Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5777/15.6T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL MATOS NAMORA
Descritores: TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CONCEITO
RECURSO DE REVISÃO
FASES
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AUTORIZAÇÃO
CONSEQUÊNCIAS
OFENSA A PESSOA COLECTIVA
CRIME
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP202509105777/15.6T9MTS.P1
Data do Acordão: 09/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NA REVISÃO DO ACÓRDÃO ANTERIORMENTE PROFERIDO, ABSOLVER O ARGUIDO E JULGAR IMPROCEDENTES OS PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL E DELES ABSOLVER O ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - No recurso de revisão identificam-se três etapas distintas: a fase do juízo rescindente, a fase rescindente intermédia e a fase rescisória final, a qual versa sobre a tramitação subsequente à decisão do STJ que concede a revisão e que se prolonga após a baixa dos autos ao tribunal de categoria e composição semelhante à do tribunal que proferiu a decisão objeto da revisão e até ao termo do novo julgamento, se a ele houver lugar, com prolação de nova decisão.
II - Tendo o Supremo Tribunal de Justiça autorizado a revisão importa reapreciar a matéria de facto dada como provada, considerando a decisão proferida pelo TEDH, ainda que com total independência face a tal decisão.
III - As decisões do TEDH inscrevem-se no âmbito de um contencioso de legalidade e não de anulação, não sendo constitutivas do direito.
IV - O crime de ofensa à pessoa coletiva protege o bom nome da pessoa coletiva relativamente a factos e já não relativamente a juízos de valor, ao contrário do que sucede no crime de difamação e injuria.
V - Quando as palavras proferidas transmitem um juízo crítico, emitem uma opinião e visam a discussão e o debate público e transparente não são idóneas a atingir o essencial do direito à honra e consideração.
VI - A falta de preenchimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito de difamação e da ofensa à pessoa coletiva é, de acordo com critérios de lógica e coerência, incompatível com a prova (positiva) dos factos referentes ao elemento subjetivo, o que evidencia um vício de erro notório na apreciação da prova (al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP) e importa a eliminação desses factos da matéria de facto provada.
VII - Sendo a decisão condenatória revista e o tribunal de revisão absolver o arguido, devem ser restituídas as quantias pagas por este, a título de custas e multas, desde que não tenham sido contempladas já na indemnização arbitrada pelo TEDH.

(Sumário da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 5777/15.6T9MTS.P1

Relatora: Isabel Matos Namora

1º Adjunto: William Themudo Gilman

2ª Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório



1. 1. Decisão condenatória transitada em julgado

No processo que correu os seus termos no Juízo Local ..., sob o nº 5777/15.6T9MTS.P1, em 12.06.2018 foi proferida sentença que conclui com o seguinte dispositivo:
a) absolver o arguido AA da prática de um crime de difamação agravada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 2 e 184° do Cód. Penal (crime relativo ao assistente BB);
c) julgar improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BB e, em consequência, absolver AA do pedido contra ele formulado;
Condena-se este demandante BB na totalidade das custas cíveis relativamente a este pedido.
b) condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 187°, n°s 1 e 2, al. a), este último por referência ao artº 183°, n° 2, todos do Cód. Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €20,00 (vinte euros), num total de €4.000,00 (quatro mil euros);
d) Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o Pedido de Indemnização Civil deduzido pela demandante A..., RL e condenar o demandado AA, a pagar à demandante A... a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), valor acrescido dos juros moratórios, vencidos e vincendos, computados a partir da notificação do PIC e até efetivo e integral pagamento, contabilizados sobre aquele valor de €5.000,00, juros computados à taxa anual legal aplicável aos juros civis e que atualmente é de 4% ao ano, sendo o demandado absolvido da restante parte do pedido.

Por acórdão deste Tribunal da Relação, proferido em 27 de Março de 2019, foram os recursos apresentados pelo arguido AA e pelo assistente BB julgados, tendo sido proferida decisão nos termos que se passa a transcrever:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expostos, acordam os juízes, em audiência, na 1ª secção Criminal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente BB, revogando nesta parte a douta sentença recorrida e condenando o arguido pela prática de um crime de difamação agravado p. e p., respetivamente, nas disposições dos arts. 180º/1, 183º/2 e 184º do Código Penal, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 20.00€, o que perfaz a multa global de 5.000€.
Operando o cúmulo entre esta pena e a pena em que o arguido foi também condenado na sentença proferida na primeira instância, condenam o arguido em 350 dias de multa, à taxa diária de 20.00€, o que perfaz a multa global de sete mil euros (7.000€).
Condenam o arguido e demandado a pagar ao assistente e demandante BB, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de dez mil euros (10.000,00€), acrescida de juros, à taxa leal, desde a notificação desse pedido até integral pagamento.

Tal decisão transitou em julgado.


1.2. Decisão proferida pelo TEDH

Inconformado com essa decisão o arguido aqui recorrente, AA, apresentou queixa contra o Estado Português junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), a qual deu lugar a um processo que correu termos sob o nº ...238/19 e no qual foi, em 19 de março de 2024, proferida decisão final que condenou o Estado Português no pagamento de uma indemnização ao ora recorrente, a título de danos não patrimoniais e a título de custos e despesas incorridos com o processo perante o TEDH, por violação do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) na sentença que proferiu, apreciando o caso submetido pelo recorrente, conclui com o seguinte dispositivo:
“1. Declara a petição admissível;
2. Sustenta que houve uma violação do artigo 10.º da Convenção;
3. Sustenta
(a) que o Estado requerido é obrigado a pagar ao requerente, no prazo de três meses a contar da data em que a decisão se tornar definitiva, nos termos do disposto no artigo 44.º, n.º 2, da Convenção:
(i) 10.000 euros (dez mil euros), acrescidos de qualquer imposto que possa ser devido pelo requerente, a título de danos não patrimoniais;
(ii) 5.000 (cinco mil euros), acrescidos de qualquer imposto que possa ser devido pelo requerente, a título de custos e despesas;
(b) que, a partir do termo dos três meses suprarreferidos e até efetivo e integral pagamento, serão devidos juros simples sobre os montantes referidos, a uma taxa igual à taxa de empréstimo marginal do Banco Central Europeu durante o período de incumprimento, acrescida de três pontos percentuais;
4. Indefere o pedido do requerente por justa satisfação, na parte restante.”


1.3. Recurso de revisão
1.3.1. Alegações apresentadas pelo arguido

O arguido, invocando o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea g), 450º nº1, al. c) e 451º, do Código de Processo Penal, interpôs recurso extraordinário de revisão do acórdão condenatório proferido neste Tribunal da Relação do Porto que, em 27 de Março de 2019 proferiu a decisão supra indicada em 1.1., apresentando as conclusões que se transcrevem:
I. O presente recurso visa a revisão do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de março de 2019, no processo n.º 5777/15.6T9MTS.P1, que, além de confirmar a condenação do ora recorrente pela prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva (relativo à assistente “A..., R.L.”), p. e p. pelos artigos 187.º/1 e 2, al. a), este último por referência ao artigo 183.º/2, ambos do Código Penal, condenou-o, inovatoriamente, pela prática de um crime de difamação agravado (relativo ao assistente BB), p. e p. pelos artigos 180.º/1, 183.º/2 e 184.º do Código Penal.
II. No acórdão de 19 de março de 2024, proferido no processo n.º ...238/19, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) concluiu, por unanimidade, que a condenação do recorrente constituiu uma violação do artigo 10º, da CEDH.
III. O TEDH considerou que a condenação levada acabo pelos tribunais nacionais, além de desnecessária numa sociedade livre e democrática, foi manifestamente desproporcional, porquanto empreendeu uma excessiva compressão do direito à liberdade de expressão do recorrente, em prol dos direitos à honra e à reputação dos assistentes.
IV. No dizer do acórdão europeu, ao invés de lograrem conciliar e harmonizar os referidos direitos fundamentais, as instâncias nacionais atribuíram desmedida preponderância aos direitos à honra e à reputação dos assistentes, prejudicando, de forma injustificada, o direito à liberdade de expressão do recorrente.
V. De acordo com a jurisprudência do TEDH, a liberdade de expressão tem forçosamente de constituir o ponto de partida para o intérprete e para o julgador, só podendo sofrer compressão em situações deveras excecionais, previstas no artigo 10.º/2, da Convenção.
VI. É entendimento pacífico do TEDH que as limitações a esta liberdade devem ser interpretadas de modo restrito, devendo a liberdade de expressão constituir a regra.
VII. Como alertou o coletivo de Juízes do TEDH, as instâncias nacionais descuraram as orientações daquele Tribunal, patentes na sua vasta jurisprudência acerca desta matéria.
VIII. O recurso extraordinário de revisão inscreve-se nas garantias constitucionais de defesa, no princípio da revisão consagrado no artigo 29.º/6 da CRP: “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.”
IX. São fundamento e condição de admissibilidade do recurso extraordinário de revisão, em processo penal, a verificação de uma das situações taxativamente consagradas nas diversas alíneas do artigo 449.º/1 do CPP.
X. In casu, verifica-se o circunstancialismo previsto na al. g), que estatui ser de admitir a revisão de uma sentença/acórdão transitado em julgado quando: “Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.
XI. A CEDH vincula o Estado Português, sendo que essa vinculação acarreta, nos termos do artigo 46.º/1 da CEDH, um dever de respeito pelas decisões do TEDH:
XII. Estão reunidos os requisitos, estabelecidos na Recomendação de 19 de janeiro de 2000, do Conselho de Ministros do Conselho da Europa, para que deva haver lugar ao reexame da causa:
(i) ter a decisão nacional constituído uma violação material da CEDH;
(ii) que a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência de decisão nacional, que não possam ser compensadas com a reparação razoável, mas tão-só com o reexame ou reabertura.
XIII. A mera reparação pecuniária do recorrente não logra, por si, a reposição da justiça material que o caso em apreço exige.
XIV. Desde logo, porque a sua condenação criminal causou um grave dano ao seu bom nome e imagem pública.
XV. A procedência do presente recurso abrirá caminho à realização de um novo julgamento que culmine na substituição do acórdão recorrido por outro que, seguindo as orientações do TEDH, absolva, na íntegra, o recorrente, tanto dos ilícitos criminais, como das indemnizações por que foi indevidamente condenado.
XVI. E que, dando cumprimento ao disposto no artigo 462.º, do CPP, condene o Estado Português a restituir ao recorrente as quantias por este pagas em virtude do processo criminal no qual foi injusta e ilicitamente condenado (pena de multa, indemnizações civis, custas de parte, taxas de justiça), acrescidas dos respetivos juros de mora à taxa legal vincendos e vencidos desde as respetivas datas de pagamento.”
Conclui o arguido recorrente solicitando que seja admitida a revisão do acórdão recorrido e, em consequência, que seja anulado e substituído por outro que, seguindo as orientações do TEDH:
1 - absolva integralmente o recorrente dos crimes e dos pedidos de indemnização civil em que foi condenado;
2 - ordene o cancelamento da condenação do registo criminal do recorrente;
3 - restitua ao recorrente todas as quantias por si despendidas no processo judicial (pena de multa, indemnizações, custas de parte, taxas de justiça) acrescidas dos respetivos juros de mora à taxa legal vincendos e vencidos desde as respetivas datas de pagamento, que se avaliam, à data de 30/09/2024, em €38.487,04.


1.3.2. Resposta do Ministério Público

O Ministério Público respondeu ao recurso, não apresentando conclusões, defendendo, contudo, que “(…) não se verifica o fundamento indicado pelo ora recorrente para se poder autorizar a revisão dos acórdãos condenatórios, da 1ª e 2ª instância, ou seja, não se verifica, em concreto, o fundamento previsto no artigo 449º, nº1, al. g) do Código de Processo Penal, ou qualquer outro, para que as decisões dos tribunais nacionais sejam revistas e, em consequência, todas as pretensões do recorrente possam vir a obter provimento”.


1.3.3. Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça

O Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão autorizando a requerida revisão, com os seguintes fundamentos:
“Como resulta da transcrição efetuada, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não se limitou a criticar as penas aplicadas no processo, mas, antes, a considerar que “os tribunais nacionais atribuíram um peso desproporcionado aos direitos à reputação e à honra da sociedade de advogados C. e de P.R., em contraste com o direito à liberdade de expressão do requerente” e que “o exercício de ponderação levado a cabo pelos tribunais nacionais não foi realizado em conformidade com os critérios estabelecidos na jurisprudência do Tribunal” e foi efetuado em violação do artigo 10º da CEDH.
Acrescenta ainda o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que “a mera condenação do requerente parece ser manifestamente desproporcionada, especialmente tendo em conta que os artigos 70.º, 484.º e 496.º do Código Civil (vide parágrafo 33 supra) preveem uma solução específica em matéria de danos à honra e à reputação”, o que, lido de forma simples e direta, pode ser entendido como um recurso indevido ao processo criminal.
Nada há, pois, nada mais inconciliável, para reparação da eventual lesão dos direitos de personalidade, que a utilização dos mecanismos penais em detrimento dos mecanismos cíveis.
Na decisão fundamento da queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, os tribunais portugueses consideraram ter sido violado o direito à honra e bom nome dos assistentes e condenaram o recorrente com esse fundamento, enquanto o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou tal condenação desproporcional ao objetivo visado, não sendo necessária numa sociedade democrática, tendo havido violação do artigo 10° da Convenção dos Direitos do Homem.
Como refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, “É inevitável concordar-se que, em face do decidido pelo TEDH – sem menosprezo pelo direito à honra e ao bom nome dos ofendidos – a perpetuação da condenação penal do arguido constituirá uma séria e grave afronta aos seus direitos de personalidade, assim como, num plano objetivo, ao princípio do Estado-de-Direito Democrático (cfr, os arts. 2º da Constituição da República e 70º do Código Civil).”
Em situações similares como a dos autos, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a aceitar a revisão.
Escreveu-se, a propósito das situações em que se justifica a revisão na sequência da violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 2012: “Para além destas limitações, decorrentes da própria Recomendação, há que ter em consideração, ainda, a partir de uma interpretação histórica e teleológica, o desejo e a intenção do Comité de Ministros do Conselho da Europa que aprovou a Recomendação, desejo e intenção expressos na respetiva exposição de motivos, através da indicação das situações em que se justifica a revisão, quais sejam:
a) pessoas condenadas a longas penas de prisão e que continuam presas quando o seu caso é examinado pelo TEDH;
b) pessoas injustamente privadas dos seus direitos civis e políticos;
c) pessoas expulsas com violação do seu direito ao respeito da sua vida familiar;
d) crianças interditas injustamente de todo o contacto com os pais;
e) condenações penais que violem os artigos 10º ou 9º, porque as declarações que as autoridades nacionais qualificam de criminais constituem o exercício legítimo da liberdade de expressão da parte lesada ou exercício legítimo da sua liberdade religiosa;
f) nos casos em que a parte não teve tempo ou as facilidades para preparar a sua defesa nos processos penais;
g) nos casos em que a condenação se baseia em declarações extorquidas sob tortura ou sobre meios que a parte lesada nunca teve a possibilidade de verificar;
h) nos processos civis, nos casos em que as partes não foram tratadas com o respeito do princípio da igualdade de armas.
No caso vertente estamos perante decisão do TEDH condenatória do Estado Português, na qual se considerou que a sentença condenatória proferida pelas instâncias nacionais contra o recorrente AA violou o artigo 10º, da CEDH, por se haver entendido que a sua condenação constitui uma ingerência no direito à liberdade de expressão.
Nesta conformidade, tendo o TEDH considerado violado o artigo 10º, da CEDH, há que conceder provimento ao recurso autorizando a revisão de sentença.”
É exatamente a situação que se verifica nos presentes autos, a qual justifica, sem margem para qualquer dúvida, a revisão.
Neste sentido, verifica-se o fundamento invocado pelo recorrente previsto na alínea d), do nº1 do artigo 449º, do Código de Processo Penal.”
1.4. Remetido o processo a esta Relação do Porto para formação de Tribunal com composição idêntica (art.º 457º nº 1 do CPP), foram os autos remetidos à distribuição, respeitando-se o impedimento a que alude o art.º 40º, nº 1 al. d) do CPP.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.


2. Objeto do recurso

Em face do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, na procedência do recurso extraordinário de revisão, autorizou a revisão requerida pelo arguido e determinou a remessa dos autos a este Tribunal da Relação do Porto, há que proferir nova decisão, apreciando pedido formulado pelo arguido recorrente, nos termos dos artigos 461º e 462º do CPP:

- revisão do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação

- e pedido indemnizatório


3. Fundamentação de facto

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos (transcrição):

Da Acusação Pública
1. O assistente BB é advogado, portador da cédula profissional nº ...71..., encontra-se inscrito na Ordem dos Advogados desde 14-03-1994 (como advogado após estágio) e, pelo menos em 2014 e 2015, exerceu a sua atividade na sociedade de advogados A..., RL (também assistente neste processo e doravante apenas designada por “A...”).
2. A assistente A... é uma sociedade de advogados registada na Ordem dos Advogados com o n° .../89 desde 02-01-1989.
3. O arguido foi comentador habitual às segundas-feiras, no programa "Jornal Diário" que é exibido no canal de televisão denominado "Porto Canal".
4. No dia 25-05-2015, cerca das 20h28m, aquando da exibição do referido programa, a propósito da construção da ala pediátrica do Hospital ... que iniciou e depois parou, o arguido comentou tal assunto, tendo proferido as seguintes palavras:
“Entrevistador: Professor, vamos ao tema de hoje, que é um tema complicado, é a construção da ala pediátrica do Hospital ... pela associação “O ...”, da qual o professor é o presidente, começou e parou. O que é que aconteceu?
Arguido AA: começou e parou. CC a política meteu-se no meio. Esta obra, que é uma oferta de todos os portugueses congregados na associação de que eu sou presidente, uma oferta mecenática em que a associação paga a obra a duas construtoras que se associaram também com espírito mecenático a esta obra (a B... e a C...) que é dada, oferecida, ao Hospital ....
Mas a política meteu-se no meio.
Entrevistador: de que forma?
Arguido AA: veio sob a forma de uma sociedade de advogados A..., de que é Diretor o Dr. BB, político e eurodeputado do ....
Foi basicamente a produção deste documento pela sociedade de advogados que é Director o BB que levou o Hospital ... a paralisar a obra com medo das consequências, sobretudo um dos administradores que ficou muito preocupado. O presidente do Hospital é um grande entusiasta desta obra, mas uma das coisas que a sociedade de advogados A..., do Dr. BB, produziu foi dividir a Administração do Hospital ... em torno desta obra.
Entrevistador: E porquê? Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Criminal ...
Arguido AA: exatamente, porquê??? O Dr. BB é um político. Um político partidário. E os partidos são para partir, para dividir. E já começaram a dividir. E para destruir. Quem parte é sinónimo, frequentemente, de destruição, portanto, querem-se opor a esta obra.
Aparentemente, e embora eu sempre tenha conduzido esta obra juntando todos os portugueses (ninguém está excluído, as instituições do Estado não estão, nenhum político está excluído), eu tinha o receio desde o início, que se está a materializar, que há certos políticos que, embora façam muitos apelos à sociedade civil, quando a sociedade civil se põe a fazer uma obra destas, a oferecer esta obra ao Hospital ..., no valor de 20 milhões de euros (uma obra que competiria ao Estado, e, portanto, aos políticos, ter feito), eles sentem que esta obra os faz parecer mal. Eles sentem que esta obra (porque no fim de contas são os políticos, incluindo o Dr. BB que, aliás, até pertence ao partido do governo – quero fazer aqui uma distinção: o Primeiro Ministro esteve no lançamento da primeira pedra, mas como sabe o Dr. BB é de uma fação diferente da fação do Primeiro Ministro, até concorreu contra ele e perdeu quando foram as eleições para a presidência do ... aqui há uns anos).
E, portanto, o Dr. BB e a sua sociedade de advogados produziram um documento que paralisou a obra. Este documento, sob a aparência de ser um trabalho jurídico, é na realidade uma palhaçada jurídica. Portanto o que paralisou a obra é um documento produzido pela sociedade do Dr. BB, e de que ele tem conhecimento porque ele é o patrão aqui no Porto e que na realidade é uma palhaçada jurídica.
Eu quero, em primeiro lugar - se o Porto Canal me permitir -, convidar o Dr. BB para na próxima segunda-feira (até porque é dia Mundial da Criança e as crianças estão lá metidas no barracão e o Dr. BB quer contribuir para que as crianças continuem metidas no barracão em lugar de ter uma instalação condigna de cinco andares que nós estamos – a comunidade portuguesa – se está a juntar para oferecer ao Hospital ...), eu queria convidar o Dr. BB para discutir comigo esta palhaçada jurídica, aqui, na segunda feira. Eu não vou entrar nos detalhes do documento, apenas afirmar que o documento paralisou a obra (está paralisada há 4 semanas).
Entrevistador: mas com que interesse professor?
Arguido AA: ó CC, isso teremos de lhe perguntar a ele. Já mencionei um argumento possível. Ele interpretar que esta obra, dada pelos cidadãos (uma obra que pertenceria ao Estado pagar) faz parecer mal os políticos. Embora eu sempre tenha dito que a minha posição como presidente da associação não excluía ninguém.
Há outra. Isto vem a propósito da promiscuidade entre política e negócios ou atividade profissional, neste caso juristas (de alguns, não são todos, evidentemente!).
O que é que isto significa? O Dr. BB é um exemplo acabado no fim de contas ele é um politico e ao mesmo tempo está à frente de uma grande sociedade de advogados. É preciso capacidade. Ainda por cima é político Eurodeputado, está muito tempo no estrangeiro, o que é que isto significa? Como político anda certamente a angariar clientes para a sua sociedade de advogados, clientes sobretudo do Estado: Hospital ..., Câmaras Municipais, Ministérios disto e Ministérios daquilo. Quando produzem um documento jurídico a questão que se põe é: este documento é um documento profissional de um jurista profissional ou, pelo contrário, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer?
Tudo pode acontecer! E neste caso, desta palhaçada, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer.
Porque, de facto, há políticos (e eu falo com conhecimento de causa) que olham para esta obra que nós andamos generosamente a entregar ao Hospital ... (e à qual eles se podiam associar) como uma obra que os faz parecer mal. Por isso se opõem a ela. Será certamente o caso do Dr. BB.
Há ainda outra dimensão.
O grande jantar de gala que se realizou há um mês no Estádio ..., que reuniu 300 pessoas, cada mesa custava 8.000 euros. Nas semanas que antecederam fui convidar várias instituições da cidade. Quase todas aderiram. As principais a AEP (Associação Empresarial de Portugal), ali na .... O Presidente DD recebeu-me e disse-me “Óbvio! A AEP? esta obra é tão importante para a nossa cidade, para as nossas crianças, não apenas para a cidade, para todo o norte do país, e em última instância para todo Portugal (porque o Hospital ... serve todos os portugueses), que a AEP não pode estar ausente!”. E ele disse-me “sim senhor, pode contar com a mesa”, significando 8.000 euros. Divulgaram ainda entre os seus associados, vieram ainda outras empresas que estiveram presentes no jantar, a pagar 1000 euros por pessoa, 8.000 por mesa.
Fiz o mesmo com a Associação Comercial do Porto. E com muitas outras. Na Associação Comercial do Porto foi recebido por um jovem diretor – Dr. EE - que se mostrou imensamente sensível a esta obra (um homem com trinta e tal anos, com filhos pequenos), de tal modo sensível que ele disse-me “eu agora tenho de apresentar à direção”, mas ele mostrou-se de tal modo sensível que eu saí de lá convencido que a Associação Comercial do Porto também estaria presente. Uns dias antes do jantar recebi um telefonema dele a dizer “olhe, lamentavelmente, a Associação Comercial do Porto não vai estar presente”. Para mim foi a maior deceção. A ajuda não tinha de ser apenas em presença e dinheiro, poderia ser divulgando junto dos seus associados. Não mexeram um dedo. Foi a ausência que mais me chocou. Tanto que eu, entretanto, tinha andado a dizer junto de outras empresas que visitava, e até em Lisboa, “as principais instituições da cidade estão presentes”. E mencionava frequentemente a Associação Comercial do Porto, que, à última da hora, disse que não.
Fiquei tão penalizado que ainda ontem – é genuíno, eu pensava nisto – e fui à internet, interrogando-me assim “mas quem é que terá tomado esta decisão? Quem é a direção da Associação Comercial do Porto?”, que eu de facto não sabia, fui recebido por aquele senhor que me tratou muito bem. E então não é que está lá também o Dr. BB e mais outro jurista da mesma sociedade de advogados?
Foi nesse momento, ontem à noite, que eu decidi qual seria o tema do meu comentário hoje.
Entrevistador: qual é o argumento para bloquearem a obra, professor?
Arguido AA: Eles inventam umas palhaçadas. O argumento é uma palhaçada, que eu convido a vir aqui discutir comigo perante si e à frente dos nossos telespetadores, para vermos se isto é um argumento jurídico sério, ou se é uma palhaçada. Basicamente é o seguinte: a associação contrata com as construtoras, por aqui está tudo bem. E oferece, dá, desde a primeira pedra, ao Hospital .... Isto até já tinha sido aceite pelo Secretário de Estado. Eu fui pedir ao Secretário de Estado para o Estado – o Hospital ... – aceitar a obra. E foi isto. Vem a A..., os advogados, o Dr. BB dizer assim "a Associação não pode dar a obra ao hospital”. “Não pode dar?”. Ó CC… a Associação não pode dar a obra ao hospital?!? Não cabe na cabeça de ninguém, pois não?
E então conceberam um esquema, e aqui é que começa a palhaçada, em que o hospital cede o espaço para a associação fazer a obra, se a partir de certo momento a obra for interrompida (o que é possível, pode temporariamente não haver dinheiro para a continuar, não se esqueça que são 20 milhões, está previsto, e as construtoras aceitam parar até a obra ou trabalhar mais devagar, sem qualquer penalização para a associação, que foi das grandes concessões que as construtoras fazem), metem-se ali numa baralhada jurídica, em que, em última instância, o Hospital ... se reserva ao direito de pôr a associação em Tribunal! Ó CC, o Hospital ... nesta palhaçada jurídica da A... e do Dr. BB, reserva-se ao direito de pôr a associação e as construtoras (que são os mecenas), CC, em Tribunal! E reserva-se o direito de rapinar a obra da associação, dar um pontapé na associação!
Ó CC, eu tenho atrás de mim o progresso, nós estamos a atingir o primeiro milhão de euros, que normalmente é o mais difícil. Trouxemos duas construtoras que fizeram imensas concessões, já tenho um banco disponível para financiar a obra, no dia 8 de junho encontrou-se com outro banco ao mais alto nível – é o Banco 1.... O presidente do Banco 1... – O Dr. FF – e o presidente da Fundação Banco 1... juntos vão-me receber (já falei com o presidente da Fundação Banco 1..., foi ele que arranjou um encontro, porque eu pedi um financiamento humanitário, e daí estarem as duas mais altas pessoas da estrutura do Banco 1... a receber-me), e depois de todo este esforço, aparecem uns fulanos destes, uns politiqueiros de segunda categoria a meterem-se à frente de uma obra que e uma obra boa! Uma obra para crianças!
Entrevistador: Mas vislumbra aí algum interesse escondido?
Interesses políticos. Não deixar que seja a associação a fazer a obra para que eles um dia… para que os cidadãos não digam “olhem os políticos não fazem nada”, é a associação, no sentido de que é a comunidade portuguesa.
Eu quero dizer uma coisa ao Dr. BB e a todos os ... que vierem a seguir no sentido de impedirem esta obra.
Eu, congregando todos os mecenas, e é assim que estou comprometido com eles, eu vou fazer esta obra! Só passando por cima do meu cadáver é que eu não farei esta obra. O CC perguntará: “isso de passar por cima do cadáver é uma figura de retórica? Estaria disposto a dar a sua vida, pronto a dar a sua vida por esta obra? Estou! Eu sinto! Eu sinto, CC. O que vou dizer não é universal, o o tem sentido nenhum. Mas eu sindo que nesta fase da minha vida esta obra foi uma missão que Deus me encomendou. E eu prometi a Deus que cumpriria esta missão. Eu vou cumpri-la! Não será nenhum politiqueiro de segunda categoria, nem juristas de vão de escada que me vão impedir de fazer esta obra!
Está parada. Vai recomeçar. Na segunda Feira, de hoje a 8 dias, espero que o Dr. BB aceite o meu convite. É dia Mundial da Criança. Voltarei a falar sobre crianças e sobretudo sobre aquelas, muitas acabaram de nascer, muitas não vão viver muito tempo, e que estão ali num pavilhão, num barracão, uma instalação de contentores. Quero ter uma mensagem final para as mães: em primeiro lugar para as mães do Porto, porque o Hospital ... é um hospital do Porto. E em segundo lugar para todas as mães do norte. Porque o Hospital ... é um hospital central do norte. E em terceiro lugar para todas as mães portuguesas. O Hospital ... é um hospital português, atende todas as crianças. Os vossos filhos podem, numa situação aflitiva, virem parar ao Hospital .... Se quiserem que eles continuem a ficar internados num barracão; se quiserem que as condições para as mães que os acompanham – e há muitas que não largam as cabeceiras dos filhos – sejam nulas (não há condições para cuidarem sequer da vossa higiene pessoal, se lá estiverem) não tem nada que enganar. Nas próximas eleições votem no Dr. BB e no partido a que ele pertence”.
5. Ao proferir as expressões acima mencionadas, o arguido agiu com o propósito conseguido de humilhar e ofender a honra, a consideração e o caráter político de BB, sabendo que também atingia indiretamente o seu brio profissional de advogado, factos que o arguido conhecia.
6. No que respeita ao assistente BB, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.


Da Acusação Particular da A...

7. A A..., RL é uma sociedade de advogados, registada na Ordem dos Advogados com o nº .../89, desde 02-01-1989, possuindo instalações e escritório na cidade do Porto desde há mais de 25 anos, sendo certo que no presente ano de 2017 a entidade espanhola que lhe deu origem celebra o seu centésimo aniversário.
8. A assistente A... é uma sociedade de advogados muito conhecida em todo o território nacional nos meios forenses — nos tribunais e entre os advogados.
9. O seu escritório no Porto é referencial do ponto de vista da prestação dos serviços da advocacia, conhecido e reconhecido como é pelas qualidades e competências profissionais dos advogados que o integram e pela seriedade, honestidade e probidade dos mesmos.
10. Por isso, granjeia a assistente da credibilidade, do prestigio e da confiança, dos seus clientes, pessoas individuais e coletivas, bem como dos seus pares, dos tribunais, e de todos aqueles com quem priva, contacta ou que a conhecem.
11. Tudo o que o arguido conhecia e sabia, isto é, que a assistente A... como sociedade de advogados notoriamente conhecida na cidade do Porto e no país nos meios forenses, e com vários milhares de clientes, granjeia e conserva credibilidade, prestígio e confiança que lhe são reconhecidos pelos clientes, colegas e demais entidades que com ela lidam.
12. Sabia o arguido que, ao proferir as expressões acima mencionadas no número 4. dos factos provados, ofendia a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à assistente,
13. o que mais fez sabendo que factos que por aquele meio foram propalados eram falsos.
14. Ao proferir as expressões e ao afirmar e propalar factos inverídicos a propósito da A..., no comentário acima mencionados no número 4. dos factos provados, o arguido agiu com o propósito conseguido de ofender credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à assistente.
15. Tudo o que o arguido sabia que iria lograr, sendo sempre passível de o conseguir, face à verbalização de tais expressões e factos inverídicos.
16. No que respeita à assistente A..., o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal.


Do PIC do demandante BB

17. O demandante BB é também:
- professor convidado da Escola ..., da Universidade ...,
- professor da D..., Escola ...;
- convidado para lecionar um seminário na E...;
18. O demandante exerceu sempre a sua atividade de advogado, sendo conhecido e reconhecido como advogado e jurista de alto mérito, quer pelos seus saber, conhecimentos de direito e competência técnica, mas também pela elegância, capacidade intelectual, honestidade, retidão e independência com que exerce essa profissão e os mandatos que lhe são confiados.
19. É também conhecido e reconhecido como investigador e ensaísta, fundamentalmente nas áreas do direito constitucional e do direito administrativo e ensaísta ao nível da intervenção cívica, sendo autor de livros e inúmeros artigos nas áreas do direito administrativo, do direito constitucional, do direito judiciário e do direito europeu, publicados em revistas e em coletâneas várias.
20. O demandante BB:
- foi membro do Conselho de Redação da revista Jurisprudência Constitucional, do Conselho Editorial da Universidade ... e é membro do Conselho Estratégico do Instituto de Estudos Políticos ....
- é membro da Direção da Associação Comercial do Porto, desde 2001, e do Conselho de Administração da Fundação ..., desde 2010.
- foi Secretário de Estado Adjunto do Ministro ....
- foi distinguido com o Prémio D. António Ferreira Gomes, da Universidade ... (1986) e com o Prémio René Cassin, do Conselho da Europa (1989).
- foi condecorado pela República Federal da Alemanha, em 2009, com Grã-Cruz com a estrela da Ordem do Mérito concedida em 2009 (Grosse Verdienstkreuz mit Stern - BDR).
21. O reconhecimento pessoal, profissional e académico que lhe é dispensado não se circunscreve à cidade do Porto, onde tem sediada a sua atividade profissional e académica e onde reside, mas estende-se a todo o país, reconhecimento esse que granjeou à custa do trabalho que de forma esforçada, abnegada, profunda, reflexiva e repetida vem desenvolvendo nas áreas do direito, especialmente nas acima referidas, há mais de 20 anos
22. Para além disso o assistente é pessoa de bem, séria, humilde e muito trabalhadora, de grande aprumo moral e ético, afável, sensível e educada, respeitador do próximo, independentemente do estatuto social, económico ou cultural.
23. É, ainda, pessoa solidária e genuína para com os mais carenciados, sendo inúmeros os donativos e apoio monetário que dispensa a quem o procura e amigo do seu amigo, sempre disponível para ouvir e ajudar quem dele precisa, tanto em opiniões jurídicas, como noutros assuntos, também pelo bom senso que o caracteriza.
24. Como consequência direta e necessária das expressões proferidas pelo demandado a seu respeito, o demandante sentiu-se vexado e humilhado publicamente, com alteração de humor, que passou a ser triste em alguns períodos, irritabilidade, desgosto, a par da natural revolta, o que teve interferência no seu quotidiano e no seu descanso, atentas as imputações e as qualificações insultuosas efetuadas.
25. As expressões proferidas chegaram ao conhecimento de mais de 9.500 espectadores que assistiam ao programa televisivo em causa, e ainda de todos quantos foram sabendo, por comentários e conversas posteriores, do ocorrido, pois que a entrevista acima descrita ainda hoje continua disponível na internet para visualização pública através do endereço .../, onde já teve mais de 2000 visualizações, tendo depois sido espalhada e reproduzida em blogues.
26. O demandante foi confrontado por pessoas, em diferentes ocasiões, locais e circunstâncias, durante semanas que se seguiram à entrevista, no sentido de saber da razão da sua suposta oposição à referida construção, bem como qual a forma pela qual havia alegadamente impedido a referida construção e outrossim sobre o que teria dado azo às expressões proferidas pelo demandado, abordagens essas incómodas, perturbadoras e constrangedoras para o demandante.
27. Factos esses que ofenderam e fizeram sofrer o demandante porquanto lesam e denegriram a sua imagem.
28. O demandado tem formação académica do ensino superior, é professor universitário, comentarista público, em programas de televisão, artigos de jornais e escritos vários.
29. Sendo ainda a face de conhecidas sociedades de gestão de patrimónios, designadamente a F..., S.A., com o capital social realizado de 3.945.000,00 € e da G..., S.A, com o capital social realizado de 5.000.000 €, da qual é principal acionista e Presidente do Conselho de Administração, sociedades estas, além de outras, sediadas numa das mais conhecidas vias da Cidade do Porto, a Avenida ..., num emblemático e valioso edifício.


Da contestação

29A. Na minuta de acordo apresentada pela A..., o Hospital teria apenas de ceder o espaço, competindo à associação obter as licenças de construção.
29B. A associação criada pelo arguido para a construção da ala pediátrica (o ...) tinha estatuto de utilidade pública.


Da ANS dos factos

30. No dia 29/04/2015, às 19:35, o arguido enviou o seguinte email ao “Dr. GG”:
“Caro Dr. GG,
Apreciaria muito ter o seu parecer sobre o assunto seguinte:
Juntamente com o contrato de empreitada entre a Associação ... e o consórcio B... - C..., que há muito está assente, o Hospital ... pretende, coincidentemente, assinar com a Associação e o consórcio o Protocolo Tripartido em anexo
Que lhe parece?
31. Em resposta, o “Dr. GG” enviou, no dia 29/04/2015, às 22:46, o seguinte email ao arguido:
“Boa noite, caro Prof. AA.
Vi o referido "protocolo tripartido".
Em geral:
Pareceu-me um documento especialmente pesado de responsabilidades para o ..., ficando este em contraste desfavorecido relativamente ao CH... Pareceu-me que o ... só tem deveres e o CH... só tem direitos (para lá da obrigação de ceder temporariamente o local e o projeto). Desculpará que lhe diga, mas este desequilíbrio pareceu-me ser manifesto, injusto e ingrato. Fiquei com a sensação de estar perante um trabalho de advogados do CH... que, naturalmente, pretenderam valorizar e acautelar a posição do CH... e sobrecarregar a posição do .... (Estarei a ver mal? Não terei o conhecimento dos meandros da negociação?)”.
32. Tendo então o arguido respondido ao aludido “Dr. GG”, com um email, datado de 29/04/2015, às 23:24 horas, com o seguinte teor:
“Caro Dr. GG.
Fico-lhe muito agradecido.
A sua opinião é inteiramente coincidente com a minha.
E esta versão do Protocolo já está aliviada de várias cláusulas especialmente agressivas (ofensivas) que constavam da primeira versão
Notará que o nosso contrato com as construtoras, que foi submetido ao escrutínio cerrado do H..., é muito generoso para connosco e para com o H... (v.g .. as construtoras abdicam do direito de retenção).
Pelo contrário, o Protocolo não é apenas pesado (ingrato, como disse) para connosco, mas também para com as construtoras. O H... reserva-se o direito, se a obra parar durante um certo número de meses (uma hipótese provável se faltar o dinheiro), de afastar quer a Associação quer as construtoras, e entregar a continuação da obra a quem muito bem entender (H..., muito seguramente). Quer dizer. a B... e a C... fazem a parte difícil, começar a obra sem garantias de pagamento, fazé-Ia à medida que haja dinheiro (sem quaisquer penalizações por interrupções), etc, e uma vez estando a obra iniciada, e haja interrupção por certo tempo, o H... reserva-se o direito de a "rapinar" (literalmente) a obra, afastando a Associação e o consórcio B...-C.... ficando com ela e entregando-a a quem entender. É demais. O mecenato tem limites.
Hoje, fui obrigado a adiar pela segunda vez a assinatura dos contratos de empreitada, mecenato, fiscalização, etc. prevista para amanhã, por causa deste Protocolo, acerca do qual não há acordo (os juristas da C..., para quem esta obra já de si foge totalmente às regras de uma multinacional, não aceitam de maneira nenhuma) E eu, embora inclinado a assinar, sinto este Protocolo como uma ofensa. Na versão inicial até a obtenção de licenças recaía sobre a Associação.
Para já o Presidente do H... parece estar connosco e a lutar sozinho. contra a sua própria máquina. Mas já perdemos dois meses. E eu não estou certo de conseguir aguentar a generosidade das construtoras sine die.
Tenho um Plano B, acerca do qual gostaria de obter o seu conselho, no caso de não se obter acordo sobre este Protocolo.
Para já, fico-lhe muito grato por me ter atendido e me ter permitido falar sobre um assunto que me anda a incomodar há semanas.
Quero, no entanto, garantir-lhe que esta obra se vai fazer Tem a minha palavra de honra”.
33. O arguido não tem antecedentes criminais.
34. Neste momento aufere cerca de 2500 euros mensais da sua profissão e tem casa própria.
35. É pessoa respeitada pela carreira académica, pelo êxito profissional e por abraçar causas solidárias e o comentário referido no número 4. dos factos provados ocorre num momento de tensão, para o arguido, pelo facto das obras para a construção da ala pediátrica não avançarem.”


4. Fundamentação de direito

4.1 A fase rescisória final do recurso de revisão

Fazendo um breve enquadramento diremos que no recurso de revisão se identificam três etapas distintas.

A primeira - a fase do juízo rescindente – respeita à tramitação do processo desde a dedução do pedido de revisão até ao momento da sua subida ao STJ e corre os seus termos no tribunal que proferiu a decisão a rever (cfr. art. 451.º do CPP).

A segunda - a fase rescindente intermédia – corre no STJ e abrange a tramitação processual desde a subida do pedido de revisão ao STJ até à decisão da sua admissibilidade ou inadmissibilidade. Logo, culmina com a apreciação do pedido de revisão, aceitando ou negando a revisão, caso em que não se alcança a terceira fase (se for negada a revisão) .

Com efeito, o acórdão proferido nos autos pelo Supremo Tribunal de Justiça decidiu que se verifica o fundamento invocado pelo recorrente, previsto na alínea g), do nº1 do artigo 449º, do Código de Processo Penal, por ter sido proferida uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, “no caso, uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), na qual considerou que o Estado Português violou o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH):
Na verdade, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é o órgão jurisdicional do Conselho da Europa, que julga os casos de violações dos direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) por parte dos respetivos Estados signatários, onde se inclui Portugal desde 9 de Novembro de 1978.
Portugal aderiu ao Conselho da Europa em 22 de Setembro de 1976 e apenas se vinculou à jurisdição do TEDH a partir de 09 de Novembro de 1978, data do depósito e da entrada em vigor, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), ratificada através da Lei 65/78 de 13 de Outubro.8
O artigo 46°, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, introduzido pelo protocolo Adicional 149 estatui que “As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes.”
Assim, tendo em consideração os termos da Convenção e artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, é manifesto tratar-se de uma sentença vinculativa de uma instância internacional para o Estado Português.
Impõe-se, pois, aferir se a mesma é inconciliável com a condenação.

Entendeu, assim, o Supremo Tribunal de Justiça que a sentença proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) é inconciliável com a condenação do arguido, pois, como refere, nada há “de mais inconciliável, para reparação da eventual lesão dos direitos de personalidade, que a utilização dos mecanismos penais em detrimento dos mecanismos cíveis.”.
“Como resulta da transcrição efetuada, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não se limitou a criticar as penas aplicadas no processo, mas, antes, a considerar que “os tribunais nacionais atribuíram um peso desproporcionado aos direitos à reputação e à honra da sociedade de advogados C. e de P.R., em contraste com o direito à liberdade de expressão do requerente” e que “o exercício de ponderação levado a cabo pelos tribunais nacionais não foi realizado em conformidade com os critérios estabelecidos na jurisprudência do Tribunal” e foi efetuado em violação do artigo 10º da CEDH.
Acrescenta ainda o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que “a mera condenação do requerente parece ser manifestamente desproporcionada, especialmente tendo em conta que os artigos 70.º, 484.º e 496.º do Código Civil (vide parágrafo 33 supra) preveem uma solução específica em matéria de danos à honra e à reputação”, o que, lido de forma simples e direta, pode ser entendido como um recurso indevido ao processo criminal.”

Finalmente, importa considerar a fase em que nos encontramos – a fase rescisória final – que versa sobre a tramitação subsequente à decisão do STJ em que este Tribunal concedeu a revisão e que se prolonga após a baixa dos autos ao tribunal de categoria e composição semelhante à do tribunal que proferiu a decisão objeto da revisão (este Tribunal da Relação) e até ao termo do novo julgamento, se a ele houver lugar, com prolação de nova decisão.

Uma vez, autorizada a revisão, tendo o STJ determinado que fosse proferida nova decisão que “observe o decidido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que aprecie o pedido formulado nos termos do artigo 462º do Código de Processo Penal, questiona-se se a única decisão que pode ser proferida, em consonância com o acórdão do TEDH, é aquela que, perante a factualidade dada como provada, considera não haver crime, uma vez que o TEDH considerou que tal factualidade não justificava a sua integração no tipo de crime em causa (difamação), motivo pelo qual a considerou ilícita e condenou o Estado Português, por violação do art. 10º, n.º 1 da Convenção Europeia, como se concluiu no acórdão desta Relação, proferido numa situação em tudo idêntica, datado de 17-9-2014[1].

Assim não entendemos. Com efeito, através da Reforma de 2007, o legislador nacional introduziu um novo fundamento para a revisão, agora vertido na al. g), do n.º 1, do art.º 449.º, do Cód. Proc. Penal, suprindo a inexistência na legislação nacional de um meio próprio de execução das decisões dos tribunais internacionais e dando exequibilidade prática a decisões proferidas pelo TEDH, pelo Tribunal Internacional de Justiça e pelos tribunais penais internacionais, adequando o sentido da jurisprudência dos tribunais nacionais ao teor das decisões proferidas em matéria penal pelas instancias internacionais que sejam vinculativas para o Estado Português[2].

Ora, essa adequação concretiza-se através da realização de um novo julgamento (art.º 460.º do Cód. Proc. Penal) e nessa sede o tribunal nacional aprecia e repondera com total independência face à decisão proferida pelo TEDH, escolhendo a decisão que lhe parecer mais correta, face aos valores e princípios que importe acautelar. Com efeito, as decisões do TEDH inscrevem-se no âmbito de um contencioso de legalidade e não de anulação, não sendo constitutivas do direito. O TEDH, não sendo uma instância de recurso, não é competente para anular as decisões ou legislações nacionais, mas, apenas, para declarar que foi cometida uma violação e conceder uma reparação razoável.

Neste sentido pronuncia-se Ireneu Barreto, ao referir que “os acórdãos deixam em princípio, ao Estado a escolha dos meios a utilizar na sua ordem jurídica interna para cumprir a obrigação que pesa sobre ele, nos termos do artigo 46° da Convenção, de respeitar os acórdãos do Tribunal nos litígios em que for parte”.

Os Tribunais Portugueses, defende Armindo Mendes, “não estão vinculados em termos de caso julgado, pela decisão do TEDH, que não é um Tribunal hierarquicamente superior ao STJ ou ao STA. Este fundamento de recurso de revisão dá a possibilidade aos Tribunais Portugueses de rescindir uma sentença ou acórdão desautorizado pelo TEDH, permitindo a prolação de uma nova decisão.”

Tal conclusão decorre, desde logo, da circunstância de as decisões do TEDH não possuírem força executiva direta, mas tão somente declarativa e reparadora, o que justifica que se fale “de uma eficácia persuasiva, e de uma força interpretativa das decisões do TEDH”, como salienta Catarina Botelho. Assim, continua esta autora, “o TEDH não pode ser considerado um órgão de último recurso face aos tribunais nacionais (…) todavia não perde a sua qualidade de último intérprete da Convenção"[3].

Também na jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido que acabamos de expor, disso sendo exemplo o acórdão de 4-7-2017, onde se explana: “Ora, não sendo o TEDH uma instância internacional de recurso, entendida como um tribunal, hierarquicamente, superior aos tribunais nacionais, com a finalidade de anular, modificar ou revogar atos jurídicos de direito interno, com base em erro de julgamento ou de procedimento, é, porém, uma entidade internacional vinculativa para o Estado Português, que tem obrigação de cumprir os acórdãos proferidos pelo mesmo, embora faculte ao Estado a escolha dos meios a utilizar para cumprir a obrigação que decorre do artigo 46º, nº 1, da CEDH, ou seja, de respeitar e executar as sentenças definitivas do TEDH, nos litígios em que forem partes os Estados signatários, reparando as consequências da violação constatada.”[4]

Assim, em face do segmento decisório do Supremo Tribunal de Justiça que, na procedência do recurso extraordinário de revisão, autorizou a revisão requerida pelo aqui arguido e determinou a remessa dos autos a este Tribunal da Relação do Porto, importa proferir nova decisão.


4.2. A nova decisão

§1. Na sequência da revisão requerida e deferida pelo Supremo Tribunal de Justiça subsistem duas questões que importa reponderar e decidir, recaindo ambas sobre a subsunção jurídica dos factos provados que, no essencial, se atêm ao segmento das expressões proferidas na entrevista de 25 de maio.

Assim, importar aferir se as expressões proferidas preenchem ou não os elementos do tipo de crime previsto no art.º 187.º, n.ºs 1 e 2, a) e no art.º 187.º, nº1, ambos do Código Penal, reapreciando a matéria de facto dada como provada, tendo agora em consideração a decisão do TEDH, que se inscreve na linha da jurisprudência que tem firmado a propósito de situações similares.
Dispõe o art.º 187.º, n.ºs 1 e 2, a), do Código Penal que “Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias."

E dispõe o art.º 180°, n° 1, sob a epígrafe “difamação” que: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”

Como é frequentemente referido na jurisprudência, as fronteiras da tipicidade dos crimes contra a honra não são fáceis de definir. São crimes nos quais assume atualidade a expressão de Welzel, mencionada no acórdão do STJ de 13-3-2024[5], de acordo com a qual os bens jurídicos não são peças de museu em redomas de vidro; vivem no mundo e sofrem o desgaste da interação social. Este jurista e filósofo defende que o Direito é algo de vivo e tem de se adaptar às alterações, evoluções e mesmo involuções do dia a dia das vivências e condições humanas, razão pela qual se exige que o aplicador esteja atento, de molde a perceber se a conduta revela o sentido ofensivo ínsito à realização do tipo.

Por outro lado, a tutela constitucional da liberdade de expressão (artº 37º da CRP) e a sua a conciliação com o direito ao bom nome e reputação, que também tem tutela constitucional (26°, nº1, da CRP), demanda a compressão mútua, de molde a retirar de cada um a máxima eficácia, alcançando um equilíbrio que garanta a liberdade de expressão, pois “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações”.

Não se pretende com isto dizer que a honra vale menos hoje do que valia em 1959, [6] mas que o conceito de honra se redimensionou ganhando peso em situações em que anteriormente não o detinha e perdendo noutras e que a primazia ou prevalência de honra ou da liberdade de expressão depende sempre da ponderação das circunstâncias do caso concreto. O equilíbrio que se busca deverá sempre garantir a liberdade de expressão, que constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e pluralista.

De todo o modo, não podemos deixar de referir que durante um largo período de tempo a questão foi analisada essencialmente na perspetiva do direito à honra e suas ressalvas, sendo a regra a afirmação do direito à honra, porque integrante do direito de personalidade, e a exceção a cedência de tal direito em casos justificados. Prevalecia, então, sistematicamente a tutela do direito à honra e ao bom nome, a que se atribuia um peso desmedido, em detrimento da liberdade de expressão, do que são exemplo os acórdãos do STJ de 14-2-2002, de 7-3-2002 e de 10-10-2002, todos citados no estudo publicado na RLJ nº 4035, “O direito ao bom nome e reputação ainda é reconhecido?”[7].

Porém, o paradigma alterou-se e na última década assistiu-se ao abandono de tal metodologia, para o que certamente terão contribuído as decisões proferidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, ao inverso do caminho trilhado pelos Tribunais nacionais, parte da tutela da liberdade de expressão que, posteriormente, comprime em função das restrições que entende serem justificadas.

Regressando à mencionada mudança de paradigma regista-se que ficou a mesma fortalecida com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que ignora o direito à honra e estabelece no artº 11º, sob a epigrafe “Liberdade de expressão e de informação”:

“1. Todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.

2. São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social.”

Ainda assim, como se salienta no acórdão do STJ de 30-6-2011[8], existe uma “discrepância entre os limites à liberdade de expressão que traçam as autoridades internas dos vários países – com destaque para Portugal – e os que o Tribunal internacional vem fixando, estabelecendo um círculo de aceitação muito mais alargado.”, consequência da tendência nacional para o individualismo que a tutela do direito à honra habitualmente protege e a visão internacional mais virada para as realidades coletivas, especialmente reportadas ao suporte da sociedade tal como se pretende que ela seja.”

Ora, uma das manifestações do direito à liberdade de expressão e de opinião, consagrado não apenas na nossa lei fundamental, mas também no plano internacional a que já aludimos, é exatamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e, essencialmente, de exercer o direito de critica.

Ao nível do direito internacional, para além da CDF da União Europeia, o direito à liberdade de expressão e de opinião encontra consagração na Convenção dos Direitos do Homem (artigo 10º) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 19º).

O artº 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.”

E o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) prescreve que:

“Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia” (nº 1).

Paralelamente, também ao nível do direito internacional, a tutela do direito à honra encontra a sua sede na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que prevê no seu art.º 12º que ninguém sofrerá ataques à sua honra e reputação, bem como na restrição prevista no nº 2 do artº 10º da Convenção dos Direitos do Homem: “O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do Poder Judicial”.

Como dissemos já, quer a liberdade de expressão, quer o direito à reputação merecem consagração constitucional, ainda que nenhum deles tenha prevalência. A este propósito, explica Joaquim de Sousa Ribeiro, “Esta conexão com a esfera constitucional torna a solução a dar a esses casos de colisão permeável à influência das vinculações advindas para os poderes públicos, da consagração de direitos e liberdades fundamentais. Colidindo entre si um direito e uma liberdade com igual estatuto constitucional, a reposta do ordenamento jurídico terá que se ajustar, na medida do possível, tanto ao dever negativo de respeito como a dever positivo de proteção a que o Estado está sujeito, num difícil equilíbrio de exigências contraditórias.”[9].

Prossegue o mesmo autor, explicitando a metodologia para não se perder de vista que a proteção conferida ao direito à reputação representa uma interferência limitativa dos modos de exercício da liberdade de expressão.

“Decidir se os limites da liberdade de expressão são extravasados por um dado conteúdo comunicacional que afeta negativamente a reputação de outro(s), por forma a justificar a sua qualificação como ofensa ilícita ao direito ao bom nome e à reputação (no plano civil) e como difamação (no plano criminal), é decidir sobre os limites que a garantia constitucional daquela liberdade sofre pela proteção constitucionalmente devida a este direito. A fronteira a estabelecer, a este propósito, entre o lícito e o ilícito, entre o exercício legítimo o exercício abusivo, não pode dispensar o atendimento da dimensão constitucional da colisão entre aquelas duas posições subjetivas.”

Podemos até afirmar que cada um limita o exercício do outro, sendo exercidos até onde não interfiram um com o outro. Mas se interferirem deverá operar uma concordância prática entre ambos, comprimindo-se mutuamente, de modo a cada um deles possa ser exercido de modo mais amplo.

Aqui chegados, nas situações como a presente, em que esteja em causa o direito à honra, por um lado, e a liberdade de expressão, na sua vertente de direito à critica, não podemos deixar de considerar a posição que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a manifestar e manifestou expressamente no caso em análise. A compressão deste direito só deverá ter lugar quando, em observância do princípio constitucional da proporcionalidade e ao carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, os direitos de personalidade, maxime o direito ao bom nome e reputação (art. 26º CRP), sejam verdadeiramente postos em causa de forma significativa, ou seja, com intensidade/seriedade, contextualizando sempre as concretas expressões proferidas.

Resulta do exposto que a agressão ao direito ao bom nome e reputação terá que assumir gravidade suficiente para justificar a interferência no direito de liberdade de expressão.

Revertendo ao caso concreto importa apurar se os comentários publicados pelo arguido preenchem os elementos objetivos dos ilícitos cuja prática lhe foi imputada, ou seja, se assumem gravidade suficiente para justificar a compressão do direito de liberdade de expressão.

§2. Comecemos pelo crime de difamação agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 2 e 184° do Cód. Penal.

Em primeira instância foi o arguido absolvido da prática de um crime de difamação agravada (crime relativo ao assistente BB), de cuja absolvição interpôs recurso o Ministério Público, reclamando a condenação do arguido também pela prática deste crime.

Com relevo provou-se que o arguido num espaço de comentário político televisivo produziu um conjunto de afirmações que se encontram transcritas em sede de factualidade provada, tendo concretamente dito:
- “Foi basicamente a produção deste documento pela sociedade de advogados que é Director o BB que levou o Hospital ... a paralisar a obra com medo das consequências, sobretudo um dos administradores que ficou muito preocupado. O presidente do Hospital é um grande entusiasta desta obra, mas uma das coisas que a sociedade de advogados A..., do Dr. BB, produziu foi dividir a Administração do Hospital ... em torno desta obra”.
- “E, portanto, o Dr. BB e a sua sociedade de advogados produziram um documento que paralisou a obra. Este documento, sob a aparência de ser um trabalho jurídico, é na realidade uma palhaçada jurídica”,
- “O que é que isto significa? O Dr. BB é um exemplo acabado no fim de contas ele é um politico e ao mesmo tempo está à frente de uma grande sociedade de advogados. É preciso capacidade. Ainda por cima é político Eurodeputado, está muito tempo no estrangeiro, o que é que isto significa? Como político anda certamente a angariar clientes para a sua sociedade de advogados, clientes sobretudo do Estado: Hospital ..., Câmaras Municipais, Ministérios disto e Ministérios daquilo. Quando produzem um documento jurídico a questão que se põe é: este documento é um documento profissional de um jurista profissional ou, pelo contrário, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer?
Tudo pode acontecer! E neste caso, desta palhaçada, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer”.

Analisando esta factualidade, o tribunal a quo entendeu que o arguido, no comentário que faz, e no que respeita ao assistente BB, centra a sua crítica totalmente na vertente política, predominando a opinião sobre a forma como o assistente BB atua enquanto político e sobre as suas motivações políticas, como aí se explica:
“No que respeita à enunciação do documento como uma “palhaçada jurídica”, nem sequer lhe reconhecemos caráter difamatório ou desonroso, conforme infra melhor se irá analisar.
Reconhecemos, no entanto, que quando o arguido afirma que o assistente BB se propôs a tentar evitar a construção de uma ala pediátrica, em nome de interesses políticos (“a mão que lhe dá de comer”), essa afirmação é objetivamente desonrosa para o carater do assistente BB.
Sucede, porém, que contrariamente ao que decorre da acusação – por remissão do despacho de pronúncia -, nós não concordamos com a posição que vê neste comentário palavras injuriosas ao advogado BB, desligado da sua vertente política. (…)
“O que o arguido refere, no fim de contas, é que o assistente BB, enquanto político, usou da sua influência e a sua profissão para impedir a construção de uma ala pediátrica para crianças.
O que, não deixando de ser desvalioso para o caráter e probidade morais do assistente, ainda assim é aceitável no âmbito da liberdade de expressão.
Mesmo que arguido tenha propalado uma ideia que não era a que ele, genuinamente, defendia, ainda assim mantém-se nos limites lícitos, considerando o âmbito do direito e liberdade de expressão à qual tem de se sujeitar um político.
Repare-se que nem sequer a questão se centra num tema unicamente pessoal e da vida privada do assistente. Trata-se da construção de uma ala pediátrica num hospital público. É um tema público, de interesse público e com repercussões públicas.”

Interposto recurso pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação em revisão entendeu de modo distinto e condenou o arguido pela prática do crime de difamação agravado, por entender não existir qualquer fundamento sério para a imputação em causa, como então aí se fundamentou:
“No caso em apreço, estamos perante críticas que se centram na atuação política do assistente (e só indiretamente na sua conduta como advogado). São relativas a factos de interesse público, não da vida privada. Estamos perante um misto de imputação de factos (que não têm, de qualquer modo, a gravidade de um crime) e de um juízo crítico (onde não se coloca uma questão de veracidade ou falsidade, mas de opinião), com predominância deste segundo aspeto. (…) Estamos perante a imputação de factos desonrosos que, sendo de matérias de interesse público, são conscientemente falsos. (…) “É verdade que quem envereda pela vida política deve aceitar sujeitar-se a críticas incómodas, eventualmente injustas, mas não tem que prescindir em absoluto da tutela do direito ao bom nome e reputação, direito que também é constitucionalmente garantido (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição).”

Entendemos, à semelhança do que fez o tribunal a quo, que o texto publicado traduz um juízo critico, na vertente política, predominando a opinião sobre a forma como o assistente atua enquanto político e sobre as suas motivações. Concluindo-se, assim, que as palavras proferidas se destinaram tão somente a apresentar um juízo critico, uma opinião negativa e desfavorável não serão as mesmas idóneas a atingir o essencial do direito à honra e consideração do assistente, tal como afirmo o TEDH no acórdão que proferiu nos autos:
“O Tribunal entende, pois, que a interferência no direito à liberdade de expressão do requerente não foi suportada por razões relevantes e suficientes (ver, mutatis mutandis, Freitas Rangel, supracitado, § 62, e contrastar Pais Pires de Lima c. Portugal, n.º 70465/12, § 65, 12 de fevereiro de 2019). Em concreto, o Tribunal considera que os tribunais nacionais atribuíram um peso desproporcionado aos direitos à reputação e à honra da sociedade de advogados A.... e de BB, em contraste com o direito à liberdade de expressão do requerente. Os tribunais nacionais excederam, pois, a margem de apreciação que lhes era concedida no que às limitações aos debates de interesse público concerne, não tendo existido relação razoável de proporcionalidade entre, por um lado, a restrição do direito do requerente à liberdadedeexpressão e, por outro lado, o objetivo legítimo prosseguido (ver, mutatismutandis, Bozhkovc. Bulgária, n.º3316/04, § 55, 19 deabrilde2011; Pais Pires de Lima, supracitado, §§ 66-67; e SIC – Sociedade Independente de Comunicação c. Portugal, n.º 29856/13, § 69, 27 de julho de 2021; ver também, por contraste, Stângu e Scutelnicu c. Roménia, n.º 53899/00, § 56, 31 de Janeiro de 2006).
Por conseguinte, foi violado o artigo 10.º da Convenção.”

Efetivamente, o critério da contribuição para um debate de interesse público está preenchido, o que também foi reconhecido pelo TEDH, que afirmou “a questão em causa dizia respeito ao projeto de construção da ala pediátrica do Hospital ..., no Porto (ver parágrafos 7-8 supra), ou seja, a factos relativos a um hospital público e, em particular, às condições oferecidas para as crianças doentes – assunto que o Tribunal considera de interesse geral.”, sendo razoável “crer que o público tem interesse em ser informado sobre a evolução de tal edifício e quaisquer obstáculos colocados no caminho da sua construção.”

O grau de notoriedade era muito grande, sendo “muito conhecido no meio académico como professor de Direito, investigador e ensaísta, e também como político, para além de se referir a outros cargos que ocupou em associações com grande visibilidade pública e a prémios que ganhou (ver parágrafos 6 e 19 supra).”

O TEDH considera, ainda, que as declarações do requerente devem ser entendidas dentro do contexto em que foram proferidas. As declarações foram efetuadas enquanto o arguido dava a sua opinião sobre o MoU e as razões que levaram à paralisação da construção daquela obra, “insinuando que o parecer jurídico fornecido ao hospital público pela sociedade de advogados A..., da qual BB era o diretor, foi politicamente motivado.” Tais declarações apresentam-se como “parte de uma crítica mais ampla sobre ligações indevidas entre a política e a administração pública, que é um assunto de interesse público (ver parágrafo 73 supra; comparar Freitas Rangel, supracitado, §§ 57-58).”

Concluímos, então, que inexistiu um ataque à honra, pois do contexto em que foram proferidas infere-se que as palavras proferidas visavam, era essencialmente, como se depreende dos factos, a discussão e o debate da questão, de forma pública e transparente, no programa televisivo onde as expressões em causa foram difundidas. Assim sendo, como se consignou no voto de vencido lavrado no acórdão deste Tribunal que se encontra em revisão, também consideramos que o interesse público em causa levava a se devesse dar preponderância à tutela da liberdade de expressão em relação ao interesse do ofendido à sua reputação, a qual sempre poderia ser reposta na referida discussão e explicação, que lhe seria facultada também de forma publicitada, caso o convite do arguido para debater a questão tivesse sido aceite.

Logo, a factualidade provada não integra o tipo objetivo do crime de difamação.

§3. Debrucemo-nos, agora, pelo crime de ofensa à pessoa coletiva, por cuja prática foi o arguido condenado e que está previsto nos artºs 187°, n°s 1 e 2, al. a), este último por referência ao art.º 183°, n° 2, todos do Cód. Penal. O tribunal a quo justificou a condenação do arguido nos seguintes termos:
“o arguido afirma que a A... elaborou um documento propositadamente contra os interesses do seu próprio cliente (o Hospital ..., que assim não iria beneficiar da “obra boa”, como refere o arguido) com objetivo de beneficiar “uma mão política que lhe dá de comer”. (…)
Ora a liberdade de expressão não impede o arguido de qualificar profissionalmente os advogados da A.... Também não o impede de tecer comentários sobre a política de contratação de recursos humanos.
Mas o arguido atinge o elemento central de qualquer sociedade de advogados: a defesa dos interesses do seu cliente. É o elemento mais central do prestígio de qualquer advogado: que, em cada momento, está totalmente empenhado na defesa dos interesses do seu cliente. (…)
Ao referir que a A..., em vez de proteger os interesses do Hospital ... (seu cliente), produz documentos que prejudicam os interesses deste mas que beneficiam os interesses políticos de terceiros (a mão que lhe dá de comer), o arguido extravasa os limites da liberdade de expressão. A liberdade de expressão tem de ter um conteúdo, mas também não vale tudo. E o arguido percebe-o bem.

O arguido interpôs recurso deste segmento condenatório e o Tribunal da Relação confirmou a condenação, por entender, em síntese, que:
“desvirtuando a verdade dos factos o arguido propalou através de um órgão de comunicação nacional, factos inverídicos com o propósito conseguido de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à sociedade de advogados assistente.
Tudo o que o arguido sabia que iria lograr, sendo sempre passível de o conseguir, face à verbalização de tais expressões e factos inverídicos. Estamos perante uma afirmação assertiva, não, como alega o arguido na motivação do seu recurso, uma simples especulação, indagação ou interrogação. No que respeita à assistente, A... o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal, desvirtuando a verdade dos factos e divulgando-os, apesar de conhecer que não eram verídicos.”

Com efeito, este tipo legal apenas protege o bom nome da pessoa coletiva relativamente a factos e já não relativamente a juízos de valor, ao contrário do que sucede no crime de difamação e injuria.

Ora, na sentença proferida em primeira instância entendeu-se que (apenas) um dos comentários incide sobre factos, concretamente quando “o arguido afirma que a A... elaborou um documento propositadamente contra os interesses do seu próprio cliente (o Hospital ..., que assim não iria beneficiar da “obra boa”, com o objetivo de beneficiar “uma mão política que lhe dá de comer”. O arguido afirma factos, que sabia serem falsos e que afetam o prestigio da sociedade assistente, conclui o tribunal de primeira instância, para assim afirmar que o tipo legal se mostra preenchido.

O Tribunal da Relação, no acórdão que ora se revê, corrobora essa análise, afirmando que o arguido, nas suas declarações, apesar de conhecedor dos motivos do desacordo, desvirtua-os, “propalando através de um órgão de comunicação nacional, factos inverídicos com o propósito conseguido de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos à sociedade de advogados assistente.”

Assim não entendemos, à semelhança do que sugere o TEDH. O comentário supra referido insere-se num contexto muito específico: o projeto de construção da ala pediátrica do Hospital ..., no Porto. E o arguido, quando faz este comentário, está a emitir opinião sobre o MoU e sobre as razões que levaram à paralisação da construção daquela obra, insinuando que o parecer jurídico fornecido ao hospital pela sociedade de advogados assistente foi politicamente motivado.

Ponderando as circunstâncias do caso, o contexto de critica e o elevado interesse público que suscitou, bem como tom geral das observações, que podemos qualificar como sendo pouco felizes, tal como salienta o TEDH no acórdão que proferiu nos autos, entendemos também que o arguido estava a emitir uma opinião, ou seja, a efetuar juízos de valor e não a divulgar factos falsos.

O TEDH, muito embora reconheça que a distinção entre uma declaração como um facto ou como um juízo de valor é uma questão que se enquadra na margem de apreciação das autoridades nacionais, destaca a dificuldade em proceder à sua distinção, especialmente quando, como no caso em apreço, são feitas alegações sobre as razões da conduta de um terceiro (cfr. parágrafos 67, 70 e 82). Efetuar uma suposição quanto a possíveis intenções de outra pessoa corresponde a efetuar um juízo de valor e não uma afirmação de facto suscetível de prova.

Por tudo o exposto concluímos que estamos perante um juízo de valor, não se preenchendo o elemento objetivo do tipo legal inscrito no artº 187º, nº 1 do Cód. Penal.

§ 4. O entendimento que acabamos de firmar a respeito da falta de preenchimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito de difamação e da ofensa à pessoa coletiva é, de acordo com critérios de lógica e coerência, incompatível com a prova (positiva) dos factos referentes ao elemento subjetivo, elencados sob os pontos 5, 6, 12 a 16.

Em consequência decorre que a matéria de facto provada (quanto ao elemento subjetivo) padece do vício de erro notório na apreciação da prova (al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP), razão pela qual se decide proceder à eliminação dos pontos 5, 6, 12 a 16 da matéria de facto provada, passando tais factos a constar do elenco de factos não provados.

Não se preenchendo os elementos objetivos e subjetivos impõe-se a absolvição do arguido da da prática de um crime de difamação agravada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 2 e 184° do Cód. Penal (crime relativo ao assistente BB) e da prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 187°, n°s 1 e 2, al. a), este último por referência ao artº 183°, n° 2, todos do Cód. Penal (crime relativo à assistente A...).

§5. O acórdão que se ora se revê condenou o arguido/demandada no pagamento da quantia de € 500,00 à demandante A..., RL e no pagamento de € 10.000,00 ao demandante BB.

Dispõe o n.º 1 do art. 377º do Código de Processo Penal que "a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º3 do artigo 82.º”.

Na interpretação do acórdão uniformizador de Jurisprudência n.º 7/99: “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se basear em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” (D.R. I Série A, n.º179, de 03-08-1999), o que não se verifica no caso em análise. Faltando um dos pressupostos da responsabilidade civil do arguido e demandado contidos no art. 483º, n.º 1, do Código Civil, o facto ilícito impõe-se a sua absolvição também na parte cível, decaindo a obrigação de indemnizar.


4.4. Pedido indemnizatório

Dispõe o n.º 1 do art.º 462º, do CPP que “no caso referido no artigo anterior (sentença absolutória no juízo de revisão), a sentença atribui ao arguido indemnização pelos danos sofridos e manda restituir-lhe as quantias relativas a custas e multas que tiver suportado”.
Assim sucedeu nos autos. Efetuado o juízo de revisão foi o arguido absolvido.
Peticiona, então, que lhe sejam restituídas todas as quantias que despendeu no processo judicial (pena de multa, indemnizações, custas de parte, taxas de justiça) acrescidas dos respetivos juros de mora à taxa legal vincendos e vencidos desde as respetivas datas em que desembolsou tais quantias, que ascendem, à data de 30/09/2024, em €38.487,04.

Do exposto decorre que, sendo a decisão condenatória revista e o tribunal de revisão absolver o arguido, devem ser restituídas as quantias pagas por este, a título de custas e multas.
Contudo, como não pode deixar de ser, devem ser restituídas ao ora recorrente (arguido) apenas as quantias que não estejam englobadas na decisão do TEDH, uma vez que este Tribunal já lhe atribuiu o direito a ser indemnizado por danos materiais e morais.

Verificamos, então, de acordo com a decisão do TEDH, o Estado português foi condenado a pagar ao arguido no prazo de três meses a contar da data em que a decisão se tornar definitiva, nos termos do disposto no artigo 44.º, n.º 2, da Convenção:
(i) 10.000 euros (dez mil euros), acrescidos de qualquer imposto que possa ser devido pelo requerente, a título de danos não patrimoniais;
(ii) 5.000 (cinco mil euros), acrescidos de qualquer imposto que possa ser devido pelo requerente, a título de custos e despesas;

Não tendo o arguido solicitado o ressarcimento de danos não patrimoniais, resta apreciar a questão dos danos patrimoniais, sendo certo que ao valor reclamada a título de honorários foi pelo arguido deduzido o valor de cinco mil euros, valor esse em que o Estado foi já condenado pela decisão do TEDH, como melhor se alcança do teor de tal decisão:
98. O requerente peticionou 22.788,54 euros a título de custos e despesas incorridas perante os tribunais nacionais.
99. O requerente peticionou ainda 18,924 euros a título de custos com o processo perante o Tribunal.
100. O Governo alegou que o montante reclamado a título de honorários iniciais do advogado do requerente a nível nacional não deve ser tido em conta, atendendo a que não foram pagos pelo requerente, mas sim por uma das empresas por ele geridas (ver parágrafo 16 supra) e que os recibos apresentados pelo requerente eram de montantes diferentes dos reclamados. O Governo referiu, também, que o último documento apresentado, no valor de 1.000 euros, não correspondia a nenhum dos pedidos formulados. Além disso, salientaram que este documento não identificava o pagador. Quanto ao pedido do requerente relativamente aos atuais honorários do seu advogado, o Governo observou que o requerente só teria de os pagar quando o processo perante o Tribunal terminasse.
101. De acordo com a jurisprudência do Tribunal, um requerente apenas tem direito ao reembolso dos custos e despesas na medida em que tenha sido demonstrado que estes foram efetiva e necessariamente incorridos e que são razoáveis quanto ao seu montante. Os honorários de um mandatário são efetivamente incorridos se o requerente os tiver pagado ou for obrigado a pagá-los. Os honorários devidos a um mandatário ao abrigo de um acordo de honorários condicionais só são efetivamente incorridos se esse acordo for executório na respetiva jurisdição (ver Iatridis c. Grécia (justa satisfação) [GC], n.º 31107/96, § 54, TEDH 2000-XI, e Merabishvili c. Geórgia [GC], n.º 72508/13, §§ 370-71, 28 de novembro de 2017).
102. No que respeita aos custos e despesas incorridos no processo interno, tendo em conta que o requerente poderá obter o reembolso desses custos, ou pelo menos parte deles, caso o processo penal seja reaberto a seu pedido, nos termos do artigo 449.º, alínea g), do Código de Processo Penal (ver parágrafo 31 supra), o Tribunal considera que não há razão para lhe atribuir qualquer quantia nesta sede (comparar SIC Sociedade Independente de Comunicação, suprarreferido, § 79).
103. Quanto ao montante de 18 924 euros reclamado a título de custos com o processo perante este Tribunal (ver parágrafo 101, supra), tendo em conta os documentos apresentados pelo requerente contendo a descrição das tarefas desempenhadas pelo seu advogado, o tempo despendido, e a indicação do respetivo valor/hora, o Tribunal considera que o montante reclamado se afigura excessivo, dada a situação económica atual e os exemplos retirados da sua jurisprudência. Deste modo, considera que o número de horas reclamadas para determinadas tarefas parece estar inflacionado, tendo em conta a natureza da queixa apresentada pelo requerente ao abrigo do artigo 10.º da Convenção, bem como a utilização recorrente de cópias textuais de passagens da jurisprudência do Tribunal (ver, mutatis mutandis, Karácsony e outros, supracitado, § 190, e Marcinkevičius c. Lituânia, n.º 24919/20, § 103, 15 de novembro de 2022).
104. O Tribunal, tendo em conta as considerações anteriores e as informações em sua posse, considera razoável conceder ao requerente 5.000 euros pelos custos e despesas incorridos perante si, acrescidos de qualquer imposto que possa ser devido pelo requerente (ver, mutatis mutandis, SIC Sociedade Independente de Comunicação, suprarreferido, § 79).

Ora, os danos patrimoniais que o arguido invoca e cujo pagamento peticiona estão cabalmente justificados nos documentos que apresentou, tratando-se de despesas efetivamente suportadas pelo arguido, que se reportam à pena de multa, às taxas de justiça pagas, às indemnizações pagas e aos honorários na parte que não ficou contemplada pela indemnização atribuída a este respeito pelo TEDH.

Deste modo, o arguido nesta sede deve ser ressarcido dos danos que teve de suportar com o presente processo de revisão e com o processo que esteve na sua origem (danos devidos para a plena reintegração da ordem jurídica), ou seja: (i) a pena de multa no valor de € 7000,00, (ii) a taxa de justiça cível (1ª instância) no valor de € 714 e de € 510 (iii), a indemnização e custas reembolsadas à assistente no valor de € 5.850 e de € 529,84, (iv) a indemnização e custas reembolsadas à assistente no valor de € 5.850 e de € 529,84, (v) a taxa de justiça penal (STJ) no valor de € 204, (vi) a taxa de justiça penal (TC) no valor de € 4794 e (vii) os honorários no valor de € 1.000, € 615, € 1.150, € 500,61. Tais despesas ascendem ao valor de € 31.818,04, quantia a que acrescem os juros já vencidos e calculados desde os respetivos pagamentos e os vincendos até integral pagamento.


5. Dispositivo

Acordam os Juízes da 4ª secção desta Relação, em cumprimento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nestes autos, em rever o acórdão proferido por esta Relação e, consequentemente:
a) absolver o arguido AA da prática de um crime de difamação agravada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180°, n° 1 e 183°, n° 2 e 184° do Cód. Penal (crime relativo ao assistente BB e da prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 187°, n°s 1 e 2, al. a), este último por referência ao artº 183°, n° 2, todos do Cód. Penal;

b) julgar improcedentes os pedidos de indemnização civil deduzido pelos demandantes BB e A..., RL e, em consequência, absolver AA dos pedidos formulados pelos demandantes;

c) anular a decisão recorrida e trancar o respetivo registo, nos termos do disposto no artigo 461º, 1 do CPP;

d) condenar o Estado Português a pagar ao ora recorrente, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos, a quantia de € 31.818,04, quantia a que acrescem os juros já vencidos, calculados desde a data em que tais valores foram pagos, bem como os vincendos até integral pagamento.

e) ordenar o cumprimento do disposto no artigo 461º, n.º 2 do CPP.

Mais se condenam os assistente e demandantes nas custas da parte crime, fixando a taxa de justiça na 1ª instância e nesta Relação, em 3 UC e 4 UC respetivamente, bem como nas custas da parte cível.


Tribunal da Relação do Porto, 10 de setembro de 2025

A desembargadora relatora,

Isabel Matos Namora

A desembargadora 1ª adjunta

William Themudo Gilman

O desembargador 2º adjunto

Maria Dolores da Silva e Sousa

_________________________
[1] Proferido no proc. nº 5918/06.4TDPRT-A.P1, consultável em www.dgsi.pt, no qual se concluiu que “Deste modo, tendo em conta os factos dados como provados, a decisão do TEDH, segundo a qual tais factos não constituem crime (sob pena de violação do art. 10º da CEDH) e o que foi expressamente determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, deve o arguido ser absolvido, quer do crime por que foi condenado, quer do pedido de indemnização civil, uma vez que este último decorrida da ilicitude criminal da mesma factualidade.”
[2] Paulo Belo, in O recurso de revisão e a reforma penal, revista Julgar nº 23, 2014, Coimbra Editora.
[3] Ireneu Cabral Barreto, As relações entre a Convenção, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e as Instâncias nacionais, pág.15, disponível em  http://www.stj.pt/ficheiros/cerimonias/30anos_irineubarreto.pdf, Armindo Ribeiro Mendes, in Recursos em Processo Civil - Reforma de 2007. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 196, e Catarina Santos Botelho, in A tutela direta dos direitos fundamentais – avanços e recuos na dinâmica garantistica das justiças constitucional, administrativa e internacional. Coimbra: Almedina, 2010, p. 319, todos citados por Mónica Alexandra Gonçalves Monteiro,  na tese de mestrada Recurso extraordinário de revisão: abordagem jurisprudencial, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/51714/3/Monica Alexandra Goncalves Monteiro.pdf https://hdl.handle.net/1822/51714.
[4] Proferido no proc. nº 5817/07.2TBOER.L1.S1; no mesmo sentido o acórdão do STJ de 26/03/2014, proc. n.º 5918/06.4TDPRT.P1; de 15/11/2012, proc. n.º 23/04.0GDSCD-B.S1; de 16/12/2010, proc. n.º 1311/05.4YRCBR-A.S1; e de 27/05/2009, proc. n.º 55/01.0TBEPS-A.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
245
[5] Consultável em www.dgsi.pt
[6] Cfr. acórdão do TRL de 24-10-2018, consultável em www.dgsi.pt
[7] pág. 355
[8] Consultável em www.dgsi.pt
[9] RLJ nº 4035, pág. 352 e 353