Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | TOMÉ GOMES | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO INUNDAÇÃO RISCO CLÁUSULA DE EXCLUSÃO ÓNUS DE ALEGAÇÃO ÓNUS DA PROVA FACTO CONSTITUTIVO FACTO IMPEDITIVO CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 03/10/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS. DIREITO DOS SEGUROS / CONTRATO DE SEGURO / FORMAÇÃO DO CONTRATO / INFORMAÇÕES / DEVERES DE INFORMAÇÃO DO TOMADOR DO SEGURO OU DO SEGURADO / FORMA DO CONTRATO E APÓLICE DE SEGURO / CONTEÚDO DO CONTRATO / SINISTRO / PARTICIPAÇÃO DO SINISTRO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / LIMITES DA CONDENAÇÃO / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA. | ||
Doutrina: | - José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 94. - Luiz da Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, Vol. II, Empresa Editora José Bastos, Lisboa, 1916, pp. 499, 500, 526, 565. - Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros – Estudo de Direito Civil, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, 2010, pp. 66, 67, 74-75, 96-97. - Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, 2013, pp. 487, 697. - Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1.ª Edição, 1971, pp. 23, 24. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.ºS 1 E 2. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 358.º, N.º 2, 360.º, N.º 4, 414.º, 609.º, N.º 2, 614.º. D.L. N.º 72/2008, DE 16-04, REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO (LCS): - ARTIGOS 1.º, 24.º, 37.º, N.º 2, ALÍNEA D), 44.º, N.º 1 E 3, 46.º, 110.º, N.º2. | ||
Jurisprudência Internacional: | JURISPRUDÊNCIA DO TJCE: - ACÓRDÃO DE 25/02/1999. | ||
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Sumário : | 1. No contrato de seguro, o risco constitui um elemento essencial ou típico dessa espécie contratual, o qual se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento futuro e incerto, de natureza fortuita, com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato, e que deve existir quer aquando da sua celebração quer durante a sua vigência, 2. O risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos. 3. Na prática negocial, tal delimitação, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares, primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base, com o que se configura um tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro. 4. Por sua vez, o sinistro é a ocorrência concreta do risco assim previsto, devendo reunir as mesmas características com que é ali configurado. 5. A definição genérica de sinistro como evento futuro, súbito e inesperado, dada numa cláusula contratual geral, não se traduz em qualquer característica qualificativa adicional dos factos configurados na cláusula de base de cobertura do risco. 6. Assim, incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC. 7. Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC. 8. Tendo ficado provado que da ocorrência do sinistro coberto pelo contrato de seguro resultou a danificação de bens ali contemplados, mas não se tendo provado o valor de tal prejuízo, haverá lugar a condenação genérica no montante que se vier a liquidar ulteriormente. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. AA - Tapeçarias Orientais, Lda (A.), instaurou, em 21/06/ 2012, junto do Tribunal Judicial Cível de Cascais, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a Companhia de Seguros BB, S.A. (R.), a pedir a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 170.278,80, acrescida de juros de mora a contar da citação, alegando, em resumo, que: . A A. dedica-se à importação, exportação e comércio de tapetes e tapeçarias, em especial orientais, que comercializa no seu estabelecimento sito na Rua …, n.º …, Loja 1, na Parede; . No dia 23/07/2011, um sábado, a A. encerrou aquela loja, com vista à realização de obras até ao subsequente mês de setembro, de lá retirando a maior parte da mercadoria, contando retirar a restante na segunda-feira seguinte, dia 25/07/2011; . Porém, no dia 24/07/2011, um domingo, pelas 21h00, foi detetada uma inundação no estabelecimento comercial da A., que alagou o pavimento do mesmo, a qual teve origem no rebentamento imprevisível, inesperado e ocasional de um tubo de canalização existente na sala de banho existente no referido estabelecimento; . Por causa dessa inundação ficaram completamente deteriorados, tornando-se insuscetíveis de recuperação ou venda, os tapetes que a A. ainda ali guardava numa divisão contígua à sobredita casa de banho, por ela adquiridos em 05/07/2011, conforme fatura de fls. 16-18, e destinados a ser comercializados, os quais se encontram discriminados sob o art.º 25.º da petição inicial (fls. 6 e 7), com o valor de custo total de € 113.519,20; . Além disso, a A. deixou de auferir a margem de lucro de 50% sobre a venda dos mesmos; . À data do sinistro a A. era beneficiária de um contrato de seguro “Multirriscos que mantinha com a R., na qualidade de seguradora, para cobertura de danos, nomeadamente os provocados por inundações no estabelecimento em referência, até ao limite de € 814.907,31; . A A. participou o sinistro logo em 26/07/2011, pedindo urgência de procedimentos para evitar uma perda total dos tapetes que ainda fossem passíveis de recuperação, mas só em 01/08/2011 é que um perito avaliador, a mando da R., se deslocou ao local para proceder à primeira avaliação; . Entretanto, a R. começou a pedir à A. toda a documentação que considerava necessária para a regularização do sinistro, mas, passados alguns meses, em 12/03/2012, informou a A. de que ia proceder ao encerramento do processo de sinistro sem pagar qualquer indemnização. 2. A R. contestou a ação, tanto no que respeita ao sinistro como quanto aos danos, sustentando, no essencial, que: . Após a participação da A., a R. fez deslocar peritos ao local onde ocorreu a inundação e, seguidamente, designou a Sociedade de Peritagens Técnicas “CC” para proceder às averiguações necessárias à determinação da origem do sinistro e ao apuramento dos eventuais danos dele resultantes; . Dessa peritagem não foi possível determinar nem a causa do evento nem os danos dele emergentes, concluindo-se, no entanto, que a rotura do tubo donde teria provindo a inundação poderá ter decorrido por efeito de ação externa e não por virtude de qualquer evento súbito e inesperado relacionado com o seu funcionamento; . Sem pretender atribuir qualquer processo de intenção à A. ou aos seus representantes, o certo é que não se encontra demonstrada a origem do sinistro, pelo que se impugna o nesse sentido alegado pela A.; . No que respeita aos tapetes danificados, as averiguações feitas apontam no sentido de que os mesmos não correspondem à fatura reproduzida a fls. 16-18. Concluiu, pois, pela improcedência da ação. 3. Findos os articulados, dispensada a audiência preliminar, fixado o valor da causa e proferido saneador tabelar, foi selecionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória, conforme fls. 96 a 98. 4. A R. reclamou da base instrutória, com fundamento em deficiência (omissão) de factos que considerava relevantes, quer para a caracterização do sinistro, quer para o apuramento dos danos, requerendo o aditamento dos artigos 1.º-A a 1.º-F, 2.º-A e 3.º-A a 3.º-D constantes de fls. 108 a 110, o que, nessa parte, foi desatendido, por se considerar que versavam uns sobre matéria conclusiva e outros sobre matéria irrelevante, conforme despacho proferido a fls. 125-127, em 18/10/2013. 5. Realizada a audiência final, foi proferida sentença a fls. 486-495, datada de 07/04/2014, na qual foi integrada a decisão sobre matéria de facto e respetiva motivação, julgando-se a ação totalmente improcedente com a consequente absolvição da R. do pedido, por se considerar manifesto que a A. não fizera prova do direito invocado, já que a factualidade provada não permite concluir que a rotura do cano que deu origem à inundação em causa tivesse origem em evento fortuito, súbito e inesperado. 6. Inconformada com tal decisão, a A. recorreu dela para o Tribunal da Relação de Lisboa, não só impugnando a resposta negativa ao art.º 3.º da base instrutória, respeitante aos danos, por entender que tal matéria devia ser dada por provada, mas também invocando erro na aplicação do direito à factualidade provada, concluindo pela procedência da ação conforme o peticionado. Sobre tais questões, no acórdão ora recorrido, proferido a fls. 541-546, datado de 02/06/2015, considerou-se estar provada a ocorrência do sinistro e, embora mantendo-se a sobredita resposta negativa ao art.º 3.º da base instrutória, concluiu-se que era devida uma indemnização pelos danos causados aos tapetes discriminados no documento n.º 4, de fls. 16 a 18, junto com a petição inicial, mas apenas pelo respetivo preço de aquisição, a liquidar, ulteriormente, para efeitos de execução de sentença até ao limite de € 113.519,20. Nesta base, a apelação foi julgada parcialmente procedente, tendo sido revogada a sentença recorrida e, em sua substituição, condenada a R. a pagar à A., a título de indemnização pela danificação dos tapetes identificados no ponto 3 da matéria de facto, o montante que vier a ser liquidado, acrescido dos juros moratórios, à taxa legal, que eventualmente se vençam a partir do trânsito em julgado da decisão da liquidação até efetivo pagamento. 7. Desta feita, inconformada agora a R., veio recorrer de revista a pugnar pela revogação do acórdão recorrido e manutenção da decisão da 1.ª instância, formulando as seguintes conclusões: 1.ª - A decisão recorrida deu parcial provimento ao recurso interposto pela Recorrida da decisão da 1.ª instância. 2.ª - Por um lado, entendeu que se deveria manter como negativa a resposta dada ao quesito 3.º: - A A. adquiriu os tapetes referidos em e), em 05-07-2011, à sociedade AB21- DD, S.A., pelo preço total de € 113.519,20?}; 3.ª - Por outro, entendeu que a ora Recorrida provou a ocorrência do sinistro, pelo que deveria a R. ser condenada no pedido, o qual se virá a liquidar em sede de execução de sentença. 4.ª - Não pode a Recorrente concordar com tais decisões as quais revelam um manifesto erro de interpretação de lei substantiva e processual. (i) Da prova do sinistro 5.ª - Mal andou o TRL ao relacionar a discussão da natureza súbita e imprevista do sinistro com a validade do contrato de seguro. 6.ª - A existência ou validade do contrato de seguro nunca foram colocadas em causa pelas partes; 7.ª - O risco do contrato era, entre outros, a ocorrência de danos por água, sendo que o alegado “sinistro” foi a efetiva rutura de um tubo flexível trançado exterior de alta pressão existente na casa de banho do estabelecimento comercial da Recorrida; 8.ª - A recusa da assunção da responsabilidade pelos danos decorrentes daquele evento assentou na convicção da Recorrente de que o mesmo não teria sido de ocorrência súbita e imprevista; 9.ª - Não obstante tal recusa, e porque nunca foi colocada em causa a validade do seguro, o contrato manteve-se em vigor e, caso tivesse sido participado outro sinistro, a Recorrente desenvolveria, de igual forma, a averiguação necessária ao apuramento da responsabilidade, podendo, ou não, assumir a regularização dos danos eventualmente reclamados; 10.ª - A recusa da assunção da responsabilidade por este sinistro em concreto não colocou em causa a validade do contrato, pois não só o risco se manteve - em relação à cobertura de danos por água, mas também em relação às demais coberturas contratadas -, como, consequentemente, se manteve a possibilidade futura e incerta de ocorrerem outros sinistros que a Recorrente poderia ter regularizado se viesse a concluir estarem ao abrigo do seguro. 11.ª - Assim, jamais a Recorrente poderá concordar com a conclusão de que “discutir a imprevisibilidade, a fortuitidade da ocorrência da rutura, é discutir sobre a validade do contrato” pois, como se verá, a discussão de tais questões em nada afeta a virtude do contrato; 12.ª - É certo que o risco é um dos elementos constitutivos do contrato de seguro, nos termos do art.º 44.º do DL n.º 72/2008, de 16-04, ou seja, sem risco, o contrato de seguro é nulo, pois nada há a segurar; 13.ª - Por outro lado, considerando que o risco se traduz na mera possibilidade de ocorrer o evento danoso, comumente designado de sinistro, será este entendido como a concretização material do risco, ou seja, a ocorrência do evento que, aquando da contratação do seguro, era de natureza futura e incerta, mas que, a dado momento da vigência do contrato de seguro, se tornou uma realidade; 14.ª - Assim, a discussão sobre a natureza súbita e imprevista deste sinistro em concreto em nada bule com a validade do contrato de seguro, a qual nunca foi posta em causa pelas partes, nem o tinha que ser, pois o contrato era válido; 15.ª - O que foi questionado foi a natureza súbita e imprevista do evento ao abrigo do qual a Recorrida pretendia que fosse a Recorrente condenada a pagar-lhe a indemnização; 16.ª - Quanto a essa natureza, o único entendimento admissível é o de que cabia à Recorrida, na qualidade de titular do direito que pretende fazer valer e nos termos do art.º 342.º do CC, a prova da ocorrência do sinistro, como bem refere o acórdão do STJ citado na decisão recorrida; 17.ª - Sendo que o conceito de sinistro só poderá ser entendido como evento fortuito, súbito e inesperado, sob pena de subversão de todo o sistema segurador e de manifesta violação do art.º 46.º do DL n.º 72/2008, de 16-04; 18.ª - Ora, como já se viu, o conceito de sinistro encerra em si as características de imprevisibilidade e fortuitidade, tal como definido nas Condições Gerais da apólice; 19.ª - O evento que não foi imprevisto não integra o conceito de sinistro porque não teve na sua origem qualquer risco, nem qualquer álea na sua ocorrência; 20.ª - Qualquer contrato de seguro só pode cobrir sinistros, ou seja, eventos súbitos e imprevistos, e não atos dolosos pelos quais a seguradora jamais poderá ser responsabilizada nos termos do art.º 46.º do DL n.º 72/2008, de 16-04; 21.ª - Donde, que se exigia à Recorrida era que provasse a ocorrência de uma inundação no estabelecimento comercial seguro, de natureza súbita e imprevista e para a qual em nada contribuiu com a sua atuação; 22.ª - E foi neste ponto que falhou a pretensão da Recorrida na medida em que, conforme resulta da sentença de 1.ª instância, nada foi provado a esse respeito; 23.ª - E não o tendo feito, provando apenas a mera ocorrência de uma inundação, não se poderá assumir, sem mais, que tal evento revestiu as características de um verdadeiro sinistro pelo simples facto de, como entende o Tribunal “a quo”, tal questão se conexionar com a validade do seguro e a mesma não ter sido posta em causa pelas partes; 24.ª - O segurado tem que provar a realidade do sinistro, ficando demonstrado que um sinistro só o é quando ocorre sem que nada o fizesse prever, não podendo ser outro o sentido da definição dos conceitos de fortuito, súbito e inesperado que surgem nas Condições Gerais da apólice; 25.ª - Por todo o exposto, o presente recurso de revista tem por fundamento a violação de lei substantiva, nomeadamente do art.º 342.º do CC, ao entender que à Recorrida não era exigida a prova do carácter súbito e imprevisto do sinistro participado, mas tão só a sua mera ocorrência, bem como dos arts.º 44.º e 99.º do D.L. n.º 72/2008, de 16-04, ao convocar para o domínio da validade do contrato a discussão a natureza súbita e aleatória do sinistro; 26.ª - Mais se entende que o Tribunal recorrido fez uma incorreta interpretação da cláusula contratual relativa à definição de sinistro ao entender que a Recorrida demonstrou a sua realidade, mesmo sem ter logrado convencer o Tribunal do seu carácter fortuito, súbito e inesperado; (ii) Da prova da aquisição e do valor dos tapetes 27.ª - A procedência do requerido pela Recorrente no ponto anterior, fará com que a mesma não possa ser condenada no peticionado, naufragando a possibilidade de a Recorrida provar, em sede de liquidação de sentença, o invocado prejuízo; 28.ª - Não obstante, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que também carece de fundamento a decisão tomada pelo TRL, no que concerne à liquidação do preço dos tapetes em sede de incidente de liquidação; 29.ª - A este respeito releva o já supra transcrito quesito 3 da base instrutória do qual decorrem dois factos distintos: (i) a aquisição à sociedade AB21 DD, S.A. e (ii) o respetivo preço; 30.ª – A tal quesito foi dada resposta negativa que não foi alterada pela decisão recorrida, pelo que se manteve como não provada quer a aquisição dos tapetes, quer o valor dos mesmos; 31.ª - Nos termos do disposto no art.º 609.º, n.º 2 do CPC, o incidente de liquidação de sentença é o mecanismo processual apto a liquidar a quantidade do pedido; 32.ª - Donde, servindo o mesmo apenas a quantificação do valor dos danos, é evidente que, primeiramente, teria que resultar provado o dano, ou seja, a aquisição dos tapetes o que não sucedeu conforme se deixou claro; 33.ª - O recurso ao incidente de liquidação de sentença só seria válido se a Recorrida tivesse provado a aquisição dos tapetes, o que não sucedeu na medida em que a factura junta para esse efeito foi considerada meio de prova insuficiente, e a prova testemunhal também nada esclareceu; 34.ª - Não se provando a aquisição, carece de objecto o invocado incidente, pelo que mal andou o Tribunal da Relação de Lisboa ao convocá-lo quando bem sabe que manteve a resposta negativa ao quesito relativo à compra dos tapetes; 35.ª - Neste sentido, entre outros, o acórdão do TRL, de 24/06/ 2011, disponível em www.dsg.pt, onde se pode ler que "II- O instituto da liquidação de sentença visa quantificar uma condenação anterior, estribada, por um lado, nos pedidos e causa de pedir enunciados pelo Autor ou pelo Réu, e, por outro, pela factualidade dada como provada e não provada e pela aplicação à mesma do direito, sendo dentro dessas precisas e estritas fronteiras que a determinação quantitativa perseguida pelo incidente de liquidação se pode movimentar e emergir, não podendo tal figura ter uma abrangência tal que, apesar da sua índole declarativa se permita discutir, de novo e com idêntica amplitude matéria essencial e constitutiva de direitos, que deveria ter sido debatida e demonstrada na acção declarativa propriamente dita e não foi”; 36.ª - É precisamente com aquela pretensão que nos deparamos no caso dos autos em que se pretende verter no incidente de liquidação de sentença a prova de um facto essencial do direito da Recorrida, e que a mesma não logrou fazer na acção principal. 37.ª - A aquisição dos tapetes era matéria essencial e constitutiva do direito da Recorrida pois só assim lograria provar o dano, elemento da responsabilidade civil que pretendia fazer valer contra a Recorrente; 38.ª - Por todo o exposto, o presente recurso de revista tem, igualmente, por fundamento a violação do art.º 609.º. n.º 2, do CPC, ao remeter para o incidente de liquidação de sentença a quantificação de um dano cuja prova não ocorreu em sede de acção principal. 8. A Recorrida apresentou contra-alegações a pugnar pela negação da revista. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II – Delimitação do objeto do recurso Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC. Dentro desses parâmetros, o objeto dos presente recurso incide so-bre as seguintes questões de direito: i) – A questão do invocado erro na distribuição do ónus da prova sobre a caracterização do sinistro em causa, mormente no que respeita à sua natureza fortuita, como evento súbito e inesperado; ii) – A questão do erro quanto à verificação de dano com contornos suficientes para permitir a liquidação ulterior do respetivo montante. III – Fundamentação 1. Factualidade dada como provada pelas instâncias Vem dada como provada pelas Instâncias a seguinte factualidade: 1.1. Em data não apurada mas pelo menos antes de 01-07-2004, a A. e a antecessora da R. acordaram por escrito denominado “MULTIR-RISCOS ESTABELECIMENTO”, titulado pela apólice n.º …, nos termos das condições particulares de fls. 50-59 e das condições gerais de fls. 60-82, tendo por objeto o estabelecimento comercial da A. sito na Rua …, antigo n.º 20, correspondente ao atual n…, Loja 1, na Parede - alínea A) dos factos assentes; 1.2. Em 24-07-2011, domingo, ocorreu inundação no estabelecimento comercial da A., que se encontrava encerrado, o que a mesma A. participou à R. em 26-07-2011 - alínea B) dos factos assentes; 1.3. O referido em 1.2 ocorreu por força da rutura de um tubo flexível trançado exterior de alta pressão existente na casa de banho do estabelecimento da A. – resposta explicativa ao art. 1.º da base instrutória; 1.4. Em 04-08-2011, foram retirados do estabelecimento da A. os tapetes referidos no documento n.º 4, junto com a petição inicial, os quais se encontravam desbotados e manchados - alínea C) dos factos assentes; 1.5. Aquando do referido em 1.2, estavam no estabelecimento da A. os tapetes aludidos em 1.4 - resposta ao art. 2.º da base instrutória; 1.6. Foi na sequência do referido em 1.2 que os tapetes ficaram como se refere em 1.4 - resposta ao art. 4.° da base instrutória. Em desenvolvimento da remissão genérica feita no ponto 1.1 para as condições gerais e particulares do contrato de seguro ali identificado, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 607.º aqui aplicável por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC, para melhor clareza da factualidade provada, importa destacar o seguinte clausulado: 1.7. Das Condições Gerais da apólice do contrato de seguro indicada no ponto 1.1 consta: i) - No capítulo I, intitulado Definições, que, para efeitos do referido contrato, entende-se por: Sinistro: o evento ou série de eventos fortuitos, súbitos e inesperados, resultantes de uma mesma causa susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato. ii) – No capítulo II, sob o artigo 1.º, n.º 1, sob a epígrafe Objecto e Garantia do Contrato - Danos materiais, que: O presente contrato tem por objecto a cobertura dos danos directamente causados aos bens seguros, até ao limite dos valores, identificados nas condições particulares, pela ocorrência de qualquer sinistro a coberto dos riscos definidos no art.º 3.º - secção I, II e IV, deste capítulo, para o efeito mencionado nas condições particulares. iii) – Do art.º 3.º, n.º 1, do mesmo capítulo II, com a epígrafe Classificação e Enumeração dos Riscos – Cobertura base, a Secção I – Danos Materiais (Cobertura automática): Risco 4 – Danos por água. iv) – Do artigo 4.º, n.º 1, do mesmo capítulo, com a epígrafe Definição de Riscos – Cobertura base, a Secção I – Danos Materiais (Cobertura automática) Risco 4 – Danos por Água: 1. Perdas ou danos resultantes de rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interior de distribuição de água e esgotos das instalações do segurado (incluindo os sistemas de esgoto de águas pluviais) assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos das mesmas instalações do segurado e respectivas ligações. 3. Excluem-se as perdas ou danos resultantes de: a) – Torneiras deixadas abertas, salvo quando se tiver verificado uma falta de abastecimento de água; b) – Entrada de água das chuvas através do telhado, portas, janelas, clarabóias, terraços e marquises e, ainda, o refluxo de águas provenientes de canalizações ou esgotos não pertencentes ao edifício; c) – Infiltrações através de paredes e/ou tectos, humidade e/ou condensação, excepto quando se trate de danos resultantes de sinistro coberto deste risco; d) – Descarga ou derrame de água proveniente de instalação de “Sprinklers”. 4. Ficam ainda excluídos da presente cobertura os danos ocorridos quando as instalações do segurado não estiverem a ser utilizadas, por período superior a 60 dias. 5. Em caso de sinistro será deduzido à indemnização o valor da franquia estabelecida nas condições particulares. v) – No capítulo VI, intitulado Valor Seguro, o artigo 19.º, com a epígrafe Determinação dos Valores Seguros: 2. Danos Materiais: Seguro de mercadorias … e artigos do negócio do segurado: O capital seguro deverá corresponder ao preço corrente da aquisição para o segurado … vi) – No capítulo IX, intitulado Disposições Diversas, o artigo 39.º, com a epígrafe Ónus de prova, cujo teor é: Impende sobre o segurado o ónus de prova da veracidade da reclamação e do seu interesse legal nos bens seguros, podendo a seguradora exigir-lhe os meios de prova adequados e que estejam ao seu alcance. 1.8. Das Condições particulares da sobredita apólice, reproduzidas a fls. 51 consta como máximo do capital seguro para a rubrica Tapetes/ Carp./Passadeiras/Art.Orient./Comu o valor de € 243.680,53 com a franquia, quanto a danos por água, de 10,0000% do valor do sinistro. 2. Factos não provados Vem dado como não provado que: “A A. adquiriu os tapetes referidos em 1.4, em 05-07-2011, à sociedade AB21-DD, SA, pelo preço total de € 113.519,20” – matéria respeitante ao art.º 3.º da base instrutória. 3. Retificação do teor do ponto 1.4 no tocante à identificação dos tapetes ali referidos Do ponto 1.4 da factualidade acima descrita, correspondente à alínea C) dos factos assentes, consta o seguinte: Em 04-08-2011, foram retirados do estabelecimento da A. os tapetes referidos no documento n.º 4 junto com a petição inicial, os quais se encontravam desbotados e manchados. O teor dessa alínea foi colhido da matéria alegada sob os artigos 25.º e 26.º da petição inicial, mas contém uma incorreção na parte em que identifica os tapetes ali referidos por mera remissão para o documento n.º 4 junto com a petição inicial que constitui fls. 16 a 18. Com efeito, no indicado artigo 25.º, a A. apresenta uma lista dos 56 tapetes, alegadamente danificados pela inundação em referência nos autos, correspondente aos tapetes discriminados no documento n.º 10 de fls. 24 a 25, com o valor de custo total de € 113.519,20. Além disso, para justificar a data de aquisição desses tapetes e os respetivos valores de custo, a A. alegou sob o artigo 26.º do mesmo articulado que tais tapetes constam da fatura reproduzida no documento n.º 4, de fls. 16 a 18, com os elementos identificativos ali discriminados. Sucede que a mencionada fatura inclui também nove tapetes não constantes da lista apresentada sob o artigo 25.º e que dois dos tapetes incluídos nesta lista – o tapete Y.Yali n.º 63, no valor declarado de € 187,80, e o tapete Balkan n.º 740, no valor declarado de € 1420,40 – não constam dos incluídos na sobredita fatura. Por seu lado, a R. aceitou que os tapetes discriminados sob o artigo 25.º da petição inicial correspondem aos que foram objeto do levantamento a que procedeu após o sinistro em 04/08/2011, como se alcança do artigo 37.º da contestação, impugnando, no entanto, que os mesmos tenham sido adquiridos pela A. à sociedade AB21-DD, SA., na data e nos valores constantes da fatura reproduzida a fls. 16 e 18. Significa isto que a matéria dada como assente na alínea C) só se pode reportar aos tapetes identificados na lista inserida sob o art.º 25.º da petição inicial, correspondente ao documento de fls. 24 e 25, e não à totalidade dos tapetes constantes da fatura reproduzida no documento 4 junto com a petição inicial, de fls. 16 a 18. Em suma, trata-se de uma inexatidão manifesta na parte em que ali se identificam os tapetes alegadamente danificados por mera remissão para a fatura reproduzida no documento n.º 4 de fls. 16 a 18, a qual se impõe retificar, oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 614.º do CPC. Assim, o ponto 1.4 da factualidade provada passa a ter seguinte redação: 1.4. Em 04-08-2011, foram retirados do estabelecimento da A. os tapetes discriminados na lista constante do art.º 25.º da petição inicial correspondentes aos constantes do documento n.º 10 junto a fls. 24 e 25 com aquele articulado, os quais se encontravam desbotados e manchados. Por seu turno, a remissão para a alínea C) dos factos assentes, correspondente ao ponto 1.4, nas respostas positivas aos artigos 2.º e 4. º, bem como na resposta negativa ao artigo 3.º da base instrutória, correspondentes, respetivamente, aos pontos 1.5, 1.6 e 2, deve ser considerada como feita para o ponto 1.4 na redação ora dada. 4. Do mérito do recurso 4.1. Enquadramento preliminar Estamos no âmbito de uma ação que tem por objeto uma pretensão indemnizatória por danos ocorridos em mercadorias que a A. detinha no seu estabelecimento comercial, danos estes decorrentes de inundação de água provocada pelo rebentamento de um tubo de canalização existente na sala de banho do referido estabelecimento, cujo risco se encontrava coberto pelo contrato de seguro, na modalidade de Multiriscos, que a mesma A. mantinha com a R. Acontece que as partes apresentaram versões divergentes do sucedido, quer quanto ao sinistro, quer quanto aos danos. Assim, na tese da A., tal rebentamento consistiu, pela sua própria natureza, num evento fortuito, ocasional, súbito e inesperado, e os danos incidiram sobre os tapetes constantes da lista por ela então apresentada, adquiridos em 05/07/2011, com o valor de custo total de € 113.519,20, conforme a fatura reproduzida a fls. 16-18. Por sua vez, a R. impugnou a alegada natureza fortuita, súbita e inesperada do pretenso sinistro, sustentando ter colhidos indícios, por via de peritagem, que apontam no sentido de que a rotura em causa poderá ter derivado de ação externa, que não de evento súbito e inesperado, nos termos contratualizados, pelo que competia à A. o ónus probatório dessa natureza fortuita, o que não logrou provar. E quanto aos danos, pôs em causa que os tapetes danificados pela inundação correspondessem aos identificados na sobredita fatura. Produzida a prova, o tribunal da 1.ª instância julgou a ação improcedente por considerar que a factualidade provada não permitia concluir pela verificação do risco coberto pelo contrato de seguro, mais precisamente pelo facto de a A. não ter provado, como lhe incumbia, que a rutura ocorrida constituísse evento fortuito, súbito e inesperado, considerando assim prejudicada a questão relativa aos danos. No recurso de apelação interposto pela A., o Tribunal da Relação, diversamente, considerou que de tal factualidade resultava, sem mais, a verificação do sinistro coberto pelo contrato de seguro e que também se verificava a ocorrência dos danos invocados, embora sem elementos para a determinação do respetivo valor, que foi relegada para liquidação ulterior. São, pois, esses dois aspectos que constituem objeto da presente revista desdobrados nas questões acima enunciadas. 4.2. Quanto à caracterização do sinistro Antes de mais, convém reter que da delimitação dos termos do litígio pelas partes sobressai, desde logo, profunda divergência no que respeita à caracterização do sinistro, como ficou dito. Subsequentemente, condensados os factos tidos por relevantes, a R. pugnou, mediante reclamação da base instrutória, no sentido de se aditar matéria alegada que considerava pertinente para a controvertida caracterização do sinistro, cuja natureza súbita e inesperada, competiria à A., no que foi desatendida pelo tribunal por considerar tratar-se de matéria conclusiva ou irrelevante, conforme o decidido no despacho de fls. 125-127, em 18/10/2013. Não obstante isso, na sentença da 1.ª instância, foi considerado, em sede de motivação da decisão de facto, mediante a análise crítica da prova, que não resultava, com segurança, provado que o colapso do tubo flexível tivesse ocorrido de forma inopinada, causal e/ou inesperada, tendo-se, a tal propósito, consignado as seguintes considerações: «Para dar por provados os factos constantes em 1 a 3 dos factos provados, atentou-se no acordo das partes plasmado nos seus articulados, bem como na confissão e nos documentos não impugnados juntos aos autos. Para a resposta dada ao ponto 4 dos factos provados, atentou-se, desde logo no depoimento de todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento (com excepção da testemunha EE que, à data em que ocorreu a inundação, se encontrava de férias) no que à proveniência da água que determinou a inundação concerne, bem como ao estado de conservação do tubo flexível diz respeito, as quais revelaram ter conhecimento directo dos factos, tendo relatado e esclarecido o tribunal de forma circunstanciada e peremptória que as fotografias juntas a fls. 118 e 119 retratam o tubo retirado pela ré e submetido a perícia, sendo certo que, neste particular, os referidos depoimentos se nos afiguraram credíveis e consentâneos com as regras de experiência comum. Contudo, o depoimento das testemunhas arroladas pela autora - FF e EE, ambos funcionários da autora - não foram minimamente esclarecedores quanto às causas da ruptura do tubo em causa o que, aliás se compreende, face à razão de ciência demonstrada pelas mesmas. Por outro lado, a testemunha GG, não obstante ser canalizador, não logrou convencer o tribunal das causas que apontou para o rompimento do tubo em causa, face à forma pouco sustentada e não objectivada como depôs a tal questão, pelo que não obstante não existirem razões para pôr em causa a sua credibilidade, atenta a razão de ciência demonstrada pela referida testemunha não foi o seu depoimento de molde a poder-se concluir, com segurança, face à ausência de prova complementar, e quando concatenado com o relatório junto a fls. 159-170 e com o depoimento das testemunhas HH e II (arroladas pela ré), que a causa do rompimento do tubo em questão tivesse tido origem num evento fortuito, súbito ou inesperado. Esclareça-se, desde já, que não obstante trabalharem por conta da ré, como peritos de seguro, tiveram as referidas testemunhas HH e II um depoimento objectivo, seguro e assertivo, tendo demonstrado ter conhecimento directo e técnico dos factos em causa, razão pela qual se nos afigurou credível. Desde logo, por ser essa a sua arte, a testemunha HH esclareceu cabal e circunstanciadamente, estribando-se em razões de ordem técnica, a razão pela qual foi ordenada a perícia, bem como a razão pela qual duvidou que a causa do rompimento do tubo pudesse não ter sido fortuita, súbita ou inesperada. Ora o relatório que se encontra junto a fls. 159 e ss – que tem força probatória plena na medida em que não foi arguida nem impugnada a sua falsidade – que foi realizado por entidade independente da ré, atesta, no essencial, as declarações prestadas por aquela testemunha, nomeadamente no que à fissura transversal do tubo concerne. De facto, neste particular, o facto que determinou que se suscitassem dúvidas à referida testemunha quanto às causas do rompimento do tubo, prendeu-se com a fissura transversal que o mesmo apresentava. Realizada que foi a perícia, e constando do referido relatório junto os testes que foram efectivamente realizados à peça em causa, verifica-se desde logo que a ruptura transversal se apresenta limpa, não apresentando quaisquer depósitos pelo que se assume que será recente, concluindo, a final, que a degradação do flexível poderá ter tido contribuição de factores distintos dos decorrentes do normal funcionamento. Assim, embora o referido não exclua, de forma peremptória que a causa do rompimento tivesse tido origem num evento fortuito, súbito ou inesperado, o certo é que, coligida toda a prova produzida não conseguiu o tribunal apurar a origem da causa do rompimento do tubo flexível, na medida em que para o mesmo (rompimento) poderão ter contribuído factores distintos dos decorrentes do seu desgaste natural e normal funcionamento, não resultando, assim, com segurança da prova produzida que o colapso do tubo flexível tivesse ocorrido de forma inopinada, casual e/ou inesperada. Ora, cabia à autora, de acordo com a repartição do ónus da prova fazer prova da causa do rompimento, sendo que, a dúvida sobre a realidade de um facto se resolve contra a parte a quem o facto aproveita – art. 342.°, n.°1, do CCivil e 414.°, do NCPCivil – razão pela qual deu o tribunal por provado o facto constante em 4.° do elenco dos factos provados nos termos que aí se consignaram como tal.» Nessa base argumentativa, à matéria vertida no art.º 1.º da base instrutória, em que se perguntava: O referido em B) [a referida inundação] ocorreu devido ao rebentamento de um tubo da canalização da casa de banho do estabelecimento?, o tribunal da 1.ª instância, sem alterar o elenco dos enunciados de facto constante da base instrutória, respondeu, com declarado intento explicativo, provado que: O referido em 2 [a referida inundação] ocorreu por força da rotura de um tubo flexível trançado exterior de alta pressão existente na casa de banho do estabelecimento da A. E, já em sede de apreciação jurídica, considerou que: «… para que o sinistro seja coberto pela apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre as partes é ainda necessário que essa ruptura tenha origem num evento fortuito, súbito e inesperado, isto é, num evento inesperado, imprevisível e inopinado por referência, naturalmente, ao seu normal funcionamento, cabendo à autora o ónus da prova de tal circunstância – art..º 342.º, n.º 1, do C Civil. Ora, atendendo aos factos que se deram por provados, resulta manifesto não ter a autora feito prova do direito invocado, porquanto a factualidade dada por provada não permite concluir que a ruptura tivesse tido origem em evento fortuito, súbito e inesperado. Por todo o exposto, a situação dos presentes autos não está coberta pela apólice n.º ....» Assim, a ação foi ali julgada totalmente improcedente. Porém, no recurso de apelação interposto pela A., veio esta sustentar, além do mais, que da factualidade dada como provada resultava a verificação do sinistro, em termos de se encontrar coberto pelo contrato de seguro em apreço. Debruçando-se sobre essa questão, no acórdão recorrido, foi considerado o seguinte: «O contrato de seguro celebrado pelas partes, face ao disposto no artigo 1.º das condições gerais da apólice, tem por objecto a cobertura dos danos directamente causados aos bens seguros pela ocorrência de qualquer sinistro a coberto dos I, II e IV, mencionados nas condições particulares. De entre esses riscos, definidos nesse artigo e mencionados nessas condições particulares, consta o risco por danos por água. O risco por danos por água, nos termos do artigo 4.º, secção I, risco 4, ponto 1, das condições gerais da apólice, consiste nas perdas ou danos resultantes da rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interior de distribuição de água e esgotos da instalações do segurado (incluindo nestas os sistemas de esgoto de águas pluviais) assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos das mesmas instalações do segurado e respectivas ligações. No caso ocorreu a ruptura de um tubo flexível trançado exterior de alta pressão existente na casa de banho do estabelecimento da autora. Temos, pois, a ocorrência de ruptura da rede interior de distribuição de água das instalações da autora ou ruptura de ligação de aparelho ou utensílios ligados à rede de distribuição de água das instalações da autora. O risco é, de regra, um elemento constitutivo do contrato de seguro, sem risco da ocorrência de sinistro o contrato é nulo - artigos 1.º e 44.°, n.° 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado pelo Decreto-Lei n.° 72/2008, de 16 de Abril. O risco é o acontecimento futuro e incerto que, ocorrendo, constitui o sinistro. Quer dizer, empiricamente o risco é a imprevisibilidade, a fortuitidade da ocorrência do evento, do facto, do sinistro. Assim a imprevisibilidade, a fortuitidade, pertencem ao domínio da validade do contrato. O sinistro, naturalmente porque fundado na imprevisibilidade, na fortuitidade, é aleatório, isto é pode ou não ocorrer - artigo 1.° do RJC S. Portanto risco e sinistro, se estão irremediavelmente ligados, não se confundem, risco é a possibilidade de sinistro, sinistro é o risco materializado. Claro que esta ligação facilita a inclusão, talvez em prejuízo do rigor, da referência ao risco na definição de sinistro. Tal sucede no caso dos autos quando na definição de sinistro, constante do capítulo 1 das condições gerais da apólice, se inserem as notas da imprevisibilidade, da fortuitidade na definição seguinte: sinistro é o evento ou série de eventos fortuitos, súbitos e inesperados, resultantes de uma mesma causa susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato. Ocorrendo o sinistro, como se referiu, materializa-se o risco, precisamente, nos termos do artigo 99.º do RJCS, o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato. Daí que, nos termos e para os efeitos do artigo 342.º, n.º 1, o segurado apenas tenha que provar a realidade do sinistro. Sendo assim, em primeiro lugar, cumpre concluir que discutir a imprevisibilidade, a fortuitidade da ocorrência da ruptura, é discutir sobre a validade do contrato. Por isso, a sentença resulta do equívoco de se sustentar numa pretensa falta de prova da imprevisibilidade, da fortuitidade do sinistro, questão respeitante à validade do contrato que não foi colocada pelas partes, para repelir a pretensão indemnizatória apresentada pela autora. Depois cumpre concluir, como pretende a autora, que está feita a demonstração da realidade do sinistro.» E assim foi julgada procedente a apelação nessa parte. Mas agora é a R. quem vem questionar tal entendimento, na linha da solução adotada pela 1.ª instância, com o argumentário sintetizado nas 5.ª a 26.ª conclusões recursórias acima transcritas. Vejamos. Muito embora a nossa lei não contemple, e até pareça evitar, uma definição exata conceptual ou meramente tipológica do contrato de seguro, a sua tipicidade económico-social e o respetivo regime legal fornecem indicadores que têm permitido à doutrina e à jurisprudência avançar com noções, mais ou menos cautelosas, dessa espécie contratual. Já Luiz da Cunha Gonçalves, in Comentário ao Código Comercial Português, Vol. II, Empresa Editora José Bastos, Lisboa, 1916, a páginas 499 e 500, doutrinava que: «Seguro é o instituto económico que tem por objeto remover ou atenuar os prejuízos que ao património de uma pessoa singular ou colectiva resultam de um evento isolado (para quem dele é vítima), causal e imprevisto quanto ao momento da sua realização, repartindo-os indirectamente por um grande número de indivíduos, em relação aos quaes o mesmo evento poderia verificar-se, mas de facto não se verifica.» E prossegue, afirmando que o contrato de seguro “pressupõe sempre um risco futuro, incerto quanto à sua realização ou à época em que se realizará, assumido por especulador mediante a percepção dum prémio. Também Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1.ª Edição, 1971, página 23, define o contrato de seguro, no que aqui releva, como: «[…] aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos …» Mais recentemente, José Vasques, in Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, página 94, propõe a seguinte noção: «Seguro é o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto» Por sua vez, Margarida Lima Rego, in Contrato de Seguro e Terceiros – Estudo de Direito Civil, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, 2010, página 66, ensaia uma proposta de definição, a título de núcleo comum a todas as classes de seguro, segundo a qual: «[…] seguro é o contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto.» E a tal propósito, aquela Autora dá nota de uma definição próxima adotada pelo acórdão do TJCE, de 25/02/1999, nos termos da qual: «Como geralmente aceite, uma operação de seguros caracteriza-se pelo facto de o segurador, mediante o pagamento de um prémio pelo segurado, se comprometer a fornecer a este último, em caso de realização do risco coberto, a prestação acordada por ocasião da celebração do contrato.» Na linha de tais definições, é pois reconhecido que o risco constitui um elemento essencial ou típico do contrato de seguro, que deve existir quer aquando a celebração do contrato quer durante a sua vigência, o que, de resto, parece decorrer, nomeadamente do disposto nos artigos 1.º, 24.º, 37.º, n.º 2, alínea d), 44.º, n.º 1 e 3 e 110.º do atual regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04 (LCS)[1]. Relativamente à noção de risco, para tais efeitos, é também correntemente admitido de que o mesmo se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento ou facto futuro e incerto de natureza fortuita com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato. Nas palavras de Cunha Gonçalves[2]: «O risco tem um carácter eminentemente potencial e aleatório: é um facto incerto para ambas as partes e futuro, que pode causar um dano ao património ao segurado, ou modificar o evento da vida em que ele tem qualquer interesse.» E segundo Moitinho de Almeida[3], o risco “é a possibilidade de um evento futuro e incerto (pelo menos incertus quando) susceptível de determinar a atribuição patrimonial do segurado (excluída a teoria indemnizatória, não se qualifica o evento de danoso). Por seu lado, Menezes Cordeiro[4] refere que: «Há risco quando, em termos humanos, a eventualidade (tomada como) desfavorável seja possível e caso, como tal, ela seja levada a um contrato válido. Digamos que há uma dificuldade de princípio, dada a irracionalidade do elemento humano, a qual é ultrapassada pelo juízo de validade que recaia sobre o contrato de seguro.» De forma mais analítica, Margarida Lima Rego[5] caracteriza a incerteza do risco na base de três variáveis: i) – a incerteza quanto à ocorrência do resultado contemplado (incertus an); ii) – a incerteza quanto ao momento da ocorrência desse resultado (incertus quando); iii) – a incerteza quanto ao valor de tal resultado, ou seja, “a variabilidade da magnitude das consequências do sinistro.” E, debruçando-se sobre as características adicionais do risco do seguro, a mesma Autora refere-se, entre outras, à “causalidade”, tradicionalmente designada por fortuitidade, afirmando que, no caso de exigência desta característica, «o que o seguro, por natureza, não cobre é unicamente o chamado dolo específico – a fraude. Seja como for, o risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos, nos termos dos artigos 24.º e 37.º, n.º 2, alínea d), da citada LCS, estando o tomador do seguro ou o segurado obrigado, mesmo antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (citado art.º 24.º, n.º 1). No entendimento de Cunha Gonçalves: «O risco deve ser também exactamente determinado quanto à sua natureza, em parte para se evitar que uma similhança de efeitos leve a confundir estes com os de qualquer outra causa. (…) Mesmo que o risco esteja determinado quanto à sua natureza, como ele pode variar em cada caso concreto, o segurador deve declarar “todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar ao segurador, de modo que o risco possa ser exactamente apreciado e sob nenhum pretexto possa o segurador invocar um vício de consentimento.» Assim, o risco será delimitado em função do tipo de evento como tal contemplado, bem como relativamente à localização e ao tempo em que possa ocorrer. Na prática negocial, a delimitação do risco, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares: primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base”; subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base[6]. Em suma, a delimitação do risco no contrato consubstancia-se na configuração de uma factispecies contratual, ou seja, num tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro. Por sua vez, o sinistro é a ocorrência concreta do risco assim previsto no contrato, devendo, pois, reunir as mesmas características com que é ali configurado. Segundo o ensinamento de Cunha Gonçalves, em termos jurídicos[7]: «Sinistro é um caso fortuito ou de força maior de que resultou a parcial ou total realização do risco garantido pelo segurador ou do dano previsto por ambas as partes no respectivo contrato.» E «[…] caso fortuito ou de força maior é qualquer facto superior às forças humanas e imprevisto, ou previsto, mas inevitável. Em consequência, é lógica a conclusão de que o segurador não é obrigado a indemnizar ou a considerar como sinistro os danos provenientes de factos que não teem aquela natureza, ou, embora a tenham, não foram dos previstos na apólice ou no contrato de seguro.» Por seu lado, Margarida Lima Rego[8] escreve que: «Chamamos “sinistro”, precisamente, à verificação de um desses factos previstos no contrato de seguro, que compõem a chamada cobertura-objeto, e cuja verificação determina a obrigação de prestar por parte do segurador.» Também Menezes Cordeiro[9], a este propósito, considera que: «O sinistro equivale à verificação, total ou parcial, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador (99.º). Em certos casos, essa verificação pode não ser diretamente possível (…). Teremos, por isso, de equiparar ao sinistro a probabilidade muito séria da ocorrência dos factos que o integram. Em regra, o sinistro equivalerá precisamente à descrição configurativa que conste do contrato. Noutros casos, haverá que fazer uma justaposição valorativa, de tal modo que o contrato cumpra a função que todos esperavam dele, aquando da celebração. Assim, a qualificação de um evento ou facto como sinistro terá de ser feita em função dos contornos tipológicos do risco tal como foram desenhados no clausulado contratual. É pois nessa conformidade que o artigo 100.º, n.º 2, da LCS determina que, na participação do sinistro, o tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário devem explicitar as circunstâncias da verificação do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência, além das respetivas consequências. Ora, das condições gerais no contrato de seguro em apreço consta uma definição de sinistro com o seguinte teor: O evento ou série de eventos fortuitos, súbitos e inesperados, resultantes de uma mesma causa susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato. Esta definição genérica pouco mais não é do que a noção abstrata de sinistro, correspondente ao conceito de risco, com a particularidade de compreender não só um evento isolado mas uma série de eventos, remetendo depois para as cláusulas de cobertura. E, no que aqui releva, é o clausulado constante do artigo 4.º, n.º 1, do mesmo capítulo II, com a epígrafe Definição de Riscos – Cobertura base, daquelas condições gerais que, na respetiva Secção I – Danos Materiais (Cobertura automática), define o Risco 4 – Danos por Água, nos seguintes termos: 1. Perdas ou danos resultantes de rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interior de distribuição de água e esgotos das instalações do segurado (incluindo os sistemas de esgoto de águas pluviais) assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos das mesmas instalações do segurado e respectivas ligações. 3. Excluem-se as perdas ou danos resultantes de: a) – Torneiras deixadas abertas, salvo quando se tiver verificado uma falta de abastecimento de água; b) – Entrada de água das chuvas através do telhado, portas, janelas, clarabóias, terraços e marquises e, ainda, o refluxo de águas provenientes de canalizações ou esgotos não pertencentes ao edifício; c) – Infiltrações através de paredes e/ou tectos, humidade e/ou condensação, excepto quando se trate de danos resultantes de sinistro coberto deste risco; d) – Descarga ou derrame de água proveniente de instalação de “Sprinklers”. 4. Ficam ainda excluídos da presente cobertura os danos ocorridos quando as instalações do segurado não estiverem a ser utilizadas, por período superior a 60 dias. Estamos, pois, em presença de uma definição do risco dada, em primeira linha, no n.º 1, mediante uma cláusula de cobertura de base e seguidamente, nos n.º 3 e 4, através de cláusulas de exclusão. Desse modo, a referida cláusula de cobertura contempla tipos de ocorrência futura e incerta, em que está ínsita a natureza fortuita, súbita ou inesperada, do risco garantido pelo contrato. Tal natureza terá de defluir da especificidade factual do evento, sendo que os qualificativos expressos nos vocábulos “súbitos” e “inesperados”, traduzem-se, no contexto em foco, em termos meramente valorativos ou conclusivos do conceito de fortuitidade, não podendo, por isso, servir como enunciado de teor factual. Nessa medida, a definição de sinistro dada no capítulo I não se reconduz a qualquer característica qualificativa adicional dos factos configurados na cláusula de base de cobertura do risco, significando simplesmente que tais factos, na configuração que ali lhes é dada, são assumidos como eventos ou série de eventos súbitos e inesperados garantidos pelo contrato. Nessa conformidade recai sobre o segurado o ónus de provar tais ocorrências como factos constitutivos que são do direito de indemnização invocado, nos termos do n.º 1 do art.º 342.º do CC. Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC. Nem sequer se afigura que recaia sobre o segurado o ónus de provar a causa específica que teve na origem das ocorrências configuradas no contrato como integradoras do risco, o que constituiria, de resto, uma tarefa quantas vezes impossível para o próprio segurado. O que se lhe impõe, nos n.º 2 do artigo 100.º da LCS, é que explicite as circunstâncias do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência com vista a permitir à seguradora, precisamente, fazer tal indagação por via pericial. E mesmo em caso de eventualidade de fraude - com o que, aliás, fica prejudicada a natureza fortuita do próprio evento -, é sobre a seguradora que impende o ónus de provar que a ocorrência de facto integrador de qualquer das situações contratualmente previstas em sede de delimitação do risco foi causado dolosamente pelo tomador do seguro ou do segurado, o que se traduz num facto impeditivo do efeito jurídico potenciado por aquele ocorrência, nos termos conjugados do art.º 46.º da LCS e do n.º 2 do art.º 342.º do CC. Sucede que, no caso dos autos, a própria R. não construiu a sua tese de defesa sobre a eventualidade de fraude, por parte da A., como se alcança do alegado sob o artigo 30.º da contestação, quando afirma que “não pretende … atribuir qualquer processo de intenção à A. ou aos seus representantes”. E também não seguiu uma estratégia defensiva no sentido de provar qualquer situação expressamente excludente da cobertura do seguro nem qualquer circunstância tendente à descaracterização da fortuitidade do sinistro participado, mormente em sede da causa que lhe deu origem. O que a R. sustentou foi que, com base na perícia realizada, se lhe colocavam dúvidas quanto a saber se a rutura ocorrida na canalização em referência se deveu ao normal funcionamento da mesma ou se teria decorrido de ação externa, procurando, por essa via, reverter sobre a A. o ónus de provar a causa do sinistro. O certo é que da prova produzida resulta provado que “a inundação em causa ocorreu por força da rutura de um tubo flexível trançado exterior de alta pressão existente na casa de banho do estabelecimento da A.”, conforme resposta ao art. 1.º da base instrutória correspondente ao ponto 1.3 acima consignado. E, não obstante não ter sido selecionada matéria pertinente à demonstração daquela causa, já que a própria R. nem sequer o afirmara em termos de defesa por exceção mas apenas de forma dubitativa, o tribunal da 1.ª instância, considerou não se ter provado que o colapso do tubo flexível de devesse a ação externa ao funcionamento do mesmo. Significa isto que a A. provou a ocorrência de uma situação de risco como tal prevista na cláusula de cobertura, que consistiu na rutura de um cano ligado à rede de distribuição de água das instalações do estabelecimento comercial da mesma A., enquanto que a R. não alegou nem muito menos provou, como lhe competia, qualquer circunstância ou facto descaracterizador da fortuitidade daquele evento. Nesta linha de entendimento, é forçoso concluir, como se concluiu no acórdão recorrido pela verificação do sinistro, sem que tenha havido violação da regra do ónus da prova estabelecida no n.º 1 do art.º 342.º do CC nem de qualquer das restantes normas invocadas pela Recorrente. Termos em que improcede a revista, neste particular. 4.3. Quanto aos danos Neste capítulo, a A. alegou que do sinistro resultou a danificação dos 56 tapetes discriminados no art.º 25.º da petição inicial e que os mesmos tinham por ela sido adquiridos, em 05/07/2011, conforme a fatura reproduzida de fls. 16 a 18, no valor de custo total de € 113.519,20. E convém aqui recordar que da referida fatura constam tapetes não incluídos na lista discriminada no indicado artigo 25.º da petição inicial e que o tapete Y.Yali n.º 63, no valor declarado de € 187,80, e o tapete Balkan n.º 740, no valor declarado de € 1420,40, não constam sequer da referida fatura. Sucede que do ponto 1.4 da factualidade provada, correspondente à alínea C) dos factos assentes, na redação acima retificada, consta que, em 04-08-2011, foram retirados do estabelecimento da A. os tapetes referidos na lista apresentada sob o artigo 25.º da petição inicial, correspondente ao documento de fls. 24 e 25, os quais se encontravam desbotados e manchados. E dos pontos 1.5 e 1.6, correspondentes, respetivamente, às respostas dadas aos artigos 2.º e 4.º da base instrutória, resulta que, aquando da inundação, tais tapetes estavam no estabelecimento da A. e que foi na sequência dessa inundação que os mesmos ficaram desbotados e manchados. Por outro lado, da resposta negativa ao 3.º da base instrutória resulta não ter ficado provado que os tapetes referidos em 1.4, ou seja, os constantes da lista apresentada sob o artigo 25.º da petição inicial, correspondente ao documento de fls. 24 e 25, tivessem sido adquiridos pela A., em 05-07-2011, à sociedade AB21-DD, SA, pelo preço total de € 113.519,20”. Foi com base nessa factualidade que, no acórdão recorrido, se considerou provado o alegado dano nos referidos tapetes mas não o valor de aquisição dos mesmos, relegando-se a determinação do montante do prejuízo para liquidação ulterior. Com efeito, da factualidade provada decorre que, na sequência do sinistro em causa os 56 tapetes constantes na lista apresentada sob o artigo 25.º da petição inicial, correspondente ao documento de fls. 24 e 25, ficaram desbotados e manchados, o que se revela, por si só, suficiente para se ter por demonstrada a verificação de um dano relevante coberto pela garantia do seguro. Questão diferente é agora apurar o valor desse prejuízo. Ora, segundo a cláusula constante o artigo 19.º, com a epígrafe Determinação dos Valores Seguros: 2. Danos Materiais, inserta no capítulo VI, intitulado Valor Seguro, das condições gerais do contrato seguro em apreço: O capital seguro deverá corresponder ao preço corrente da aquisição para o segurado … Nessas circunstâncias, ainda se mostra viável, dentro dos limites dados por provados, apurar o valor do prejuízo, com referência ao preço corrente da aquisição dos indicados tapetes, em sede de liquidação ulterior, nos termos conjugados dos artigos 358.º, n.º 2, 360.º, n.º 4, e 609.º, n.º 2, do CPC. Termos em que improcede também neste ponto a revista. IV - Decisão Pelo exposto, com a retificação efetuada no ponto 3, acorda-se em julgar improcedente a revista, ainda que com fundamentação em parte diferente no que respeita à questão apreciada em 4.2, confirmando-se assim a decisão recorrida. As custas do recurso ficam a cargo da R./Recorrente.
Lisboa, 10 de março de 2016
Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)
Maria da Graça Trigo
Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria
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