Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
271/20.6T8MLD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: VENDA DE BENS DE CONSUMO
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
PRAZO DE CADUCIDADE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
DIREITO DE RESOLVER O CONTRATO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20220124271/20.6T8MLD.P1
Data do Acordão: 01/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A denúncia de vício do comprador ao vendedor impõe-se com o objetivo de o informar de que a coisa vendida de tal vício padece.
II - Na venda de consumo, subtipo da compra e venda, quanto a móveis, estabelece a lei dois prazos de caducidade: i) o de denúncia dos defeitos, de dois meses, a contar da data em que tenha detetado a falta de conformidade; ii) o para o exercício de direitos, de dois anos, a contar da atempada denúncia dos defeitos; - v. n.º 2 e 3, do art.º 5º-A, do específico regime introduzido pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21 de maio, versão aplicável (entretanto já objeto de alteração pelos Dec. Lei nº 9/2021, de 29/1 e pelo Dec. Lei nº84/2021, de 18/10). Sendo dois os prazos de caducidade, duas podem ser as exceções perentórias deduzidas pelo vendedor, àqueles atinentes, a ele cabendo o ónus da prova dos concretos factos invocados como causa extintiva do direito do Autor (nº2, do art. 342º, do Código Civil).
III - Dada a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo (dentro de 2 anos, a contar da entrega de coisa móvel corpórea), a lei, protegendo o consumidor, consagra a presunção de, a falta de conformidade verificada dentro do referido prazo, faz presumir que o defeito já existia à data da entrega, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (nº2, do art. 3º, do Dec. Lei n.º 67/2003). Assim, o consumidor/comprador apenas tem de fazer a prova do defeito de funcionamento da coisa (da falta de conformidade) - facto base da presunção -, sem que sobre si impendam os ónus de alegar e provar a causa concreta da origem do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega (v. arts. nº1, do art. 342º, 349º e nº1, do 350º, do CC).
IV - O comprador de bem de consumo não conforme pode ter direito a resolver o contrato e direito de indemnização, nos termos gerais.
V - Tem, ainda, o Autor direito a ser indemnizado, nos termos gerais, por responsabilidade civil da vendedora, pelos danos causados em violação de interesse contratual negativo ou de confiança (que visa compensar das desvantagens sofridas com a conclusão do contrato), pois que a indemnização pelos danos que traduzem violação do interesse contratual positivo (que visa colocar o credor na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido), é incompatível com a resolução do mesmo (incompatibilidade lógica entre a retroatividade da resolução e indemnização por danos que pressupõem a manutenção do contrato), podendo a indemnização pelo dano negativo ser cumulada com a restituição do prestado a fim de colocar o consumidor na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 271/20.6T8MLD.P1
Processo do Juízo de Competência Genérica …

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recorrente: AA…, Lda
Recorrido: BB…

BB… residente na Avenida…, n.º .., …, ….-… Coimbra, intentou a presente Ação Declarativa de Condenação contra AA…, Lda., com sede em …, km …, …, pedindo que:
a) se declare válida a resolução do contrato de compra e venda de uma viatura, que designaremos de FV, que celebrou com esta e que a mesma seja condenada a reconhecer tal resolução e a restituir ao Autor o montante de €2.800,00, que pagou a título de preço e o montante de €65,00, cobrado pela mesma para a realização do registo automóvel da viatura, devendo ser ordenada a reversão ou anulação do referido registo automóvel;
b) se condene a Ré a pagar-lhe:
- a quantia de €1.055,68 a título de indemnização pelos danos patrimoniais por conta das reparações na viatura que lhe comprou;
- a quantia de €323,14 pelos danos patrimoniais em virtude das reparações que teve de efetuar no P…, de sua propriedade para poder circular, devido à privação de uso da viatura e para substituição da mesma;
- a quantia de €1.000,00 a título de danos não patrimoniais;
- os juros legais até efetivo e integral pagamento;
- uma sanção pecuniária compulsória ao A., no montante de €25,00 por cada dia de atraso no pagamento das quantias em que vier a ser condenada.
Alega, para tanto e resumidamente, que adquiriu à Ré a viatura de marca R…, modelo S…, matrícula ..-FV-.., pelo preço de €2.800,00, que após lhe ser entregue o veículo começou a notar deficiências de funcionamento e outras ao nível do consumo de óleo, que foi comunicando as avarias à Ré e que, como ela nada assumiu, foi efetuando as reparações que menciona e acabou por enviar a missiva a resolver o contrato de compra e venda, tendo sofrido os danos, patrimoniais e não patrimoniais que menciona, cujo ressarcimento peticiona.
A Ré apresentou contestação e excecionou a caducidade do direito do Autor porquanto este apenas lhe comunicou as apontadas desconformidades em 14 de agosto de 2020, tendo procedido à reparação sem lhe ter dado conhecimento, pelo que pugna pela sua absolvição. Mais impugnou as desconformidades na viatura FV que vendeu ao Autor, que delas tenha tido conhecimento e o montante do preço pago pelo Autor. Pugna pela condenação do Autor como litigante de má fé porquanto alega factos que sabe não serem verdadeiros uma vez que, aquando da aquisição do FV, tinha pleno conhecimento acerca do seu estado, alega um preço mais elevado e por saber que nunca denunciou qualquer irregularidade da viatura no período legal de que dispunha para esse efeito.
Pronunciou-se o Autor pela improcedência da caducidade, uma vez que denunciou os defeitos no prazo legal e que procedeu às apontadas reparações apenas após as suas interpelações junto da Ré não terem merecido, sequer, resposta. Repudia a sua litigância de má e pede a condenação da Ré, designadamente, em indemnização a seu favor, pela litigância de má fé da mesma, ao que a Ré se apresentou a responder.
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Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
Julga-se a ação parcialmente procedente e em consequência:
1. Declara-se como válida a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre Autor e Ré e que teve por objeto o veiculo automóvel de marca R…, modelo S…, de matrícula ..-FV-.. em consequência:
2. Condena-se a Ré no reconhecimento de tal resolução contratual.
3. Condena-se a Ré a restituir ao Autor o montante de €2.600,00 por este entregue a título de preço (descontado o montante de €200,00 a título de desgaste) acrescido do montante devido a título de juros legais desde o dia 17.09.2020, e o Autor a entregar o FV à Ré.
4. Condena-se a Ré a restituir ao Autor o montante de €65,00 por conta de pagamento do registo automóvel, acrescido do montante devido a título de juros legais desde o dia 17.09.2020.
5. Condena-se a Ré a pagar ao Autor o montante de €1.055,68 a título de indemnização por benfeitorias acrescido do montante devido a título de juros legais desde o dia 17.09.2020.
6.Condena-se a Ré a pagar ao Autor o montante de €200,00 por conta da compensação por danos não patrimoniais acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde a prolação desta sentença.
7. Determina-se a anulação do registo automóvel em nome do Autor.
8. Condena-se a Ré como litigante de má-fé e em consequência vai condenada no pagamento de multa processual no montante correspondente a 2 UC´s e no pagamento do montante de €300,00 por conta da indemnização devida à parte contrária, montante ao qual acresce o montante devido por conta dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a prolação desta decisão.
9. Absolve-se a Ré do demais peticionado.
10. Absolve-se o Autor do pedido de condenação como litigante de má fé.
11. Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção dos respetivos decaimentos – artigo 527º, n º 1 a 3, do Código de Processo Civil”.
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A Ré apresentou recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão e substituída por outra que absolva a recorrente, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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O Autor apresentou contra-alegações a pugnar por que seja negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida, apresentando as seguintes
CONCLUSÕES
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Da reapreciação da decisão da matéria de facto:
1.1- Da verificação do erro na apreciação da prova e consequências da deficiente gravação;
2. Da reapreciação da decisão de mérito:
2.1 - Qualificação do contrato celebrado;
2.2 – Da verificação da exceção da caducidade do direito do Autor (por ter denunciado as desconformidades do veículo após o prazo legal de dois meses após o conhecimento das mesmas);
2.3- Na improcedência de tal exceção, se se verificam as desconformidades do veículo e direitos do Autor:
- à resolução do contrato e a indemnização, cumulada, por danos patrimoniais e não patrimoniais e seu quantum;
2.4 - Da litigância de má fé da Ré/Apelante.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados, com relevância, para a decisão (transcrição):
1. A Ré é uma sociedade comercial por quotas cujo objeto social principal é a compra e venda de automóveis, motociclos e derivados, bem como a intermediação de créditos.
2. O Autor deslocou-se às instalações da Ré, sitas em … - Estrada…, km …, …, …, no intuito de proceder à reserva da viatura de marca R…, modelo S…, matrícula ..-FV-.. (doravante designado por FV) para a adquirir posteriormente.
3. Tendo então ficado firmado entre as partes o preço anunciado pela Ré de €2.800,00, tal reserva efetivou-se no dia 21/11/2019.
4. O Autor entregou à Ré a quantia de cem euros em numerário, a título de sinal e ficou acordado que o pagamento do restante do preço e entrega da viatura ocorreria no dia 23.11.2019.
5. O Autor entregou, no dia 23.11.2019, a quantia de quatrocentos euros em numerário e o remanescente do preço – dois mil e trezentos euros - foi pago pelo Autor através de transferência bancária para a conta da Ré, acrescido de €65,00 para pagamento do registo de aquisição a favor do Autor junta da Conservatória do Registo Automóvel, que foi efetuado pela Ré.
6. No mesmo dia 23/11/2019, a Ré procedeu à entrega da viatura ao Autor, emitindo a seu favor uma declaração de venda para circulação.
7. O Documento Único Automóvel correspondente à viatura em apreço, com o n.º …….. ., emitido a 25/11/2019, foi posteriormente recebido pelo Autor na sua residência, constando já o mesmo como seu titular e proprietário.
8. As conversações encetadas pelo Autor para com a Ré com vista à concretização do negócio foram-no na pessoa do Sr. CC…, que sempre se apresentou como seu legal representante e atuando em nome desta.
9. A mencionada viatura foi vendida pela Ré ao Autor sem ter a revisão em dia, nada tendo informado ao Autor acerca da necessidade de reparações.
10. Começou a fazer-se notar o consumo de um litro de óleo do motor a cada 700 quilómetros, sensivelmente, fuga que indicia um problema ao nível do motor.
11. No dia 27.11.2019, o Autor levou a viatura a uma oficina de reparação automóvel, a DD…, para troca dos seguintes componentes: resistência do ventilador do habitáculo; filtro do habitáculo, cujo custo, pago pelo Autor, foi de €178,03 (cento e setenta e oito euros e três cêntimos).
12. Poucos dias depois o Autor verificou a existência da fuga de óleo.
13. No dia 7.12.2019 o Autor levou a viatura à mesma oficina para substituição de: Óleo Motul 8100 x-clean 5w40; filtro de óleo; junta do cárter; kit da distribuição com bomba de água dCi; correia de acessórios 6PK1200; dois retentores R…; bronzes de biela; parafusos de biela; anticongelante G12 rosa; consumíveis diversos, cujo custo, pago pelo Autor, foi de €637,89 (seiscentos e trinta e sete euros e oitenta e nove cêntimos).
14. No dia 03.01.2020, o Autor voltou com a viatura à referida oficina de reparação automóvel para: substituição de tubo de retorno; consumíveis diversos (reposição de nível de óleo), cujo custo, pago pelo Autor, foi de €105,41 (cento e cinco euros e quarenta e um cêntimo).
15. No dia 18/01/2020, o Autor procedeu à troca dos quatro pneus da referida viatura (ao que acresce a respetiva taxa SGPU), porquanto os mesmos se encontravam em avançado estado de desgaste. cujo custo, pago pelo Autor, foi de €134,35 (cento e trinta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos).
16. O Autor enviou a 16 de julho de 2020 uma mensagem para a Ré, que nesse dia recebeu, com o seguinte teor: Sr. CC… boa tarde. Temos de falar, a S… mesmo depois do tratamento antes da mudança de óleo continua a consumir o óleo. Temos de falar, já gastei muito dinheiro e nada resolvido. Para não falar no que investi: substituição da resistência da sofagem, bronzes, distribuição, pneus…uma jante e pneu para substituto o que la vinha nem sequer era de lá…e a carrinha continua a consumir óleo desde 1º dia. Abraços; Tenho pedido opinião a mecânicos, todos dizem que é segmentos”.
17. A 20.06.2020 o Autor detetou um furo num dos pneus da referida R… M… S…, e procurou socorrer-se do pneu suplente que supostamente acompanharia a referida R… ..-FV-.., tendo detetado que a mesma lhe tinha sido vendida fazendo-se acompanhar de um pneu suplente que não corresponde àquele modelo de carro, sendo até incompatível com o mesmo, o que obrigou o Autor a chamar a assistência em viagem da sua seguradora, tendo a viatura sido transportada no reboque, transtornando o Autor.
18. Nesse mesmo dia de 20 de junho de 2020 o Autor deu conhecimento de tal facto à Ré através de uma chamada telefónica.
19. O Autor foi comunicando presencialmente os factos vindos de descrever, tendo a Ré recusado sempre proceder a qualquer reparação, ao ressarcimento de quaisquer despesas de reparação, à redução do preço ou tão-pouco a substituição da viatura e o Autor viu-se na necessidade de proceder às mencionadas reparações para poder utilizar a viatura sem correr o risco de agravar os danos causados pelo desgaste das peças.
20. A 14 de agosto o Autor enviou a seguinte mensagem à Ré, que a recebeu: “Bom dia Sr. CC…, como nunca me deu resposta aqui enviei email para comercialAA….pt assim fica registado. Aguardo resposta.
21. O Autor enviou a 14 de agosto de 2020 remeteu para a Ré um email com o seguinte teor: “Mais uma vez venho comunicar, e desta vez por email para ficar registado e ver se tenho resposta, que a S… adquirida por mim em novembro de 2019 está com problemas no motor (segmentos). Desde dezembro, quando verifique o consumo do óleo, que vos venho aletrado para esta situação. Sei que a carrinha é usada, mas paguei por ela o que me pediram, e a carrinha não estava em condições. Facilitei o modo de pagamento como pediram (uma parte em dinheiro outra por transferência), nos dias a seguir à aquisição por minha vontade mudei a distribuição (quando disseram que dava para mais 10000km e o mecânico duvidou que a mesma faria mais 100 km. Há dias tive um furo e tive que chamar o reboque, porquê? Porque o pneu suplente nem tinha a mesma furação…informado sou e sabendo que está no ano da garantia (mesmo assim o problema foi vos reportado 1 mês depois da aquisição), solicito que me indiquem como querem fazer? Já gastei muita na carrinha mas mesmo perdendo dinheiro prefiro reaver os 2800€ pagos à vossa entidade e devolver a viatura, Finalmente, espero mais uma vez, a vossa atenção sobre o assunto e que me digam a resposta. Acho que não precisamos de falar com terceiros para resolver este assunto.”
22. A Ré nunca respondeu a estas missivas.
23. O Autor, através do seu mandatário, em 10/09/2020, enviou uma missiva à Ré, através de carta registada com aviso de receção, e suportada nos nos factos que antecedem, declarou considerar resolvido o contrato de compra e venda com efeitos imediatos receção da missiva, a qual foi recebida pela Ré, na pessoa do Sr. CC…, a 14.09.2020. Em tal missiva o Autor pediu à Ré que, no prazo de 2 dias, procedesse à restituição do montante entregue a título do preço e do montante de €65,00 entregue para o registo, e o montante de €1.055,68 por conta das reparações que pagou no FV.
24. O FV encontra-se, sem circular, desde a data de 14/09/2020.
25. O Autor começou a utilizar uma viatura da qual é proprietário, de marca P…, modelo …, matrícula ..-..-VM, para fazer face às suas deslocações pessoais e para o seu local de trabalho.
26. O Autor levou aqueloutra viatura a uma oficina de reparação automóvel, a DD…, para troca dos seguintes componentes: injector Bosch e filtro do óleo, com custo, pago pelo Autor, de €225,98 (duzentos e vinte e cinco euros e noventa e oito cêntimos), de acordo com a fatura emitida a 24.04.2020.
27. Procedeu à troca dos seguintes componentes: cabo de embraiagem; interruptor de marcha atrás; com um custo, pago pelo Autor, de €97,16 (noventa e sete euros e dezasseis cêntimos) de acordo com a fatura emitida a 28.09.2020.
28. O Autor durante o hiato compreendido entre a aquisição da viatura e o envio da missiva datada de 10.9.2020, aquando das suas deslocações diárias, quer para o local do trabalho, quer as deslocações destinadas a garantir todas as suas restantes necessidades, aquele sentia-se apreensivo, ansioso, inseguro e inibido com a falibilidade da viatura, sempre com receio que o facto referido no ponto 18 (da fuga de óleo)– e, consequentemente, as despesas que teria de enfrentar – se agravasse ainda mais pela sua simples utilização.
29. O veiculo foi vistoriado exteriormente presencialmente pelo Autor, na presença da Ré, no dia 21.11.2019 e no dia 23.11.2019.
30. A Ré alegou na sua contestação que o Autor apenas comunicou à Ré, em agosto de 2020, todas as supostas desconformidades, sendo que até essa data nunca contactou com a Ré.
31. O legal representante da Ré, CC…, admitiu que algures no mês de maio ou de junho de 2020 o autor lhe foi dizendo que o carro consumia 1 litro de óleo aos 700 ou 800 kms, admitiu ter recebido o e-mail que lhe foi apresentado em julgamento bem como as mensagens e chamadas que constam dos documentos juntos aos autos, conforme as suas declarações, aos quais nunca respondeu.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS:
1. Atento o facto de continuarem a surgir sucessivos “defeitos”, mesmo após as várias reparações descritas, o Autor viu-se obrigado a parar de utilizar a viatura.
2. Para que o Autor pudesse utilizar a referida viatura P… ..-..-VM era necessário a realização da troca dos componentes.
3. Atento o desgaste que o uso suplementar provocou no referido P…, viu-se na necessidade de proceder ao descrito no ponto 26 dos factos provados.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1ª. Da reapreciação da decisão da matéria de facto
1.1- Da verificação do erro na apreciação da prova e consequências da deficiente gravação
Impugnada a decisão da matéria de facto e resultando cumpridos os ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c), pois que a Apelante faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida e indica, ainda, as passagens da gravação em que funda o recurso (nº 2 al. a) do citado normativo), cumpre conhecer do objeto do mesmo, reapreciando os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.
O nº1, do art. 662º, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve, pois, conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
a)- o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b)- sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c)- nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.
Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova[1] (consagrado no artigo 607.º, nº 5) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.
Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado[2].A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4).
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis[3].
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[4], devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.
Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação.
Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas - como a prova testemunhal e declarações de parte -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
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Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão à Apelante, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto. Insurge-se a mesma contra a decisão da matéria de facto por a prova gravada, as declarações de parte e a prova testemunhal que convoca, imporem decisão diversa quanto aos pontos que refere.
Entende o Autor apelado que bem se mostra decidida a matéria de facto.
Ao proceder-se à audição da prova produzida oralmente em audiência de julgamento e gravada a fim de reapreciar a decisão quanto aos pontos impugnados, constatamos as deficiências e grande ruído existente na gravação que a tornam impercetível.

1.1 - Da deficiente gravação da prova oralmente produzida e das suas consequências na reapreciação da decisão da matéria de facto

Constata-se, como o próprio recorrente refere nas alegações de recurso, estarem os depoimentos impercetíveis, o que prejudica e, mesmo, impede a apreciação da impugnação da matéria de facto.

E perante a impossibilidade de aceder a todas as provas acessíveis ao Tribunal de 1ª instância, para, então, se poder aferir do acerto da decisão da matéria de facto, nos termos supra expostos, não pode, por facto imputável a quem se pretende fazer valer da gravação, dado nada se ter apresentado, no momento próprio a suscitar, deixar de improceder esta parte do recurso.

Na verdade, como já se decidiu no Ac. desta Relação de 24/9/2020, proc. nº. 4704/12.7TBMTS.P1, em que a ora Relatora foi adjunta:

I- A Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC. Disponibilização que deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.

II- Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias possa arguir a respetiva nulidade.

Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.

III- Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.

Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso”.

Aí se fundamenta, com a nossa inteira concordância, que “A Lei 41/2013 de 26/06 (que aprovou o novo CPC) introduziu uma relevante alteração no regime de arguição da falta ou deficiência da gravação, expressamente determinando que esta tem de ser invocada no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada – vide artigo 155º nº 4 do CPC (diploma legal a que faremos referência, salvo se em contrário for expressamente indicado).

Gravação esta que deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respetivo ato (nº 3 do mesmo artigo).

Na medida em que esta falta cometida pode influir no exame da causa [como sempre o será quando a parte invocar que tal vício obsta ao exercício do seu direito de impugnação da matéria de facto que pretende exercer], configura a mesma uma nulidade secundária.

Para o efeito dispondo a parte dos já referidos 10 dias (nº 4 já referido) quando logo no ato se não aperceba da deficiência de gravação. Dez dias contados desde a disponibilização da gravação [sendo disponibilização, diferente de entrega, já que esta pressupõe uma atuação do interessado que promove a entrega e aquela respeita a um ato da secretaria que coloca a gravação disponível à parte que na mesma esteja interessada para lha entregar se esta o requerer] esta a ocorrer no prazo máximo de dois dias, tal como decorre do já referido nº 3 do artigo 155º.

Ao remeter o legislador a arguição da falta ou deficiência da gravação para o regime das nulidades (nulidades secundárias, cujo regime está regulado nos artigos 195º e segs. do CPC) resulta do artigo 199º que a mesma deverá ser arguida logo no ato, se de tal se aperceber a parte. Ou então, a partir do momento em que tomou conhecimento da mesma, ou dela pudesse conhecer agindo com a devida diligência (vide nº 1 deste artigo 199º).

Porque a disponibilização da gravação deve ocorrer no prazo de dois dias [e salvo se esta disponibilização não respeitar este prazo, caso em que a parte deverá suscitar tal questão perante o tribunal a quo] recai sobre a parte o ónus de neste prazo e sempre até aos 10 dias subsequentes requerer a entrega da gravação e verificar a regularidade da mesma, para que e sendo o caso, no mencionado prazo de dez dias arguir a respetiva nulidade.

Assim não o fazendo violará o dever de diligência que sobre si recai, com a consequência de ver precludido o direito a arguir a nulidade decorrente deste vício.

Nulidade que assim deverá ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.

Preceitua o nº 3 do artigo 199º - artigo que regula as regras gerais da arguição destas nulidades secundárias – que se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo para a arguição da nulidade (o já referido de 10 dias), poderá a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.

Porém e pela natureza da nulidade em causa, entende-se claramente afastada esta opção. Basta para tanto atentar no facto de após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, ser o processo concluso para proferir sentença no prazo de 30 dias.

Só após esta e respetiva notificação, correndo o prazo para a interposição do recurso e subsequente prazo para as contra-alegações.

Tanto é quanto baste para concluir pela inviabilidade de a expedição do processo em recurso poder ocorrer antes do referido prazo ter decorrido.

A justificar o entendimento que cremos maioritário de ter sido afastada a possibilidade de a arguição da nulidade da gravação – ao contrário do que na vigência do anterior CPC chegou a ser defendido – ser invocada apenas em sede de recurso[5] .

Antes se defendendo que a mesma deve ser arguida perante o tribunal a quo para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso[6].”.

Assim, constituindo a deficiência da gravação dos depoimentos prestados em audiência uma irregularidade que pode influir no exame e na decisão da causa, devendo tal nulidade ser arguida pela parte, no prazo de 10 dias a contar da disponibilidade dos registos pelo tribunal, nos termos do nº4, do artº 155º, bem se conhece, também, a posição assumida jurisprudencialmente no sentido de, no entanto, poder o tribunal da Relação, “conhecer oficiosamente dessa nulidade, ao abrigo do artº 9º do DL nº 39/95, de 15.2 e do artº 156º, “in fine” do CPC”, dado que este artigo “não se encontra revogado (expressamente) pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o atual CPC, nem de forma tácita pelo preceituado no art.º 155º do mesmo código, constituindo, pelo contrário, aquele normativo um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do atual CPC”, Ac. RG de 28/3/2019, proc. 3268/17.0T8BRG.G1[7].
Ora, assim não se entende, considerando-se que os interesses que estão em causa são interesses eminentemente privados, das partes, na repetição dos depoimentos deficientemente gravados, relacionados com o direito ao recurso, certo sendo que ao próprio direito de recorrer, são impostos limites, não sendo um direito absoluto, e bem podendo a parte não o exercer.
Nada permite considerar serem interesses públicos, na descoberta da verdade material, que estão em jogo, estando-o, tão só, o direito da parte ao duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, sendo à reapreciação fáctica que se destina a gravação, já que a prova foi produzida, em audiência contraditória, perante o julgador em 1ª instância, que bem a ouviu, com imediação (a ele se não destinando a gravação).
Não estando, diretamente, interesses de ordem pública em causa, mas, primordialmente, particulares, não cabe conhecer oficiosamente da nulidade, a qual tinha de ser suscitada, pelo interessado, no momento próprio, querendo, e não o tendo sido, precludido se mostra o direito à sua arguição.
Com efeito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre (no seu, fundado, entendimento, e após audição da prova gravada), essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante, no contexto da impugnação da decisão de facto, mas já o não pode se nenhuma razão houver para afirmar tal essencialidade, existindo, como no caso, tão só, meras opiniões e convicções da parte interessada. Esta, a pretender impugnar a decisão de facto, devia ter atuado no sentido de arguir a nulidade em causa e o não fez.
Assim, a Relação pode ordenar, por sua iniciativa, a repetição das provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade, mas já o não pode fazer se nenhuma justificada razão existir para tal, mas mero interesse do apelante.
E, sem ouvir os depoimentos, não estão reunidas as condições para se poder proceder à análise da prova, segundo o princípio da livre apreciação das provas, fixado no nº1, do art. 655º, não podendo, por isso, o Tribunal da Relação modificar o julgado em 1.ª instância, antes, na improcedência da impugnação, tem de manter o decidido.
Não se trata de dar prevalência a soluções de justiça material sobre a formal, pois que no processo, há já uma convicção formada sobre a substância e nada justifica a necessidade de formação de uma outra.
Não é a reapreciação essencial ao apuramento da verdade material, nada nos permitindo concluir pela necessidade ou conveniência da repetição da prova, e precludido está já para as partes o direito de arguirem o vício, por extemporaneidade.
Não havendo, no caso, dúvida de que a gravação dos depoimentos e declarações prestados se mostra impercetível, sendo a sua audição essencial para apreciação do recurso da matéria de facto, pois só revisitada a prova produzida se poderia apreciar da existência de erro na sua apreciação, nenhuma alteração à decisão da matéria de facto pode ser introduzida.
Ora, destinando-se a gravação a possibilitar a reapreciação da prova no recurso e sendo, até, o próprio direito de recorrer, que envolve interesses particulares, limitado, não satisfazendo o recorrente os ónus impostos para a impugnação da matéria de facto nunca esta pode ser reapreciada, improcedendo esta parte do recurso, dada a não demonstração do invocado erro.
Impugnada a matéria de facto, na reapreciação desta, a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, mas somente se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente (admitido) impuserem diversa decisão (cfr. nº 1 do artigo 662ºdo CPC).
E cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis, sendo o princípio da livre apreciação das provas, como vimos, a base da decisão, quando, como no caso, estão em causa documentos sem valor probatório pleno, relatórios periciais, depoimentos das testemunhas e declarações de parte (cfr. art.os 341º. a 396º. do Código Civil e nº4 e 5 do art. 607.º e n.º3, do art. 466.º, do CPC).

Importa, ainda, considerar que é ónus do recorrente apresentar a sua alegação, com conclusões, a indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – nº1, do artigo 639º -, estas a delimitar o objeto do recurso, conforme estatui o n.º 3 do artigo 635º. Analisadas as conclusões formuladas pela recorrente, resulta que a mesma, invocando erro na apreciação da prova, pretende a alteração da decisão da matéria de facto quanto aos factos provados 3, 5, 9, 10, 13, 15, 17, 19, 24 e 28[8] e para justificar o erro de julgamento convocou prova gravada, depoimento e declarações de parte e depoimento das testemunhas.

Ora, os depoimentos, com muitos ruídos, são de muito difícil audição e, mesmo, parcialmente inaudíveis, conforme verificámos pela audição da gravação.

Só a total percetibilidade da prova gravada que o recorrente invoca nos permitiria apreciar se a decisão recorrida merece crítica e formar a nossa livre convicção, certo sendo, ainda, incumbir ao recorrente invocar, motivar e demonstrar o erro na apreciação da prova que imputa à decisão recorrida e ele próprio alude a serem os depoimentos imperceptíveis.

Como se entendeu no citado Ac. da TRL de 30/05/2017, “Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.” (negrito nosso).

Uma vez que a nulidade da deficiente gravação não foi, tempestivamente suscitada para que pudesse ser conhecida e sanada, impossibilitado está este Tribunal de efetuar a reapreciação da prova e, consequentemente de conhecer da impugnação da matéria de facto.

Assim, resultando deficiências na gravação da prova, traduzidas em impercetíveis declarações e depoimentos (mesmo que apenas parcialmente) e sendo a inquirição essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, ficando o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante, porquanto tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou, o apelante, que não arguiu, tempestivamente, a nulidade e incumpriu as especificações e demonstrações em que funda o recurso, não pode, ante tal incumprimento, deixar de ver improceder o recurso, nessa parte.
*
Quanto à contradição entre o facto provado nº 24 e o facto não provado nº1, cumpre referir que a mesma se não verifica.
Com efeito, foi dado como não provado que:

1. Atento o facto de continuarem a surgir sucessivos “defeitos”, mesmo após as várias reparações descritas, o Autor viu-se obrigado a parar de utilizar a viatura”,
e como provado que:
24. O FV encontra-se, sem circular, desde a data de 14/09/2020”, e nenhuma contradição existe entre tais respostas, sendo que o facto de o veículo em causa estar parado não implica ser, necessariamente, por aquela razão, isto é, por continuarem a surgir sucessivos “defeitos”, mesmo após as várias reparações descritas, nem que o Autor se tenha visto “obrigado” a parar de o utilizar, podendo, simplesmente não desejar mais utilizá-lo ou, tão só, deixado de o utilizar, como se considerou provado.

Deste modo, improcede a conclusão da apelação, onde tal contradição vem invocada (concl. 3)), por nenhuma contradição ocorrer.
*
2ª - Da reapreciação da decisão de mérito:
2.1- Do enquadramento jurídico do contrato de compra e venda para consumo
Em causa nos presentes autos está um contrato de compra e venda que teve por objeto um veículo usado, alegadamente defeituoso (cuja falta de conformidade se manifestou posteriormente à entrega), compra e venda essa realizada entre autor/recorrido, como comprador, e a Ré/recorrente, como vendedora.
A compra e venda vem definida no artigo 874º, do Código Civil, como sendo “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”. Deste modo, a celebração deste tipo de contrato gera obrigações reciprocas: a do vendedor, de transmitir a propriedade da coisa ou a titularidade do direito e a obrigação de entregar a coisa; a do comprador, de pagar o preço (cfr. arts. 879º, 882º e 883º, todos do CC).
Como subtipo do contrato de compra e venda, surge o contrato de compra e venda para consumo, que se regula, além das regras gerais do Código Civil, da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores), e de outros diplomas de proteção dos consumidores, o Dec. Lei n.º 67/2003, de 08.04, alterado posteriormente pelo Dec. Lei. n.º 84/2008, de 21.05, pelo Dec. Lei nº 9/2021, de 29/1 e pelo Dec. Lei nº84/2021, de 18/10[9], que «procede à transposição para o direito interno da Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores» (cfr. art. 1º deste Dec. Lei)[10].
Bem esclarece o mencionado Acórdão que a razão de ser da introdução desta regulamentação, específica, mais protetora do comprador consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador – que seja consumidor – a parte mais fraca no respetivo negócio de compra e venda[11], e, por isso, carecido de uma maior proteção legal.
As partes fazem apelo, para a decisão deste litígio, às regras que regulam a compra e venda por parte de consumidor, bem tendo entendido o Tribunal a quoNão temos dúvidas, e as partes também não tiveram (…), que estamos na presença de uma venda de bens de consumo, situação que, para além de beneficiar da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor, encontra-se coberta pelo Regime da venda de bens de Consumo – Decreto –lei n.º 67/2003 de 8 de abril: nos termos do disposto no artigo 1º - A e 1º -B alínea b), tal diploma é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, neles se incluindo a venda de bens em segunda mão.
Ora, resulta dos factos provados que a Ré, no âmbito da sua atividade comercial de compra e venda de automóveis acordou com o Autor a transferência do direito de propriedade do FV, um veículo automóvel em segunda mão, para a esfera jurídica do Autor.
Nos termos do artigo 4º da citada lei de defesa do consumidor, os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado ás legítimas expectativas do consumidor. Exige-se que os bens não sofram de vícios que os desvalorize ou impeça a realização do fim a que se destinam e/ou que tenham as qualidades asseguradas pelo fornecedor ou necessárias para a realização daquele fim.
E, no que concerne às expectativas legítimas, há-de ter-se em conta as que um consumidor médio, colocado na posição do destinatário real – artigo 236º do Código Civil – e agindo de acordo com a boa fé – artigo 239º do Código Civil – pode razoavelmente esperar atendendo às circunstâncias.
E quem tem a obrigação de assegurar a conformidade do contrato é o vendedor – vide artigo 2º/1 do DL 67/2003. Acaso a coisa padeça de defeito no momento da entrega e haja uma manifestação desse defeito no prazo de dois anos a contar da entrega temos verificados os requisitos da responsabilização do vendedor.
Assim, cabe ao comprador/consumidor a prova da falta de conformidade do bem adquirido com o convencionado; e a prova da revelação do defeito naquele prazo de dois anos, devendo, num prazo de dois meses, a contar da data em que o tenha detetado, denunciar o mesmo ao vendedor – vide artigo 5º, nº2 do DL 67/2003.
Importante é o disposto no n.º 3º do dito artigo 2º que impõe que a falta de conformidade existente não possa ser oposta pelo comprador se, no momento em que for celebrado o contrato, tiver conhecimento dela ou não puder razoavelmente ignorá-la, indo, naturalmente, tal regra contra os ditames da boa fé.
Perante a falta de conformidade da coisa, tem o consumidor o direito ao exercício das faculdades previstas no artigo 4º do diploma em apreço e ainda direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de um bem defeituoso de acordo com o disposto no artigo 12º da Lei de Defesa do Consumidor, exigindo-se aqui a culpa do vendedor nos termos do disposto no artigo 799º do Código Civil”.
A situação faz apelo ao regime legal de defesa dos consumidores a que se referem a Lei nº 24/96, de 31/7 (LDC) e o DL nº 67/2003, de 8/4, não se aplicando à situação o regime de caducidade a que aludem os arts 916º, nº3 e 917º, do CC (regime geral relativo à compra e venda de bens)”[12]. Aplica-se a legislação de defesa do consumidor (Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril com as alterações introduzidas, desde logo, e no caso, pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio) e só subsidiariamente o Código Civil [13] [14], sendo, aquele, específico regime a que o caso se subsume e que afasta o regime geral, menos favorável ao consumidor.
Analisemos, no que para o caso releva, o referido específico regime da venda de consumo, introduzido pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21 de Maio, vigente à data dos factos.
O n.º 1, do art. 1º-A regula o âmbito da sua aplicação, consagrando:
O presente decreto-lei é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores”.
O art. 1º-B, define:
a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;
b) «Bem de consumo», qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão;”.
Estatui o art. 2º, quanto a conformidade com o contrato:“
1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
3 - Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
4 - A falta de conformidade resultante de má instalação do bem de consumo é equiparada a uma falta de conformidade do bem, quando a instalação fizer parte do contrato de compra e venda e tiver sido efectuada pelo vendedor, ou sob sua responsabilidade, ou quando o produto, que se prevê que seja instalado pelo consumidor, for instalado pelo consumidor e a má instalação se dever a incorrecções existentes nas instruções de montagem”.
Com a epígrafe “Entrega do bem”, dispõe o art. 3.º:
1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”.
Estipula o art. 4º, a regular “Direitos do consumidor”:
1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. (negrito nosso por pertinente para o caso)
2 - Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente para o consumidor.
3 - A expressão «sem encargos», utilizada no n.º 1, reporta-se às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material.
4 - Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador.
5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
6 - Os direitos atribuídos pelo presente artigo transmitem-se a terceiro adquirente do bem”.
O Art. 5º, com a epígrafePrazo da Garantiaconsagra:
1 - O consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.
2 - Tratando-se de coisa móvel usada, o prazo previsto no número anterior pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes.
(…)”
E, ainda, e de acordo com o estatuído no nº 1, do art. 12º, da Lei n.º 24/96, de 31/07, o consumidor tem, também, direito, nos termos gerais, a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens defeituosos, consagrando este preceito:
1 - O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos”.
Analisa o citado Ac. RG. de 17/1/2019, proc. 201/15.7T8BAO.G1, o referido, específico, regime jurídico, bem desenvolvendo: “Por referência ao art. 2º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 67/2003, a «conformidade é sempre avaliada pela operação que consiste em comparar a prestação estipulada (explícita ou implicitamente) no contrato e a prestação efetuada»[15].
Acrescenta o citado autor que, mais do que caraterizar o que é ou não conforme o contrato, o que se pretende no citado art. 2º é precisar-se o que é que consta do contrato, para depois, no momento do cumprimento, aferir se o objeto prestado corresponde ao objeto contratado.
Aquilo que, no regime legal que regula a venda de bens de consumo (Dec.-Lei nº 67/2003, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008), se designa como falta de conformidade com o contrato corresponde à noção tradicional de defeitos do bem. Não existe qualquer categoria de falta de conformidade em relação ao contrato para além das “deficiências” do bem vendido, objecto do mesmo contrato[16].
Essa noção de desconformidade abrange quer os vícios na própria coisa objeto do contrato, quer os vícios de direito ou vícios jurídicos[17].
O citado art. 2º, no seu n.º 2, veio consagrar um sistema de presunções ilidíveis (de falta conformidade dos bens), com base numa formulação negativa, como também afastou a exigência de verificação cumulativa dos critérios para o funcionamento da presunção[18].
Para Calvão da Silva[19], os critérios presuntivos de determinação da não conformidade são de duplo sentido, pois, por um lado, facilitam a prova ao vendedor para que mostre no caso em concreto a coexistência dos critérios, e, por outro lado, podem servir de prova de falta de conformidade ao consumidor se este demonstrar a não verificação de qualquer um dos critérios no caso em concreto.
Como se explicitou no Ac. do STJ de 20/03/2014 (relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt., o Dec. Lei n.º 67/2003 não alterou o ónus da prova que já resultava do nosso direito comum a respeito da venda de coisa defeituosa.
Assim sendo, para que possa exercer os direitos que lhe assistem, compete ao comprador/consumidor alegar e provar o defeito da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, na terminologia do referido Dec. Lei, e que esse defeito existia à data da entrega.
Simplesmente, para garantir ao consumidor um mínimo de protecção, a lei estabeleceu presunções de não conformidade, as quais, abrangendo situações correntes “valem como regras legais de integração do negócio jurídico, destinadas a precisar o que é devido contratualmente na ausência ou insuficiência de cláusulas que adrede fixem as características e qualidades da coisa a entregar ao consumidor em execução do programa negocial adoptado pelas partes”[20].
Por outro lado, considerando a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo (dentro de 2 ou 5 anos, a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente), a lei favorece o consumidor, determinando que a falta de conformidade verificada dentro dos referidos prazos faz presumir que o defeito já existia à data da entrega, competindo, então, ao vendedor, ilidir a presunção de não conformidade ou que, atentas as circunstâncias, o defeito não existia na data da entrega.
A lei, no art. 3º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 67/2003, previu, assim, a dispensa ou liberação legal do ónus da prova da anterioridade da falta de conformidade.
Esta regra liberta o consumidor da difícil prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega do bem, tendo aquele apenas de provar a falta de conformidade do bem (e, naturalmente, a celebração do contrato)[21].
Contanto que a desconformidade se manifeste num prazo de dois anos a contar da entrega do bem móvel[22], ao consumidor basta fazer a prova do defeito de funcionamento da coisa (da falta de conformidade), sem necessidade de (alegar e) provar a causa concreta da origem do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega.
Trata-se de uma verdadeira presunção específica que estabelece a responsabilidade do vendedor pela falta de conformidade do bem com o contrato[23], a qual, de acordo com o regime imperativo imposto pelo art. 10º do Dec. Lei n.º 67/2003, não poderá ser, em qualquer circunstância, afastada pelas partes.
Uma vez provado o facto que dê origem à presunção de desconformidade, terá o vendedor o ónus de provar o facto concreto, posterior à entrega, que gerou a falta de conformidade, designadamente a prova do mau uso ou do uso incorreto do bem pelo consumidor[24].
O mesmo é dizer que bastará ao consumidor alegar e provar os factos base da presunção e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo Dec. Lei n.º 67/2003 (no caso, tratando-se de um bem móvel, 2 anos); já a 1ª ré (vendedora), para se ilibar da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador (designadamente por falta de diligência ou violação de deveres de cuidado), a terceiro ou devida a caso fortuito[25] Definido o regime legal aplicável ao contrato celebrado, a apreciar, comecemos por analisar do erro de mérito na apreciação da caducidade do direito do Autor, primeira questão a decidir porquanto a procedência da exceção acarretaria ficarem todas as demais questões prejudicadas, e, de seguida, na improcedência da exceção, debruçar-nos-emos sobre os direitos reconhecidos ao Autor pela sentença recorrida, postos em causa no presente recurso: o de resolução do contrato e seus efeitos e o de indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais.

2.2 - Da caducidade do direito do Autor

Insurge-se a Ré/Apelante contra a decisão por entender que a exceção da caducidade, por si arguida, devia ter sido julgada procedente e a Ré absolvida do pedido.
Entende o Apelado assim não suceder, bem tendo sido decidido.
Bem apreciou o Tribunal a quo a exceção da caducidade do direito do Autor, julgando-a improcedente por, encontrando-se provado que foi dado conhecimento à Ré do estado das peças e das reparações efetuadas, bem como da existência da fuga de óleo, caber a esta provar que a comunicação efetuada pelo Autor ocorreu em data posterior aos dois meses após o conhecimento do facto pelo Autor, o que não logrou fazer.
Importa atentar no regime do art. 5.º-A do DL n.º 67/2003, de 8.04, aditado pelo DL n.º 84/2008, de 21.05, que, com a epigrafe “Prazo para exercício de direitos”, consagra:
“1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado.
3 - Caso o consumidor tenha efetuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data”.
Apresentando o bem vendido defeito, a sua denúncia ao vendedor impõe-se, com o objetivo de o informar de que a coisa tem um vício ou falta de qualidade.
“O ónus da denúncia dos defeitos ao vendedor de coisa defeituosa resulta de um dever de colaboração entre os contratantes, posto que as condições em que se fazem muitas vendas tornam por vezes impossível ao vendedor estar a par da desconformidade” e “A contagem do prazo para a denúncia apenas se inicia com a tomada de conhecimento suficiente da desconformidade (ou vício), não relevando a mera possibilidade de conhecimento ou o desconhecimento da extensão integral do defeito quando este revista uma natureza eminentemente técnica”[26].
A denúncia, não sujeita a forma especial, podendo ser feita oralmente ao vendedor, tem de fazer referência ao vício ou falta de qualidade invocada pelo comprador. E o vício ou falta de qualidade que se manifeste depois de uma denúncia de outro vício ou falta de qualidade não se encontra abrangido por ela, devendo o comprador voltar a contactar o vendedor, denunciando o novo vício ou a nova falta de qualidade[27].
Na ausência de denúncia, os direitos do comprador caducam.
Relativamente a móveis, quanto à venda de consumo, a lei estabelece dois prazos de caducidade:
i) o de denúncia dos defeitos, de dois meses, a contar da data em que os tenha detetado;
ii) o para o exercício de direitos, de dois anos, a contar da atempada denúncia dos defeitos (v. art.º 5º-A, n.º 2 e 3, do específico regime introduzido pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21 de Maio).
Sendo dois os prazos de caducidade, duas podem ser as exceções perentórias deduzidas pelo vendedor, àqueles atinentes, a ele cabendo o ónus da prova dos concretos factos invocados como causa extintiva do direito do Autor (art. 342º, nº2, do Código Civil).
A contagem do prazo para a denúncia apenas se inicia com a efetiva e suficiente tomada de conhecimento do vício ou desconformidade (v. nº2, do art.º 5º-A, do específico regime introduzido pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21 de Maio), não relevando, para efeito de início de contagem, a estarem em causa questões de natureza eminentemente técnica, a mera possibilidade de defeito.
Cumpre, ainda, referir que o prazo de denúncia se não confunde com o prazo para propositura da ação, sendo que, para poder ser conhecido de ambas as causas de caducidade, que, como vimos, não são de conhecimento oficioso, têm de ser invocadas as duas.
Ora, tendo a Ré invocado a falta de denúncia no prazo de dois meses a contar do conhecimento dos defeitos, não logrou a mesma provar os factos a densificar a exceção da caducidade que invocou, bem tendo a exceção da caducidade do direito sido julgada improcedente.
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2.3 – Da responsabilidade civil da vendedora: os direitos do Autor à resolução do contrato e a indemnização

Cabe, agora, analisar se a factualidade provada permite presumir a não conformidade do automóvel vendido pela Ré, nos termos do art. 2º n.º 2, al. d) do Dec. Lei n.º 67/2003, o que passa por saber se está demonstrado o facto base da presunção legal.
No caso dos autos está provado que, tendo o Autor adquirido à Ré[28] no dia 23/11/2019 o veículo de marca R…, modelo S…, matrícula ..-FV-.., começou a fazer-se notar consumo de óleo do motor[29] (uma fuga de óleo).
Mais resultou que a Ré se foi recusando a proceder a reparação, ao ressarcimento de despesas de reparação, à redução do preço ou a substituição da viatura, e o Autor se viu na necessidade de proceder a reparações para poder utilizar a viatura sem correr o risco de agravar os danos causados pelo desgaste das peças, tendo levado o veículo a oficina, diversas vezes, e que, no dia 16 de julho de 2020, o Autor enviou à Ré uma mensagem a informar que, continuando o veículo a consumir o óleo, todos os mecânicos dizem que é “segmentos”. Como a Ré não respondeu às missivas, em 10/09/2020, enviou-lhe carta registada com aviso de receção, suportada nos factos que antecedem, a declarar resolvido o contrato de compra e venda com efeitos imediatos, tendo a carta sido recebida pela Ré, na pessoa do Sr. CC…, a 14.09.2020.
A demonstração desse circunstancialismo fáctico, revelador do mau funcionamento do veículo, pois não é suposto haver fugas de óleo do motor, constitui o facto base da presunção legal e faz presumir a não conformidade do automóvel vendido pela 1ª Ré, nos termos do art. 2º, n.º 2, al. d) do D.L. n.º 67/2003. Por outro lado, manifestando-se a avaria num prazo de dois anos a contar da entrega do veículo, fica dispensada a demonstração da anterioridade da desconformidade do bem no momento da entrega (art. 3º, n.º 2, do citado D.L.).
Competia, assim, à Ré ilidir essa presunção, mediante a demonstração de a falta de conformidade resultar de facto imputável ao consumidor.
Contudo, a Ré não logrou ilidir tal presunção, bem tendo resultado dos factos provados, até, o cuidado do Autor com a manutenção do veículo.
Não pode, pois, ser afastada a presunção da existência de anomalia à data da entrega do bem.
Não tendo sido ilidida a dita presunção da falta de conformidade à data da entrega - não resultando que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa vendida e imputável ao comprador (designadamente por falta de diligência ou violação de deveres de cuidado), a terceiro ou devida a caso fortuito-, e nada fazendo a Ré na sequência das denúncias que o Autor lhe reportou dos defeitos, nada reparando ou substituindo, resulta que, na verdade, assistem ao Autor os direitos de resolução e de indemnização.
Com efeito, bem entendeu o Tribunal a quo ter o Autor direito de resolver o contrato, pois que resultou provado o consumo de um litro de óleo do motor a cada 700 quilómetros (facto indiciador de problema ao nível de motor), bem referindo que ao adquirir-se “um veículo, ainda que em segunda mão, aquilo que se espera é que circule sem problemas e sem colocar em risco os seus utilizadores” e o consumo de óleo é sintomático de defeito que a Ré não curou de solucionar, ignorado as denúncias e apelos do Autor.
Bem entendeu o Tribunal a quo que, conhecido o vício e denunciado, nada tendo a Ré feito para resolver a questão - não tratando da resolução da fuga de óleo nem substituído o veículo - o Autor, no exercício de um legítimo direito, enviou carta a declarar resolvido o contrato, não sendo razoável impor-lhe a manutenção do contrato e que continue com o veículo com a fuga do óleo, em que a causa da mesma persiste, sendo que se “não provou que aquele tivesse conhecimento ou não devesse ignorar as deficiências que o veículo veio a manifestar, aceitando-o nesse estado, prova que incumbia ao vendedor, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil”, bem citando a situação similar do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.09.2019, proc. 1397/18.1T8LLE.E1,“onde, perante a persistência de uma fuga de óleo na caixa de velocidade, foi considerado válido o direito à resolução contratual não obstante o vendedor ter optado a conduta de reparação, ainda que frustrada”.
Face ao referido, e atento o consagrado no nº1, do art. 4º, do Decreto-Lei 67/2003 de 8 de abril, supra citado, tinha o Autor direito à resolução do contrato, que exerceu.
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Analisemos agora:
- Dos efeitos da resolução e do âmbito e limites do direito de indemnização, em cumulação.

Exercido que se mostra, validamente, o direito de resolução, pelo Autor, mediante declaração à parte faltosa (art. 436º, nº1), vejamos dos seus efeitos em relação às partes no contrato.
Regulando-se os efeitos da resolução do contrato pelas regras gerais (arts. 432º e segs), verifica-se que estatui o art. 433º que a resolução é equiparada, na falta de disposição especial, à nulidade ou anulabilidade do contrato, aplicando-se o art. 289º que, ao estabelecer uma ineficácia superveniente do contrato com eficácia retroativa, visa colocar as partes na situação em que estariam se o contrato não tivesse sido celebrado. Para esse efeito, institui-se uma relação de liquidação através da qual se restituem as prestações já efetuadas, que devem ser realizadas simultaneamente (art. 290º).[30].
Sendo a regra a de que a resolução do contrato tem eficácia retroativa, tal implica para além da extinção para o futuro das obrigações das partes, o surgimento de obrigações de restituição, destinadas a colocar as partes no mesmo estado em que se encontravam antes da celebração do contrato, com constituição de uma relação de liquidação.
Resolvido o contrato, o comprador fica exonerado da obrigação de pagar o preço, e se já o tinha pago, como no caso, pode exigir a sua restituição (art. 289)[31].
Para além disso, o incumprimento definitivo do contrato, fundamento da resolução, tem como consequência a constituição do devedor em responsabilidade obrigacional pelos danos causados ao credor (art. 798º). Verifica-se, nesse caso, a extinção superveniente do dever de prestar, mas ocorrendo tal extinção devido a uma conduta ilícita e culposa do devedor, ele é obrigado a indemnizar o credor pelos danos que lhe causou a não realização da prestação. Constitui-se, assim, uma nova obrigação, a obrigação de indemnização, que tem por fonte a responsabilidade obrigacional[32], que tem como pressupostos o facto ilícito, a culpa, os danos e o nexo causal entre aquele e estes, sendo que o facto ilícito corresponde à violação de uma obrigação, através da não execução pelo devedor da prestação a que estava vinculado, a culpa se presume (nº1, do art. 799º) e os danos sofridos pelo credor, para serem ressarcíveis, têm de ter sido consequência da falta de cumprimento por parte do devedor.
Ora, optando-se pelo exercício do direito potestativo à resolução e resolvido o contrato e extraídos os efeitos da resolução, podem não ter ficado reparados todos os danos causados ao consumidor. Se assim acontecer, este tem direito a exigir uma indemnização nos termos gerais. Por força do art. 801º, nº2, com a resolução do contrato, pode cumular-se um pedido de indemnização pelo interesse contratual negativo. A indemnização pelo dano negativo ou de confiança cumular-se-á com a restituição pela resolução do contrato, a fim de colocar o dono da obra na situação em que estaria se não tivesse celebrado o negócio. O credor tem o direito de exigir que o devedor reponha o seu património no estado em que se encontraria se o contrato não tivesse sido celebrado. O que não pode é, resolvido o contrato, ser ressarcido pelos danos que pressuponham o interesse positivo no mesmo.
Com efeito, gerando-se responsabilidade civil obrigacional, constitui-se o responsável na obrigação de indemnização (arts. 562º e segs), onde se encontra prevista a forma de calculo dos danos, devendo efetuar-se a reconstituição natural (art. 562º), só se realizando a indemnização em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art. 566º). E no âmbito dos danos compreendem-se tanto os emergentes como os lucros cessantes (art. 564º, nº1), bem como os danos futuros, se forem previsíveis. Na responsabilidade obrigacional a indemnização abrange o interesse contratual positivo ou de cumprimento, isto é, as utilidades que se frustraram em virtude da não realização da prestação, devendo a indemnização colocar o credor na situação em que estaria se a obrigação tivesse sido voluntariamente cumprida[33], aí citando Luís Menezes Leitão, em nota de rodapé Paulo Mota Pinto bem considerando que “não se trata, assim, apenas de atribuir ao credor, por exemplo, o valor objetivo da prestação, mas de o colocar na situação patrimonial em que estaria sem o não cumprimento, incluindo todas as consequências patrimoniais que o não cumprimento teve, desde as despesas com o contrato, os gastos tornados inúteis para a celebração do negócio e preparação do cumprimento, a oneração com deveres de ressarcir terceiros (por exemplo, clientes), o lucro cessante do negócio, bem como outros danos concomitantes ou consequenciais, e, por exemplo, as vantagens concretas que se teria retirado da prestação (tal como o uso da coisa) recebida (desde que, evidentemente, o mesmo prejuízo não seja indemnizado mais do que uma vez)”[34].
Situação diversa é a de quando se opera a resolução, atentos os efeitos retroativos desta. A Doutrina bem ensina que com a resolução apenas pode ser cumulada com a obrigação de restituição que dela resulta a obrigação de indemnizar pelos danos negativos. E também a Jurisprudência vem decidindo que resolvido o contrato só pode ser exigida “a indemnização pelo interesse contratual negativo ou dano de confiança, o emergente ou o lucro cessante, ou seja, por exemplo, respectivamente, as despesas contratuais ou o proveito que obteria se não tivesse celebrado o contrato”[35] [36].
Aí se refere “a indemnização pelo dano positivo visa colocar o credor na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido, a indemnização por dano negativo ou de confiança visa compensá-lo das desvantagens sofridas com a conclusão do contrato.
Há incompatibilidade lógica entre a retroactividade do meio resolutivo e o pedido de indemnização pelos danos positivos que pressupunha a manutenção do contrato.
O interesse contratual negativo compreende o dano emergente, como é o caso, por exemplo, das despesas contratuais, e os chamados lucros cessantes, como é o caso do proveito que credor teria obtido se não tivesse celebrado o contrato que celebrou.
É uma situação em que o credor prefere à indemnização compensatória pelo incumprimento a resolução do contrato, peticionando indemnização pelo interesse contratual negativo ou da confiança, o mesmo é dizer pelo prejuízo que não suportaria se não tivesse contratado nos termos em que o fez.
É como que o regresso ao estado económico e jurídico anterior à contratação envolvente sob a ideia de tendencial de igualdade entre as partes contratantes no quadro do contrato cujo normal resultado se frustrou”.
Assim, no caso vertente, resolvido que foi o contrato de venda de bem de consumo, o Autor apenas pode exigir da Ré indemnização pelo interesse contratual negativo, pelos danos negativos ou de confiança, ou seja, a vantagem patrimonial ou o lucro que teria obtido se não o tivesse celebrado.
Revertendo para o caso, exercido o direito potestativo, extintivo, de resolução do contrato pelo Autor, consumidor/comprador, verifica-se que, como vimos, a resolução do contrato, sendo equiparada por lei quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade dos negócios (cfr.art. 433º e 289º), tem efeito retroativo (v. art. 289º), pelo que as partes devem ficar na situação em que estariam se não tivesse sido celebrado o contrato, seguindo-se, pois, as regras gerais.
Têm as partes de ser colocadas na situação que existiria se o contrato não tivesse sido celebrado e tem o credor o direito de ser ressarcido pelos danos inerentes ao interesse contratual negativo, limitação da indemnização esta que se ajusta à figura da resolução do contrato e à retroatividade dos efeitos que resultam do art. 434º.
Assim, sendo efeitos da resolução do contrato de compra e venda o dever de restituição de tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não for possível o valor correspondente (nº1, do art. 289º, aplicável ex vi art. 433º), tem a Ré, na verdade, de restituir o que foi prestado pelo Autor, nos termos que o Tribunal a quo definiu.
E tem a vendedora inadimplente de compensar o comprador das despesas por ele realizadas, vertente de prejuízo no quadro do interesse negativo ou dano de confiança.
Neste conspecto, bem decidiu o Tribunal a quo ao considerar “Nos termos do disposto no artigo 433º e 434º, do Código Civil a resolução é equiparada à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com efeitos retroativos.
Nos termos do disposto no artigo 285º do Código Civil, o efeito da retroatividade implica que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado”. “O Autor tem que restituir o FV à Ré e a Ré tem que restituir o montante pago a título do preço e o montante pago a título de registo, num total de €2.865,00”, tendo sido descontado pelo “desgaste e a desvalorização que o FV teve desde o momento de aquisição – 23.11.2019 até à data da sua paralisação – 14.09.2020 – data que coincide com a produção dos efeitos da resolução contratual, sob pena de existir por parte do Autor um enriquecimento sem causa – vide neste sentido o teor do Acórdão da Relação de Guimarães, de 01.02.2018, proferido no âmbito do processo 783/15.3T8FAF.G1, disponível em www.dgsi.pt e ao nível da doutrina vide Calvão da Silva, In Venda de Bens de Consumo, 4ª edição, pág. 109, que defende “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espirito do art. 434º, n.º 2, do Código Civil).”
Considerando o tempo decorrido entre a data da venda - 23.11.2019- até à data de vencimento da obrigação de restituição operada pela resolução do contrato -17.09.2020-, as características do veículo que pouco mais tinha para desvalorizar considerando o preço da venda, e apelando a critérios de equidade, entende-se como justo e adequado fixar tal montante em €200,00, devendo a Ré restituir ao Autor o montante de €2.600,00 a título de restituição do preço e o montante gasto com o registo no montante de €65,00.
Acresce que resultou provado que o Autor mudou as peças desgastadas pelo que o FV ficou valorizado com peças novas pelo que não considerar tal situação comportaria uma situação de injustiça e até um enriquecimento sem causa por parte da Ré, nos termos do disposto no artigo 473º do Código Civil.
Assim, nos termos do artigo 289º do Código Civil teremos de lançar mãos do disposto no artigo 1269º e seguintes, nomeadamente do disposto no artigo 1273º que dispõe que o possuir, esteja ele de boa fé esteja ele de má fé, tem o direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que haja feito e bem assim levar as úteis desde que não estrague a coisa. E consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa, sendo as necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa, nos termos do disposto no artigo 216º do Código Civil.
Ora, não temos dúvidas que estamos na presença de benfeitorias necessárias pois que acaso as peças não fossem substituídas representariam um dano maior no FV, pelo que o Autor tem direito a ser indemnizado. E tal indemnização é equivalente ao montante das despesas realizadas, ou seja, no total de €1.055,68.
Ou seja, a Ré para além de ser condenada na restituição do montante de €2.665,00 é condenado no pagamento do montante de €1.055,68 a título de indemnização pelas benfeitorias realizadas pelo Autor no FV”.
Tem, na verdade, o Autor, direito a receber este montante, como compensação das despesas que realizou, para ser colocado na situação que existiria se o contrato não tivesse sido celebrado, pelos danos inerentes ao interesse contratual negativo.
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- Da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais e quantum indemnizatório

Como vimos, e de acordo com o estatuído no nº 1, do art. 12º, da Lei n.º 24/96, de 31/07, o consumidor tem direito, nos termos gerais, a indemnização dos danos que para si resultem do fornecimento de bens defeituosos.
E resultou que a conduta da Ré, que motivou a resolução do contrato e indemnização pelo interesse contratual negativo, foi ilícita, por violadora de obrigações legais e contratualmente assumidas, que já impostas eram pela boa fé no cumprimento do contrato, como a de entregar o veículo que vendeu ao consumidor funcionar com normalidade, sem fugas de óleo do motor, e é culposa, presumindo-se a culpa, nos termos do nº1, do art.º 799.º, do CC,.
Não o tendo feito, resultando a não conformidade, o defeito do veículo, é a mesma inteiramente responsável para além dos referidos danos, patrimoniais, pelos danos não patrimoniais, que provocou, causados pela sua atuação ilícita e culposa.
Assim, bem refere o Tribunal a quo serem estes danos atendíveis nos termos do disposto no nº1, do artigo 12º da Lei de Defesa do Consumidor, dependendo o direito à indemnização de culpa do vendedor na existência da desconformidade do bem, sendo aplicada a regra geral da responsabilidade subjetiva, nos termos do disposto no artigo 483º, n.º 1 e 798º do Código Civil, culpa do vendedor, que se presume por força do disposto no artigo 799º do Código Civil.
Analisemos da adequação da compensação atribuída.
Estabelece o art. 496º, do Código Civil, que: “1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
E o nº 4, do referido artigo, que “O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º…”.
Resulta, assim, do referido nº1 a admissibilidade genérica do ressarcimento dos danos não patrimoniais. Como dele decorre, os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando, pela sua gravidade, sejam merecedores da tutela do direito.
Antunes Varela define danos não patrimoniais como sendo “os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”[37].
Luís Manuel Teles Menezes Leitão define-os como “aqueles que correspondem à frustração de utilidades não suscetíveis de avaliação pecuniária, como o desgosto resultante da perda de um ente querido”[38].
Tais danos só são indemnizáveis quando, pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, sendo a aludida gravidade um conceito relativamente indeterminado, a apurar, objetivamente, caso a caso, de acordo com a realidade fáctica apurada. A gravidade mede-se por um critério objetivo, de normalidade e bom senso prático. A gravidade deve “medir-se por um padrão objectivo e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria ou embotada do lesado, sendo tais danos compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, e tratando-se mais de uma satisfação do que de uma indemnização, a ser calculada segundo critérios de equidade, atendendo-se ao grau de responsabilidade do lesante, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, etc”[39] .
Enunciam-se alguns danos não patrimoniais que têm sido, recentemente, considerados pela jurisprudência merecerem a tutela do direito como: a perceção que o lesado, mesmo em estado de não (pelo menos completa) consciência, possa ter da situação em que se encontra, do grau de irreversibilidade das lesões, a destruição de um projeto de vida de casal, a impotência sexual de que fique a padecer o lesado bem como o consequente dano de seu cônjuge ou companheiro, o dano biológico, isto é a perda de qualidade de vida do sujeito[40].
No caso em apreço, não existem dúvidas que as consequências da atuação da Ré, ilícita e culposa, para o Autor revestiram de gravidade, como bem foi decidido, sendo, por isso, justificativas do seu ressarcimento, a título de danos não patrimoniais. Por graves, tem o Autor direito a ser indemnizado por eles, cabendo determinar qual o quantum a atribuir.
Ora, de harmonia com o princípio geral expresso no art. 562º, do C Civil, a obrigação de indemnizar implica a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado a lesão, repondo-se as coisas no lugar em que estariam se não se tivesse produzido o dano. Visa-se a eliminação deste, devendo a indemnização equivaler ao montante do dano imputado (v. nº2 do art. 566º).
Porém, estando em causa a lesão de interesses imateriais, a reconstituição natural da situação anterior é impossível e também o é a fixação de um montante pecuniário equivalente ao «mal» sofrido, apenas se podendo atenuar, minorar ou, de algum modo, compensar os danos sofridos pelo lesado.
E “se a indemnização por danos não patrimoniais não elimina o dano sofrido, pelo menos, permite atribuir ao lesado determinadas utilidades que lhe permitirão alguma compensação pela lesão sofrida sendo, em qualquer caso, melhor essa compensação do que nenhuma. A atribuição dessa compensação não representa qualquer imoralidade, uma vez que não resulta do comércio de bens não patrimoniais, representando, pelo contrário, uma sanção ao ofendido por ter privado o lesado das utilidades que aqueles bens lhe proporcionavam”[41].
Nos termos do nº4, do 496º, o montante da indemnização a atribuir será fixado equitativamente pelo Tribunal tendo em conta a extensão e gravidade dos danos causados, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifique ponderar. Este tipo de indemnização será fixado segundo o bom senso e o prudente arbítrio do julgador, temperado com os critérios objectivos a que se alude no art. 494º.
E daqui resulta que a indemnização por danos não patrimoniais “não se reveste de natureza exclusivamente ressarcitória, mas também cariz punitivo, assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-la do comportamento do lesante”[42].
Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto, Processo 108/08.4TBMCN.P1, de 8/7/2010, “refere “inter alia”, o Ac. do STJ, de 30.10.96, in BMJ 460-444: “(...) No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”. O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado, sempre, “segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização», «aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda, etc”[43].
Estes preceitos devem ser aplicados com prudência, pois a sua aplicação tem como efeito deixar sem indemnização parte dos danos reais[44], como entende Galvão de Teles, Direito das Obrigações, 7ª Edição, Coimbra Editora, 2010, p.357, nota 1, o que pode, por isso, gerar injustiças para os lesados, a beliscar a certeza e segurança jurídicas, fins sempre tidos em vista na aplicação da justiça.
Como afirma Dário Martins de Almeida[45], “pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. …A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto”. Como é sabido, a satisfação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, tratando-se antes de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação que não é suscetível de equivalente[46]. “É, assim, razoável que no seu cálculo, se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselha sejam tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante”[47].
E a indemnização por danos não patrimoniais tem em vista compensar de alguma forma o lesado pelos sofrimentos e inibições que sofrera em consequência do evento danoso, compensação que só será alcançada se a indemnização for adequada e significativa do ponto de vista financeiro e não meramente simbólica.
Tal compensação deve “ser proporcionada à gravidade do dano, tomando-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”[48].
A lei ao, através da remissão feita no art. 496°, n°4 “para as circunstâncias mencionadas no art. 494°, ter mandado atender, na fixação da indemnização, quer à culpa, quer à situação económica do lesante, revela que ela não aderiu, estritamente, à tese segundo a qual a indemnização se destinaria nestes casos a proporcionar ao lesado, de acordo com o seu teor de vida, os meios económicos necessários para satisfazer ou compensar com os prazeres da vida os desgostos, os sofrimentos ou as inibições que sofrera por virtude da lesão. Mas também a circunstância de se mandar atender à situação económica do lesado, ao lado da do lesante, mostra que a indemnização não reveste, aos olhos da lei, um puro carácter sancionatório"[49].
Como se refere no Ac. RG de 18/12/2017, Processo nº 397.12.5TBAMR.G1, em que a ora relatora foi adjunta, “nestas hipóteses, e conforme é posição pacífica da doutrina e da jurisprudência, o que está em causa é a fixação de um benefício material/pecuniário (único possível) que se traduza, pelas utilidades, prazeres ou distrações que proporciona – porventura, de ordem espiritual –, numa compensação ou atenuação pelos bens imateriais antes referidos da pessoa humana (o lesado), atingidos pelo evento.
Nesta conformidade, a compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, não pode – por definição – ser feita através da teoria ou fórmula da diferença prevista no art. 566º, n.º 2, do C. Civil.
Ao invés, o montante da indemnização, nos termos do disposto no arts. 496º, n.º 4 e 494º do Cód. Civil, deverá ser fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante, à situação económica do lesante e do lesado, às demais circunstâncias do caso, nomeadamente, por assim o imporem os princípios da proporcionalidade e igualdade, aos critérios e valores usualmente acolhidos na jurisprudência em casos similares.[50]
Com efeito, como se refere no citado Ac. STJ de 18.06.2015,[51] “não podendo apurar-se o valor exacto de tais danos, atenta a sua natureza, o respectivo montante deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade (…), fazendo apelo a todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (…) e tendo em atenção a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (artigos 496º, n.º 3, 1ª parte e 494º do Código Civil).” (sublinhado nosso).
E, ainda, prossegue o referido douto aresto, “nos parâmetros gerais a ter em conta considerou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Abril de 2012 (proc. n.º 3046/09.0TBFIG.S1, acessível em www.dgsi.pt) serem ainda de destacar a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico correspondente à União Europeia e o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, e, bem assim, que a jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização em causa deve constituir um lenitivo para os danos suportados e não ser orientada por critérios hoje considerados miserabilistas, por forma a, respondendo actualizadamente ao comando do artigo 496º, traduzir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados e a suportar.” (sublinhado nosso).
No entanto, como se adverte no Ac. STJ de 17.12.2015[52] (e nos variadíssimos arestos ali elencados), a utilização de critérios de equidade não deve impedir que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias de cada caso concreto.
Por outro lado, conforme se colhe da mesma jurisprudência do Supremo, o recurso à equidade não pode, nem deve conduzir à arbitrariedade, não devendo os tribunais “…contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito civil que a afirmação destes vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.”[53]
Por último, é ainda de referir, nesta sede, que à obrigação indemnizatória, a título de danos não patrimoniais, se deve reconhecer, não só um papel de reparação ou compensação, mas também um papel de censura ou punitivo do agente do facto lesivo.
Com efeito, como se refere no Ac. STJ de 30.10.96, BMJ 460, pág. 444 (citado no Ac. STJ de 26.01.2016, relator Fonseca Ramos, já citado), “no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização tem uma natureza acentuadamente mista, pois visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada, não lhe sendo, porém, estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.
Está-se, pois, aqui perante uma indemnização com natureza não estritamente reparadora, mas também sancionatória, devendo considerar-se o grau de culpa do agente uma vez que o sofrimento ou desgosto do lesado é o reflexo dele.
Como se refere no Acórdão do STJ de 19/5/2009, Processo 298/06.0TBSJM.S1“realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais pronunciam-se, no seu ensino, os tratadistas.
Menezes Cordeiro “Direito das Obrigações”, 2° vol, p. 288 ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 387, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante” – “Direito das Obrigações”, vol. I, 299.
Pinto Monteiro, de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante” – cfr. “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n°l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21”.
O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado, sempre, “segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização”, “aos padrões da indemnização geralmente adotados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda, etc.”.
Também no Acórdão do STJ de 13/7/2017, Processo 3214/11.4TBVIS.C1.S1, se refere Como ensina o Sr. Prof. Antunes Varela, e como vem sendo seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais, o juízo de equidade requer do julgador que tome «em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida», sem esquecer que sobredita “indemnização” tem natureza mista, já que visa não só compensar o dano sofrido, mas também reprovar, de algum modo, a conduta lesiva[54].
Com efeito, ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a sua reparação económica. Visa sim, por um lado, compensar o lesado pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão; e, por outro lado, servir para sancionar a conduta do agente. Todavia, no critério a adotar, não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC.
Para tal efeito, são relevantes, além do mais: a natureza, multiplicidade e diversidade das lesões sofridas[55].
Analisando a prática dos tribunais, constatamos que os quantitativos indemnizatórios, que antes eram quase simbólicos, têm vindo progressivamente a subir nos últimos anos.
Os danos não patrimoniais causados não podem deixar de ser merecedores da tutela do direito, nenhuma culpa tendo o Autor.
Visto o enquadramento jurídico da questão e subsumindo o direito aos factos verifica-se que a Ré não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impende e bem decidiu o Tribunal a quo que, certo sendo “que não é a simples inexecução contratual (seja ela configurável como mora, incumprimento definitivo ou cumprimento defeituoso) que justifica a ressarcibilidade de danos não patrimoniais sofridos pelo credor” só se justificando “quando a violação do dever de prestar implicar a lesão de bens ou valores não patrimoniais, sendo decisiva a gravidade deste dano” - (art. 496º, nº 1 do Código Civil) e que “Tem de valorizar-se, neste particular aspeto, a circunstância do Autor ter adquirido um veículo automóvel em vista de se deslocar de e para o seu local de trabalho e poder deslocar-se nos fins-de-semana, e resultou provado que o Autor durante o hiato compreendido entre a aquisição da viatura e o envio da missiva datada de 10.9.2020, aquando das suas deslocações diárias, quer para o local do trabalho, quer as deslocações destinadas a garantir todas as suas restantes necessidades, aquele sentia-se apreensivo, ansioso, inseguro e inibido com a falibilidade da viatura, sempre com receio do agravamento da fuga de óleo, e, consequentemente, as despesas que teria de enfrentar – se agravasse ainda mais pela sua simples utilização. Justifica-se assim a atribuição ao Autor de indemnização por dano não patrimonial, cujo montante se decide fixar em €200,00, considerando o tempo que mediou a compra e a denúncia do contrato, ser a Ré uma pessoa coletiva, e considerando o valor do negócio em causa, sendo certo que o montante fixado se mostra conforme às circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil e se nos afigura equitativo”(negrito nosso).
Também assim entendemos, afigurando-se-nos adequada e equilibrada, a indemnização, de 200€, fixada pelo tribunal a quo, para a reparação dos referidos danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
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Diga-se, ainda, quanto aos valores fixados, que o juízo de equidade da 1ª instância “deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”[56], pelo que sempre o montante indemnizatório, por inteiramente conformes ao referido, deve ser mantido.
Assim, fixada a indemnização por danos não patrimoniais com base na equidade, o Tribunal superior só deve intervir quando os montantes fixados se revelem, de modo patente, em colisão com os critérios jurisprudenciais que vêm a ser adotados, para assegurar a igualdade, o que manifestamente, não sucede no caso. Não ocorrendo oposição, a ponderação casuística das circunstâncias do caso deve ser mantida, já que o julgador se situou na margem de discricionariedade que lhe é consentida.
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2.4 - Litigância de má fé da Ré/Apelante

Considerando a postura adotada pela Ré, no âmbito do presente litígio, censurável, pois que veio negar factos (alegou que o Autor apenas comunicou à Ré, em agosto de 2020, todas as supostas desconformidades, sendo que até essa data nunca contactou com a Ré. Porém, resulta que o legal representante da Ré, CC…, admitiu que no mês de maio ou de junho de 2020 o autor lhe foi dizendo que o carro consumia 1 litro de óleo aos 700 ou 800 kms, admitiu ter recebido o e-mail que lhe foi apresentado em julgamento bem como as mensagens e chamadas que constam dos documentos juntos aos autos, conforme as suas declarações, aos quais nunca respondeu. E resultou provado que o Autor foi comunicando presencialmente as desconformidades – vide facto provado no ponto 19), que resultaram provados, com o objetivo de se eximir ao pagamento das importâncias que o autor veio peticionar, sancionou o Tribunal a quo a Ré como litigante de má fé, condenando-a em multa e em indemnização à parte contrária, fixada de acordo com o peticionado, atento o critério previsto no art. 543º, nº1, alínea a), do C.P.C..
Quanto à litigância de má fé cumpre referir que consagrando o legislador o direito de acesso aos Tribunais, a lei não reserva tal acesso aos detentores da razão, estabelecendo, contudo, entraves à introdução em juízo de pretensões e cominando certas atuações como litigância de má fé.
E, na verdade, “não deve confundir-se a litigância de má fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 2-3-10, 6145/09)[57].
Assim, mesmo resultando não ter a parte razão, não se segue, como consequência necessária, a condenação como litigante de má fé.
A condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando alcançar o respeito pelos Tribunais, a moralização da atividade judiciária e o prestígio da justiça.
Analisando o pedido de condenação por litigância de má-fé formulado pelo Autor contra a Ré, entendeu o Tribunal a quo que a conduta desta se enquadra no n.º 2, do artigo 542.º, pois que ocultou a verdade dos factos, fazendo-o com vista a entorpecer a justiça.
Segundo o dever da boa-fé processual estabelecido no artigo 8.º do Código de Processo Civil, as partes têm o dever de, conscientemente, não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias.
A violação deste dever dá lugar a sanção pecuniária: indemnização e multa”.
Analisemos da responsabilidade processual da Ré, por litigância de má fé, atentando na sua conduta processual, para se aquilatar da sua atuação de má fé.
Impendendo sob as partes o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes à boa fé - cfr. art. 8º, do Código de Processo Civil -, caso não o observem podem incorrer em responsabilidade processual.
O instituto da má fé processual, regulado nos artigos 542º a 545º, de tal diploma legal, visa sancionar a parte que preencha, com a sua atuação processual, a respetiva previsão.
Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, atualmente as condutas passíveis de integrar má fé não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Atingiu-se uma maior responsabilização das partes. Como resulta do preâmbulo do referido diploma, o atual Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que lhe está ínsita, consagrou "expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos". Na reforma processual introduzida por este DL houve uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual - quer a substancial quer a instrumental -, tanto na vertente subjetiva como na objetiva. A condenação por litigância de má fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista.
Alberto dos Reis distinguia, em matéria de conduta processual das partes, quatro tipos de lide: lide cautelosa (aquela em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição)), lide imprudente (aquela em que a parte comete imprudência leve ou levíssima), lide temerária (aquela em que a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e lide dolosa (aquela em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada)[58].
Ao sancionar, atualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro[59].
Na verdade, de acordo com o nº2, do art. 542º, do CPC, “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
“Segundo o nº2, constituem atuações ilícitas da parte: a dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a)); a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); a omissão do dever de cooperação (alínea c)); em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínea d))”[60].
“Visa entorpecer a ação da justiça a parte que atua usando meios dilatórios”[61] – cfr exemplos citados in ob e pag. cit..
“Visa apenas protelar o trânsito em julgado da decisão a parte que recorre ou reclama sem fundamento sério, conseguindo assim atrasar o momento do trânsito em julgado e da exequibilidade da decisão”[62].
Destarte, a lei tipifica as situações objetivas de má fé, exigindo-se, simultaneamente, um elemento subjetivo (dolo ou negligência grave) - cfr. referido nº2 - já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico.
O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. Litiga de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado e prudência, bem assim com o dever de indagar a realidade em que funda a pretensão[63] ou em que sustenta a defesa.
Distingue-se entre má fé material ou substancial e má fé processual ou instrumental. A primeira tem a ver com o mérito da causa, a segunda com a conduta processual[64]. Na primeira “a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé”[65].
A má fé a se reportam as supra referidas als. a) e b) é a má fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material[66]; as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental[67].
A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público, com um sistema sancionatório próprio, especialmente regulado, não se tratando de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem através de atuações processuais. A responsabilidade por litigância de má fé está sempre associada à verificação de um ilícito puramente processual e constitui o “tipo central da responsabilidade processual”[68].
Atualmente, “considera-se sancionável a título de má-fé, a lide dolosa, tal como preconizava A. Reis, in Código de Processo Civil anotado, II volume, pg.280, e, ainda, a lide temerária baseada em situações de erro grosseiro ou culpa grave.
Como refere Menezes Cordeiro “alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo.” (in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina).
No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida – dolo directo – ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais um uso manifestamente reprovável (v. Menezes Cordeiro, obra citada, pg. 380).
Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das desaconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (Maia Gonçalves, C.Penal, anotado, pg. 48).
O dever de litigar de boa-fé, com respeito pela verdade é corolário do princípio da cooperação a que se reporta o art.º 266º do Código de Processo Civil, e vem consignado no art.º 266º-A, do mesmo diploma legal.
Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 456º do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça”[69].
A questão da má fé material não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com foros de garantia constitucional, tendo de ser feita uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.
A má fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos. A sustentação de posições jurídicas, mesmo que desconformes com a correta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as propugna.
Acresce, também, que, a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se. Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada"[70].
O que importa é que exista uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e \o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.
A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456º, nº2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida”[71].
Emergente dos princípios da cooperação, da boa fé processual e da probidade e adequação formal, a figura da litigância de má fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, põe em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da justiça.
Quanto à sua aplicabilidade, é quase unânime entre a jurisprudência e a doutrina mais avisada, a exigência de um comportamento doloso e consciente no sentido de pôr em causa a boa administração da justiça, vindo aquela a ser restritiva na admissão da litigância de má fé.
Esta interpretação impõe-se por ser a mais razoável e a que melhor compreende a realidade subjacente a um processo em que as partes estão em desacordo: não é humanamente exigível que elas sejam absolutamente objetivas, pois são elas que sentem os problemas e o litígio. O inadmissível surge apenas quando a parte, sabendo embora não ter razão, recorre ao processo (o que é ainda mais grave tratando-se de factos pessoais): provado isto, haverá litigância de má-fé. Esse é o limite à compreensão e aceitação, relativamente à posição vivida pelas partes.
O ensinamento do Prof. Alberto dos Reis que, quanto a esta matéria, vem incluído no CPC Anotado, é lapidar, assim escrevendo Não obstante o dever geral de probidade, imposto às partes, a litigância de má fé pressupõe a violação da obrigação de não ocultar ao tribunal ou, melhor, de confessar os factos que a parte sabe serem verdadeiros. Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada, de tal modo que a simples proposição da ação ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que a Autora faça um pedido que conscientemente sabe não ter direito, e que o Réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir[72].
Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, demonstrando-se nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes[73].
À litigância de má fé não se basta a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se ainda que a parte tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, que soubesse da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição e que se encontrasse numa situação em que se lhe impusesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele. A aplicação do instituto da litigância de má fé, à semelhança do instituto do abuso de direito, traduz uma aplicação do princípio da boa fé no domínio processual civil, tendo de se ter em conta a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente, através da análise global dos factos provados e não provados, e não apenas de um segmento dessas factos[74].
Ora, vista a Doutrina e a Jurisprudência tendo-se em atenção a lição assim colhida, que em nosso entender plasma a interpretação mais avisada da figura jurídica do litigante de má fé, e analisando a conduta processual da Ré não podemos deixar de considerar que a mesma atuou dolo, pondo em causa os seus deveres como litigante, pelo que se justifica plenamente, como bem se decidiu, a sua condenação como litigante de má fé.
Resulta que a Ré, na contestação, onde deduziu a sua defesa, impugnou factos verdadeiros, alterando, desse modo, a verdade dos factos, praticando omissão grave do dever de cooperação. Altera a Ré a verdade dos factos por si bem conhecida. Apresentou defesa que bem sabia falsa e alterou a verdade dos factos com o objetivo de impedir a descoberta da verdade.
Não devendo a Ré apresentar defesa contra a verdade, assim agindo, está a entorpecer a ação da Justiça, com dolo direto.
Ora, resultando dos autos verificar-se a referida atuação como litigante de má fé, bem foi proferida condenação da mesma como tal.
Como se referiu, a violação dos referidos deveres dá lugar a sanção pecuniária, a multa, e, ainda, a indemnização, se pedida pela parte lesada.
Assim, tendo a Ré, como vimos, litigado de má fé, bem foi, nos termos do nº1, do art. 542º, do CPC, condenada em multa, sendo que a multa aplicada foi no montante de 2 UCs, estabelecendo o art. 27º, nº3, do RCP, a moldura legal entre 2 a 100 UC, pelo que a multa fixada, não excessiva, tendo sido fixada no mínimo legal, é de manter e bem condenou na indemnização à parte, que a pediu, sendo que o valor - 300 € - não se mostra desadequado.
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Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
*
Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 24 de janeiro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
________________
[1] Acórdãos RC de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
[2] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[3] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.
[4] Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e Apelação Processo nº 5453/06.3
[5] Vide neste sentido CPC Anot. Lebre de Freitas, edição Coimbra Editora, Vol. I, p. 311 em anotação ao artigo 155º; Abrantes Geraldes in Recursos no Novo CPC, ed. 2014, p. 136.
[6] Na jurisprudência, vários têm sido os arestos que sobre esta questão têm sido proferidos, dos quais faremos uma breve resenha, elucidando o que se nos afigura ser o entendimento maioritário quanto à posição por nós assumida:
- Assim no TRP, vide Ac. de 30/04/2015, Relator José Amaral; Ac. 17/12/2014, Relatora Judite Pires; Ac. de 13/02/2014, Relator Aristides Rodrigues de Almeida, no qual e fazendo uma análise comparativa entre o novo e o anterior regime, se pode ler no respetivo sumário:
“I - Na vigência do anterior CPC a irregularidade da gravação dos meios de prova prestados na audiência constituía uma nulidade processual secundária, que devia ser arguida no prazo de 10 dias a contar do dia em que a parte interveio no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, desde que, neste último caso, devesse presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou podia ter tomado conhecimento dela, agindo com a necessária diligência.
II - A parte goza da faculdade de minutar as suas alegações de recurso até à data limite para a sua apresentação e, como tal, pode aperceber-se da falha da gravação apenas nesse último momento, razão pela qual podia invocar a irregularidade apenas nas alegação de recurso, exceto se se demonstrasse que teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo.
III - O art. 155.º do novo CPC consigna agora de forma expressa que o prazo de arguição do vício da deficiência da gravação é de 10 dias a contar da disponibilização da gravação, a qual, por sua vez, deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar da realização da gravação.”
- No TRL vide Ac. de 19/05/2016, Relator Jorge Leal e Ac. 30/05/2017, Relator Luís Filipe de Sousa em cujo sumário se pode ler: “I-A deficiência da gravação de inquirição de testemunha tem de ser arguida pela parte no tribunal a quo, no prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação é disponibilizada (Artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil).
II-Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso.”;
- no TRC, vide Ac. de 10/07/2014, Relator Teles Pereira;
- no TRG, vide Ac. de 12/03/2015, Relatora Helena Melo; Ac. 11/09/2014, Relator Heitor Gonçalves;
- No TRE vide Ac. de 12/10/2017, Relator Vítor Sequinho dos Santos.
Vide ainda Ac. de 05/05/2016, Relator Canela Brás (neste se fazendo também ua resenha histórica das posições antes assumidas no âmbito do anterior CPC) no qual e ainda que neste se tenha defendido ser de contar o prazo dos 10 dias apenas após a disponibilização – entendida a disponibilização como “entrega” da gravação ao interessado que invoca a nulidade da gravação - retirando à parte o ónus de requerer essa mesma entrega da gravação dentro do prazo do artigo 155º nºs 3 e 4 a contar do fim da audiência, do que discordamos, seguiu o entendimento de que a nulidade tem de ser arguida nos 10 dias subsequentes, afastando assim a possibilidade de tal nulidade ser arguida em sede de alegações de recurso da decisão final.
[7] Aí se considera “Assim se decidiu também no Ac. RL de 12/11/2013 (também disponível em www.dgsi.pt) no qual se considerou que “…as anomalias na gravação das provas se podem considerar como uma irregularidade especial a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência. A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se justamente na circunstância da Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade; no seu entendimento, sublinhe-se, que não no da parte apelante, necessário se mostrando que para formar a sua convicção, a Relação proceda à prévia audição da gravação…”.
Há, de facto, um claro interesse púbico nesta matéria (e não apenas interesses privados, das partes, na repetição dos depoimentos deficientemente gravados), ligado ao duplo grau de jurisdição, que visa a descoberta da verdade material, e que ficaria comprometida pela negligente gravação da prova, tarefa cuja realização não cabe às partes mas ao tribunal.
Ora, os interesses de ordem pública em questão exigem, em nosso entender, a possibilidade de conhecimento oficioso da nulidade em apreciação.
Por isso, cremos que foi de caso pensado que o legislador de 2013 manteve plenamente em vigor o art.º 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, o qual, lido conjugadamente com o citado artº 196º (parte final) do CPC, permite que a nulidade do ato de gravação deficiente seja de conhecimento oficioso pelo tribunal – quer na primeira, quer na segunda instância.
Assim sendo, à luz do disposto, conjugadamente, no artº 9.º do DL n.º 39/95, e nos artºs 195.º n.º 1, 196.º “in fine”, e 662.º n.º 2 al. c), todos do CPC, e vista a filosofia que subjaz a este novo Código - dando prevalência a soluções de justiça material em detrimento da mera justiça formal -, é de perfilhar o entendimento jurisprudencial no sentido de as anomalias na gravação da prova consubstanciarem uma irregularidade especial, com aplicação de um regime também especial, particularmente expedito e oficioso, justificado por um interesse de ordem pública, que visa alcançar-se com a gravação da audiência, permitindo a efetivação do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.
Nesse âmbito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante, no contexto da impugnação da decisão de facto.
Se o recurso assenta, desde logo, na impugnação da decisão de facto, com invocação de provas gravadas, e o tribunal de recurso não logra ter acesso a parte desses meios de prova, por inaudibilidade da gravação, impossibilitando uma decisão conscienciosa da impugnação e, por consequência, do recurso, deve este tribunal, oficiosamente, socorrendo-se dos dispositivos legais aludidos, anular o julgamento, na parte afetada, e a decisão recorrida, com vista ao suprimento do vício existente.
Continua a manter acuidade nesta matéria o decidido no Ac. STJ de 16/12/2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que o “…art. 9.º do DL 39/95, de 15-02, aponta no sentido de se poder considerar as anomalias na gravação das provas como uma irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência (…).
A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se, justamente, na circunstância de a Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição das provas que se encontrem imperceptíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade (…).
A inaudibilidade de um ou mais depoimentos – facto que sempre terá de ser constatado pela 2.ª instância – equivale praticamente, quando esteja em causa reapreciar as provas em sede de apelação, à inexistência da prova produzida; e se a inaudibilidade for influente no exame da causa, ela é impeditiva da real concretização do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto (que, no caso, foi precisamente o direito que os recorrentes pretenderam exercer na apelação levada à Relação) (…).
Sem ouvir os depoimentos e proceder à sua análise crítica, segundo o princípio da livre apreciação das provas fixado no art. 655º n.º 1 do CPC, a Relação não pode optar com inteira segurança por manter ou modificar o julgado em 1.ª instância…”.
No mesmo sentido se pronunciou também o citado Ac. RL de 12/11/2013, no qual se refere que “Em conformidade, cabe a este Tribunal proceder à reapreciação da prova, com a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, fazendo assim, de forma autónoma, o seu próprio juízo de valoração, que pode ser igual ou diferente do já produzido, procedendo à análise crítica das provas indicadas como fundamento da impugnação, quer testemunhal, quer documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível.
Configura-se, deste modo, que para tanto, deverá este tribunal ter acesso à prova produzida, na exata medida da sua produção, habilitando-o com todos os elementos probatórios que foram, ou podiam ter sido atendidos, por disponíveis, para a formulação da necessária convicção autónoma, sem prejuízo da maior ou menor abrangência da reapreciação a realizar…”.
Ora, na senda da jurisprudência citada, concordamos – à luz do disposto nos artºs 9.º do DL n.º 39/95, 195º nº 1, 196º parte final, e 662º, nº 2, al c), todos do actual CPC, e vista a filosofia que lhe está subjacente, dando prevalência a soluções de justiça material -, que as anomalias na gravação das provas produzidas consubstanciam uma irregularidade processual especial, a que se deve aplicar também um regime especial, que se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência.
Assim sendo, é nosso entendimento que pode a Relação ordenar, por sua iniciativa, ou seja, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção, mesmo que se mostre já precludido para as partes o direito de arguirem o vício existente, nomeadamente por extemporaneidade (como aconteceu, no caso dos autos).
Reportando-nos agora novamente ao caso dos autos, como se referiu acima, não há dúvida de que a gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas se mostram imperceptíveis (dado o ruído de fundo existente na gravação), sendo a audição daqueles depoimentos essencial para apreciação do recurso da matéria de facto, de que a recorrente lançou mão.
Ou seja, temos como seguro que, dada a relevância daquelas provas (registadas em gravação inaudível), a sua reapreciação é essencial ao apuramento da verdade material, não podendo neste momento este tribunal de recurso aceder ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.
Resta pois determinar, oficiosamente, a repetição daqueles depoimentos, de molde a suprir a impercetibilidade existente, anulando-se, em conformidade, o julgamento, bem como a sentença subsequentemente proferida” .
[8] Pretende-o nos termos seguintes:
- o facto nº 3 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença, ser alterado nos seguintes termos: “Tendo então ficado firmado entre as partes o preço anunciado pela Ré de € 2.400,00, tal reserva efetivou-se no dia 21/11/2019.”.
- o facto nº 5 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença, ser alterado nos seguintes termos: “O Autor efetuou, no dia 23/11/2019, uma transferência do valor remanescente do preço – dois mil e trezentos euros -por transferência bancária para a conta da R, acrescido de €65,00 para pagamento do registo de aquisição a favor do Autor junto da Conservatória do Registo Automóvel, que foi efetuado pela R..”
- o facto nº 9 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença, ser alterado nos seguintes termos: “A mencionada viatura foi vendida pela Ré ao Autor.”
- o facto nº 10 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença ser considerado como facto não provado, por clara falta de prova.
- o facto nº 13 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença ser considerado como facto não provado, por clara falta de prova.
- o facto nº 15 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença, ser alterado nos seguintes termos: “No dia 18/01/2020, o Autor procedeu à troca dos quatro pneus da referida viatura (ao que acresce a respetiva taxa SGPU). Cujo custo, pago pelo Autor, foi de €134,35 (cento e trinta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos).”
- o facto nº 17 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença, ser alterado nos seguintes termos: “A 20.06.2020 o Autor detetou um furo num dos pneus da referida R… M… S…, o que obrigou o Autor a chamar a assistência em viagem da sua seguradora, tendo a viatura sido transportada no reboque”
- o facto nº 19 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença ser considerado como facto não provado.
- o facto nº 24 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença ser considerado como facto não provado.
- o facto nº 28 da matéria dos factos provados indicados na douta sentença ser considerado como facto não provado.
[9] Cfr. Jorge Morais de Carvalho, Manuel de Direito de Consumo, 5ª ed., 2018, Almedina, p. 262.
[10] Ac. RG de 17/1/2019, proc. 201/15.7T8BAO.G1, in dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. do STJ de 05/05/2015 (relator João Camilo), in www.dgsi.pt.
[12] Ac. do STJ de 20/5/2014, proc. 492/07: Sumários, 2014, p. 311 citado in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição Actualizada, abril de 2018, Ediforum, pág. 1140,
[13] Ac. do STJ de 31/5/2016, proc. 721/12.5TCFUN.L1.S1, in dgsi.pt
[14] Cfr., ainda, Ac. do STJ de 17/10/2019, proc. 1066/14.1T8PDL.L1.S1, in dgsi.pt, onde se analisa:
“I. Visando responder às distorções que o regime civil tradicional encerra em casos de cumprimento defeituoso, foi criada a Lei n.º 24/96 de 31 de Julho (LDC), alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas), cuja primeira alteração decorre do Decreto-Lei n.º 84/2008 de 21 de Maio que reconhece ao consumidor um direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo, direito esse que é objecto de uma garantia contratual injuntivamente imposta, no âmbito da qual “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”, assegurando, inequivocamente, a protecção dos interesses dos consumidores nos contratos de transmissão de bens de consumo.
II. As normas contidas na Lei de Defesa dos Consumidores constituem normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil, derrogando estas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação, que é o da relação de consumo, e como lei especial, deverá prevalecer o seu regime, a menos que a disciplina da venda de coisa defeituosa do Código Civil, se revele mais favorável para o comprador/consumidor.
III. O âmbito de aplicação da garantia contratual de bens de consumo é indicado pelo art.º 1º do Decreto-Lei nº. 67/2003, de 8 de Abril, cujo n.º 1, refere a hipótese da venda de bens de consumo, tutelando os interesses dos consumidores, tal como definidos pelo art.º 1º-B alínea a), e cujo art.º 1º nº. 2, na republicação do Decreto-Lei nº. 67/2003, de 8 de Abril, em razão do Decreto-Lei nº. 84/2008, de 21 de Maio, determina a sua aplicação “com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada”, sendo esta garantia restrita aos contratos entre aqueles fornecem bens de consumo no exercício de uma actividade económica que visa a obtenção de benefícios e consumidores, pessoas que adquirem bens de consumo com fins não profissionais.(…)”.
[15] Cfr. Jorge Morais de Carvalho, obra citada, p. 274.
[16] Cfr. Ac. do STJ de 17/12/2015 (relatora Maria da Graça Trigo), in www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Jorge Morais de Carvalho, obra citada, p. 272.
[18] Diversamente do critério adotado na Diretiva n.º 1999/44/CE (art. 2º, n.ºs 1 e 2), em vez de uma presunção de conformidade o legislador nacional decidiu estabelecer uma presunção de não conformidade.
[19] Cfr. Venda de Bens de Consumo – Comentário, Revista, Aumentada e Atualizada, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, p.84.
[20] Cfr. Calvão da Silva, obra citada, p. 83.
[21] Cfr. Jorge Morais de Carvalho, obra citada, p. 309.
[22] Relativamente à Diretiva 1999/44/CE (art. 5º, n.º 3), o legislador nacional alargou o prazo da presunção de anterioridade (da falta de conformidade) de seis meses para dois anos após a entrega do bem, aumentando substancialmente o nível de proteção do consumidor.
[23] A esta presunção excecionam-se apenas os casos em que a mesma for incompatível com a natureza do bem ou com as características da falta de conformidade (parte final do n.º 2 do art. 3º do Dec. Lei n.º 67/2003).
A presunção é incompatível com a natureza do bem quando o mesmo seja de desgaste rápido ou sujeito a um prazo de validade. Nestes casos a presunção apenas poderá funcionar dentro dos respectivos prazos de validade.
Por outro lado, a presunção será incompatível com as características da falta de conformidade quando for claro que a mesma se deveu a mau uso ou uso incorrecto por parte do consumidor, de sabotagem, de acção de terceiro. – cfr., sobre o tema, Jorge Morais de Carvalho, obra citada, pp. 310/311.
[24] Cfr. Jorge Morais de Carvalho, obra citada, p. 309.
[25] Cfr. Ac. da RL de 10/02/2015 (relator Manuel Marques), in www.dgsi.pt.
[26] Ac. RP de 25/3/2019, proc. 1159/17.3T8GDM.P1, in dgsi.pt
[27] Jorge Morais Carvalho, em anotação ao artigo 916º, Ana Prata Coord., Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 1133
[28] Sociedade comercial por quotas cujo objeto social principal é a compra e venda de automóveis, motociclos e derivados, bem como a intermediação de créditos.
[29] Consumo de um litro de óleo do motor a cada 700 quilómetros, sensivelmente.
[30] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, idem, pág 101
[31] Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, 2ª Edição, Almedina, pág. 488
[32] Ibidem, pág 245
[33] Ibidem, pág, 249
[34] Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo, II, p. 1474.
[35] Ac. do STJ, de 22-06-2005, Proc. 05B1993 (Relator: Salvador da Costa), acessível in dgsi.pt
[36] Cfr, ainda, nestes casos quanto a contratos de empreitada:
- Ac. da RP de 5/2/2018, proc. 5720/09.1TBVNG.P3 (Relator: Jorge Seabra), acessível inm dgsi.pt, onde se decidiu “ocorrendo uma situação de incumprimento definitivo do contrato de empreitada e optando o dono da obra pela resolução do contrato (...) podendo optar pela indemnização nos termos gerais [ainda que esta esteja, por princípio, limitada ao ressarcimento do interesse contratual negativo, recolocando-o na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado]”.
- Ac. RE de 3/3/2010, proc. 120/1995.E1 (Relator: Almeida Simões),acessível in dgsi.pt “O contrato de empreitada é um contrato sinalagmático e oneroso, mas também de execução instantânea, ainda que prolongada. Nos contratos de execução instantânea, o interessado que resolve o contrato tem apenas direito a ser indemnizado pelo interesse negativo ou de confiança, uma vez que o dá sem efeito e na medida em que a resolução do contrato bilateral é equiparada, quanto aos seus efeitos, à declaração de nulidade e à anulação do negócio jurídico, retroagindo à data do contrato”
[37] Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 6ª ed., l°, pág .571.
[38] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 14ª edição, Almedina, págs. 328.
[39] Antunes Varela, Idem, p. 600
[40] Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, 1º vol., 2017, Almedina, pág 648
[41] Luís Menezes Leitão, Ibidem, pág. 330.
[42] Idem, pág 331
[43] Acórdão da Relação do Porto, Processo 108/08.4TBMCN.P1 de 8/7/2010, in www.dgsi.pt
[44] Ana Prata (Coord.), idem, pág 644
[45] Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2ª ed., Almedina. pág 73/74.
[46] Em sentido contrário, Ana Prata (Coord.), idem, pág 647, Diversamente do que por vezes se lê, os danos não patrimoniais são suscetíveis de avaliação pecuniária, pois são objeto de indemnização e esta é em dinheiro na esmagadora maioria dos casos. Os interesses lesados, esses sim, é que são não patrimoniais.
[47] Vaz Serra, RLJ, Ano 113º, p. 104.
[48] P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. 1, Coimbra, p. 501
[49] Antunes Varela, ibidem p. 607 e segs.
[50] Vide, neste sentido, Ac. STJ de 04.06.2015, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, já citado; e Ac. STJ de 26.01.2016, proc. n.º 2185/04.8TBOER.L1.S1, relator Fonseca Ramos; Ac. STJ de 28.01.2016, proc. n.º 7793/09.8T2SNT.L1.S1, relatora Maria da Graça Trigo; ou, ainda, Ac. STJ de 18.06.2015, proc. n.º 2567/09.9TBABF.E1.S1, relatora Fernanda Isabel Pereira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[51] Proc. n.º 2567/09.9TBABF.E1.S1, relatora Fernanda Isabel Pereira, acessível em www.dgsi.pt.
[52] Proc. n.º 3558/04.1TBSTB.E1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.
[53] Vide, ainda, neste sentido, Ac. STJ de 07.04.2016, proc. n.º 237/13.2TCGMR.G1.S1, relatora Maria da Graça Trigo; e Ac. STJ de 18.06.2015, já citado, e, ainda, Ac. STJ de 31.01.2012, proc.n.º 875/05.7TBILLH.C1.S1, relator Nuno Cameira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[54] [4] Vide Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, 10.ª Edição, Almedina, pag. 605, nota 4.
[55] Acórdão do STJ de 13/7/2017, Processo 3214/11.4TBVIS.C1.S1, in dgsi.net
[56] Acórdão do STJ de 29/6/2017, processo 976/12.5TBBCL.G1.S1, in dgsi.net, cujo relator foi Lopes do Rego
Cfr, ainda, neste sentido, Ac. do STJ de 26/5/2015, Processo 2607/11;Sumários, Maio/2015, pag 51, citado por Abílio Neto, Código Civil Anotado, 19ª Edição, 2016, Ediforum, pag 545.
[57] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol.I, Almedina, pág. 593
[58] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª Ed. 1981, p. 262 e seguintes
[59] Ac. do STJ, de 20/3/2014: Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1,in dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703, onde se decidiu que “a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou s eja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte, como litigante de má fé, demonstrando-se que o litigante tinha consciência “de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização”.
[60] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º Volume, 3ª Edição, Almedina, pág 457
[61] Ibidem, pág 457
[62] Ibidem, pág 457
[63] Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, in dgsi.net, onde se escreve “O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo“, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil.
O âmbito da má fé abrange hoje não apenas o dolo, como a “negligência grave“, introduzida com a alteração ao CPC pelo DL nº 329-A/95, de 12 /12, concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível a prova da consciência da ilicitude da actuação do agente.
Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. (…) Importa ter presente que actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Além disso, o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão (dever de pré-indagação)”.
[64] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2008, p. 220/221
[65] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 457
[66] Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., p. 264).
[67] Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, in dgsi.net
[68] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 461
[69] Ac. da Relação de Guimarães de 10/11/2011, Processo 387645/09.9YIPRT.G1, in dgsi.net
[70] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 1982, pag. 263.
[71] Ac. do STJ, de 3/2/2011, Ver. 351/2000: Sumários, 2011, p. 77, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703
[72] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 2º, Coimbra Editora, pag. 263
[73] Ac. da Relação de Guimarães de 15/10/2015, processo 3030/11.3TJVNF.G1, in dgsi.net
[74] Ac. do STJ de 10/12/2015, Processo551/06: Sumários, 2015, pág 692, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 706