Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18711/19.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO ABUSIVA
BOA-FÉ
Nº do Documento: RP2023102318711/19.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito de contrato de seguro pelo qual a seguradora se obrigou “ao pagamento de indemnizações legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e materiais causadas a terceiros, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente da exploração normal das instalações seguras: a) por atos, omissões ou negligência do segurado ou dos seus empregados, quando no exercício das funções próprias da sua atividade; (…)”, é nula, por violadora da boa-fé, a cláusula de exclusão pela qual ficam “(…) excluídos da garantia outorgada por esta cobertura, os danos: a) causados por violação e incumprimento de leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo segurado”
II - Tal cláusula esvazia praticamente de utilidade e propósito a contratação do seguro com o referido âmbito de cobertura sendo, portanto, cláusula abusiva porque contrária à boa-fé.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 18711/19.5T8PRT. P1


Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Jorge Martins Ribeiro
Segunda adjunta: Anabela Maria Mendes Morais




Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1. AA, então menor, representada pelos seus pais, propôs a presente ação a seguir a forma de processo comum contra A... Lda e B... - Companhia de Seguros, S.A., peticionando a sua condenação solidária no pagamento de 97.808,98€ para ressarcimento dos danos que alega ter sofrido como consequência de sinistro ocorrido em estabelecimento comercial da primeira, bem como em valor a liquidar posteriormente para indemnização de danos futuros.
Para tanto alega, em suma, que tendo pedido um copo de água em estabelecimento comercial (gelataria) propriedade da primeira Ré lhe foi servido um copo com um líquido transparente que levou à boca e logo expeliu por sentir que o mesmo queimava a sua cavidade bocal. Veio a apurar-se que o líquido que lhe foi servido era uma solução alcalina cáustica destinada a ser usado como detergente em máquinas de lavar loiça pelo que a menor sofreu lesões que demandaram exames e tratamento hospitalar e de que decorreram sequelas que ainda hoje lhe determinam limitações. Descreve os seus padecimentos físicos e morais decorrentes das referidas lesões, seus tratamentos e as sequelas de que ficou portadora com como as despesas que suportou e suporta pela mesma causa. Alega que há uma probabilidade séria de agravamento dessas sequelas. Finalmente, articula a celebração entre as Rés de contrato de seguro de responsabilidade civil pelo qual a segunda assumiu a responsabilidade pela reparação de danos como o que descreve.
2. Citadas as Rés as mesmas contestaram tendo a B... - Companhia de Seguros, S.A. alegado que aquando da celebração do contrato de seguro foram transmitidas e explicadas à co-Ré segurada as cláusulas contratuais, nomeadamente as que definiam o risco coberto e de que resultava a obrigação de cumprimento pela mesma de diversos diplomas legais tendo o acidente dos autos decorrido da violação de algumas dessas regras. Em concreto alega que foi servido à menor um líquido detergente incorretamente armazenado numa garrafa de água mineral de marca ...” que ficou acessível e visível no estabelecimento sem qualquer indício ou sinal de que continha detergente.
Conclui que tal circunstancialismo consubstancia culpa grave na atuação dos funcionários da Segurada o que faz operar cláusula de exclusão de responsabilidade constante da alínea a) do ponto 3.1 das condições especiais do contrato de seguro.
Impugnou ainda, em grande medida, os factos alegados como fundamento do pedido.
3. A Ré A... Lda, por sua vez, admitiu o essencial dos factos alegados pela Autora - nomeadamente os respeitantes à causa do sinistro que entendeu ter decorrido de ato negligente de três trabalhadores seus -, e defendeu a validade e aplicabilidade do contrato de seguro impugnando os fundamentos com base nos quais a Ré seguradora declinou a sua responsabilidade quando lhe foi comunicado o sinistro. Nomeadamente arguiu que caso se entendesse que pode operar a causa de exclusão de responsabilidade invocada pela B... a cobertura do contrato de seguro ficaria “vazia de aplicabilidade”.
4. Foi facultado à Autora prazo para contraditar as exceções invocadas na contestação, o que a mesma fez, em articulado de 24-12-2019, sustentando que a existência do contrato de seguro não exclui a responsabilidade da segunda Ré pela reparação dos danos que sofreu e que os factos ocorridos, em que se traduziu o sinistro, não se subsumem a qualquer cláusula de exclusão prevista no contrato de seguro.
5. Foi dispensada audiência prévia e proferido despacho saneador que fixou o valor da ação, afirmou a validade e regularidade da instância, determinou o objeto do litígio e enumerou os temas de prova bem como admitiu os requerimentos instrutórios.
6. Realizada perícia médico legal que fora pedida e admitida foi o relatório pericial alvo de pedidos de esclarecimento por banda da Autora bem como pediu a mesma a comparência dos peritos em audiência de julgamento. Foram solicitados os pretendidos esclarecimentos, que foram prestados, e foi deferida a presença dos peritos em audiência de julgamento.
7. A Autora apresentou, em 02-05-2022, articulado superveniente em que descreveu novas lesões e limitações decorrentes do sinistro, que foi liminarmente admitido e contraditado por ambas as Rés com base em desconhecimento dos factos que ali foram alegados. Tal articulado superveniente não importou aditamento dos temas de prova.
8. Designou-se e realizou-se audiência de julgamento, ao longo de quatro sessões. Na última delas a primeira Ré apresentou requerimento (constante da ata de 12-04-2023) em que arguiu a natureza de cláusula contratual geral da cláusula de exclusão invocada pela co-Ré na contestação e a sua nulidade, sustentando que não estava precludido o seu direito de invocar tais questões de direito que entendeu serem de conhecimento oficioso pelo Tribunal. A Ré B... respondeu pugnando pela inadmissibilidade dessa via de defesa que devia ter sido aquando da contestação e defendendo não ser aplicável o regime legal regulado no DL 446/85. A Autora também se pronunciou não se opondo a que a questão de direito levantada pela primeira Ré fosse conhecida na sentença.
9. Em 08-05-2023 foi proferida sentença em que se decidiu:
A) Julgar nula a cláusula de exclusão da cobertura de seguro contratado entre as duas Rés e acima transcrita sob o ponto 48 supra;
B) Julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência condenar solidariamente as Ré «A..., Ldª» e a Ré «B..., Companhia de Seguros, SA», esta última até ao limite do capital seguro, a pagarem à autora:
a) a quantia de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais;
b) a quantia de €299,70 (duzentos e noventa e nove euros e setenta cêntimos), a título de danos patrimoniais;
c) A quantia que se vier a liquidar em incidente ulterior relativamente aos futuros encargos que venha a suportar com o acompanhamento regular em consulta de gastrenterologia e eventuais tratamentos médicos dessa especialidade médica que venham a ser necessários por causa do acidente dos autos, assim como despesas que tenha se suportar com o acompanhamento psicológico que se venha a revelar necessário em consequência do mesmo evento,
d) Juros de mora, sobre as quantias referidas, desde a data desta decisão relativamente às quantias referida em a) e desde a data da citação relativamente à quantia referida em b), à taxa de 4%, desde a presente data, até integral pagamento, aplicando-se qualquer alteração que venha a ser introduzida a esta taxa de juro até àquela data.
C) absolver as Rés do restante pedido formulado.”

II - O recurso.
É desta decisão que recorre a Ré B..., companhia de Seguros SA, formulando as seguintes conclusões:
1) “o contrato de seguro, constituindo paradigma de "contrato de adesão", assenta num figurino nuclearmente previsto no artigo 1º, sob remissão aos artigos 3º e 4º e com a delimitação ex lege enunciada taxativamente nos artigos 12º ao 15º, todos do citado diploma;
2) mas, na sua matriz e essência axiológica-normativa, esse instituto do contrato de seguro caracteriza-se pela assunção, pelo aceitante/segurador, dum preciso, concreto e detalhado risco que, ainda em "fase pré-contratual", lhe foi identificado pelo detentor/transferente do mesmo;
3) quando, na casuística do caso concreto, se evidencie grosseiro desequilíbrio entre o risco identificado e transferido, porque previamente aceite, e a ocorrência de danos causados a um qualquer beneficiário das garantias da apólice que se mostrem causalmente diretos e resultantes de culpa grave ou grosseira na produção de tais consequências danosas, esse patente desequilíbrio pode justificar a cláusula de exclusão da obrigação de reparar;
4) no caso sub judice, tendo ficado demonstrado, entre a factualidade relevante levada à lide pelos litigantes, que "a primeira Ré (NB: a Recorrida "A..., Lda.") é uma sociedade comercia/ que se dedica à atividade de exploração de cafés, bares, quiosques, restaurantes e pastelarias e explora um quiosque de venda de produtos alimentares" , que "a segunda Ré (NB: a Recorrente) vinculou-se a assumir a responsabilidade civil por danos materiais e corporais causados a terceiros e decorrentes das atividades titulado pela apólice n. ...68 , que "' no dia (. . .) pelas (. . .) no (. . .) a autora AA, acompanhada de (. . .) dirigiu-se ao quiosque explorado pela primeira Ré onde pediu que lhe servissem um "copo de água" (...) acedendo a ta/ pedido, o funcionário da primeira ré que ali se encontrava serviu-lhe (.. .) um líquido incolor num copo de plástico transparente, que verteu de uma garrafa de água, de plástico, com um rótulo da marca ...", a qua/ se encontrava no balcão do estabelecimento e ainda "que a garrafa de plástico de onde verteu o líquido que entregou para a autora beber continha uma solução alcalina cáustica utlizado como detergente para a máquina de lavara loiça do estabelecimento”, tudo, concatenadamente e nessa concreta e apurada dinâmica circunstancial, enuncia-se concreto quadro factual de grosseiríssima culpa que ultrapassa, muito para além da razoabilidade e do justo equilíbrio dos interesses, aquele que seja o corrente, comum e preciso risco de atividade que constitui o objeto contratual da apólice de seguro;
5) por isso e com isso, aceitar-se-ia de per si et in lex contratae, que se mostrasse invocável e exercitável a cláusula de exclusão das garantias contratuais da apólice de seguro que prevê que "à cobertura "Responsabilidade Civil/ Exploração - Atividade Alimentar", ficam excluídos da garantia outorgada por esta cobertura os danos: a) causados por violação ou incumprimento de leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo Segurado" (cláusula 3, 3,1 1, al. a) das mencionadas condições especiais)”;
6) Até porque o "núcleo duro" do juízo intelectual perfilhado pelo tribunal "a quo”, quando profere que, apesar de " concordamos que as atuações que estiveram na origem de tais danos contrariam um conjunto de regras de higiene e segurança impostas por lei para o ramo de atividade desenvolvido pela primeira Ré designadamente as que dizem respeito ao manuseamento e armazenamento de produtos de limpeza e desinfetantes, as quais formalmente caíram sobre a alçada da cláusula de exclusão supra transcrita”, ainda assim "a verdade, porém, é que dificilmente os atos ou omissões causadores de danos no decurso e por causa de um estabelecimento comercia/ deste tipo não serão também atuações ou omissões violadoras de algumas regras de higiene, salubridade ou segurança que integram o vasto conjunto normativo que regula a atividade deste tipo de estabelecimentos comerciais, designadamente, as elencadas no já citado artigo 122º do DL 10/2015, enuncia ser "fundamento" meramente opinativo, especulativo porque subjetivo e que traduz tão só a opinião do Mmo Juíz "a quo"
7) donde, arredio da prova produzida e inócua no dever de fundamentação tal qual é exigido pelos nos 3 e 4 do artigo 607º do C.P.C. que sai, por isso, inadmissivelmente preterido;
8) acresce que, para além de configurada e ante elucidada demostração de absoluta precaridade no obrigatório dever de fundamentação da sentença emanada pelo tribunal "a quo” entende-se aplicável ao caso sub judice o princípio da "lex specialis derrogat lex generalis" na medida em que, configurando-se caso de contrato de seguro, a disciplina normativa-tipo é a configurada na chamada "lei do contrato de seguro" aprovada pelo Dec.-lei no 72/2008 e não pelo invocado regime das "cláusulas contratuais gerais' 'maxime" por força das disposições conjugadas do artigo 3º, alínea a) do Dec.-lei no 446/85 e remissão para o alcance do artigo 11º daquele Dec.-lei no 72/2008;
9) donde, impunha-se aceitar como permitida, porque, ainda que redundantemente mas na linha da tese da Recorrente, não proibida cláusula de exclusão de responsabilidade quando como no caso sub judice - se demonstraram ser danos resultantes e diretamente causais de grosseiro incumprimento a regras "regras de higiene e segurança impostas por lei para o ramo de atividade desenvolvido pela primeira ré” tais como tendo comprovadamente em resultado de "manuseamento e armazenamento de produtos de limpeza e desinfetantes”;
10) daí que, tendo o tribunal "a quo" rejeitado a validade e, com isso, a aplicabilidade dessa cláusula de exclusão, antes dando-a como "contrária à boa-fé, absolutamente proibida, nos termos do disposto no art.º 18º al. b) do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais e como tal nula”, exorbitou o obrigatório exercício de "aplicação das normas jurídicas correspondentes" exigido, conjugadamente, pelos artigos 152º, número 1, 154º e 607º, no 3, todos do C.P.C.;
11) impondo-se, consequentemente, a revogação desse aresto emanado pelo tribunal "a quo com consequente, porque obrigatória, absolvição da instância da Apelante, com condenação exclusiva da Co-Ré causadora da culpa por comprovado incumprimento da obrigação e respeito a regras de higiene e segurança impostas por lei para o ramo de atividade que é o seu.”

III – Questões a resolver
Em face das conclusões da Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1. Aferir se a cláusula 3.1 a) de exclusão de cobertura do contrato de seguro objeto dos autos é válida e pode ser oposta pela Recorrente à sua segurada e à sinistrada.
2. Apurar, caso se conclua pela sua nulidade, se o sinistro dos autos deve ser considerado como coberto pelo demais clausulado do contrato de seguro.

IV – Fundamentação
Em ordem a decidir a questão em recurso são os seguintes os factos relevantes a considerar:
Provados:
1. A primeira Ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de exploração de cafés, bares, quiosques, restaurantes e pastelarias e explora um quiosque de venda de produtos alimentares – designado ... - no Centro Comercial ... – ..., sito na Av. ... ...;
2. A Autora AA nasceu no dia 9 de janeiro de 2010;
3. No dia 17/09/2018, pelas 18 horas, no referido centro comercial ..., a autora AA, acompanhada de uma funcionária de seu pai, que à data explorava um estabelecimento comercial naquela superfície comercial, dirigiu-se ao quiosque explorado pela primeira Ré onde pediu que lhe servissem um “copo de água”;
4. Acedendo a tal pedido, o funcionário da primeira ré que ali se encontrava serviu-lhe, graciosamente, um líquido incolor num copo de plástico transparente, que verteu de uma garrafa de água, de plástico, com um rótulo da marca ...”, a qual se encontrava no balcão do estabelecimento;
5. A autora ingeriu o líquido, levando o copo à boca, mas logo que tal líquido entrou em contacto com a sua cavidade oral, sentiu que o mesmo queimava, razão pela que o expeliu imediatamente;
6. Não obstante, a autora ficou com a língua em sangue;
7. O funcionário que havia servido tal líquido à autora, estranhado a reação desta, entretanto, molhou os lábios com o mesmo líquido só então se apercebendo que a garrafa de plástico de onde verteu o líquido que entregou para a autora beber continha uma solução alcalina cáustica utilizado como detergente para a máquina de lavar a loiça do estabelecimento;
8. Em virtude do sucedido, a autora foi de imediato levada para o serviço de urgência pediátrica do Hospital de S. João, no Porto;
9. Logo após o líquido ter entrado em contacto com a cavidade oral da menor, esta apresentou as seguintes lesões: pequenas exulcerações com exsudado espumoso sanguinolento ao nível dos lábios e mucosa oral, tendo provocado queimadura de grau 2, apresentando os lábios um aspeto semelhante a lábios pintados;
10. A autora realizou nas urgências pediátricas do Hospital de S. João uma pequena endoscopia às cordas vocais e teve de ficar internada, porque só era possível a realização da endoscopia em estômago, volvidas algumas horas sobre o evento dado que a menor tinha comido;
11. Teve assim de ficar em pausa alimentar, sob fluidoterapia endovenosa com soro glicosado;
12. Ainda assim teve vómito alimentar com laivos de sangue vermelho vivo;
13. Ao final da tarde do mesmo dia, realizou a endoscopia, tendo para o efeito sido sedada, pela qual lhe foi diagnosticada uma esofagite grau I, com fibrina em todo o esófago;
14. Passou a noite internada no hospital, não conseguindo dormir em condições e perguntando constantemente à sua mãe se ia morrer;
15. Não conseguiu engolir a saliva durante toda a noite, o que a deixou em grande sofrimento;
16. Tal facto deixou a autora profundamente ansiosa e abalada - debaixo de forte stress - a tal ponto que ainda hoje, quando fica nervosa, tem dificuldades em engolir;
17. Não obstante a alta hospitalar, que recebeu em 18/09/2018, por volta das 12 horas, foi medicada com antibióticos (amoxilina/ácido clavulânico), corticoide (prednisolona) e Omeprazol;
18. A autora foi ainda ulteriormente assistida em consulta externa pediátrica (na vertente de gastroenterologia) e tem feito exames e tratamentos;
19. Em consequência da situação descrita, a autora teve acompanhamento psicológico pelo menos até abril de 2019;
20. A cicatrização das feridas da autora provocou o estreitamento do esófago, o que lhe causava dores e dificuldade em alimentar-se;
21. Em consequência, teve de fazer dilatações endoscópicas do esófago até que a cicatrização de tal órgão atingisse uma “medida/calibre” que permitisse a passagem, em segurança, dos alimentos; 22. Com esse objetivo, foi submetida a catorze endoscopias;
23. Quando terminava as endoscopias, a autora apresentava muita dificuldade em beber, facto que lhe causa muito constrangimento;
24. Desde a data do acidente até ao mês de julho de 2019, teve de tomar protetor de estômago e passou a tomar lansoprazol 30 mgs;
25. A autora continua a ter de observar o máximo cuidado com a alimentação e com a ingestão de líquidos;
26. A autora continua a ter grande dificuldade em alimentar-se, o que se fez sentir com particular acutilância nas três semanas subsequentes ao sinistro, já que expulsava os alimentos após a ingestão, acometida de ataques de pânico;
27. E ficou psicologicamente muito afetada;
28. Antes do sucedido, a autora não apresentava um historial de patologias relevantes, nem alergias medicamentosas, nem possuía antecedentes clínicos e não tomava qualquer medicação:
29. Após o evento e durante um período de tempo não concretamente determinado, foi medicada diariamente com Omeoprazol 30 mg 1 comprimido por dia e paracetamol em sos (1g);
30. Em virtude do sinistro apresenta, como fenómeno doloroso, odinofagia com a ingestão de determinados alimentos (de consistência mais dura) e desconforto retrosternal pós-prandial; Processo:
31. Ao nível funcional apresenta ainda outras queixas, a saber: disfagia ligeira para determinados alimentos sólidos (carnes, frutos crus) o que perturba uma alimentação equilibrada e diversificada;
32. A autora sente-se triste por não conseguir alimentar-se como era habitual antes do sinistro;
33. Nos meses seguintes ao sucedido, a autora, que é uma criança sociável, começou a ficar inibida, pois os demais colegas de escola e amigos começaram a perguntar o que se passou e se tinha bebido detergente, o que acontece recorrentemente, deixando-a triste;
34. Os almoços, que teve de realizar em ambiente escolar, à frente dos seus colegas e amigos causavam-lhe vergonha e constrangimento, pois a autora tinha muita dificuldade em almoçar normalmente;
35. Por isso, isolava-se de terceiros- designadamente dos amigos; 36. A data da consolidação médico-legal das lesões é fiável em 22 de julho de 2022;
37. A autora ficou com lesões permanentes no esófago;
38. Sofreu um défice funcional temporário total de 106 dias acrescido de um défice funcional temporário de 15 dias após cada uma das endoscopias altas, diagnóstica ou terapêutica, a que teve de se submeter;
39. Sofreu um défice funcional temporário parcial a partir do dia 1 de janeiro de 2019 e nos períodos compreendidos entre as endoscopias altas a que teve de se submeter;
40. O quantum doloris de que padeceu corresponde ao grau 6 numa escala crescente de 7 pontos;
41. As sequelas do acidente, correspondentes às lesões no esófago e perturbação de stress pós-traumático, acarretam-lhe uma incapacidade funcional permanente da integridade física e psíquica que se quantifica em 40,5%;
42. É previsível que necessite de acompanhamento regular em consulta de gastrenterologia para monotorização de queixas e de alterações, assim como tratamentos médicos regulares que sejam julgados necessários a cada momento;
43. Em consequência do sucedido, a autora foi submetida a pelo menos 4 consultas da especialidade de psicologia pelas quais os seus pais pagaram o valor de €215,00;
44. Em medicamentos despendeu, pelo menos, o valor de €84,70;
45. A Ré Seguradora remeteu aos pais da Autora, que receberam, uma carta pela qual declaravam declinar a sua responsabilidade pelo sinistro;
46. Através da aceitação da proposta de contrato de seguro junta a fls. 77 vs. e seguintes cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – a segunda Ré, atualmente com a designação «B..., SA» vinculou-se a assumir a responsabilidade civil por danos materiais e corporais causados a terceiros e decorrentes das atividades afetas à exploração do estabelecimento hoteleiro explorado pela Ré A..., Ldª, nos termos do acordo de seguro titulado pela apólice n.º ...68, em vigor em 19 de setembro de 2018; 47. O valor do seguro acordado é de €100,000,00, com uma franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais;
48. De acordo com as condições especiais desse seguro – cuja cópia está junta a fls. 80 e seguintes com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – no que concerne à cobertura “Responsabilidade Civil Exploração – Atividade Alimentar”, ficam excluídos da garantia outorgada por esta cobertura os danos: a) causados por violação ou incumprimento de leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo Segurado” (cláusula 3, 3,1, al. a) das mencionadas condições especiais);
49. A Ré “A...”, no quotidiano da sua gestão comercial, mantém um stock de diversos produtos que utiliza numa área específica, separada dos seus estabelecimentos, que lhe é disponibilizada pela administração do centro comercial;
50. À data, o produto que usava detergente para as máquinas de lavar louça do estabelecimento era um produto da marca “masterchef”, o qual era reconhecido pelos seus trabalhadores através respetiva da embalagem original, adquirido em garrafão de 10 litros nas lojas “...,...”;
51. A Ré “A...” instruía os funcionários para servirem água da torneira, sempre que que algum cliente pedia um que lhe servissem gratuitamente um “copo de água”, sendo esse o procedimento habitual;
52.No turno anterior ao do funcionário identificado em 4), a funcionária daquele quiosque (Piso 1) verificou que não tinha detergente da louça, pelo que contactou a funcionária do quiosque do Piso 0, que também é propriedade da 1.ª Ré, pedindo-lhe detergente;
53. A funcionária do quiosque do piso 0 verteu o detergente da loiça da marca “Masterchf” numa garrafa de água, em plástico, com o rótulo da marca ...”, e entregou tal garrafa, contendo o dito produto, à funcionária de turno no quiosque do piso 1;
54. Esta última, na troca de turno, não avisou o funcionário que a substituiu de que aquela garrafa continha detergente e não água;
55. O dito funcionário desconhecia o conteúdo da mencionada garrafa, estando convencido que se tratava de água mineral, quando o serviu à aqui Autora;
56. Assim que tomou conhecimento do sucedido, a primeira Ré acionou o seguro de responsabilidade civil, com a apólice ...68, através da participação n.º: ...;
57. Contudo a 2.ª Ré declinou a sua responsabilidade com base na violação do Código de Boas Práticas de Higiene e Segurança Alimentar para o sector.

Não provados:
a) A autora tinha o sonho de ser cantora e por essa razão fica muito aflita por pensar que o líquido que ingeriu lhe pode ter afetado as cordas vocais;
b) Por causa das lesões que a afetam a autora tem um risco acrescido de vir a contrair uma doença do foro oncológico;
c) A autora foi submetida a nove consultas da especialidade de psicologia pediátrica e seus pais despenderam com essas consultas a quantia global de €400,00;
d) Os pais da Autora suportaram o custo das endoscopias realizadas;
e) Os pais da autora despenderam em deslocações ao hospital para a realização de endoscopias o valor de €222,48;
f) Em consequência do acidente, o pai da Autora, para tomar conta da mesma, ficou impedido de tomar conta do seu negócio por 10 dias, tendo de pagar a outros funcionários para trabalharem por ele, pelo valor diário de 32,10€ por dia, um total de €320,10;
g) Era habitual encontrar-se no balcão do estabelecimento uma garrafa de água mineral para os funcionários do estabelecimento beberem e servirem a qualquer cliente que o solicitasse.
*
1-
Tendo em conta o fundamento da demanda da segunda Ré, - a celebração de contrato de seguro com a primeira -, há que ter presente que ao contrato dos autos se aplica o Regime Jurídico do Contrato de Seguro instituído pelo DL 72/2008 de 16 de abril.
As partes não discutem a natureza do referido contrato. Cumprirá, apenas, para um mínimo enquadramento da concreta questão a resolver, lembrar que é contrato de seguro aquele pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração.
A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro; a que assume esse risco e recebe a remuneração – prémio – diz-se seguradora; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida diz-se segurado, que pode ou não coincidir com o tomador do seguro.
Da matéria de facto provada resulta que a primeira Ré contratou com a segunda a celebração de contrato de seguro cujo teor se deu por integralmente reproduzido. O contrato formou-se através da aceitação pela Ré “A...” da proposta de contrato cujo teor é o de fls. 77 dos autos como resulta da alínea 46 do elenco dos factos provados.
Do clausulado de tal contrato (Condições Gerais e Especiais) resulta tratar-se de texto previamente redigido pela Ré Seguradora, consubstanciando um contrato-tipo a que a primeira Ré aderiu pelo preenchimento de uma proposta (cujo teor, dado por reproduzido nos factos provados, é o do documento número 1 junto com a contestação da Ré seguradora) também pré-elaborada pela mesma Ré.
Desse formulário de proposta consta já pré redigida a identificação do ramo e coberturas, bem como outras menções como seja a declaração de que o proponente tomou conhecimento das condições da apólice, seguida de espaço para assinatura daquele.
O que sucedeu nos autos, e normalmente sucede, é que à primeira Ré foi apresentado um contrato com cláusulas padrão já redigidas sem que à mesmo fosse possibilitada a participação na sua redação.
Trata-se, portanto e inequivocamente, de um contrato de adesão estando como tal sujeito ao regime instituído pelo Dec. Lei 446/85 de 25 de outubro, como é comum, senão uma constante, nos contratos de seguro.
E não há, de facto, salvo o devido respeito por opinião contrária, qualquer razão para se excluir a aplicabilidade do regime legal das cláusulas contratuais gerais ao contrato de seguro. Pelo contrário, e como afirmado no Acórdão 1853/18.1T8VCT.G1.S1 do STJ, de 13-10-2022[1], trata-se de contrato em que na esmagadora maioria dos casos o segurado é o contraente mais débil, estando em face do predisponente numa situação de desvantagem quanto ao poder de negociar os termos do contrato[2] e é exatamente com o fito de proteger a liberdade de estipulação, a informação e compreensão das cláusulas por parte daquele que a elas adere que foi criado o regime previsto no DL 446/85 de 25 de outubro.
O contrato de seguro é regulado pelas suas cláusulas e, supletivamente, pela Lei, nomeadamente pelo DL 72/2008, pelo Código Comercial e pelo Código Civil (artigo 4º do DL 72/2008) nada na Lei permitindo excluir tal contrato do regime legal previsto no DL 446/85 de 25 de outubro.
Dispõe o artigo 1º desse diploma que são cláusulas contratuais gerais aquelas que são elaboradas sem prévia negociação individual, em que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a, respetivamente, subscrever ou aceitar.
Donde, é manifesto o acerto da decisão recorrida quando entendeu aplicável tal regime legal.
Tendo o tribunal a quo decidido que a cláusula 3.1, a) do referido contrato de seguro é nula em face da aplicação desse regime legal cumpre agora aferir da bondade dos respetivos fundamentos que a Recorrente diz serem meramente opinativos e especulativos porque subjetivos.
Para tanto há que ter presente o teor das cláusulas que definem contratualmente o risco coberto:
São elas, no que aqui releva:
- A cláusula 2, sob a epígrafe “Objeto, âmbito e garantia” onde se lê que “o segurador, nos termos desta condição especial e até ao valor seguro fixado nas Condições Particulares, garante o pagamento de indemnizações legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e materiais causadas a terceiros, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente da exploração normal das instalações seguras: a) por actos, omissões ou negligência do segurado ou dos seus empregados, quando no exercício das funções próprias da sua actividade; (…)”
- A cláusula 3 onde se lê que além de outras exclusões previstas nas condições gerais ficam também “(…) excluídos da garantia outorgada por esta cobertura, os danos: a) causados por violação e incumprimento de leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo segurado”.
A decisão recorrida tem a seguinte fundamentação:
“No caso em apreço estamos perante um seguro de responsabilidade civil pelos danos causados pela atividade/funcionamento de um estabelecimento comercial da área de restauração (art.º 137º do RJCS), em que o segurador cobre o risco responsabilidade civil extracontratual do tomador do seguro, garantindo o pagamento, até ao limite do capital contratualizado e deduzida a respetiva franquia (aplicável em caso de danos decorrentes de lesões materiais, que não estão em causa nos presentes autos) das indemnizações que a segurada seja obrigada a pagar a terceiros por danos causados por causa da exploração normal de tal estabelecimento. Na situação vertente, como vimos, estão em causa danos decorrentes de lesões pessoais, decorrentes de uma actuação sucessiva (ainda que não concertada) de um conjunto de funcionários da Ré, no exercício das funções profissionais que desempenham no referido estabelecimento comercial e por causa delas, que vieram a causar os mencionados danos à Autora. Concordamos que as atuações que estiveram na origem de tais danos contraiam um conjunto de regras de higiene e segurança impostas por lei para o ramo de atividade desenvolvido pela primeira Ré, designadamente as que dizem respeito ao manuseamento e armazenamento de produtos de limpeza e desinfetantes, as quais formalmente caíram sobre a alçada da cláusula de exclusão supra-transcrita. A verdade, porém, é que dificilmente os atos ou omissões causadores de danos no decurso e por causa de um estabelecimento comercial deste tipo não serão também atuações ou omissões violadoras de algumas regras de higiene, salubridade ou segurança que integram o vasto conjunto normativo que regula a atividade deste tipo de estabelecimentos comerciais (designadamente, as elencadas no já citado art. 122º do DL 10/2015, de 16 de Janeiro). O que significa que, na prática, quase todos os danos que previsivelmente poderiam se imputados à Ré segurada a título de responsabilidade civil extracontratual, decorrentes da exploração do seu estabelecimento, e que esta, com tal cobertura de “responsabilidade civil” pretendeu segurar, estariam excluídos. Consequentemente, no mínimo, tal cláusula de exclusão do âmbito da garantia, para além de contrária à boa-fé, terá de considerar-se absolutamente proibida, nos termos do disposto no art.º 18º al. b) do citado diploma das Cláusulas Contratuais Gerais e como tal nula, reduzindo-se nessa medida o contrato, como previsto no art.º 14º do mesmo diploma.” (sublinhado nosso).
Cumpre convocar de novo o que é e para que serve o contrato de seguro ou, se assim se quiser, o que estipulam as partes por via dele.
Nas palavras de Margarida Lima Rego[3], contrato de seguro é aquele “pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”.
Esse facto, o risco coberto, é definido pelo próprio contrato de seguro e nele, o âmbito de cobertura tanto é definido pelas cláusulas que o descrevem como pelas que o excluem.
Ou seja, quando num contrato como o dos autos se estabelece que os riscos cobertos são:
decorrentes de lesões corporais e materiais causadas a terceiros, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente da exploração normal das instalações seguras: a) por actos, omissões ou negligência do segurado ou dos seus empregados, quando no exercício das funções próprias da sua actividade; (…)”, está a definir-se o seu âmbito de cobertura. Da mesma forma que tal é feito quando se afirma que “estão excluídos da garantia outorgada por esta cobertura, os danos: a) causados por violação e incumprimento de leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo segurado (…)”.
Como sumariado no acórdão do STJ 4990/12.2TBCSC.L1.S1 de 10-03-2016: “2. O risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos. 3. Na prática negocial, tal delimitação, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares, primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base, com o que se configura um tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro.”[4]
O contrato de seguro é aleatório já que a obrigação principal assumida pela seguradora é incerta e futura[5]. Daí a relevância das disposições contratuais no que tange à definição do risco coberto.
O DL 446/85 de 25 de outubro, no seu artigo 10º prevê que “[a]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”.
Sobre a validade das cláusulas de exclusão ou de limitação do risco afirma Pedro Romano Martinez: “apesar de a exclusão de alguns riscos ser lícita por assentar na liberdade contratual e não contrariar o disposto no regime das cláusula contratuais gerais, em situações limite pode corresponder a uma solução inadmissível por desvirtuar o objeto do contrato; isto é, se a modalidade de seguro ajustada não abrange o respetivo âmbito de risco. Deste modo, na hipótese de, tendo em conta o típico risco coberto naquele contrato de seguro, se inviabilizar essa cobertura por via de várias exclusões e risco, ainda que a respetiva informação tenha sido prestada, conclui-se que o objeto do contrato fica esvaziado, podendo consubstanciar uma situação ilícita.”[6]
A decisão recorrida faz decorrer a nulidade da cláusula 3. 1 a) do contrato de seguro da circunstância de a mesma ser contrária à boa-fé e ter de considerar-se absolutamente proibida, nos termos do disposto no art.º 18º al. b) do citado diploma. O que decorre de se ter entendido que dificilmente os atos ou omissões causadores de danos no decurso e por causa da exploração um estabelecimento comercial como o da primeira Ré não serão também atuações ou omissões violadoras de algumas regras de higiene, salubridade ou segurança que integram o vasto conjunto normativo que regula a atividade deste tipo de estabelecimentos comerciais. Daqui conclui-se na sentença recorrida com inteira razão que, “na prática, quase todos os danos que previsivelmente poderiam ser imputados à Ré segurada a título de responsabilidade civil extracontratual, decorrentes da exploração do seu estabelecimento”, estariam excluídos.
A propósito da distinção entre cláusulas de exclusão e cláusulas que delimitam o objeto do contrato de seguro, pronunciou-se o acórdão do STJ de 24-01-2018 em cujo sumário se pode ler “I – Na delimitação da responsabilidade operada pelas cláusulas de exclusão contidas nas Condições Gerais e/ou Especiais das apólices dos contratos de seguro caberá destrinçar as cláusulas de exclusão da responsabilidade que se mostram proibidas à luz do art. 18.º, do DL 446/85, de 25-10, das que visam a delimitação do objeto de contrato, porquanto estas configuram-se plenamente válidas.
II - Nessa distinção importa antes de mais atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice.
III - Apenas serão tidas como absolutamente proibidas as cláusulas que prevejam uma exclusão ou limitação da responsabilidade que desautorize ou esvazie a garantia de proteção do risco que o contrato cabia assegurar”.
Também o Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 30/06/2015 entendeu que [7] “Relativamente às cláusulas abusivas no contrato de seguro tem vindo a ser entendido, no tocante às cláusulas de definição e exclusão/limitação do risco, nomeadamente, que se deverá ponderar a finalidade do contrato e, assim, quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do seguro podia (de boa fé) contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato, tais cláusulas são nulas.
Ora, a exclusão da cobertura do seguro no caso de o sinistro “decorrer de violação ou incumprimento das leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo segurado” é manifestamente uma exclusão excessivamente ampla e, de facto, permite que se excluam todos e quaisquer sinistros que não decorram de força maior (e estes também estarão excluídos), de atuação de terceiros ou de fatores ambientais (também excluídos no contrato de seguro em apreço). É algo com que o aderente não podia razoavelmente contar. E que esvazia praticamente de propósito a contratação do seguro sendo, portanto, cláusula abusiva porque contrária à boa-fé nos termos do previsto no artigo 15º do DL 446/85, como afirmado na sentença em apreciação.
De facto, luz dos critérios legais enunciados no artigo 16.º do referido Diploma há que concluir que a cláusula em apreço ofende a confiança legítima provocada pelo sentido global do contrato (e do seu anunciado âmbito de cobertura), além de que se trata de cláusula que, sem justificação legítima, contraria, dificulta e impede que o segurado alcance os objetivos prosseguidos com a celebração do contrato.
Tão-pouco procede a alegação da Recorrente de que no caso concreto a disciplina do contrato imporia que se não considerasse tal cláusula como abusiva por ter ocorrido um comportamento grosseiramente culposo e de temerário desrespeito pelas regras da atividade da segurada. É que a cláusula em apreço não faz depender a exclusão de cobertura de uma específica forma ou grau de culpa. Remete apenas para a definição da ilicitude do facto gerador do dano nada prevendo quanto ao grau de culpa. A exclusão já prevista para todos os danos decorrentes do “incumprimento de leis e regulamentos que regem o exercício da atividade desenvolvida pelo segurado”.
Não é meramente opinativo ou especulativo afirmar-se na sentença que “dificilmente os atos ou omissões causadores de danos no decurso e por causa de um estabelecimento comercial deste tipo não serão também atuações ou omissões violadoras de algumas regras de higiene, salubridade ou segurança que integram o vasto conjunto normativo que regula a atividade deste tipo de estabelecimentos comerciais”.
Trata-se de um raciocínio lógico dedutivo que incidiu sobre o âmbito de incidência da cláusula de exclusão e, bem, concluiu que esse âmbito era demasiado genérico e extenso e, como tal, deixava de fora a cobertura da maior parte dos danos cuja eventual ocorrência o segurado pretendeu acautelar por via do contrato de seguro. Raciocínio e conclusão esses com que se concorda e que conduz à aplicação do disposto no artigo 15º do DL 446/85 de que decorre a nulidade da referida cláusula por contrária à boa fé.
2. Da nulidade da referida cláusula decorre, por sua vez, a sua inaplicabilidade o que, todavia, não afeta a subsistência do contrato de seguro que, nos termos do artigo 13º do DL 446/85 deve ser interpretado com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos. É essa a segunda questão a resolver.
A Recorrente defende que, no caso, sempre deveria entender-se que o sinistro dos autos não estaria a coberto do contrato de seguro dado que o mesmo decorreu de violação grosseira de regras de segurança do setor e, portanto, do que reputa de culpa grave.
Ora, o demais clausulado do contrato de seguro não permite interpretação de que resulte que fica excluída a cobertura de danos decorrentes de atuações negligentes, seja qual for a graduação dessa culpa negligente ou de atuações cujo grau de ilicitude seja “grosseiro”, qualificação que a apelante faz.
Tal interpretação não tem o mínimo suporte no texto do contrato de seguro e sempre violaria o disposto nos artigos 236º e 237º do Código Civil (ex vi artigo 10 do DL 445/86). Deles decorre as declarações negociais devam ser interpretadas como as entenderia um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, bem como que, em negócios onerosos deve, na dúvida, adotar-se a interpretação que conduza ao maior equilíbrio das prestações.
Estamos perante danos decorrentes de atuações negligentes (não foi alegada nem provada atuação dolosa) e ilícitas. A culpa e a ilicitude são dois dos pressupostos da responsabilização extracontratual da segurada sem a qual não haveria responsabilidade contratual da seguradora – cfr. artigo 483º, número 1, do Código Civil.
Não há qualquer razão de facto ou de direito para concluir que o contrato de seguro (mesmo expurgado da clausula de exclusão em apreço) é inaplicável ao sinistro em apreço, antes devendo entender-se que os danos decorrentes dessas atuações se encontram cobertos pelo mesmo já que constituem fundamento do dever de indemnização da segurada, sendo a obrigação de indemnização o que se quis transferir por força do contrato de seguro.
Pelo que, na improcedência total do recurso, deve ser mantida a decisão recorrida pelos mesmos fundamentos que dela constam.


V – Decisão
Nestes termos acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, – cfr. Artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.
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Sumário da Relatora
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Porto, 23-10-2023
Ana Olívia Loureiro
Jorge Martins Ribeiro
Anabela Morais
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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e0adb4ce6670e195802588da00562e22?OpenDocument
[2] “(…) essa acentuada a mais das vezes pela própria incompreensão do clausulado (denso e por vezes com letra quase ilegível e, às vezes com texto até pouco inteligível). Debilidade essa que o legislador pretendeu, a todo o custo, proteger.”
[3] Contrato de Seguro e Terceiros Coimbra Editora, 2010, página 66.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt)
[5] O artigo 1º do DL 72/2008 de 16 de abril afirma que pelo contrato de seguro “o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
[6] Scientia Ivridica, Número 306 (abril a junho 2006), página 260.
[7] http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/d30e1800d394d5c280257e830037ccbc?OpenDocument