafe “Contrato de Parceria Pública”, consignando, designadamente, que:

“Cláusula 1.ª

Sistema de Águas da Região ...

1 – Os Municípios decidem constituir o Sistema de Águas da Região ..., doravante designado por Sistema, resultante da agregação dos respetivos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas, que, para este efeito, abrange o conjunto de atividades elencadas na Cláusula 3.ª e com os limites previstos na solução técnica global a que se refere o número seguinte.

2 – A solução técnica global do sistema corresponde ao conjunto de infraestruturas a construir, a renovar e a ceder pelos Municípios, nos termos dos Anexos I e II ao presente contrato, que dele fazem parte integrante.

3 – Os sistemas municipais que integram o Sistema são constituídos pelas infraestruturas, identificadas nos anexos referidos no número anterior, cuja operacionalidade concorre técnica e fisicamente de forna direta para a prestação dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas aos utilizadores finais, nelas se incluindo os equipamentos e mecanismos funcionalmente afetos ao sistema, a construir pela Entidade Gestora da Parceria (doravante designada por EGP), com a extensão e limites que decorrem do referido anexo.

4 – Nos casos em que os Municípios avoquem as competências relativas ao abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas delegadas em freguesias ou associações de utilizadores, as áreas em causa são, por iniciativa dos Municípios, integradas no Sistema.

5- Os Municípios de ..., ... e ..., enquanto durar a concessão dos seus sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público, agregam exclusivamente os sistemas municipais de saneamento de águas residuais urbanas.

(…)

Cláusula 2.ª

Regime e modalidade

1 – A exploração e a gestão do Sistema são realizadas, em regime de parceria pública prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril, e em exclusividade, pelas C..., S.A., na qualidade de Entidade Gestora da Parceria, nos termos da lei, do presente contrato e do contrato de gestão a outorgar.

2- Com a celebração do presente Contrato, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril, consideram-se delegadas pelos Municípios no Estado as respetivas competências relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas aos utilizadores finais (doravante designados de serviços de águas relativos ao Sistema).

3 – Para efeitos da presente Parceria, os outorgantes obrigam-se a aprovar e realizar o aumento do capital social da C..., S.A., no valor de 13.249.555,00€ (treze milhões, duzentos e quarenta e nove mil, quinhentos e cinquenta euros), através da criação de uma categoria própria de ações, das quais 68,13% serão detidas pela D..., SGPS, S.A., e o remanescente será subscrito pelos Municípios acima identificados.

4 – Nos casos em que, na data de constituição da presente Parceria, a gestão dos sistemas municipais de distribuição de água para consumo público se encontrar concessionada, a EGP, o Município e a concessionária devem celebrar protocolos relativos à faturação e à cobrança dos serviços de saneamento de águas residuais urbanas pela EGP, bem como ao reporte periódico de informação relevante para a execução da Parceria, designadamente em matéria de incumprimentos contratuais, consumos e faturação dos serviços por consumidor.

Cláusula 3.ª

Objeto

1 – A exploração e gestão, em regime de exclusivo, dos serviços de águas relativos ao Sistema compreende a distribuição de água para consumo público e a recolha de águas residuais urbanas aos utilizadores finais, nos termos previstos nos Anexos I e II.

 (…)

Cláusula 5.ª

Transmissão de contratos

1 – Durante o período de transição a que se refere a Cláusula 14.ª, os Municípios devem transmitir à EGP toda a informação detalhada respeitante aos contratos por si celebrados com terceiros (…)

3 – Os Municípios comprometem-se a transmitir à EGP a sua posição em todos os contratos em vigor que tenham sido outorgados com terceiros por si ou por intermédio de associações de Municípios e que respeitem e sejam indispensáveis à prossecução das atividades identificadas na Cláusula 3.ª, n.º 1 a 4.

(…)

Cláusula 10ª

Prazo

1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a Parceria cessa no termo de vigência do contrato de concessão de exploração e da gestão do sistema municipal de abastecimento de água e saneamento do Noroeste.

2 – Em caso de substituição do sistema multimunicipal, o Contrato de Parceria mantém-se em vigor por referência ao novo sistema que vier a ser constituído, devendo as Partes acordar nas alterações de adaptação contratual que se mostrem necessárias.

3 – A prossecução das atividades identificadas na Cláusula 3.ª e a assunção de responsabilidades pela EGP apenas tem início no dia seguinte à data em que termine o período de transição previsto na Cláusula 14.ª

(…)

Cláusula 13.ª

Contrato de gestão

1- Os outorgantes devem celebrar com a EGP um contrato de gestão, no prazo máximo de 3 meses após a assinatura do presente contrato.

2 – Sem prejuízo de outros expressamente previstos na lei e no presente contrato, o contrato de gestão deve regular os seguintes aspetos

(…)

e) O modelo de convergência tarifária;

(…)

g) O índice de atualização tarifária;

8…)

Cláusula 22.ª

1 – O contrato de gestão deve prever a existência, durante a vigência da Parceria, de dois períodos tarifários, nos seguintes termos:

a) O primeiro tem a duração de 10 ano se decompõe-se em 2 subperíodos tarifários, cada um de 5 anos, sendo o primeiro subperíodo, que corresponde ao período para a realização do investimento inicial, designado por período de convergência tarifária;

b) O segundo, que decorre entre o termo do primeiro período tarifário e o termo do contrato de gestão, divide-se em subperíodos tarifários, cada um de 5 anos.

2 – Aos períodos tarifários previstos no número anterior correspondem modelos tarifários diferenciados, definidos nos seguintes termos:

a) No primeiro período tarifário, é aplicável um modelo tarifário do tipo “custo de serviço”;

b) No segundo período tarifário, é aplicável um modelo de “incentivos sobre o preço”.

(…)

Cláusula 23.ª

Critérios para a fixação e revisão das tarifas

(…)

5 – Sem prejuízo das tarifas devidas à EGP pela prestação de serviços auxiliares, a estrutura tarifária compreende uma componente fixa e uma componente variável.

6 – A componente fixa a que se refere o número anterior corresponde ao valor necessário para, tendencialmente e em função do número de utilizadores, recuperar, em cada exercício, os gastos da EGP associados à disponibilização dos serviços e que não variam em função do número de utilizadores, designadamente, os gastos com estrutura, recursos humanos ou investimento.

7 – A componente variável a que se refere o n.º 5 corresponde ao valor unitário aplicável em função do nível de utilização do serviço, em cada intervalo temporal, visando recuperar, em cada exercício, os gastos da EGP não recuperados através da componente fixa, para além de assegurar a remuneração devida aos acionistas. (…)”.

4. Em 26 de julho de 2013, o Estado Português, como primeiro outorgante, e os Municípios ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., na qualidade de segundos outorgantes, e a C..., S.A., como terceira outorgante, designada por Entidade Gestora da Parceria ou EGP, subscreveram um escrito com a epígrafe “Contrato de Gestão”, consignando, designadamente, que:

“Cláusula 1.ª

Objeto

O Contrato visa estabelecer os termos e os objetivos da exploração e da gestão dos serviços de águas relativos ao Sistema de Águas da Região ..., doravante designado Sistema, a realizar pela Entidade Gestora da Parceria (doravante designado EGP).

(…)

Cláusula 3.ª

Prazo

1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o Contrato vigora desde a data da sua celebração e cessa no termo de vigência do contrato de concessão do sistema municipal de água e saneamento do Noroeste.

(…)

Cláusula 8.ª

Sistema de Águas da Região ...

(…)

8- Os Municípios de ..., ... e ..., enquanto durar a concessão dos seus sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público, agregam exclusivamente os sistemas municipais de saneamento de águas residuais urbanas.

9 – Os Municípios a que se refere o n.º 8 devem celebrar com a EGP e as respetivas concessionárias protocolos relativos à faturação e à cobrança dos serviços de saneamento de aguas residuais urbanas pela EGP, bem como ao reporte periódico de informação relevante para a execução da Parceria, designadamente, em matéria de incumprimentos contratuais, consumos e faturação dos serviços por utilizador

(…)

Cláusula 7.ª

1 – Os utilizadores do Sistema são obrigados a ligar-se às redes do Sistema, nos termos do previsto no Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto, devendo, para o efeito, celebrar contratos de utilização com a EGP, nos termos previstos na cláusula 40.ª, sem prejuízo do disposto na cláusula seguinte a respeito dos utilizadores já ligados aos sistemas municipais à data da celebração do contrato.

(…)

Cláusula 8.ª

Transmissão de contratos relevantes para a execução da Parceria

1 – Durante o período de transição, os Municípios devem colaborar na realização de todas as diligências necessárias para a transmissão da posição contratual (…)

3 – A transmissão da posição contratual é realizada mediante acordo celebrado entre os Municípios e a EGP, com a intervenção de terceiros envolvidos para prestação do consentimento necessário à cessão da posição contratual.

(…)

Cláusula 39.º

Regulamentos municipais de serviços

1 – No prazo de 6 (seis) meses contados do início de vigência do presente Contrato, a EGP deve submeter à CP um projeto de regulamento municipal de serviços tipo, que, com base nos termos do presente contrato, estabeleça os poderes, os direitos e as obrigações da EGP, bem como as obrigações e os direitos dos utilizadores.

2- O projeto de regulamento mencionado no número anterior deve tratar, separadamente, os aspetos relativos à distribuição de água para consumo público e a saneamento de águas residuais

3- O projeto de regulamento deve contemplar, designadamente, as seguintes matérias:

(…)

f) Definição do modo de aplicação das tarifas;

(…)

Cláusula 40.ª

Obrigações de abastecimento e recolha

(…)

4 – A EGP celebra com os utilizadores um contrato de utilização relativo aos serviços de distribuição de água para consumo público e ou de saneamento de águas residuais, salvo se estes não estiveram simultaneamente disponíveis ou o serviço de distribuição de água para consumo público não for prestado pelo EGP no Município.

5- A contratação dos serviços de distribuição de água para consumo público e de saneamento e de saneamento de águas residuais considera-se indissociável, desde que um e outro estejam disponíveis.

(…)

Cláusula 41.ª

Medição e faturação

(…)

6 – A faturação tem periodicidade mensal, salvo consentimento expresso do utilizador, nos termos previstos nos regulamentos municipais, podendo basear-se em estimativa de consumos ou na respetiva comunicação por parte dos utilizadores, nos ternos e condições ali definidos.

(…)

9 – Em caso de mora no pagamento das faturas, estas passam a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às transações comerciais, desde a data do respetivo vencimento até à data da sua liquidação (…)

10- Em caso de mora no pagamento das faturas por parte de utilizadores que possam ser classificados como consumidores na aceção do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho, estas passam a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável ao regime das dívidas civis, desde a data do respetivo vencimento até à data da sua liquidação (…)

5. Em data não concretamente apurada anterior a 2015, o Réu AA subscreveu um “contrato de recolha de águas residuais” junto do Município ... com referência à habitação sita na Rua ..., ....

6. Desde pelo menos a subscrição indicada em 5), a predita fração tem um ramal de ligação à rede pública de saneamento de águas residuais de ....

7. Em 26 de maio de 2019, a Comissão da Parceria enunciada em 3) deliberou aprovar a “Proposta de Estrutura Tarifária e de Faturação de Serviços a Praticar no Sistema”, consignando designadamente:

a) A tarifa fixa de recolha de águas residuais, devida em função do intervalo temporal objeto de faturação e expressa em euros por cada 30 dias;

b) A tarifa variável de recolha de águas residuais, devida em função do volume de água residual recolhido ou estimado durante o período objeto de faturação, e expressa por euros por cada m3 de água por cada 30 dias;

c) O volume de águas residuais recolhidas dos utilizadores domésticos, quando não exista medição através de medidor de caudal, corresponde ao produto da aplicação de um coeficiente de recolha de referência no âmbito do sistema igual a 90% ao somatório dos volumes de água faturados em cada escalão, apurado em cada fatura, corrigidos de eventuais acertos.

8. Em 15.1.2020, a A... fixou as seguintes tarifas com referência ao sistema municipal de saneamento de águas residuais urbanas de ... mencionado em 4):

a) Tarifa fixa: EUR/30 dias:

- Utilizadores do tipo doméstico 5,2573

- Utilizadores do tipo não doméstico 7,8860

b) Tarifa variável: EUR/1000 litros:

Utilizadores do tipo doméstico

- Escalão 1 a 5 000 litros (0,001 a 5,000m3) 0,6612

- Escalão 5 001 a 15 000 litros (5,001 a 15,000m3) 1,3225

- Escalão 15 001 a 25 000 litros (15,001 a 25,000m3) 2,1292

- Escalão ≥ 25 001 litros (>= 25,001 m3) 3,0873

Utilizadores do tipo não doméstico 2,1292

Autarquias e Instituições sem fins lucrativos (ISFL) 1,3225

9. Na habitação indicada em 5), registou-se o consumo dos seguintes volumes de água no contador da mesma, os quais foram comunicados pela B... à A...:

- 2022.02.14 Leitor 4886,000;

- 2022.03.14 Leitor 4908,000;

- 2022.04.14 Leitor 4930,000;

- 2022.10.17 Leitor 5120,000;

- 2022.11.15 Leitor 5134,000

- 2022.12.16 Leitor 6,000.

10. Em 26 de outubro de 2022 a Autora emitiu a fatura n.º ..., com referência ao cliente/local do serviço “AA NIF: ... ... ...,...(...,...),...”, consignando o período de faturação de 2022.09.22 a 2022.10.24, o valor de 69,7273€ de tarifa fixa e variável de saneamento, 11,5808€ atinente a resíduos sólidos urbanos, 0,5411€ de taxas e 4,25€ de IVA, no montante global de 86.20€, com data de limite de pagamento em 21/11/2022.

11. Em 23 de novembro de 2022 a Autora emitiu a fatura n.º ..., com referência ao cliente/local do serviço “AA NIF: ... ... ...,...(...,...),...”, consignando o período de faturação de 2022.10.25 a 2022.11.22, o valor de 19,5160€ de tarifa fixa e variável de saneamento, 8,9935€ atinente a resíduos sólidos urbanos, 0,2050€ de taxas e 1,30€ de IVA, no montante global de 30.01€, com data de limite de pagamento em 20/12/2022.

12. Em 27 de dezembro de 2022 a Autora emitiu a fatura n.º ..., com referência ao cliente/local do serviço “AA NIF: ... ... ...,...(...,...),...”, consignando o período de faturação de 2022.11.23 a 2022.12.23, o valor de 9,4763€ de tarifa fixa e variável de saneamento, 8,9935€ atinente a resíduos sólidos urbanos, 0,1876€ de taxas e 1,04€ de IVA, no montante global de 25.72€, com data de limite de pagamento em 19/01/2023.

13. Em 06 de dezembro de 2022 a Autora emitiu a fatura n.º ..., com referência ao cliente/local do serviço “AA NIF: ... ... ...,...(...,...),...”, consignando “encargos com aviso de corte”, no montante global de 4,59€, com data de limite de pagamento em 30/12/2022.

III. 2. A mesma instância considerou não provados os seguintes factos:

14. A Autora enviou ao Réu, por via postal, as faturas mencionadas em 10) a 13) no mês da respetiva emissão.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A. Questão prévia: admissibilidade do recurso.

Defende a recorrida a inadmissibilidade legal do recurso, pugnando pela sua não admissão, “na medida em que falece organicamente no preenchimento dos pressupostos de que depende a previsão da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC”.

Segundo este normativo, “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado”.

Nos termos do disposto no n.º 1, do referido artigo 629.º, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

Porém, de acordo com o citado n.º 2, alínea a), independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa de caso julgado.

No caso, foi fixada à causa o valor de € 147,74 (cento e quarenta e sete euros e setenta e quatro cêntimos), logo inferior à alçada do tribunal de primeira instância, que proferiu a decisão recorrida.

 Em anotação ao mencionado artigo 629.º, n.º 2, al. a), escreveu Abrantes Geraldes[1]Estão (...) excluídas desta previsão especial as situações em que se afirme a existência da excepção de caso julgado ou se assumam os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão. Efectivamente, nestes casos, não se verifica qualquer violação do caso julgado, antes a prevalência de outra decisão já transitada em julgado, situação que fica sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade (art. 629.º, n.º 1) e oportunidade da impugnação (arts. 644.º e 671.º)”.

Esta é também a posição acolhida pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.05.2021[2], convocado pela recorrida, que, de resto, se louva na opinião de Abrantes Geraldes, que igualmente cita.

Ainda segundo Abrantes Geraldes[3], “...a admissibilidade excepcional de recurso não abarca todas as decisões que incidam sobre o caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a sua “ofensa”, excluindo-se, por exemplo, as situações em que o juiz afirme a existência de tal excepção, declarando a absolvição total ou parcial da instância (art. 577º, al. i) ), a que se aplicarão as regras gerais sobre a recorribilidade (art. 629.º, n.º 1) e oportunidade da impugnação (art. 644.º).

No caso concreto, a decisão recorrida não só não afirma a existência da excepção do caso julgado, como ainda, ao concluir pela não verificação dos pressupostos da autoridade de caso julgado, afasta os efeitos da mesma.

Em abono da tese que defende, convoca a recorrida o acórdão do STJ, de 06.05.2021[4]  e o acórdão desta Relação, de 16.05.2023, proferido no processo n.º 72556/22.0YIPRT.P1, não publicado.

Porém, o primeiro limita-se a citar Abrantes Geraldes e a aderir ao seu entendimento, como já se mencionou.

E quanto ao segundo acórdão citado, o mesmo nem sequer se ocupa da apreciação da admissibilidade do recurso ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, limitando-se a rejeitar o recurso com fundamento no facto de já ter sido apreciada em sede de despacho saneador e aí julgada improcedente a alegada autoridade do caso julgado, sem que tal decisão tenha sido impugnada no momento próprio.

No caso em apreço, tendo a decisão impugnada julgado improcedente a autoridade do caso julgado invocada pelo recorrente, o recurso tempestivamente interposto daquela decisão é admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil.

B. Do mérito do recurso.

Em sede de oposição, o Réu, com referência à sentença proferida na acção n.º 9933/19.0YIPRT, veio invocar a excepção de caso julgado e autoridade de caso julgado, que veio a ser julgada improcedente.

É contra tal decisão que reage o apelante por via do presente recurso.

Uma decisão transita em julgado quando não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, e a excepção de caso julgado destina-se a “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior[5].

Segundo o artigo 619.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702.°.

Dispõe, por seu turno, o artigo 621.º do mesmo diploma legal que, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.

De acordo com o n.º 1 do artigo 580.º do Código de Processo Civil, “as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à listispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado”.

Por sua vez, o artigo 581.º do mesmo diploma legal, que fixa os requisitos da litispendência e do caso julgado, prescreve:

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

De acordo com o acórdão da Relação de Lisboa de 18.4.2013[6], “A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.

Na repetição da causa exige a lei processual identidade de sujeitos, sob o ponto de vista da qualidade jurídica dos mesmos. Não se exige uma identidade física ou nominal, mas antes uma mesma identidade na perspectiva dos interesses que se debatem.

Tem entendido a jurisprudência que «as partes são as mesmas sob o aspeto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial», não sendo exigível uma correspondência física dos sujeitos nas duas ações e sendo indiferente a posição que os sujeitos assumam em ambos os processos.[7]

Alberto dos Reis[8] entendia, a propósito do significado da expressão “sob o ponto de vista da qualidade jurídica”, que “as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. O que conta, pois, para o efeito da identidade jurídica, é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial (…)”.

Anselmo de Castro[9], aprofundando a definição legal de pedido actualmente consagrado no n.º 3 do artigo 581.º do Código de Processo Civil, faz corresponder ao mesmo o efeito jurídico que se pretende obter com a acção. Para tal, distingue os efeitos imediato e mediato a atingir com a mesma. Considera que ambos os aspectos concorrem para determinar o pedido, concluindo, todavia, que o fulcro deste se situa no pedido mediato: “o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendam alcançar; o objecto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão”. Ou, mais adiante: “parece, portanto, poder concluir-se que não releva para nenhum efeito a qualificação jurídica apresentada pelas partes”. E finda com a conclusão que “a exposta orientação mais congruente com a teoria da substanciação, consagrada na lei portuguesa”, no que concerne ao conceito de causa de pedir.

E quanto ao conceito legal de causa de pedir acolhido actualmente no n.º 4 do citado normativo, que dá guarida à teoria da substanciação, argumenta o mesmo autor que “se entende que a causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer fattispecie jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda”.

Também Alberto dos Reis[10], citando Chiovenda, fazia notar que “para a determinação da causa de pedir não há que ter em conta qualquer facto; só se atende aos factos jurídicos, isto é, aos factos que podem ter influência na formação da vontade concreta da lei (factos relevantes)”, acrescentando[11]: “quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal”.

Da teoria da substanciação[12], há muito cimentada no nosso ordenamento jurídico, radica a ideia de que a situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objecto do processo. É o que decorre, designadamente, dos artigos 186.º, n.º 2, al. a), 552.º, n.º 1, al. d) e 581.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

Sendo a causa de pedir o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão e não a norma em que ele a estriba, deve entender-se que a identidade entre os objetos de uma e de outra acções não deve ser apreciada em abstrato.

Segundo o acórdão do STJ de 24.04.2013[13],  “Ocorre identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo [...].

Há identidade de causa de pedir quando o substrato factual de ambas as acções é precisamente idêntico, radicando a única diferença entre ambas no modo como – de um ponto de vista estritamente normativo, situado exclusivamente no plano da subsunção ou qualificação jurídica desses mesmos factos imutáveis – se procede ao respectivo enquadramento jurídico ...”.

O caso julgado confere à decisão caráter definitivo. Uma vez transitada em julgado, a decisão não pode, em princípio[14], ser alterada; antes adquire estabilidade, deixando de ser lícito a parte vencida provocar a sua alteração mediante o uso dos recursos ordinários. E sendo de caso julgado material, relativo ao mérito da causa, a estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo, e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo. Apenas com a restrição excepcional do recurso de revisão, uma vez transitada em julgado, a sentença passa a definir, de forma definitiva, a relação jurídica sobre que recaiu.

O instituto do caso julgado encerra em si duas vertentes, que, embora distintas, se complementam: uma, de natureza positiva, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; a outra, de natureza negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal[15].

Para o Prof. Manuel de Andrade[16] a excepção do caso julgado traduz-se em “a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social”.

A autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça[17].

De extrema pertinência revelam-se os ensinamentos do Prof. Castro Mendes[18], a propósito do efeito preclusivo do caso julgado: “Fora da hipótese de factos objectivamente supervenientes – e esta hipótese reconduz-se à ideia dos limites temporais do caso julgado: a sentença só é válida «rebus sic stantibus» - cremos que os «contradireitos» que o réu podia fazer valer são ininvocáveis contra o caso julgado. O fundamento essencial do caso julgado não é de natureza lógica, mas de natureza prática; não há que sobrevalorizar o momento lógico do instituto, por muito que recorramos a ele na técnica e construção da figura. «O que se converte em definitivo com o caso julgado não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou não reconhecimento de um bem»”.

E adianta, esclarecidamente, o mesmo autor: “a paz e a ordem na sociedade civil não permitem que os processos se eternizem e os direitos das partes reconhecidos pelo juiz após uma investigação conduzida pelo juiz de acordo com as normas legais voltem a ser contestados sob qualquer pretexto.

Outro problema que se põe é o de saber se esta figura do efeito preclusivo pertence ao instituto do caso julgado, ou lhe é estranha.

A dogmática tradicional e dominante integra-o no caso julgado. Uma regra clássica diz-nos aqui que tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat, o caso julgado abrange aquilo que foi objecto de controvérsia, e ainda os assuntos que as partes tinham o ónus (não o dever) de trazer à colação; neste último caso, estão os meios de defesa do réu.

(…) Outros autores veem este efeito preclusivo como efeito da sentença transitada, mas efeito distinto do caso julgado.

(…) Apreciando esta construção, notaremos antes de mais estarmos inteiramente de acordo com Schwab, quando este salienta que «não tem qualquer relevância prática, se os factos são excluídos com fundamento na eficácia do caso julgado ou com fundamento numa preclusão estranha ao caso julgado». O próprio Habscheid reconhece que caso julgado e efeito preclusivo «ambos se completam, ambos prosseguem o mesmo fim», tutela da paz e da segurança jurídica e chama ao efeito preclusivo «princípio-irmão» do caso julgado material.

(…) A indiscutibilidade de uma afirmação, o seu carácter de res judicata, pode resultar pelo contrário tanto de uma investigação judicial, como do não cumprimento dum ónus que acarrete consigo vi legis esse efeito. Sucede isso no processo cominatório pleno, em que faz caso julgado uma questão decidida apenas pela aplicação de normas de direito processual civil. E sucede ainda a respeito das questões que as partes têm o ónus de suscitar, sob pena de serem ulteriormente irrelevantes para impugnar ou defender uma situação jurídica acertada ou rejeitada em termos de caso julgado.”

Quer na sua função positiva de autoridade, quer na função negativa, que impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal[19], é a necessidade de certeza do direito e da segurança das relações jurídicas que se acautela: “desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação, da anarquia. …A força e a autoridade derivam … da necessidade superior de certeza e segurança jurídica [20].

A força do caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas, pressupondo a existência de uma conexão que impeça que a primeira decisão, transitada em julgado, seja contraditada pela segunda.

Em regra, o caso julgado forma-se sobre a parte decisória da sentença, não sobre os motivos ou fundamentos da decisão (teoria limitativa). Em princípio, estes não são mais do que elementos interpretativos e definidores do alcance da parte dispositiva da decisão. O julgado sobre os motivos só ganha relevância em relação a aspectos que poderiam ser objecto de processo autónomo, no qual sobre eles se formaria o caso julgado nos termos normais[21]. Todavia, tem-se entendido que a determinação dos limites objectivos do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.[22] Como precisa o acórdão do STJ de 12.1.2010[23], “o caso julgado forma-se, em princípio, sobre a decisão contida na sentença ou no acórdão, e não sobre as razões que determinaram o juiz a atingir as soluções que deu às várias questões que teve de resolver para chegar à conclusão final, a menos que se tenha de recorrer à respectiva parte motivatória para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo, em virtude de a fundamentação da sentença ou do acórdão constituir um pressuposto lógico e necessário da decisão”.

Também J. Alberto dos Reis já defendia que a ideia de que a força do caso julgado se deva limitar à parte dispositiva da sentença tem de sofrer restrições, sustentando que “há que atender aos fundamentos ou motivos para interpretar devidamente a parte dispositiva, isto é, para fixar, com precisão, o sentido e alcance desta parte”.

Segundo Teixeira de Sousa[24], “além da eficácia «inter partes» - que o caso julgado possui sempre -, o caso julgado também pode atingir terceiros. Tal sucede através de uma de duas situações: a eficácia reflexa do caso julgado e a extensão do caso julgado a terceiros. Aquela eficácia verifica-se quando a acção decorreu entre todos os interessados directos (quer activos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou decidido entre os legítimos contraditores (…) deve ser aceite por qualquer terceiro”.

Ainda de acordo com o mesmo autor, “da circunstância de o efeito reflexo depender da presença em juízo de todos os interessados directos resulta que, numa acção em que é alegado um direito absoluto, o caso julgado da respectiva decisão nunca pode realizar aquele efeito. Como esse direito não é individualizado por qualquer sujeito vinculado (exactamente pela ausência de qualquer relação), não é possível delimitar os interessados directos que devem ser demandados para que se realize essa eficácia reflexa. Portanto, nenhum titular de um direito incompatível fica vinculado a aceitar um direito absoluto reconhecido em juízo entre terceiros. (…).

Diferente é a situação quanto aos direitos relativos, porque as razões relativas em que se baseiam esses direitos decorrem de uma relação entre sujeitos determinados e, por isso, só podem ser invocadas por certos sujeitos contra outros igualmente determinados. Também aqui vale a coincidência entre o âmbito subjectivo do caso julgado e a oponibilidade a terceiros de um negócio respeitante a um direito relativo: a regra é a eficácia reflexa do caso julgado, que só não se verifica nas situações de inoponibilidade substantiva do negócio celebrado e apreciado na acção (como acontece, por exemplo, na hipótese da impugnação pauliana, art. 610º CC)”.

Concluindo, finalmente, que “a eficácia do caso julgado realiza-se sempre que as partes da acção sejam todos os interessados directos. É uma situação frequente na área contratual, dado que nela as partes da acção coincidem normalmente com todos os contraentes. Por exemplo: o reconhecimento da qualidade de arrendatário que é obtida numa acção instaurada contra o locador é oponível a terceiros (…), porque a acção correu entre todos os interessados directos – o locador e o locatário”.

Em sentido idêntico concluiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2016[25]: “A sentença proferida numa acção em que estejam em discussão direitos absolutos e subjectivamente vinculantes (como é o caso dos direitos reais, entre os quais, o direito de propriedade) não expande a sua eficácia para além dos sujeitos intervenientes no processo, não podendo vincular e abranger todos quanto à exclusão de domínio (sobre a coisa), mas tão só aqueles entre quem a sentença atribuiu e delimitou a exclusão da turbação do direito perturbado”.

No processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 1, com o nº 9933/19.0YIPRT a também Autora A..., S.A. pediu a condenação de AA, aqui igualmente Réu, no pagamento da quantia de € 1.089,58, acrescida dos respectivos juros, pelo fornecimento, não pago, de serviços de saneamento.

Não existindo entre a referida acção e aquela em que foi proferida a decisão aqui recursivamente escrutinada a tríplice identidade exigida pelo artigo 581.º do Código de Processo Civil (desde logo, por serem distintos os pedidos formulados nas duas acções), claramente se mostra arredada a excepção de caso julgado.

Resta, assim, indagar se ocorre a também invocada autoridade de caso julgado.

No aludido processo n.º 9933/19.0YIPRT o Réu, que contestou, invocou, designadamente, que não celebrara qualquer contrato com a Autora, a qual, em resposta, argumentou que o fornecimento e cobrança dos serviços de saneamento prestados não exigiam a celebração daquele contrato.

No referido processo, em que, entre o mais, se considerou provado que “O Requerido não foi ouvido, quanto à mencionada cessão da posição contratual à Requerente, não a consentiu, e também não celebrou qualquer contrato com esta”, foi proferida sentença, transitada em julgado, que, julgando a acção, não procedente, absolveu o Réu do pedido formulado pela Autora.

A referida decisão teve como suporte a seguinte fundamentação:

“(...) Os presentes autos assentam na premissa da existência em regime de parceria, no vertente caso, com o Município ..., por opção deste, no âmbito da gestão dos serviços municipais, de atribuição à Requerente, exclusivamente, na gestão e exploração dos sistemas municipais de saneamento de águas residuais.

Não restam dúvidas, que à Requerente lhe foi atribuída a gestão, em exclusividade, pelo Município ..., para a execução da actividade supra mencionada.

Contudo, igualmente, não restam duvidas, que o Requerido não foi ouvido, quanto á mencionada cessão da posição contratual à Requerente, não a consentiu, e também não celebrou qualquer contrato com esta.

Não obstante, se tratar de um serviço municipal que está a ser gerido em parceria com o Município ..., pela Requerente, não pode a mesma prestar o serviço e cobrar o serviço ao consumidor, sem previamente, ter contratado com aquele. “Desta forma, a relação que se estabelece entre a empresa privada que recebe a concessão e o consumidor final é uma relação de âmbito privado.

Pese embora os valores das taxas respetivas sejam definidos por entidade reguladora, neste sentido, Joana Catarina Neto dos Santos, vide Litigio entre os concessionários do serviço público de abastecimento de água e os consumidores.

A Cessão da posição contratual, está regulada nos artºs. 424º. e seguintes do Código Civil.

De acordo com o preceituado no artº. 424º. do Código Civil: Nº. 1 – “No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão”.

Estabelece, ainda, o Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro, no artº. 18º., al. l), a propósito das clausulas contratuais gerais, que é absolutamente proibido a clausula que consagra a possibilidade de cessão da posição contratual…, sem o acordo da contraparte.

Nos termos do artº. 5º. daquele Diploma legal, faz-se alusão às clausulas contratuais gerais que devem ser comunicadas na integra ao consumidor e antecipadamente.

Mais consagra, o supra referido diploma legal, o dever de informação, no artº. 6º., dever que impende sobre a entidade que presta o serviço. Ainda nesta esteira, consagra-se, na Coleção Formação Continua, Direito do Consumo 2015 a 2017, Centro de Estudos Judiciários, “a proibição da cessão da posição contratual sem o acordo do aderente, pretende prevenir que a coberto da transmissão do contrato se venha a limitar a responsabilidade ou a diminuir as garantias do consumidor”.

Se atentarmos que nunca foi celebrado qualquer contrato entre Requerente e Requerido e que este nunca foi ouvido, ou deu o seu consentimento à cessão da posição contratual à Requerente, concluímos, face ao supra exposto, que o requerido/consumidor não está obrigado ao pagamento de serviços que não tenha previamente e expressamente solicitado nem contratado.

O requerido tem direito á informação para o consumo o que não foi cumprido pela prestadora de eventuais serviços.

Não foi o requerido /consumidor em qualquer fase ou momento informado de forma clara, objectiva e adequada do modo e calculo do preço dos serviços que diz ter prestado.

Acresce que não foi acordado contratualmente o cálculo da facturação. A entender-se que o requerido estava obrigado a pagar as faturas peticionadas nos presentes autos, estaríamos a violar os supra citados preceitos legais e a permitir uma grande diminuição das suas garantias enquanto, eventual, consumidor”.

A Autora invocou nos autos de que emerge o presente recurso o seguinte factualismo fáctico para fundamentar as pretensões deduzidas contra o Réu: “A A..., S.A. é uma sociedade anónima que presta serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais, constituída pelo Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio, alterado pelo Decreto-lei n.º 72/2016, de 4 de novembro, a qual sucedeu nos direitos e obrigações das sociedades extintas, “C..., S.A.” e “E..., S.A.”, sem necessidade de qualquer formalidade, de forma plenamente eficaz e oponível a terceiros, a partir da sua data de entrada em vigor, ou seja, a partir do dia 30 de junho de 2015, nos termos dos n.ºs 3 e 4, do artigo 4.º do referido diploma legal.

Através de um Contrato de Parceria celebrado em 5 de julho de 2013 entre o Estado Português e os Municípios ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., foi criado o Sistema de Águas da Região ... que agregou os respetivos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público (com exceção dos municípios de ..., ... e ...) e de saneamento de águas residuais urbanas. Em virtude do Contrato de Gestão da Parceria celebrado em 26 de julho de 2013, foi atribuída à aqui Requerente a gestão e exploração do Sistema de Águas da Região ....

Note-se que a gestão dos serviços municipais é uma atribuição dos municípios, sendo que, por opção destes, é a Requerente que, em regime de parceria, gere e explora os serviços públicos de abastecimento de água para o consumo público e saneamento de águas residuais urbanas, assim como outros serviços decorrentes destas atividades, aos utilizadores finais nos Municípios ..., ..., ..., ... e .... No que concerne aos Municípios de ..., ... e ..., estes agregam exclusivamente os sistemas municipais de saneamento de águas residuais, nos termos da Cláusula 1.ª, n.º 5 do Contrato de Parceria e do disposto no n.º 8, da cláusula 4.ª Contrato de Gestão.

No exercício da sua atividade e no âmbito da relação contratual aqui subjacente, a Requerente prestou serviços ao Requerido, e, consequentemente, foram-lhe emitidas as seguintes faturas, constando, por referência a cada uma delas, os juros vencidos. Sucede que, não obstante se encontrar interpelado para pagar, o Requerido não procedeu ao pagamento da quantia em dívida, razão pela qual se recorre ao presente meio processual, nos termos do disposto no artigo 10.º, do Decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro.

Todas as medições e cálculos de faturação foram efetuados em conformidade com o acordado contratualmente e de acordo com a legislação em vigor, nomeadamente o Decreto-Lei nº 194/2009. Acresce ainda que o Requerido nunca recusou a prestação dos serviços, tendo recebido as faturas e não procedido à sua devolução, pelo que aceitou tacitamente as mesmas.

Pelo exposto, o Requerido encontra-se, presentemente, em dívida, no montante total das faturas abaixo indicadas e dos respetivos juros vencidos à presente data e vincendos até efetivo e integral pagamento.

Assim sendo, encontram-se atualmente em dívida as seguintes faturas:

FT ..., de 86.20 EUR+juros de 22.11.2022 a 22.02.2023 ( 0.88); FT ..., de 25.72 EUR+juros de 20.01.2023 a 22.02.2023 ( 0.10); FT ..., de 4.59 EUR+juros de 31.12.2022 a 22.02.2023 ( 0.03); FT ..., de 30.01 EUR+juros de 21.12.2022 a 22.02.2023 ( 0.21); Em suma, o requerido encontra-se em dívida, à data, da quantia global de 147.74 EUR”.

Não se cuida aqui de indagar acerca da existência ou não de contrato que vincula ambas as partes, mas antes de equacionar se a anterior decisão judicial, que julgou a acção improcedente com o fundamento em que “que nunca foi celebrado qualquer contrato entre Requerente e Requerido e que este nunca foi ouvido, ou deu o seu consentimento à cessão da posição contratual à Requerente, concluímos, face ao supra exposto, que o requerido/consumidor não está obrigado ao pagamento de serviços que não tenha previamente e expressamente solicitado nem contratado”, poderá, por via da autoridade do caso julgado, ditar o mesmo destino para esta acção posterior.

 No processo n.º 9933/19.0YIPRT foram considerados provados os seguintes factos:

“A) A Requerente A..., S.A. é uma sociedade anonima, prestadora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais, constituída pelo Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio, alterado pelo Decreto-lei n.º 72/2016, de 4 de novembro, a qual sucedeu nos direitos e obrigações das sociedades extintas, “C..., S.A.” e “E..., S.A.”, a partir da sua data de entrada em vigor, ou seja, a partir do dia 30 de junho de 2015, nos termos dos n.ºs 3 e 4, do artigo 4.º do referido diploma legal.

B) A Requerente é, ainda, responsável pela captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público e pela recolha, tratamento e rejeição de efluentes domésticos, urbanos e industriais e de efluentes provenientes de fossas séticas.

C) Assume, também, a exploração e gestão do Sistema de Águas da Região ..., em resultado da celebração de um contrato de Parceria entre o Estado e um conjunto de 8 Municípios, nomeadamente ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., que concretiza um processo de verticalização que reuniu, numa única entidade gestora, os serviços (prestados aos Municípios - Alta e munícipes - Baixa), de forma regular, contínua e eficiente, nos termos do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril.

C) A gestão dos serviços municipais é uma atribuição dos municípios, sendo que, por opção destes, é a requerente que, em regime de parceria, gere e explora os serviços públicos de abastecimento de água para o consumo público e saneamento de águas residuais urbanas aos utilizadores finais nos Municípios ..., ..., ..., ... e ....

D) No que concerne aos Municípios de ..., ... e ..., estes agregam exclusivamente os sistemas municipais de saneamento de águas residuais, nos termos da Cláusula 1.ª, n.º 5 do Contrato de Parceria e do disposto no n.º 8, da cláusula 4.ª Contrato de Gestão.

E) No âmbito da sua atividade, emitiu as facturas, constantes dos autos e por referência a cada uma delas, os juros vencidos.

F) Não obstante se encontrar instado para pagar, o Requerido não procedeu ao pagamento da referida quantia.

G) As medições e cálculos de faturação terão que obedecer aos critérios estabelecidos pela legislação em vigor, nomeadamente o Decreto-Lei nº 194/2009.

H) O Requerido não foi ouvido, quanto á mencionada cessão da posição contratual à Requerente, não a consentiu, e também não celebrou qualquer contrato com esta.”

No recente acórdão de 18.04.2024, proferido no processo n.º 100011/23.1YIPRT.P1 (www.dgsi.pt.), desta Relação e Secção, relatado pelo aqui primeiro adjunto, e em que está em causa situação inteiramente similar à dos presentes autos, e em cuja argumentação nos revemos, diz-se: “...pensamos que existem alguns caminhos para concluir sobre se há ou não a ocorrência do indicado efeito positivo de caso julgado:

a). ou se entende que um tribunal judicial definiu que a Autora só poderia ser credora do Réu ou através de uma cessão de posição contratual, ou da celebração de um contrato entre as mesmas partes e que, por ser aquela ineficaz e não ter ocorrido esta celebração, está definido que, pelo contrato invocado pela Autora, o Réu não pode ser responsabilizado.

E se não o pode ser, essa impossibilidade tanto existe para as prestações que foram pedidas na primeira ação (efeito negativo do caso julgado) como para as prestações vincendas peticionadas numa outra ação pois a ineficácia e a falta de celebração de contrato, sem a alegação de factos supervenientes, mantém-se;

b). ou entende-se que a menção à celebração de um contrato de cessão de posição contratual ou a falta de celebração de um contrato autónomo com o Réu são interpretações que tribunal retirou, a nível jurídico de modo a que, para se condenar o Réu, não sendo eficaz aquela cessão, tinha de ter sido celebrado um contrato diretamente entre as partes.

E estando-se ao nível da apreciação jurídica da questão, em que os fundamentos de facto não encontram plena concordância com a conclusão jurídica, aquela apreciação não vincula outro tribunal;

c). ou o objeto da primeira ação não incluía as prestações vincendas, agora pedidas, pelo que o objeto do processo era diverso, não podendo assim assumir uma vinculação positiva para outro tribunal, sob pena de violação do princípio do contraditório.

Pensamos que, pelo menos estas, são alternativas que encontram, de algum modo, apoio na doutrina e jurisprudência.

A segunda, no sentido de a valoração jurídica de um tribunal não deve vincular um outro, está expressa por exemplo no Ac. da R. E. de 07/11/2019, processo n.º 34/09.0TBPVC.E1, www.dgsi.pt, onde se menciona que «Não é de admitir que a interpretação ou aplicação de normas levada a efeito num processo e a conclusão jurídica nele alcançada como pressuposto ou antecedente lógico da decisão aí tomada se imponha acriticamente noutro à sombra da “autoridade do caso julgado.».

Porém, na nossa opinião, será a fundamentação jurídica aquela que poderá ser atendida na outra ação, ou seja, «o caso julgado não se estende à decisão proferida sobre os factos da causa; estende-se …apenas às questões jurídicas prejudiciais que são também pressuposto da nova pretensão» - Ac. do S. T. J. de 28/03/2019, processo n.º 478/08.4TBASL.E1.S1, no mesmo sítio.

Aqui se refere que «…os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. (…). Em suma, afigura-se que os juízos probatórios que recaem sobre os factos dados como provados ou não provados numa ação não constituem, em si mesmos, decisão de questão jurídica que possa valer com autoridade de caso julgado material como pressuposto de pretensão deduzida noutra ação.» - nosso sublinhado -.

São as questões jurídicas prejudiciais, as questões de direito, que determinam a analisada autoridade da anterior decisão – alguém que foi declarado proprietário ou a quem esse direito não foi reconhecido e não a prova dos anos que decorreram para que se concluísse pela aquisição da propriedade por usucapião -.

Por isso, se na anterior decisão se entendeu que o Réu não tinha celebrado um contrato com a Autora e que a cessão da posição contratual não era oponível ao mesmo Réu, é essa decisão, com essa mesma apreciação jurídica, que poderá vincular um outro tribunal.

Quanto à terceira hipótese – na primeira ação não se apreciaram as prestações agora em causa -, no caso concreto, entendemos que não é esta visão que impossibilita que se possa concluir que ocorre autoridade de caso julgado.

Se é correto entender que as prestações cujo pagamento agora é peticionado não estavam incluídas no pedido (e por isso é que referimos que os pedidos entre ambas as ações são diferentes), também pensamos que é correto concluir que o objeto da primeira ação continua a ser prejudicial em relação ao novo objeto da também nova ação. Na verdade, se na primeira ação não estavam em causas as prestações que agora se pedem, a base contratual continua a ser a mesma, ou seja, é o mesmo contrato que sustenta o pedido do pagamento destas novas prestações pelo que ainda existe aquela relação de prejudicialidade.

Conhecemos a questão de, entendendo-se que existe a referida autoridade sobre valores que não faziam parte do objeto desse primeiro processo em que houve condenação, poderem resultar feridos os princípios do dispositivo e do contraditório – aquela autoridade de caso julgado vingava sobre valores não pedidos e sobre os quais não tinha havido contraditório[2] -. Mas, no caso concreto, na primeira ação, houve uma absolvição do pedido de pagamento de prestações pelo que, por uma questão de identidade de razões com o disposto no artigo 621.º, do C. P. C.[3], seja ao pedir o pagamento das mesmas prestações, seja de outras futuras, basta que, no caso, a Autora alegue que já foi (supervenientemente ao encerramento da discussão em 1.ª instância) comunicada ao Réu a transmissão da sua posição contratual, assim se tornando eficaz a assim entendida cessão, para que deixe de ser eficaz o caso julgado.

Mas enquanto a condição se mantiver (na situação sub judice, enquanto não se demonstrar a comunicação da cessão da posição contratual num anterior contrato[4]), a primeira decisão impede que a Autora possa pedir o pagamento de prestações de consumos, sejam os contemporâneos aquela decisão, sejam os posteriores, desde que com base no mesmo contrato.[5]

Por isso, concluímos que a primeira hipótese, temperada pela conjugação do artigo 621.º, do C. P. C.,  é aquela que se nos revela a mais adequada aos autos, ou seja, enquanto a Autora não alegar (e depois demonstrar) na nova ação que a transmissão, para si, enquanto credora, da posição contratual do anterior fornecedor, já é eficaz perante o Réu, a autoridade de caso julgado impede que seja procedente o pedido de pagamento de fornecimentos pois o Réu não pode ser seu devedor atenta a ineficácia da cessão e não existir um contrato celebrado só entre estas partes que sustente tais pedidos.

Este entendimento de que há autoridade de caso julgado já foi adotado por Ac. desta mesma Relação e secção de 29/06/2023, sendo relator Carlos Portela (processo n.º 52169/22.7YIPRT.P1, ao que pensamos, não publicado e a que também acedemos via citius), em que está em causa igual situação à aqui analisada; e pensamos que também terá sido a ideia de que se não há demonstração da eficácia da cessão da posição contratual, tal valerá para todas as prestações que nasçam de tal contrato pois refere-se que: perante tal decisão, transitada já em julgado, resulta para nós evidente que os argumentos que a sustentam e que têm a ver, como claramente se vê, com o cumprimento das regras da cessão da posição contratual, valem para todas as ações que a aqui autora A... S.A., queira propor contra a aqui ré…».

Não estará aqui referido que a causa de pedir seja a cessão de posição contratual (como se menciona no Ac. da R. P. de 21/11/2023, processo n.º 90665/22.3YIPRT-A.P1, www.dgsi.pt) que analisa também igual questão à dos autos e conclui que inexiste autoridade de caso julgado, no que julgamos perceber, por entender que no caso não se está perante uma situação de cessão de posição contratual mas numa sucessão legal e que, por isso, aquela não é prejudicial desta. Na nossa visão, com o elevado e devido respeito, pensamos que neste Acórdão já se entra no campo da análise da correção do anteriormente decidido e não do aferir se o que já está definitivamente decidido pode ser prejudicial de uma outra ação)”.

Não tendo a Autora alegado, nem resultando nos autos comprovado que tenha sido comunicado ao Réu a cessão de posição contratual que lhe permite ser sua credora de acordo com a anterior decisão judicial, existe autoridade de caso julgado entre a decisão proferida no mencionado processo n.º 9933/19.0YIPRT, transitada em julgado, e os presentes autos.

Procede, assim, o recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.


*

Síntese conclusiva:

………………………………

………………………………

………………………………


*

Pelo exposto, acordam os juízes nesta Relação em:

1. Julgar a apelação procedente, revogando o despacho recorrido.

2. E, em consequência, absolver o Réu do pedido.

Custas da apelação: pela apelada - art.º 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Porto, 4.07.2024
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
João Venade
Manuela Machado
___________________
[1] Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, pág. 54.
[2] Processo n.º 2218/15.2T8VCT-A.G2-A.S1, www.dgsi.pt.
[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 40.
[4] Proc. n.º 2218/15.2T8VCT-A.G2-A.S1, www.dgsi.pt.
[5] Artigo 497º, nº2 do Código de Processo Civil.
[6] Processo 2204/10.9TBTVD.L1-2, www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.2.2015, proc. n.º 915/09.0TBCBR.C1.S1, www.dgsi.pt.
[8] Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 1981, pág. 101.
[9] “Direito Processual Civil Declaratório”, Almedina, Coimbra, 1981, Vol. I, pág. 201 e seguintes.
[10] “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 3ª Edição, pág. 121.
[11] Ibid., pág. 123.
[12] Em contraponto à teoria da individualização.
[13] Processo n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1, www.dgsi.pt.
[14] Podendo ser modificada através de recurso extraordinário.
[15] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, pág. 93.
[16] “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 305 e 306.
[17] Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 94.
[18] “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, págs. 178 e segs.
[19] A que aqui nos interessa.
[20] Código de Processo Civil anotado, vol. III, páginas 94 e 95.
[21] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. III, págs. 392 e 398.
[22] Acórdão do STJ de 12.07.2011, in dgsi.pt.
[23] www.dgsi.pt.
[24] “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 1997, págs. 590-594.
[25] Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, www.dgsi.pt.