Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NUNO PIRES SALPICO | ||
Descritores: | DESPACHO DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO CASO JULGADO NE BIS IN IDEM | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP20250514714/21.1PAVNG.P2 | ||
Data do Acordão: | 05/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DOS ARGUIDOS | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - O despacho de arquivamento do inquérito não faz caso julgado, embora o respetivo objeto de processo só possa ser reapreciado nesses mesmos autos nos termos do art.279º nº1 do CPP, onde se encontra afeto. O referido arquivamento não representa qualquer juízo absolutório ou de extinção do procedimento criminal, sobre os termos da responsabilidade penal. II- Embora os factos desse inquérito arquivado lhe continuem afetos, não está também diretamente em causa o princípio ne bis in idem, embora subsista como corolário do mesmo, como preventivo à sua quebra, pela aludida afetação dos factos ao processo, como o único lugar onde poderão ser reavaliados (e que somente ali pertencem), e não num novo inquérito. III - A decisão que determine apensar um inquérito arquivado, integrando o respetivo objeto deste processo, implica ela própria uma reabertura do inquérito arquivado.” | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo: 714/21.1PAVNG.P2
Acordam, em conferência, os juízes da 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
No Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo proferiu-se acórdão que julgou da seguinte forma: “Nos termos expostos, acordam os juízes que compõem este Tribunal Coletivo em julgar a acusação parcialmente procedente, por provada, pelo que, consequentemente: 1. Absolvem a arguida AA da prática de um crime de introdução em local vedado ao público p. p. pelo art.º 191 º do Código Penal; dois crimes de ameaça agravada p. e p. pelo artº 153º, nº1 e e 155º, nº1 als a) e b) com referência ao art.º 131º do Código Penal; um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.º 143º, nº1 e 145º, nºs 1 al a) e 3 com referência ao art.º 132º, nº2, al c) do Código Penal, na pessoa do assistente BB; um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143 /1 do Código Penal na pessoa do assistente CC e de um crime de dano p. e p. pelo art.º 212/1 do Código Penal (ofendido BB); 2. Absolvem o arguido CC da prática, em autoria material, de 2 (dois) crimes de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Código Penal (em relação à ofendida AA); 3. Absolvem o arguido CC da prática 1 (um) crime de violência doméstica agravada previstos e punidos pelo art. 152º nº 1 al. d) e e) e nº 2 al. a) do Código Penal (em relação ao menor DD); 4. Condenam o arguido CC, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo art.152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do Código Penal (em relação à ofendida AA), na pena de 3 (três) anos de prisão; 5. Condenam o arguido CC na pena acessória de proibição de contactos com a vítima AA durante o período de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho da mesma – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal; 6. Condenam o arguido CC, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 143º e 145º, n.º 1 al. a) do Código Penal (em relação à ofendida AA), na pena de 1 (um) ano de prisão; 7. Em cúmulo jurídico, aplicam ao arguido CC a pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, a qual suspendem na sua execução por 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, sujeita a regime de prova, devendo do mesmo constar obrigatoriamente a obrigação de frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica e subordinada ao cumprimento da pena acessória que lhe é aplicada; 8. Condenam o arguido CC, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de injúria, previsto e punido pelos arts. 181º, n.º 1 do Código Penal (em relação à ofendida AA), na pena de 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de €6 (seis), perfazendo o montante de €240 (duzentos e quarenta euros); 9. Condenam o arguido CC nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (cf. artigo 513.º, nºs 1 a 3, do CPP e artigo 8.º, n.º 9, do RCP, por referência à tabela III); 10. Condenam o arguido CC a pagar a AA, o montante de € 3250 (três mil duzentos e cinquenta euros), acrescido de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento; 11. Custas do pedido de indemnização civil a suportar pelo demandado na proporção do seu decaimento; 12. Condenam o arguido CC a pagar a AA, o montante de € 350 (trezentos e cinquenta euros), acrescido de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento; 13. Sem custas do pedido de indemnização civil nos termos do art. 4º al. n) do RCP. 14. Absolvem o arguido BB da prática de dois crimes de sequestro, p. e p. pelo art. 158º, n.º1 e n.º 2 al. e) do C.Penal; 15. Absolvem o arguido BB da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143º e 145º, n.º 1 do C.Penal; 16. Condenam o arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelos arts. 143º, n.º 1 do Código Penal (em relação à ofendida AA), na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €10 (dez), perfazendo o montante de €1200 (mil e duzentos euros); 17. Condenam o arguido BB nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (cf. artigo 513.º, nºs 1 a 3, do CPP e artigo 8.º, n.º 9, do RCP, por referência à tabela III); 18. Condenam o arguido BB a pagar a AA, o montante de € 500 (quinhentos euros), acrescido de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento; 19. Sem custas do pedido de indemnização civil nos termos do art. 4º al. n) do RCP. ***** Vai proceder-se ao depósito do acórdão (cf. artigo 372.º, nº5, do CPP). ***** Após trânsito em julgado: a) comunique à Equipa da D.G.R.S.P. territorialmente competente; b) comunique o presente acórdão à S.G.M.A.I., nos termos e para os efeitos do artigo 37.º, nºs 1 a 4, da Lei n.º 112/09, de 16.09; c) remeta boletim à D.S.I.C.. * Inconformado, vem os arguidos CC e BB recorrer desse acórdão,
Da nulidade do acórdão - Da fundamentação da matéria de facto provada e não provada do acórdão recorrido resulta uma verdade que, salvo o devido respeito, fica longe de ser perceptível. - O Tribunal recorrido, para motivar os factos que deu como provados, limita-se a dizer que a ofendida prestou um depoimento «seguro, sentido e coerente», que EE prestou um depoimento «genuíno, sincero, sentido e desinteressado», depois descrevendo o que cada uma disse. - A juntar a isso, diz o mesmo Tribunal que tomou em consideração os seguintes documentos: «- Assento de nascimento constante de fls. 182 - menor DD; - Registos clínicos constantes de fls. 526, 527 e 528 - registo de episódios depressivos da ofendida AA de junho a agosto de 2015 - pós parto; - Relatório de perícia de avaliação do dano corporal constante de fls. 200 a 201 v. no que concerne aos factos ocorridos em 5.11.2016 e a dores sofridas pela mesma; - Relatório de perícia de avaliação do dano corporal constante de fls. 141 a 143 - ocorrência do dia 23.06.2021 e constatação de lesões no crânio, face, dois braços e membro inferior direito; - Registos constantes de fls. 56 e 145 a 146 v. relatório da urgência para a polícia e verbete de socorro e transporte na ambulância no dia 23.06.2021; - Registos clínicos constantes de fls. 334 a 335 v. - dia 23.06.2021; - Fotogramas constantes de fls. 124 a 127 ilustrativos das lesões sofridas pela ofendida AA no dia 23.06.2021; - Documento constante de fls. 348 a 349 v. - ata de conferência de partes relativa ao menor DD». - Já para sustentar os factos não provados, o Tribunal limita-se a uma frase: «No que se refere aos factos não provados estes decorreram da ausência de mobilização probatória bastante suscetível de convencer o Tribunal da sua verificação». - A questão que se coloca, em primeiro lugar e quanto aos factos provados, é saber se dizer que o depoimento de determinada pessoa foi «seguro, sentido e coerente», e que outro se mostrou «genuíno, sincero, sentido e desinteressado», dá integral cumprimento ao artigo 374.ᵒ, n.ᵒ 2, do Código de Processo Penal.
- A segunda questão prende-se com saber quais os factos que cada um dos documentos citados prova. O Tribunal teve os mesmos em consideração, disso não resistem dúvidas, mas fica por perceber se os mesmos desses factos, e quais. - Mas se quanto aos factos provados já exigente se torna perceber a convicção formada, quanto aos factos não provados a percepção é, e salvo o devido respeito, impossível. - Quanto a estes não se percebe, tampouco, quais as provas que constam dos autos que os pretendiam demonstrar, se é que existem, isto é, se a «mobilização probatória» existiu e não convenceu, e porquê, ou se simplesmente não existiu. - Ora, pretendendo os arguidos/ assistentes exercer o seu direito ao recurso, quer quanto à matéria factual provada, quer quanto àquela não provada, importa que lhe sejam dados a conhecer os motivos pelos quais assim se decidiu, o que, se repete, não se extrai do acórdão recorrido. - E a respeito, tem vez a lição do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-04-2010, Processo n.ᵒ 318/03.0GCMMN.E2, disponível em dgsi.pt: «1. A fundamentação da sentença é indispensável com vista à sua impugnação, tornando funcional a relação entre o primeiro e o segundo graus de jurisdição – não só as partes podem valorizar melhor a oportunidade da impugnação e individualizar as suas razões quando, através da motivação, conhecem as razões porque o Juiz decidiu de determinada forma, como ainda o Tribunal de recurso fica em melhor posição de formular o seu juízo sobre a sentença impugnada quando conhece a argumentação, de facto e de direito, de que ela é resultado. 2. A fundamentação não deve ser uma espécie de assentada em que o Tribunal reproduz os depoimentos que ouviu, ainda que de forma sintética, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, quando haja vários. O que na fundamentação tem que resultar claro, de modo a permitir a sua reconstituição, é a razão da decisão tomada relativamente a cada facto que se considera provado ou não provado. A fundamentação da decisão há-de permitir ao Tribunal de recurso uma avaliação cabal e segura da razão da decisão adoptada e do processo lógico-mental que lhe serviu de suporte. 3. A fundamentação da matéria de facto revela-se como um relato acrítico das provas produzidas em julgamento, se através dela não permite discernir as razões que levaram o Tribunal recorrido a dar como provados determinados factos e não outros». 1. Em suma, e naquele que nos parece ser o melhor dos entendimentos, o acórdão proferido é nulo por omissão do exame crítico das provas, em face do disposto nos artigos 374.ᵒ, n.ᵒ 2, e 379.ᵒ, n.ᵒ 1, alínea a), do Código de Processo Penal, o que deve ser declarado.
Matéria factual provada - Não obstante, e ainda que fosse de entender que a nulidade apenas se verifica quanto à falta de fundamentação da matéria factual não provada, sempre se diria, quanto à matéria factual provada, que a fundamentação do acórdão recorrido está longe de se sustentar na livre apreciação da prova, antes se verifica uma verdadeira íntima convicção do julgador, sem conclusões lógicas e motivadas. - Diz-se no acórdão de que se recorre o seguinte: «Obviamente que os depoimentos dos arguidos BB e CC foram no sentido de negar os factos que lhe foram imputados procurando até, ao invés, conferir responsabilidade exclusiva à ofendida AA nos factos ocorridos a 23.6.2021 em que referem que apenas aquela os agrediu, o que não é minimamente credível face à disparidade de serem dois homens perante uma mulher e numa situação de tensão latente relacionada com a filho da ofendida e do arguido CC e com o exercício das responsabilidades parentais/entregas do menor. Chegaram mesmo a dizer que a ofendida se autoinfligiu lesões, o que é de todo inverosímil atentas as lesões ilustradas nos autos através das fotografias juntas pela mesma. De qualquer forma, o conjunto da prova produzida e já acima analisada, corrobora a versão dos factos trazida aos autos pela ofendida AA, não tendo sido as declarações dos arguidos CC e BB e das testemunhas FF e GG, desacompanhadas de outros meios probatórios, suscetíveis de infirmar tal conclusão. Na verdade, a versão dos factos trazida pelos arguidos, sustentada também pelos depoimentos de FF, mulher e mãe respetivamente dos arguidos, e de GG, companheira do arguido CC à data da ocorrência dos mesmos, não tem suporte em qualquer elemento clínico quanto a eventuais lesões sofridas pelos mesmos contando apenas com as fotografias de fls. 661 a 664 (alegadas lesões sofridas por ação da ofendida) que estranhamente não foram juntas em sede de inquérito/queixa apresentada pelos mesmos em 24.6.2021 e 25.6.2021 mas apenas e tão só com o requerimento de abertura de instrução entrado em juízo em 29 de março de 2023, quase dois anos depois da data dos factos aqui em apreço. Diga-se que estas, apesar de datadas, não confirmam a ocorrência das agressões naquela ocasião já que tais datas podem ser livremente configuradas e colocadas nas fotografias. Também não existe nos autos qualquer relatório pericial que possa confirmar as alegadas lesões sofridas pelos dois queixosos. Estranha-se também que a queixa apresentada por BB esteja estribada num relato escrito em duas páginas em que a letra é claramente de caligrafia feminina e com um discurso bastante aproximado do que nos trouxe a testemunha GG. Todas estas testemunhas foram no essencial concordantes entre si ao que não serão estranhos os laços familiares que os ligam e ligavam à data relativamente à testemunha GG já que esta mantem relação de amizade com o arguido CC, sendo visita frequente à casa dos pais deste. O depoimento da testemunha HH, irmão do CC e filho do BB, em suma, atestou que o seu irmão e a AA discutiam muito, não tinham uma boa relação e que, por mais que uma vez lhes pediu para não terem discussões à frente do menor DD». - Ora, «obviamente que os depoimentos dos arguidos BB e CC foram no sentido de negar os factos que lhe foram imputados», no entanto, fica a questão de saber qual o motivo da conclusão «obviamente»... - Por certo, o Tribunal a quo olvidou, erradamente, que AA é também arguida nos autos, e que, quer CC, quer BB, são assistentes nos mesmos. - Isto para dizer que nem o facto, já de si errado, de as posições processuais de uns e outros serem diferentes justifica que se atribua mais credibilidade a uns do que a outros. - O que o Tribunal a quo diz, em suma, é que há uma versão, sustentada por CC, BB, FF e GG, que não contraria o depoimento «seguro, sentido e coerente» de AA, nem o depoimento «genuíno, sincero, sentido e desinteressado» de EE, não porque aquelas pessoas não são credíveis, mas porque se encontram «desacompanhadas de outros meios probatórios, suscetíveis de infirmar tal conclusão». - Ora, mas por que motivo as declarações dos também assistentes CC e BB, assim como os depoimentos das testemunhas FF e GG, para terem credibilidade necessitavam de ser acompanhadas de outros meios probatórios? - Na verdade, o próprio depoimento da testemunha EE é considerado «desinteressado» quando a mesma referiu em audiência de julgamento ser «amiga» (e «como irmã») da arguida/ofendida AA (00:00:59; 00:01:00) e «há treze anos» (00:01:28), tendo, inclusive, já residido com a mesma, passando regularmente as épocas festivas em conjunto (00:05:26) – Cfr. Sessão de dia 23-10-2024. - Não se entende motivo tais declarações e depoimentos não se bastam a si próprias? O Tribunal não diz nem explica qual o motivo que leva a afastar um meio de prova tão válido quanto aqueles a que atendeu, tornando a decisão inintelegível. - Mas, salvo o devido respeito, o Tribunal faz mais: é que, desacreditando a versão do arguido/assistente BB, acaba por dar credibilidade a quem a confirma: «- o depoimento sincero e isento do agente da PSP II, agente da Polícia de Segurança Pública, que elaborou o auto de notícia de fls. 46 e confirmou o seu teor. Elaborou também outro auto de notícia na mesma situação - Apenso 713, fls. 3 e pensa existir ainda mais um auto de notícia relacionado com esta situação. Descreveu que se deslocou ao local no dia ali assinalado sendo que se recorda de duas pessoas, a vítima e uma amiga. A senhora foi assistida pelo INEM e depois foi ao hospital falar com ela apresentando a mesma marcas de agressões e os ferimentos que estão mencionados no auto de notícia. Recorda-se apenas de ter perguntado a um sr. de idade se queria ir ao hospital e ele disse que não - o Sr. BB tinha os óculos estragados e tinha uma marca no rosto (não tendo este Tribunal apurado que esta marca proviesse de qualquer agressão por parte da arguida AA) (...)». - Em suma: BB não é credível, mas quem confirma o que o mesmo disse quando referiu marcas no rosto e óculos estragados merece positiva valoração. - O erro na apreciação da prova é, pois e também, por demais evidente. - Os arguidos/assistentes negaram a versão da acusação, do passo que a arguida/assistente a confirmou. - Em primeiro lugar, fica por perceber o motivo que leva o Tribunal a acreditar mais numa versão do que noutra, tanto mais porque apenas se reporta à consequência e já não à causa: «o que não é minimamente credível face à disparidade de serem dois homens perante uma mulher e numa situação de tensão latente relacionada com a filho da ofendida e do arguido CC e com o exercício das responsabilidades parentais/entregas do menor». - Ora, só se chega à parte de «serem dois homens perante uma mulher» depois de se atribuir, explicando o motivo, credibilidade à mulher e retirando, explicando o motivo, credibilidade aos dois homens, sendo que, como resultou aliás evidente em sede de audiência de julgamento, o facto de o arguido BB ser uma pessoa de avançada idade e com clara fragilidade física e com evidentes dificuldades locomotoras.
1. Para além disso, a «situação de tensão latente relacionada com a filho da ofendida e do arguido CC e com o exercício das responsabilidades parentais/entregas do menor» verifica-se quer para o lado do arguido, quer para o lado da arguida (e não apenas ofendida), não se percebendo por que motivo tal circunstância justifica a acção dos «dois homens», mas já não justifica a acção da «mulher». 1. Também assim, o Tribunal apenas se reporta à situação alegadamente passada no ano de 2021, mas nada diz a respeito do motivo pelo qual as declarações dos arguidos e da testemunha FF não é de levar em conta quanto à demais matéria dada como provada relativamente aos anos anteriores. 1. Em suma, a fundamentação da matéria de facto provada é insuficiente para que a sindicância da mesma seja levada a efeito condignamente. 1. Não obstante, sempre se dirá que não se alcança nenhuma razão lógica para que os arguidos e as testemunhas FF e GG e EE. 1. E não se alcança, não porque se põe a causa a livre apreciação da prova, mas porque o Tribunal não dedica uma só palavra a explicar. 1. Havendo versões contraditórias, e se se atribui credibilidade a uma delas, mas não se retira credibilidade à outra, então natural é concluir que nada existe que possa afastar essa credibilidade, devendo os factos ser dados como não provados, porque se gera a dúvida a respeito. 1. Donde, devem os factos da acusação pública, da acusação particular e dos pedidos de indemnização civil ser dados como não provados, após se absolvendo os arguidos em conformidade.
Medida concreta da pena - Mesmo que não se entenda como acima, sempre se dirá que as medidas concretas das penas aplicadas são extraordinariamente exageradas, não apenas atendendo ao contexto dos factos, às consequências de tais factos, ou melhor, à falta de consequências de monta, bem como à circunstância de ambos os arguidos contarem com um passado criminal isento de repreensão e não terem necessidades de reintegração. - Nessa conformidade, devem todas as penas aplicadas ser reduzidas ao seu limite mínimo, porque só assim consentâneo com o artigo 71.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal.
Pena acessória de proibição de contactos - Foi o arguido CC condenado na pena acessória de proibição de contactos com a arguida com o seguinte fundamento: «subsistindo ainda algumas necessidades de proteção da vítima, entendemos ser de aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio com a ofendida incluindo o afastamento da residência ou do local de trabalho desta (não havendo razões ponderosas para que o seu cumprimento deva ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância), pelo período de 3 anos e 4 meses». - A questão premente é: a haver necessidades, quais são as mesmas? O Tribunal nada diz, carecendo de fundamentação a pena aplicada, pelo que tal decisão é nula, o que expressamente se invoca. - Ainda que assim não se entenda, qual a necessidade de tal pena se foi a arguida/vítima quem, durante o processo, nem tampouco se dignou a responder ao despacho que determinou a sua pronúncia a respeito de saber se a mesma pretendia manter a teleassistência de que gozava? (cf. despacho de 26-07-2024). - Donde, deve tal pena acessória, se não se entender por aquela nulidade, ser desaplicada por não se verificar a necessidade da mesma. - O arguido CC não pretende ter qualquer contacto com a arguida, mas tal pena impede que o mesmo, aquando de uma qualquer actividade que envolva o filho que tem em comum com a arguida, possa estar presente se aquela também estiver. - Pelo que, caso não se entenda a mesma deve ser desaplicada, deve a mesma ser reduzida ao mínimo legal.
Mais alegou as seguintes conclusões:
- O presente recurso tem como objecto as matérias de facto e de Direito expostas na sentença recorrida. - Deve o arguido CC ser absolvido da prática dos factos dados como provados no acórdão recorrido até ao ano de 2016, por violação do princípio do ne bis in idem. - Deve o acórdão proferido ser declarado nulo por omissão do exame crítico das provas, em face do disposto nos artigos 374.ᵒ, n.ᵒ 2, e 379.ᵒ, n.ᵒ 1, alínea a), do Código de Processo Penal. - Se assim não se entender, deve o acórdão proferido ser declarado nulo, no que respeita exclusivamente à motivação da matéria de facto não provada, por omissão do exame crítico das provas, em face do disposto nos artigos 374.ᵒ, n.ᵒ 2, e 379.ᵒ, n.ᵒ 1, alínea a), do Código de Processo Penal. - Se assim não se entender, devem os factos da acusação pública, da acusação particular e dos pedidos de indemnização civil ser dados como não provados, após se absolvendo os arguidos em conformidade. Se assim não se entender, devem as penas aplicadas ser reduzidas ao seu limite mínimo, porque só assim consentâneo com o artigo 71.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal. Se assim não se entender, deve a pena acessória de proibição de contactos com a arguida, aplicada ao arguido CC, ser declarada nula por falta de fundamentação. Se assim não se entender, deve a pena acessória de proibição de contactos com a arguida, aplicada ao arguido CC, ser desaplicada, por inexistência de necessidade da mesma. Se assim não se entender, deve a pena acessória de proibição de contactos com a arguida, aplicada ao arguido CC, ser reduzida ao mínimo legal. Assim decidindo, V. Exas. hão-de repor a Justiça * Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP. Ao requerimento do arguido sobre a arguição do Ne bis in idem, o MP veio requerer: “junto da primeira instância, pugnando pela “O inquérito a que se alude no requerimento com a ref. 40381527 já se encontra incorporado nos presentes autos, desde 14.09.2021. Veio, contudo, agora o arguido/assistente CC invocar que esse inquérito se encontrava arquivado e, não tendo sido proferido despacho pelo MP a determinar a sua reabertura e por não terem surgido factos novos, não podem ser valorados pelo tribunal tais factos. Estranha-se que apenas decorridos mais de 3 anos venha o arguido/assistente invocar tal questão, sendo certo de que, configurando a falta de despacho a determinar a reabertura desse inquérito uma mera irregularidade, não foi atempadamente suscitada, pelo que se mostra sanada (artigo 123º do C.P.P.). De todo o modo sempre se dirá o seguinte: o inquérito n.º ... foi incorporado nos presentes autos em fase de inquérito, sendo que, não obstante inexistir despacho expresso no sentido da sua reabertura, decorre implícita da tramitação do inquérito essa reabertura, ao determinar-se a sua incorporação nos autos.”. E decidiu o tribunal nos seguintes termos: “Por despacho datado de 16.07.2021 foi determinada, pela Digna Magistrada do M.ºP.º titular do inquérito, a incorporação, nestes autos, dos Inquéritos ..., ... e .... O inquérito a que se alude no requerimento do arguido CC com a ref.ª 40381527 - Processo n.ᵒ ... - já se encontra incorporado nos presentes autos, desde 14.09.2021 – vd. Informação com a ref.ª 40420013. Não existiu assim qualquer despacho de arquivamento ou de reabertura de inquérito relativamente ao Inquérito ..., mas sim a sua apreciação, nestes autos, em conjunto com a restante factualidade constante dos demais inquéritos apensados, culminando com o despacho final proferido naquela fase processual. Pelo exposto, indefere-se ao requerido – que aqueles factos devem ser tidos por não escritos, não devendo o Tribunal deles conhecer.”. Desse despacho não foi apresentado recurso. Seja como for, sempre se dirá o seguinte: No inquérito ... foi proferido despacho de arquivamento nos seguintes termos: “II. Denunciou a PSP que no dia 5 de novembro de 2016 CC, no decurso de uma discussão teria agredido a sua companheira AA, desferindo-lhe um safanão na mão, fazendo com que o telemóvel que trazia caísse ao chão, ao mesmo tempo que a injuriava. Volvidos alguns minutos puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe um murro na cabeça. Naquela ocasião a denunciante teria também agredido o denunciado, desferindo-lhe palmadas nas costas (processo apenso). Os factos ocorreram na presença do filho menor de 2 anos de idade. A situação descrita foi comunicada à CPCJ. Não careceram de receber tratamento médico. Não se localizaram processos com os mesmos intervenientes. Tais factos são susceptíveis de consubstanciar, em abstracto, a prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º1, al. b), do Cód. Penal. Realizaram-se as diligências de prova tidas por convenientes, úteis e necessárias ao apuramento da verdade dos factos participados (cfr. artigo 262º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Para o efeito, foram inquiridos os ofendidos que, ao abrigo do disposto no artigo 134º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, recusaram prestar depoimento. Declararam contudo, que não desejavam procedimento criminal um contra o outro e que se encontravam reconciliados estando a relação estável, não tendo ocorrido mais desavenças entre o casal – cf. fls. 42, 43. Não há notícia da ocorrência posterior de factos da mesma natureza – cf. fls. 48 e 55. Não foram apuradas testemunhas dos factos. Realizado o pertinente exame médico-legal não foram observadas lesões – cf. fls. 46 e 53 Atenta a postura dos ofendidos e a ausência de testemunhas, não houve constituição de arguido. Cumpre avaliar a prova produzida e decidir. Dispõe o artigo 283.º do Código de Processo Penal que, encerrado o inquérito, o Ministério Público deve acusar o(s) arguido(s) sempre que tenha recolhido indícios suficientes de que ele cometeu factos que são qualificados pela lei penal como crime. Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena. Atendendo a que os ofendidos não prestaram declarações, a verdade é que os indícios recolhidos se tornem insuficientes para afirmar que os denunciados tenham actuado do modo descrito. Por outro lado, estando os mesmos reconciliados é de prever que mantenham a postura assumida. Isto não significa, de modo algum, que os factos denunciados não tenham ocorrido, ou que a terem ocorrido não revistam dignidade penal, mas significa apenas que face aos indícios de que ora se dispõe, tal facto, sem qualquer elemento de prova que o corrobore, é insuficiente para fundar um juízo de censura sobre os denunciados. Ora, no caso em apreço, analisando os factos e a prova recolhida nos autos e mostrando-se esgotadas as diligências que se afigurem úteis para o apuramento e esclarecimento dos factos, resulta que os autos não permitem formular um juízo de persuasão da culpa do denunciado, de molde a gerar a convicção de que virá a ser condenado pelo crime em causa. Pelo exposto e por se afigurar inútil prosseguir o presente inquérito, determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 2, sem prejuízo da sua reabertura caso surjam novos elementos de prova.”. Ou seja, o MP arquivou o inquérito, por falta de prova, atenta a recusa dos ofendidos a depôr e a ausência de qualquer outra prova e fê-lo nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 2 do C.P.P.. Contudo, in casu, procedeu-se à reabertura do inquérito – por apensação determinada a 17.07.2021 - não só porque dos aditamentos e riscos de avaliação elaborados pelo OPC constavam alusões feitas pela ofendida quanto a factos relativos ao apenso em questão, mas porque também foi produzida outra prova, a saber, as declarações prestadas por EE – o que sucedeu a 14.07.2021 – tendo a mesma se pronunciado sobre o episódio que presenciou (2021) mas também sobre o que havia tido conhecimento do relacionamento do casal nos anos anteriores, corroborando, assim, parcialmente, os factos que se investigavam naquele apenso, o que consubstanciou, sem dúvida, a presença de novos elementos de prova. Apenas posteriormente a tal despacho, se determinou a inquirição da ofendida, pelo que, nem sequer se pode aqui falar em reabertura do inquérito motivada por declarações da ofendida que, em inquérito apenso, se havia recusado a depôr. O facto de alguns dos episódios que foram levados à acusação constarem do inquérito apenso, inicialmente arquivado, nos termos do artº 277º, nº 2, do CPP, por falta de colaboração da vítima, não é ovbviamente impeditivo de ser desenvolvida, posteriormente, investigação sobre esses mesmos factos, depois da ocorrência de novos episódios e de produção de nova prova sobre eles. Quanto à inexistência de um despacho a determinar a reabertura do inquérito: o inquérito n.º ... foi incorporado nos presentes autos em fase de inquérito, sendo que, não obstante inexistir despacho expresso no sentido da sua reabertura, decorre implícita da tramitação do inquérito essa reabertura, ao determinar-se a sua incorporação nos autos. Seja como for, ainda que configurando a falta de despacho - a determinar a reabertura desse inquérito - uma mera irregularidade, não foi atempadamente suscitada, pelo que se mostra sanada (artigo 123º do C.P.P.). 2.3. Alegam os recorrentes que o acórdão proferido deve ser declarado nulo por omissão do exame crítico das provas, em face do disposto nos artigos 374.ᵒ, n.ᵒ2, e 379.ᵒ, n.ᵒ 1, alínea a), do Código de Processo Penal, também no que se refere aos factos dados como não provados. 2.1. Dos factos dados como provados: (…). Apreciando: Conforme dispõe o art. 374º n.º 2 do CPP, da sentença, para ser válida, tem de constar, entre outros, «a enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.». A lei exige, pois, uma menção especificada dos meios concretos de prova, em que se baseou a sentença para dar determinados factos como provados e outros como não provados. E não satisfaz esta exigência legal, a mera afirmação de que determinado facto não se provou, sem a indicação da fonte que lhe subjaz, já que ainda que por recurso a um processo lógico dedutivo, se possa afirmar como não provados os factos incompatíveis com os provados, aqueles apenas se podem assim considerar, se houver a certeza de que foram investigados. A lei culmina com a sanção da nulidade, a sentença que não contiver as menções supra descritas – cfr. o disposto no art. 379º n.º 1 al. a) do C.P.P.. Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos “thema decidendum”, nem os meios de prova “thema probandum”, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. A fundamentação das sentenças penais deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e como não provados outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida – é este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais. A sentença penal deve conter, assim, além da indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, também os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação. Isto, de forma a permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (neste sentido, entre outros, o Acórdão do T.C. de 2/12 /1998, in BMJ n.º 460. pág. 191). Esclarece o art. 374º n.º 2, in fine, do C.P.P. que a sentença tem que indicar as provas que concorreram para a formação da convicção do tribunal. A indicação dos meios de prova a que se refere o artigo 374º, n.º 2 do C.P.P., visa fundamentalmente assegurar a inexistência de violações ao princípio da inadmissibilidade da consideração de provas proibidas ou ilegalmente obtidas. A sentença penal, para obedecer às exigências legais de fundamentação, tem, pois, de concretizar o meio probatório gerador da convicção do julgador acerca dos factos que integram matéria essencial à caracterização do crime e das circunstâncias juridicamente relevantes para a decisão (cfr. Ac. do STJ de 5/02/1998, in www.dgsi.pt.), devendo ainda, indicar as razões de credibilidade, ou da força decisiva, reconhecida aos meios de prova. Assim, a sentença há-de explicar-se por si mesma, o seu texto há-de ser de tal modo claro que demonstre qual a sequência lógica seguida, quais os raciocínios efectuados, quais as regras da experiência ou do senso comum a que foi lançada mão, quais as normas e institutos jurídicos aplicadas. A lei exige, assim, para além da mera indicação dos meios de prova, que se proceda ao exame crítico da prova produzida em julgamento, isto é, à explicitação das razões que levaram o tribunal a dar como provados uns factos e a dar outros como não provados sob pena de a sentença incorrer numa nulidade não insanável. Tal exigência destina-se a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo portanto uma decisão ilógica e arbitrária – cfr. Ac. do STJ 19/09/1991, in www.dgsi.pt. In casu, da decisão ora recorrida constam os factos provados e não provados, a indicação dos meios de prova e os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados os factos levados à matéria de facto provada e como não provados os factos levados à matéria de facto não provada. O tribunal recorrido fundamentou devidamente a sua convicção, pelo que, nenhuma nulidade da sentença se verifica. Basta ler a fundamentação da matéria de facto, para se perceber que o tribunal, para além da mera indicação dos meios de prova, procedeu a um extenso exame crítico da prova produzida em julgamento - das resultantes das declarações das testemunhas, das declarações dos arguidos - dos exames periciais e prova documental, isto é, procedeu à explicitação completa das razões que levaram o tribunal a dar como provados uns factos e a dar outros como não provados. Quanto a estes (não provados) importa ainda dizer o seguinte: entende-se igualmente como fundamentada a decisão quanto aos factos não provados, pois que, nessa matéria justificou o tribunal a decisão nos seguintes termos “No que se refere aos factos não provados estes decorreram da ausência de mobilização probatória bastante suscetível de convencer o Tribunal da sua verificação”. O tribunal avaliou, minuciosamente, cada elemento de prova e concatenou toda a prova produzida de forma acertada, fundamentando tal decisão. E concluiu, e bem, que os arguidos recorrentes, praticaram os factos que deu como provados. O que os recorrentes não concordam é com a apreciação da prova feita pelo tribunal e com a sua condenação e, por isso, atacam a fundamentação da matéria de facto para sindicar tal apreciação, sem, contudo cumprir minimamente o disposto no artigo 412º, n.º 4 do C.P.P.. De todo o modo sempre se dirá o seguinte: o que pretendem os recorrentes é que o tribunal superior considere que o tribunal a quo não devia ter acreditado em parte da prova testemunhal produzida e por si valorada, apenas porque faz dela uma apreciação diferente. Contudo, como já por várias vezes têm entendido os tribunais superiores, o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas sindicar aquele que foi feito, despistando e sanando os eventuais procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido suscitados em recurso. Na verdade, o tribunal de recurso não dispõe da relação de proximidade com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão, que só o princípio da imediação, intrinsecamente ligado ao da oralidade, assegura. O que significa que, sem dispor da apreciação directa e imediata da prova, ao tribunal de recurso cabe averiguar se existe um erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por se evidenciar que as provas valoradas foram provas proibidas ou foram valoradas com violação das regras que regem a apreciação da prova (neste sentido, entre vários outros, o Ac. de R.P. de 24.10.2007 no recurso penal n.º 3473/07- 4). A apreciação da prova produzida em audiência de julgamento que o recorrente invoca ter sido errada, foi efectuada com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, sendo com base e respeito neste princípio que iremos de seguida apresentar a nossa resposta à motivação. Os recorrentes contestam, então e apenas, não ter sido produzida em sede de audiência de julgamento, nem resultar da prova documental/pericial prova suficiente e credível para que o Tribunal recorrido os condenasse pela prática dos crimes pelos quais vieram a ser condenados, tendo sido erradamente valorada a referida prova, pois que, se bem apreciada, não serviria para dar como provados os factos dados como assentes e a sua subsequente condenação. Entendemos não assistir qualquer razão aos recorrentes. Vejamos: O princípio da livre apreciação da prova significa, por um lado, que na apreciação da prova a entidade decisória não deve obediência a critérios legalmente pré-estabelecidos, tendo o poder-dever de valorar a prova livremente, e significa, por outro, que a matéria de facto é decidida de acordo com a íntima convicção do julgador face ao material probatório disponível. Por outro lado, o artigo 127º do C.P.P., que consagra este princípio prevê que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, sendo que “A livre convicção é uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores (...) o julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação de prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia, e às máximas da experiência” (cfr. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, p. 298). É certo que a livre convicção não é sinónimo de convicção arbitrária e isto resulta claro do nº 2 do art. 374º do C.P.P., nos termos do qual a sentença deve conter “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. Para formar a tal convicção de que fala a lei é unânime o entendimento de que “desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais …” (neste sentido, o Acórdão da R.P. de 14.07.2004, no âmbito do processo 0412950). São, pois, fundamentais os princípios da oralidade e imediação. In casu, a decisão recorrida, como vimos, no que concerne à fundamentação, considerou provados os factos descritos na acusação que respeitam à actuação dos arguidos recorrentes da forma como deixou plasmado na matéria de facto provada, dando como não provados alguns factos da acusação e da instrução, por não ter sido produzida prova que os corroborasse. E fê-lo, no que se refere aos factos provados, fundamentando devidamente a imputação desses factos aos arguidos, agora recorrentes, em virtude de, na audiência de julgamento, ter sido produzida prova bastante nesse sentido, que, conjugada com a demais prova documental recolhida em sede de inquérito, permitiu ao tribunal formar a sua convicção. O tribunal não acreditou na versão dada pelos arguidos recorrentes, que negaram os factos que lhe foram imputados e que procuraram até, ao invés, conferir responsabilidade exclusiva à ofendida AA nos factos ocorridos a 23.6.2021 em que referem que apenas aquela os agrediu, o que não é minimamente credível face à disparidade de serem dois homens perante uma mulher e numa situação de tensão latente relacionada com a filho da ofendida e do arguido CC e com o exercício das responsabilidades parentais/entregas do menor. Chegaram mesmo a dizer que a ofendida se autoinfligiu lesões, o que é de todo inverosímil atentas as lesões ilustradas nos autos através das fotografias juntas pela mesma. O tribunal considerou como válida e verdadeira a versão dada pela ofendida AA, que foi corroborada pela testemunha EE, em quem o tribunal também acreditou. E considerou que as declarações dos arguidos CC e BB e das testemunhas FF e GG, não foram credíveis, pelas razões que expôs: Na verdade, a versão dos factos trazida pelos arguidos, sustentada também pelos depoimentos de FF, mulher e mãe respetivamente dos arguidos, e de GG, companheira do arguido CC à data da ocorrência dos mesmos, não tem suporte em qualquer elemento clínico quanto a eventuais lesões sofridas pelos mesmos contando apenas com as fotografias de fls. 661 a 664 (alegadas lesões sofridas por ação da ofendida) que estranhamente não foram juntas em sede de inquérito/queixa apresentada pelos mesmos em 24.6.2021 e 25.6.2021 mas apenas e tão só com o requerimento de abertura de instrução entrado em juízo em 29 de março de 2023, quase dois anos depois da data dos factos aqui em apreço. Diga-se que estas, apesar de datadas, não confirmam a ocorrência das agressões naquela ocasião já que tais datas podem ser livremente configuradas e colocadas nas fotografias. Também não existe nos autos qualquer relatório pericial que possa confirmar as alegadas lesões sofridas pelos dois queixosos. Estranha-se também que a queixa apresentada por BB esteja estribada num relato escrito em duas páginas em que a letra é claramente de caligrafia feminina e com um discurso bastante aproximado do que nos trouxe a testemunha GG. Todas estas testemunhas foram no essencial concordantes entre si ao que não serão estranhos os laços familiares que os ligam e ligavam à data relativamente à testemunha GG já que esta mantem relação de amizade com o arguido CC, sendo visita frequente à casa dos pais deste. O tribunal valorou, assim, toda a prova produzida em audiência de julgamento Perante a analise concatenada da prova, concluiu o tribunal – e bem – pela verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes pelos quais vinham os arguidos recorrentes acusados, da forma como deu como provado. 3. Doseamento das penas e aplicação da pena acessória. Alegam os recorrentes que as penas aplicadas devem ser reduzidas ao seu limite mínimo, porque só assim será consentâneo com o artigo 71.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal. O recorrente CC alega ainda que a pena acessória de proibição de contactos com a arguida deve ser declarada nula por falta de fundamentação ou, subsidiariamente, desaplicada, por inexistência de necessidade da mesma ou reduzida ao seu mínimo legal. Quanto à redução das penas aos seus limites mínimos, alegam os recorrentes, de forma genérica, que as penas são exageradas, atendendo ao cotexto dos factos, ás consequências de tais factos, ou melhor, à falta de consequências de monta, bem como à circunstância de ambos os arguidos contarem com um passado criminal isento de repreensão e não terem necessidades de reintegração. Não lhes assiste razão. Entendeu o tribunal que: “A culpa revelada pelo arguido CC é, para o tipo legal de crime de violência doméstica e dentro dos limites da sua conduta concretamente apurados, de mediana intensidade uma vez que o arguido agiu em todas as situações com dolo direto, provocou lesões físicas e psíquicas à sua então companheira, mantendo a sua conduta pelo período de aproximadamente cinco anos. Para o tipo legal de ofensa à integridade física qualificada e de injúria a culpa revelada por este arguido não é elevada tendo agido com dolo direto. No que se refere ao arguido BB e ao tipo legal de ofensa à integridade física simples a culpa revelada por este arguido é mediana tendo agido com dolo direto. As necessidades de prevenção geral são acentuadas, considerando a frequência com que vêm sendo cometidos crimes de violência doméstica, por vezes com consequências muito graves como o homicídio da vítima, bem como o sentimento de repúdio que os mesmos provocam na comunidade em geral. Em relação aos crimes de ofensas corporais e injúria as necessidades de prevenção geral são medianas atenta a frequência com que ocorrem nesta comarca. Já no que respeita às necessidades de prevenção especial estas são reduzidas, pois os arguidos são primários, estão bem inseridos laboral e familiarmente e, a nível social não se conhecem fatores de rejeição. Mais se atenta nas condições pessoais de cada um dos arguidos tidas como provadas. Tudo visto: a) variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de violência doméstica entre 2 e 5 anos de prisão, julgamos adequada a imposição de uma pena de 3 anos de prisão relativamente ao crime de violência doméstica cometido pelo arguido CC; b) variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de ofensa qualificada entre 30 dias e 4 anos de prisão, julgamos adequada a imposição de uma pena de 1 ano de prisão relativamente ao crime de ofensa qualificada cometido pelo arguido CC; c) variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de injúria entre 10 a 120 (art. 47º, n.º 1 do C.Penal) dias de multa, julgamos adequada a imposição de uma pena de 40 dias, à taxa diária de €6 (atenta a sua situação socioeconómica tida como provada) relativamente ao crime de injúria cometido pelo arguido CC. Tendo em conta o preceituado no art. 77º n.º 2 do Código Penal, deverá ser construída uma moldura penal entre os 3 anos de prisão e os 4 anos de prisão, onde o Tribunal deverá ter em conta os factos e a personalidade do agente, ou, como refere Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado”, apontando este autor como critério avaliativo a seguir o da “conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” para além de uma “avaliação da personalidade unitária” reconduzível ou não a uma tendência criminosa (in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, pág. 421). Assim, feita a avaliação global da gravidade dos ilícitos perpetrados pelo arguido e a sua personalidade revelada por diversas ocasiões neste tipo de práticas, reputa-se como necessária aplicar a pena unitária de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão. Variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de ofensa à integridade física simples entre 10 e 360 dias de multa (art. 47º, n.º 1 do C. Penal), julgamos adequada a imposição de uma pena de 120 dias, à taxa diária de €10 (atenta a sua situação socioeconómica tida como provada) relativamente ao crime de injúria cometido pelo arguido BB.”. Considerou, e bem, o tribunal o disposto no nº 2, do artº 71º, do Código Penal - todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal. E, bem doseou quer cada uma das penas, quer a pena única aplicada em cúmulo jurídico. Quanto à pena acessória: Lê-se na decisão recorrida: “O artigo 152.º do Código Penal prevê as seguintes penas acessórias relativas ao crime de violência doméstica: “(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. (…) Como o próprio elemento literal indica, a aplicação de qualquer destas penas acessórias não é automática, exigindo a ponderação dos contornos que o ilícito penal assumiu no caso concreto. (…) Por outro lado, subsistindo ainda algumas necessidades de proteção da vítima, entendemos ser de aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio com a ofendida incluindo o afastamento da residência ou do local de trabalho desta (não havendo razões ponderosas para que o seu cumprimento deva ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância), pelo período de 3 anos e 4 meses.”. Ora, não só se encontra fundamentada a sua aplicação – quando o tribunal refere que subsistem necessidades de protecção da vítima -, como também se mostra justificada a sua aplicação, pelo que, nenhum reparo haverá a fazer a este segmento do acórdão. Nesta conformidade, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se o douto Acórdão recorrido, com o que se fará JUSTIÇA * O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer: DA PRETENSA VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO NON BIS IN IDEM Alega o arguido CC que lhe foram imputados um conjunto de factos alegadamente decorridos entre 2013 e 2021, concluindo-se que em causa estão, entre o mais, três crimes de violência doméstica. Após, em sede de acórdão, o Tribunal a quo condenou o arguido recorrente pela prática de um crime de violência doméstica, tendo em consideração parte do período acima referida, à excepção de um episódio alegadamente passado no ano de 2021. Sucede, contudo, que os factos descritos na acusação até ao ano de 2016, inclusive, e após dados como provados em sede de acórdão, haviam já sido alvo de inquérito no âmbito do Processo n.ᵒ ..., tendo aí sido proferido despacho de arquivamento, já constante dos autos. Assim, ao levar em conta os factos deste inquérito, foi violado o princípio do non bis in idem neste segmento dos factos, devendo, pois, e quanto a eles, ser o recorrente absolvido. Invoca em favor da sua “dama”, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-10-2022, Processo n.ᵒ 657/20.6PDVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt: «I - A melhor doutrina vai no sentido de que, independentemente do seu real fundamento dogmático, o despacho de arquivamento que não seja objeto de intervenção hierárquica, nem dê lugar a requerimento de abertura de instrução, consolida-se na ordem jurídica. II - O inquérito só pode ser reaberto, quer nos casos previstos no artigo 277ᵒ, nᵒ 1, quer naqueles abrangidos pelo artigo 277ᵒ, nᵒ 2, ambos do Código Processo Penal, se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos nele invocados pelo Ministério Público. III - Significa isto que o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público para determinar o seu arquivamento, não podendo ser reaberto com base em factos novos ou uma nova qualificação jurídica daqueles objecto do arquivamento. IV - No arquivamento determinado por insuficiência de indícios, a preclusão da ação penal fica expressamente sob reserva da cláusula “rebus sic standibus”, ou seja, condicionada à superveniência de novos elementos de prova que permitam ao Ministério Público tomar uma decisão de mérito no final do inquérito, seja para acusar, seja para arquivar definitivamente, o que pressupõe a possibilidade de o inquérito ser reaberto». Esta pretensão foi renovada no presente recurso, pois já tinha sido objecto de decisão judicial expressa datada de 21/10/2024, que a indeferiu por falta de fundamento legal e que o recorrente não impugnou. Este indeferimento assentou nas seguintes considerações: «Por despacho datado de 16.07.2021 foi determinada, pela Digna Magistrada do M.ºP.º titular do inquérito, a incorporação, nestes autos, dos Inquéritos ..., ... e .... O inquérito a que se alude no requerimento do arguido CC com a ref.ª 40381527 - Processo n.ᵒ ... - já se encontra incorporado nos presentes autos, desde 14.09.2021 – vd. Informação com a ref.ª 40420013. Não existiu assim qualquer despacho de arquivamento ou de reabertura de inquérito relativamente ao Inquérito ... mas sim a sua apreciação, nestes autos, em conjunto com a restante factualidade constante dos demais inquéritos apensados, culminando com o despacho final proferido naquela fase processual. Pelo exposto, indefere-se ao requerido – que aqueles factos devem ser tidos por não escritos, não devendo o Tribunal deles conhecer». Ora, que dizer de tal pretensão? Sem pretender quebrar o elevadíssimo respeito por opinião divergente, e até, porventura, mais avisado e sedimentado entendimento (com a especial e inarredável ressalva que ao contrário dos “factos”, as opiniões não são “falsas” nem “verdadeiras”, e muito menos, a minha, constituirá o critério barométrico da solução jurídica ideal e infalível) não se concorda com o recorrente pelas seguintes razões, que se passam a enumerar. É certo que não houve qualquer despacho expresso, autónomo e formal de reabertura do inquérito n.º ..., mas isso não será obstativo a que se conheça da matéria de facto nele contida. Aliás, no rigor das coisas, a questão suscitada não se prende directamente com a existência ou falta dela do despacho de reabertura do inquérito, mas antes em saber se o arguido foi acusado e condenado por factos sobre os quais já recaiu decisão com efeitos de caso decidido. Porém, como veremos adiante, na realidade, estamos face a uma mera junção, conexão e reabertura de Inquéritos e não, perante o conhecimento de uma dada factualidade em fases ou processos distintos. O processo apensado n.º ... perdeu assim autonomia e individualidade para fazer parte integrante de um todo mais abrangente. Para além disso, a doutrina constante do aresto convocado pelo recorrente nas doutas alegações de recurso apenas reforça o exposto pois não tem aplicação ao caso concreto em discussão nos autos e pressupõe uma incidência factual bem diversa. Mas já lá iremos. Ora, o princípio non bis in idem encerra um direito fundamental de defesa dos cidadãos contra o ius puniendi do Estado, encontrando entre nós consagração expressa no artigo 29º, nº 5 da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P. e, segundo o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Estando em causa um direito, liberdade e garantia, tem o mesmo, aplicação directa, nos termos do artigo 18, nº 1 da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P., uma vez que esta norma é imediatamente operativa e self executing. Visou assim o legislador impedir que o mesmo agente possa ser confrontado com a reapreciação inesperada, através de novo processo, quanto a factos sobre os quais já tenha sido julgado. Ora, o processo penal tem natureza acusatória sendo o seu objecto fixado antes da fase de julgamento, na acusação ou no despacho de pronúncia, ficando os poderes de cognição do Tribunal vinculado a tal objecto – Principio da Vinculação Temática da acusação ou da pronuncia. Contudo, o objecto do processo não se fixa apenas nesses momentos, sob pena de se entender que o processo terminado na fase de inquérito por decisão de arquivamento não teria objecto, que tem. O inquérito é constituído por um conjunto de factos sobre os quais é proferido pelo Ministério Público um despacho final, em regra, de arquivamento ou de acusação (sem prejuízo dos mecanismos de diversão e consenso processual). Assim, o sentido de proibição de duplo julgamento é abrangido também pelo despacho de arquivamento do Ministério Publico – M.P. que se pronuncie sobre o objecto do processo de inquérito, mas sob a condição rebus sic stantibus. Tal decisão produz efeitos jurídicos preclusivos sujeitos àquela clausula quanto aos factos sobre os quais versou e incidiu a investigação do inquérito e o halo cognitivo do despacho de arquivamento. A questão do carácter tendencialmente definitivo das decisões de arquivamento do Ministério Público, a sua definição jurídica, bem como os seus efeitos intra e extra processuais tem sido debatida por referência à noção de “força análoga ao caso julgado” ou de “caso decidido”. No processo penal, o que está em causa é a ocorrência histórica de um facto qualificado na lei penal como crime, facto esse que será pressuposto da aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. Ora, se tal facto já foi objecto de um processo penal, não pode voltar a sê-lo, dado o princípio ne bis in idem, o qual resulta, aliás, do artigo 29º, nº 5, da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P.. Nesta situação, o caso julgado material tem uma função negativa relativamente a outros processos com o mesmo objecto, funcionando como pressuposto processual negativo. E tal função “consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão”, “sobre o mesmo crime”. “O «crime» deve considerar-se o «mesmo» quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formar, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, 1994, vol. III, pág. 34 e 39). Dispõe também o artigo 621.º do Código de Processo Civil – C.P.C., aplicável por força da remissão contida no artigo 4.º do Código de Processo Penal – C.P.P., que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”. Decorrendo dos programas norma dos artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil – C.P.C. que o caso julgado se verifica quando haja uma repetição da causa, o que pressupõe a identidade ou similitude de sujeitos, do pedido e da causa de pedir. Transpondo para o processo penal, reconduz-nos à questão do objecto do processo o qual em sede de inquérito é delimitado, pelo conjunto dos factos sobre os quais é proferido pelo Ministério Público um despacho final. É sabido que quanto aos despachos do Ministério Público não se deve convocar os pergaminhos caraterizadores do «caso julgado» ou decisão transitada em julgado. Ora, “já no domínio do Código de Processo Penal – C.P.P. de 1987, ANABELA MIRANDA RODRIGUES (Inquérito no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1988, p.76) pronunciou-se no sentido de que «o despacho de arquivamento (…) nunca terá a força de caso julgado que o torna definitivo. Isto quer dizer que aquela decisão apenas adquiriu uma força análoga à do caso julgado, que na doutrina se designa por caso julgado “rebus sic stantibus”». Reporta-se a referida autora à eficácia processual definitiva a atribuir ao despacho de arquivamento, condicionada à superveniência de novos elementos de prova – novos em relação aos já apreciados.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-01-2021, Processo nº 751/18.3PGLRS.L1-E (www.dgsi.pt). Ainda assim, dúvidas não subsistem de que a decisão final do inquérito é uma decisão tendencialmente definitiva (salvo nos casos do artigo 277.º, nº 2 do Código de Processo Penal – C.P.P. como veremos adiante) e, como tal, com força muito próxima do caso julgado clássico, ou seja, é um caso julgado rebus sic stantibus. No que concerne aos despachos de arquivamento do inquérito, nos termos do artigo 277.º do Código de Processo Penal – C.P.P., poderá o inquérito ser arquivado por prova de não verificação do crime, de o arguido não o ter praticado ou ser o procedimento legalmente inadmissível (nº 1) ou ainda, por falta de provas (nº 2). O despacho de arquivamento por falta de prova, nos termos do artigo 277, nº 2 do Código de Processo Penal – C.P.P., na medida em que não contém um juízo peremptório e categórico quanto aos factos, admite a reabertura do Inquérito, nos termos do artigo 279.º do Código de Processo Penal – C.P.P., “se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”. Assim, forma-se “caso decidido rebus sic stantibus” sobre o despacho de “mas apenas relativamente à matéria probatória apreciada nesse despacho” (Juiz Conselheiro MAIA COSTA, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-01-2021, processo n.º 751/18.3PGLRS.L1-5, consultado em www.dgsi.pt). Quanto ao que se deva entender por “novos elementos de prova”, deverá ser aferido com critério semelhante aos “novos meios de prova” que orientam a revisão da sentença, nos termos do artº 449, nº 1, alª d) do Código de Processo Penal – C.P.P. (neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Dezembro de 2007, pág. 726 e Jorge de Figueiredo Dias, in Código Processual Penal, vol. I, 1984, pág. 410 a 411). Assim, a reabertura do inquérito inevitavelmente contende com os princípios da segurança jurídica e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E nesta matéria, revertendo às considerações acima vertidas, “teremos de concluir que só poderão fundamentar a decisão de reabrir o inquérito, os elementos de prova que, sendo desconhecidos no Ministério Público à data do arquivamento, também não poderiam por este ter sido conhecidos nesse momento. E de igual modo no caso de uma testemunha ou vítima, vier a contradizer o seu depoimento, não pode o arguido ser prejudicado pelo facto de essa testemunha ou vítima na altura não ter proferido o seu depoimento. (…) Caso contrário (…) seria deixar nas mãos do ofendido o impulso processual para futuras acções penais, obrigando o arguido a defender-se de várias investigações e acusações, apresentando sucessivas queixas eventualmente em vários locais dando origem a diferentes inquéritos pelos mesmos factos” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7/03/2018, processo nº 38/16.6PBFUN.L1-3, consultado em www.dgsi.pt). Feitos estes breves prolegómenos, antes de mais o inquérito em equação n.º ... foi arquivado com base do artigo 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal – C.P.P. e não do n.º 1 do mesmo dipositivo isto é – id est – por falta de indiciação suficiente, o que consitui sempre um arquivamento dos autos transitório sob condição rebus sic stantibus. Com efeito, existe uma abismal diferença de sentido e de valor entre o arquivamento dos autos de inquérito com base no n.º 1 ou no n.º 2 do artigo 277.º do Código de Processo Penal – C.P.P., pois a estabilidade que aquele primeiro normativo pressupõe é bem mais densa e robusta do que aquela que o segundo normativo dispõe. Ao artigo 277.º n.º 1 do Código de Processo Penal – C.P.P. aplicam-se geralmente e v.g., a todas as situações de extinção do procedimento criminal, por homologação da desistência de queixa, falta de constituição de assistente e renúncia ao direito de acusação por parte do assistente nos crimes de natureza particular, morte, amnistia, prescrição, falta de imputabilidade penal e qualquer outra causa ablativa ou dirimente da responsabilidade criminal do agente, ou então nos casos de denuncias de crimes manifestamente impossíveis ou factos ostensivamente destituídos de relevância criminal. Este despacho de extinção do procedimento criminal ao abrigo do n.º 1 tem, claramente, efeitos processualmente endógenos e exógenos, impedindo que os referidos factos sejam de novos valorados no âmbito da imputação da responsabilidade criminal (acusação) e do seu julgamento (sentença). Por seu turno, o artigo 277.º n.º 2 do mesmo diploma legal está normativamente destinado e incide sobretudo sobre a valência e taxa de creditação das provas coligidas, das quais resulta uma falta de indiciação suficiente, isto é – id est – um resultado probatório manifestamente insuficiente e carente de indícios de que o agente terá praticado os factos, ou por noutras palavras as investigações conduziram a uma situação que não evidenciam com suficiência e clareza processuais o cometimento de qualquer crime, o que não quer dizer que o mesmo não tenha sido de facto efectivamente praticado pelo arguido, inviabilizando assim a dedução de qualquer acusação, que para além de ilegítima seria manifestamente ilegal. Assim as expectativas processuais e a segurança jurídica inerente a essas decisões possuem um conteúdo e geometria normativa variável consoante as mesmas se baseiem numa ou noutra disposição legal. Ora, aquele inquérito ... foi arquivado com base no artigo 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal – C.P.P.. Também foi apenso ao processo principal determinante da conexão, como forma de assim melhor compreender os factos, a personalidade do arguido e o pedaço de vida criminalmente relevante pois o crime de violência doméstica – V.D. que o arguido praticou era constituído por factos protelados no tempo e de execução reiterada ou sucessiva. Para além disso, após o despacho de arquivamento que encerrou o processo ... o arguido praticou factos criminalmente relevantes sobre a ofendida, o que sempre legitimaria a sua reabertura formal e individualizada nos termos do artigo 279.º do Código de Processo Penal – C.P.P.. o que sempre estaríamos na presença de “novos” elementos de prova, determinando-se a consequente apensação dos processos por existir conexão processual entre os factos participados em todos os inquéritos. Desta forma, o despacho que ordenou a apensação desse processo de inquérito funcionou assim como uma espécie paralela e equivalente de reabertura do mesmo o que legitimou que o arguido fosse acusado e condenado pelos factos que constituíam o seu objeto. Assim não se percebe onde entronca a suposta violação do principio do non bis in idem, pois, se efectivamente se verificou uma reabertura implícita, mas inequívoca, também podemos afirmar que essa reabertura foi legitima e fundamentada pois infirmou os pressupostos de facto e de direito em que se baseou o arquivamento desses autos n.º ..., podendo e devendo os factos passados serem conhecidos e apreciados, como foram e bem pelo Acórdão criticado. Assim não tendo ocorrido prescrição ou outra causa que impeça a prossecução do procedimento criminal, é possível reabrir (e apensar) os inquéritos instaurados por crime de violência doméstica, anteriormente arquivados ao abrigo do disposto no artigo 277.º, nº 2 do Código de Processo Penal – C.P.P. porquanto tais decisões não formam caso julgado material. O preceituado no artigo 279.º, nº 1 do Código de Processo Penal – C.P.P. deve ser entendido com alguma flexibilidade nos casos de conexão processual entre processos de inquérito autónomos formalmente – não devendo aplicar-se à fase de inquérito a rigidez inerente ao regime da revisão da sentença previsto no Código de Processo Penal – C.P.P. - sempre norteada pela descoberta da verdade material e pela realização da justiça, ainda, para mais tratando-se de um crime público, que protege bens jurídicos de importância acrescida, com a repercussão social de todos conhecida e em que a vítima está quase sempre em situação de grande fragilidade. É muito usual que nos processos de violência doméstica – V.D. se assista a uma pulverização e multiplicação de queixas crime ou até de participações das autoridades policiais competentes a dar noticias de novos episódios disruptivos da vida do casal. Apesar de esses episódios se encontrarem porventura autonomizados por diversos inquéritos, fazem parte integrante de um todo estritamente conexo e interligado pois refletem com fidedignidade o concreto crime de violência doméstica – V.D. em toda a sua amplitude e abrangência. Assim, se houver em novo e posterior processo elementos que possam invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento anteriormente proferido, deve o primeiro processo ser apensado e reapreciado à luz desse novo contexto, procedendo-se às necessárias diligências, não se exigindo um despacho formal e tabelar de reabertura. Também a reabertura do inquérito é um acto não jurisdicional, e como tal não sujeito a recurso ou a controle judicial, sendo da exclusiva competência do Ministério Publico – M.P. sendo certo que após o conhecimento do despacho que determinou a apensação, o arguido não reagiu contra o mesmo através do mecanismo processual legalmente previsto para o efeito como é a reclamação hierárquica – cf. artigo 279.º, nº 2 do Código de Processo Penal – C.P.P. mesmo sabendo que esses factos fariam parte de uma investigação conjunta Desta forma, não se verifica a violação do principio “ne bis in dem” porquanto não foram imputados ao arguido na acusação factos que estivessem a coberto do transito e estabilizados. Também o despacho que ordenou a apensação dos processos não foi arbitrário nem discricionário e pautou-se por critérios de legalidade estrita, com vista à apreciação conjunta e integrada de todos os factos constitutivos do crime de violência doméstica – V.D. e outros com este conexos. Em acrescento ao já exposto, o pensamento critico e a retórica argumentativa arregimentada nas doutas alegações de recurso, apesar de briosas e eloquentes, esbarram, desintegram-se e são juridicamente desbaratadas pelas proficientes considerações alinhadas no Acórdão do Tribunal da Relação de Porto – T.R.P. de 19/10/2022 in www.dgsi.pt, que, por economia e profundo respeito por trabalho alheio (principalmente quando se encontra bem feito), se respigam na parte relevante e que ora interessa: «…..O inquérito arquivado ao abrigo do artº 277 só pode ser reaberto nos termos do artº 279 nº 1 do CPP. A nossa doutrina tem entendido que o arquivamento não impede, em absoluto, a dedução de nova acusação pelos mesmos factos – Os Limites Objectivos do ne bis in idem – Estrutura Acusatória no Processo Penal Português – Henrique Salinas – Editora: Universidade Católica, fls. 608 e seguintes. O arquivamento é da exclusiva competência do MP, a decisão não é jurisdicional e consequentemente não é susceptível de caso julgado. Caso julgado rebus sic stantibus ou caso decidido tem um valor interpretativo distinto do princípio ne bis in idem (caso julgado material). Rebus sic stantibus quer literalmente dizer: estando assim as coisas ou enquanto as coisas estão assim, sem prejuízo de mudanças substanciais que se manifestem de forma extraordinária ou imprevisível (novos elementos de prova). Esta designação vai ao encontro da reabertura do inquérito, ainda que não tenha sido produzida reclamação hierárquica ou simplesmente tenha ocorrido uma apensação a outro inquérito em curso. Não alcançamos razão para que o arguido não possa ser objecto de um novo processo pelos mesmos factos e outros entretanto praticados – a reabertura do inquérito, com apensação é uma realidade processual evidente. ………. Não há dúvida que os autos podem ser reabertos e consequentemente apensados. O argumento a quo de que não estamos perante novos elementos de prova parece-nos não proceder. Estes factos nunca foram considerados no primitivo inquérito e a ofendida simplesmente não prestou declarações. O MP não obteve indícios suficientes. Apesar deste quadro factual e de direito entendemos que não há caso julgado, rectius caso julgado material. A decisão não é jurisdicional, o despacho de arquivamento produz apenas efeitos extra processuais, uma vez que depois do decurso dos prazos de impugnação, tem força de caso decidido, apenas susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos de prova … O princípio do ne bis in idem – ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos - para proceder, precisa de uma decisão de mérito que é mais do que uma decisão de conteúdo estritamente processual – Acórdão do TRE – Objecto do processo – Arquivamento dos autos – ne bis in idem – de 11/03/2018 – Relator Ribeiro Cardoso. O MP ordenou a reabertura do inquérito e como a queixosa prestou declarações, esclareceu todos os factos da conduta reiterada do arguido, incluindo aqueles que ocorreram no início do casamento há 20 anos e que serão objecto do recurso principal quando dever ser apreciado… O tribunal a quo não devia ter excluído os factos nºs 9 e 10 da acusação, a pretexto do caso julgado, razão por que dissemos que caso julgado stricto sensu, não é o mesmo que caso julgado rebus sic stantibus ou caso decidido. ………………….. Não há em bom rigor caso julgado material. A reabertura daquele inquérito ocorreu por iniciativa da queixosa, ao lançar para a discussão novos elementos de prova. No quadro desta situação o MP prontamente ordenou a reabertura do primitivo inquérito e consequentemente a sua apensação por conexão. Na convergência de vários factos o processo nº 347/21.2GAVFR.P1 passou a desenvolver tratamento único da alegada violência doméstica, obviamente sem prejuízo de distinta qualificação em sede de sentença. Este tribunal superior não tem meios para tomar (aqui) uma decisão final, pelo que os autos têm de baixar ao tribunal a quo. Nestes termos o recurso merece provimento, consequentemente revoga-se o despacho judicial proferido a fls.204/206v, com data de 07/02/2022. A acusação passa a ser integralmente considerada, com inclusão dos artºs 9 e 10. A audiência de discussão e julgamento tem forçosamente de reabrir para avaliar aquela matéria de facto com a necessária reformulação da sentença. O tribunal a quo convocará a prova necessária….». Mais palavras para quê? Para finalizar, se me é permitido, recensearei apenas, numa breve e lacunar resenha, que condensarei num pequeno universo de arestos a seguir alinhados que se debruçam e são elucidativos da dimensão conceitual dos efeitos exo e endoprocessuais das decisões de arquivamento dos autos do Ministério Publico – M.P. em jeito de “summing up”, didascália, obiter dictum ou ideias dispersas, sem qualquer intuito proselitista e pensando, porventura, o já pensado, bem como, resistindo ao formalismo do puro construtivismo jurídico desgarrado das realidades da vida e pré-ordenado a uma ideia fixa, rejeitando, ainda, as indeterminações de um discurso pomposo assente numa narrativa destituída de conteúdo operativo, sem perder a finalidade tendencialmente holística e abrangente que nos permitirá saber qual é o L´espirit du temps ou o entendimento generalizado sobre o tema ora em debate: Acórdão do T.R.E. de 16/12/2008 in C.J./V, 268 e seguintes: «1 – O despacho final do Inquérito proferido pelo Ministério Publico não é uma sentença, mas tem força de caso decidido. 2 – Assim, assiste ao cidadão o direito de não ser obrigado a defender-se de duas queixas feitas contra si, incidindo sobre os mesmos factos e apresentadas pelo mesmo ofendido em datas sucessivas e que deram origem a dois inquéritos distintos». Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2024 in www.dgsi.pt: «IV – Discordando da decisão do MP de arquivar o inquérito pelo crime agravado e nessa conformidade semipúblico, o assistente poderia ter requerido intervenção hierárquica ou abertura de instrução, sem o que aquela se consolida, assumindo uma especial firmeza de caso decidido (art. 279.º/1, e 449.º/2, do CPP)». Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – T.R.L. de 21/01/2025 in www.dgsi.pt: «I - A força de caso decidido com o arquivamento do inquérito que importa apurar no caso em apreço visa evitar que o arguido fique sujeito à vontade da alegada vítima que poderia ir gerindo as suas declarações e, desta forma, controlar a iniciativa processual acusatória que cabe ao Ministério Público, segundo critérios de legalidade e não de oportunidade. II - Daí que notificado o arguido do despacho de arquivamento em relação a determinados factos, faça sentido que não possa ser acusado por tais factos, em apelo ao princípio do ne bis in idem, merecedor de tutela semelhante ao caso julgado e conforme ao princípio da segurança jurídica. III - Se a vitima usou do direito ao silêncio (art.º 134º, al. b) do C.P.P. num momento inicial do processo que gerou um despacho de arquivamento que não decidiu de mérito, nada impede que surgidos novos factos decida prestar declarações, dando assim possibilidade de o Ministério Publico de com os novos factos e as declarações da vitima reabrir o inquérito nos termos do art.º 279º do Código de Processo Penal. IV - É diferente a decisão de não prestar depoimento nos termos do art.º 134º do C.P.P. daqueloutra de o prestar dizendo que os factos não ocorreram e só nesta última hipótese se poderia eventualmente questionar a decisão de arquivamento, no sentido da estabilização do objeto do inquérito. V - Não há qualquer expetativa jurídica a tutelar perante o denunciado que apenas foi constituído arguido após a reabertura do inquérito nos termos do art.º 279º do Código de Processo Penal». Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 25/10/2023 in www.dgsi.pt: «I – Se um inquérito objecto de suspensão provisória do processo termina com despacho de arquivamento, por as injunções terem sido cumpridas, os factos que nesse inquérito estavam em causa não podem ser posteriormente conhecidos, nem o inquérito reaberto quanto a tais factos, por força do “caso decidido” formado nesse processo». Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 09/03/2023 in www.dgsi.pt: «I - Sendo as presunções judicias ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, de acordo com as regras da experiência comum, só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido. II - O despacho de arquivamento em processo crime, sendo da exclusiva competência do Ministério Público., não é jurisdicional pelo que não é recorrível (ainda que possa ser objecto de requerimento de abertura da instrução ou intervenção hierárquica) e não forma caso julgado (o que não invalida que tenha a força de “caso decidido”, apenas mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo crime). III - Não é aplicável a tal despacho o disposto nos art. 623º e 624º do C.P.C., que prevêem a oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória e a eficácia da decisão penal absolutória, nem o conceito de autoridade de caso julgado». Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 08/11/2023 in www.dgsi.pt: «I - Embora não se possa falar de caso julgado ou de decisão transitada em julgado a propósito de despachos do Ministério Público de arquivamento do inquérito, dado que não se trata de uma decisão jurisdicional e por isso é que um inquérito arquivado pode ser “reaberto”, o certo é que tal reabertura apenas pode ocorrer se surgirem novos elementos de prova, conforme dispõe o artigo .279.º, n.º2, do Código de Processo Penal; o arquivamento está, pois, sujeito à cláusula rebus sic stantibus. II - Trata-se de um instituto paralelo ao do caso julgado, o “caso decidido”, que igualmente se manifesta no artigo 282.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional non bis in idem (artigo 29.º, n.º5, da Constituição). III - O inquérito só poderá ser reaberto se, tendo sido arquivado nos termos do nº2, do artigo 277º, ou seja, por insuficiência da prova quanto à verificação de crime ou da identidade dos seus autores, surgirem novos elementos de prova, como tal devendo ser entendidos todos os que não tiverem sido juntos aos autos, ainda que fossem já do conhecimento do requerente. III - Os elementos probatórios também são novos e, por isso, em abstrato, aptos para invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento sempre que representem uma alteração importante do depoimento anterior; uma testemunha que se retrata, passando a assumir uma versão diferente dos factos será, assim, uma prova nova; o mesmo poderá acontecer com as declarações do arguido, do coarguido, do assistente, das partes civis ou, até, com a prova pericial; mais do que a pessoa ou coisa, interessa o caráter inédito da declaração que agora se anuncia ou dela se consegue extrair. IV - Os novos elementos de prova devem ser novos, id est desconhecidos pelo magistrado do Ministério Público que determinou o arquivamento e, por isso, ali não considerados; para efeitos de invalidação dos fundamentos do despacho de arquivamento, podem ser utilizados os elementos noviter reperta (aquilo que surge depois do despacho de arquivamento) e noviter producta (aquilo que, embora já existisse, ainda que de forma censurável, não tenha sido introduzido no inquérito); ao invés, os elementos noviter cógnita (tudo aquilo que, ainda que disponível no processo, não tenha sido valorado) são aqui inadmissíveis V - A novidade dos elementos de prova deve ser aferida só em relação ao titular da ação penal e não ao assistente ou testemunha, sendo indiferente se algum deles vier a contradizer o seu depoimento anterior ou prestar declarações depois de as ter recusado inicialmente ao abrigo do artigo 134.º do Código Processo Penal. VI - A decisão de rever o despacho de arquivamento não pode, à margem de estritos critérios objetivos de legalidade, servir para censurar a conduta processual dos intervenientes; fazê-lo, a pretexto de responsabilizar os interessados pela sua conduta processual (colaboração ou falta dela), é perder de vista o único propósito para que foi criada a possibilidade de reabertura do inquérito pelo Ministério Público, ou seja, a investigação da verdade material em torno da existência de um crime, seus agentes e responsabilidade, com base em novos elementos de prova». Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 18/05/2022 in www.dgsi.pt: «I – O arquivamento do inquérito produz efeitos extraprocessuais – contrariamente ao que sucede com a acusação, que gera efeitos endoprocessuais –, uma vez que, decorridos os prazos para a sua impugnação, através da abertura da instrução ou de requerimento para intervenção hierárquica, passa a ter a força de caso decidido. II – O arquivamento do inquérito apenas poderá ser alterado se surgirem novos elementos que coloquem em causa os fundamentos – não a bondade – da respectiva decisão». Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 05/03/2024 in www.dgsi.pt: «I - A competência do JIC para conhecer de eventuais nulidades do inquérito pressupõe o recebimento da instrução e a abertura de tal fase processual. Até lá, tal competência pertence ao Ministério Público, que, como sabemos, é o titular da investigação que decorre na fase processual de inquérito. II - A omissão das diligências que a assistente sustenta ter ocorrido no inquérito, podendo traduzir-se numa eventual insuficiência material de tal fase processual, mas não consubstanciando um meio de prova cuja produção seja legalmente imposta, nunca acarretaria nenhuma das nulidades decorrentes da falta de promoção do processo ou da insuficiência do inquérito, previstas, respetivamente, nos artigos 119º, alínea b) e 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP. Tudo isto, na medida em que a apreciação da necessidade da realização de tais diligências, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, é da competência exclusiva do Ministério Público. III - Da teleologia da instrução, vista como uma fase de controlo externo da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito, decorre que quando o assistente pretende escrutinar a investigação do Ministério Público, designadamente invocando a sua insuficiência, o único meio processual adequado a acomodar a sua pretensão é a intervenção hierárquica com assento legal no artigo 278.º CPP, não se revelando legalmente admissível a fase instrutória requerida com tal desiderato. IV - A tarefa de acusar cabe ao acusador e não há outra forma de a cumprir no RAI apresentado pelo assistente sem ser formulando a chamada “acusação alternativa”, na qual se inclua uma concretização precisa e concisa dos factos objetivos e subjetivos conformadores dos ilícitos penais em causa. V - Em qualquer das situações referidas nos dois pontos anteriores – opção pelo RAI em vez da intervenção hierárquica e falta de acusação alternativa – o RAI revela-se legalmente inadmissível e ao juiz não lhe resta senão rejeitá-lo». Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 11/04/2023 in www.dgsi.pt: «I–A circunstância de no despacho de encerramento do inquérito, em que é deduzida acusação por determinada situação delituosa, se omitir qualquer referência a uma outra situação denunciada nos autos, não determina a ocorrência da nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no artigo 119.º, b), do Código de Processo Penal; II–Essa nulidade ocorre apenas nos casos de prossecução processual sem prévia acusação do MP ou, sendo caso disso, do assistente, não surgindo nos casos em que o MP arquiva erradamente, quer em arquivamento expresso (arquiva em vez de acusar) quer implícito (acusa por determinado crime, mas omite outro crime). Nestes casos de erro na leitura dos indícios recolhidos ou na sua adequada qualificação jurídica, o controlo judicial apenas ocorrerá se suscitado pelo assistente (artigo 287.º, nº 1, al. b, do CPP), formando-se, de outro modo, efeito de causa penal decidida; III–Não compete ao juiz de julgamento, no momento processual previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal, exercer um controlo oficioso da regularidade do inquérito, de modo a apreciar se ele foi bem ou mal dirigido.». Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 07/03/2023 in www.dgsi.pt: «I- Se do universo de denunciados, perante despacho do Ministério Público de arquivamento do inquérito, o assistente opta por requerer a abertura de instrução apenas quanto a parte deles, não poderá deixar de concluir-se que quanto aos demais denunciados, o arquivamento constituirá caso decidido. O despacho de arquivamento constituirá nesses casos decisão que põe termo à causa, sendo certo que o conhecimento das invalidades processuais – mesmo as que configuram nulidades insanáveis – apenas pode ter lugar enquanto durar o processo. II- O expediente de, em sede de instrução requerida contra outros arguidos, se vir arguir a nulidade do inquérito relativamente a denunciado não incluído no RAI, não encerra qualquer potencialidade reparadora da deficiente atuação processual do assistente ao requerer a abertura da instrução. III- A possibilidade de proceder à separação de processos é excecional, estando as hipóteses que a lei prevê enunciadas de modo taxativo no artigo 30º do Código de Processo Penal». Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 09/03/2023 in www.dgsi.pt: «I- Sendo as presunções judicias ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, de acordo com as regras da experiência comum, só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido. II - O despacho de arquivamento em processo crime, sendo da exclusiva competência do Ministério Público., não é jurisdicional pelo que não é recorrível (ainda que possa ser objecto de requerimento de abertura da instrução ou intervenção hierárquica) e não forma caso julgado (o que não invalida que tenha a força de “caso decidido”, apenas mutável e susceptível de reavaliação se surgirem novos elementos que ponham em causa os efeitos da decisão de abstenção, no âmbito do mesmo processo crime). III - Não é aplicável a tal despacho o disposto nos art. 623º e 624º do C.P.C., que prevêem a oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória e a eficácia da decisão penal absolutória, nem o conceito de autoridade de caso julgado». Acórdão do T.R.G. - Tribunal da Relação de Guimarães de 12/09/2022 in www.dgsi.pt: «I – A decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por isso, não comportando a noção de “trânsito em julgado”, não deixa de produzir efeitos. II – Uma vez decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura de instrução, quer da intervenção hierárquica, adquire a força de “caso decidido”. III – Por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura do inquérito, se admissível, os factos dele objecto não podem ser de novo ser valorados noutro processo para o efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente». Acórdão do Tribunal da Relação de Porto – T.R.P. de 04/12/2024 in www.dgsi.pt: III – As decisões emanadas do Ministério Público, porque não são decisões judiciais, não beneficiam dos efeitos de caso julgado. Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 19/01/2021 in www.dgsi.pt: «- Estando em causa o despacho de arquivamento por falta de indícios suficientes do crime de violência doméstica, não tendo sido submetido tal despacho à apreciação do superior hierárquico através de reclamação, nem à apreciação jurisdicional através da abertura da instrução, o já citado artigo 279.º do C.P.P. dispõe que o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público. - Se o despacho de arquivamento não foi objecto de reclamação hierárquica, não foi requerida instrução e aquele inquérito não foi reaberto e se o assistente, em lugar de reagir, pelas vias legalmente previstas, ao referido despacho de arquivamento, apresentou mais tarde nova denúncia, em comarca diferente, em parte sobre os mesmos factos, como se já não o tivesse feito antes. - Daqui resulta que formou-se “caso decidido” sobre o despacho de arquivamento, o qual, não sendo definitivo, sempre implicaria, para ser revertido, um despacho de reabertura do inquérito por parte do Ministério Público, nos termos expressos no mencionado artigo 279.º, com verificação dos pressupostos necessários a tal reabertura, sujeito ele próprio a apreciação através de reclamação para o superior hierárquico, pois “não é um acto discricionário, antes está sujeito a estreitos critério de legalidade”. - O princípio ne bis in idem tem o seu núcleo na garantia de que o Estado não pode perseguir mais do que uma vez a mesma infracção (os mesmos factos puníveis) e esse âmbito de garantia vai além da própria sentença transitada. - Daí que, como já se disse, a decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comportando a noção de “trânsito em julgado”, não deixa de produzir efeitos, pelo que decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura da instrução, quer da intervenção hierárquica, tem a força de “caso decidido” e, por conseguinte, a menos que haja lugar a reabertura do inquérito, se admissível, os factos dele objecto não podem ser de novo valorados noutro processo para efeito de poder ser o arguido, por eles, perseguido criminalmente». Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/10/2016 in www.dgsi.pt: «I - A referencia a duplo julgamento no artº 29º5 CRP deve ser interpretada de forma ampola abrangendo não só o julgamento mas outras situações processuais de valor equivalente, designadamente naquelas em que é proferida decisão final do processo, sem que ocorrera julgamento. II - O despacho de arquivamento do inquérito produz efeitos intra e extraprocessuais, decorridos os prazos de impugnação tem força de caso decidido e por força do artº 29º, 5 CRP os factos dele objecto não podem ser de novo valorados para efeitos de poder ser o arguido por eles perseguido criminalmente. III - Se um dado facto, integrador de um crime de ofensa à integridade física já havia sido objecto de inquérito que veio a terminar por homologação da desistência de queixa, não pode o mesmo facto ser valorado em novo processo, como fazendo parte dos factos integradores do crime de violência domestica». Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/02/2013 in www.dgsi.pt: «1.- O despacho de arquivamento de inquérito proferido nos termos e ao abrigo do art. 277, nº 2, do C. P. Penal, tem, como qualquer outro, o limite daquilo que efetivamente foi apreciado e decidido; 2.- Daí que se vierem a surgir “novos” elementos de prova, não apreciados no despacho de arquivamento, existindo um novo quadro probatório não apreciado na decisão de arquivamento, não existe caso julgado porque esse quadro não foi objeto de ponderação/fundamento; 3.- Assim a decisão de arquivamento perdura enquanto se mantiverem as circunstâncias que a determinaram, oferecendo semelhanças com o caso julgado rebus sic stantibus». Rezou-se assim neste aresto: «……. Ora, estando em causa o despacho de arquivamento (proferido nos presentes autos), a natureza do caso julgado exige, além da identidade de sujeito e da factualidade típica que lhe é imputada, a identidade de fundamentos (causa, suporte material) da decisão de arquivamento. Não sofre dúvida que o despacho de arquivamento proferido pelo Mº Pº, embora não seja uma sentença, tem força de caso decidido – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 2008.12.16, em CJ, 2008. V, 268. No entanto, atenta a natureza do caso julgado, tal apenas ocorre “nos estritos termos em que decide”, o mesmo é dizer, em relação aos concretos fundamentos/ pressupostos apreciados pelo despacho de arquivamento. Ora, no caso em análise, o arquivamento decidido teve por motivação/fundamento o disposto no art. 277°, n° 2, do C. P. Penal. O mesmo é dizer, por, em face dos elementos disponíveis, não ter sido possível ao Ministério Público obter indícios da identidade do agente do crime.………O despacho de arquivamento de inquérito proferido nos termos e ao abrigo do art. 277, nº 2, do C. P. Penal, tem, como qualquer outro, o limite daquilo que efectivamente foi apreciado e decidido. Daí que tendo determinado (em face do quadro probatório carreado para os autos) o processo ficava a aguardar melhor prova, a decisão não podia ter previsto, nem ponderado “outras” provas que pudessem vir a aparecer – aliás ressalva essa possibilidade de “melhor prova”. Podendo assim o processo ser reaberto a todo o tempo (tendo por limite o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal), se, entretanto, surgissem novos elementos de prova não previstos nem apreciados na decisão de arquivamento. Tal como dispõe, de forma explícita, o artigo 279º do Código de Processo Penal. Ou seja, o despacho de arquivamento constitui decisão definitiva mas apenas no que toca aos pressupostos efectivamente apreciados. De onde que se vierem a surgir “novos” elementos de prova, não apreciados no despacho de arquivamento, existindo um novo quadro probatório não apreciado na decisão de arquivamento, não existe caso julgado porque esse quadro não foi objecto de ponderação/fundamento. Porque a entidade decisora “não apreciou” aquele novo fundamento probatório. Assim a decisão de arquivamento “perdura enquanto se mantiverem as circunstâncias que a determinaram, oferecendo semelhanças com o caso julgado rebus sic stantibus" - cf. Ac. do STJ, de 2006.09.28, recurso nº 2814/06 – 5ª Secção….». No mesmo sentido PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE in “Comentário ao Código de Processo Penal” Editora Universidade Católica, 2.ª edição, pag. 725: «…o despacho final do Inquérito proferido pelo Ministério Publico não é uma sentença nem beneficia da protecção constitucional do artigo 29.º n.º 5 da C.R.P., mas ele produz efeitos preclusivos importantes que são protegidos pela lei processual, isto é, ele tem força de caso decidido….decorrido o prazo do artigo 278.º, o despacho faz caso decidido e é passível de revisão nos termos do artigo 449.º e 279.º do Código de Processo Penal». Também neste entendimento tinha já encarreirado ANABELA MIRANDA RODRIGUES in “O Inquérito no novo Código de Processo Penal” Jornadas, Almedina, 1988, pag. 76. Defende igualmente esta autora que «…o despacho de arquivamento do Ministério Publico adquire uma força análoga à do caso julgado, que na doutrina se designa caso julgado rebus sic stantibus….o despacho mantêm-se definitivo sob a reserva da clausula rebus sic stantibus, ou seja condicionado à superveniência de novos elementos de prova que devam considerar-se “novos” em relação aos já apreciados» (negrito por mim efectuado). Nas palavras de DAMIÃO DA CUNHA, in “Caso Julgado Parcial”, pág. 162, nota 172:” […]a doutrina nacional trilhou uma via própria que conduziu a admitir a força de caso julgado ao despacho de arquivamento; […] é fazer notar que, subjacente a esta ideia, está a garantia de “proibição“ de uma absolutio ab instantia em matéria de arquivamento. Para que tal desiderato materialmente se realize, é necessário, indiscutivelmente, que à decisão do MP seja atribuído aquele duplo efeito processual: de consumpção de poderes e de proibição de contradição – ou de regressão. Ora, esta conclusão relaciona-se com a própria compreensão da “paz jurídica” de que o arguido deve gozar […] tal garantia opera não apenas quanto ao “concreto” crime que serviu de fundamento à intervenção do MP, mas no que toca a todos os hipotéticos crimes que seriam equacionáveis naquela “situação de facto” – objecto de investigação”. Acrescenta o mesmo Autor: […]” Ora, o efeito preclusivo tanto se tem que dar por via “directa” (isto é, quando o MP conheceu, de facto, o crime) como por via “indirecta” (isto é, quando não tenha tido efectivo conhecimento, mas que a sua anterior decisão precluda aquele conhecimento posterior)”. Aliás, embora versando sobre matéria diversa, o Acórdão do T.R.E. de 13/08/2010 in www.dgsi.pt, admitiu a existência normativa na nossa ordem jurídica do Principio do Caso Julgado rebus sic stantibus – vide parte narrativa deste aresto. A talho de foice, pela sua particular importância, haverá também que se aludir e convocar o teor do proficiente Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades de 11/02/2003 proferido nos casos GOZUTOK e BRUGGE (afaires jointes C-187/01 et C-385/01) o qual se debruçou sobre a aplicabilidade do princípio non bis in idem aos despachos de arquivamento do processo pelo Ministério Publico, sem intervenção do tribunal. De acordo com esta decisão proferida pelo Tribunal de Justiça das Comunidades, o principio non bis in idem estabelecido no artigo 54.º da Convenção de Implementação do Acordo de Schengen é aplicável não só a decisões jurisdicionais, mas também nos casos em que o Ministério Publico decide arquivar o processo sem a intervenção de um tribunal. Parece, salvo melhor entendimento ou opinião, que esta interpretação do Direito da União Europeia não poder deixar de ser levada na devida conta pelos Estados Membros, bem significativa e elucidativa do pensamento jurídico hodierno e progressista. Esta posição relaciona-se intimamente com a ideia de Estado e concepção de Poder, bem como, a natureza das relações que se estabelecem entre aqueles e os seus cidadãos, que igualmente se entrecruza com a amplitude da cidadania. Numa visão panóptica que consideramos legítima e correcta, a VIDA num Estado de Direito democrático terá de estar ancorada, necessariamente nos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança. O princípio da confiança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito democrático comporta a ideia de previsibilidade que no essencial se reconduz a exigências de certezas e calculabilidade por parte dos cidadãos em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos e das decisões dos poderes públicos. Daí que a realização e efectivação do princípio do Estado de Direito, no quadro constitucional, imponha que esteja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança de actuação dos entes públicos, antes e depois de se pronunciarem sobre uma questão que se estabilizou. É assim que o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe, a jusante, um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder de molde a que cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica, e a montante, faz gerar direitos subjectivos e garantias individuais, imediatamente operativas, directamente oponíveis às decisões de que foi destinatário. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/06/2015 in www.dgsi.pt (parte narrativa): «…..Como sabemos, o art.º 279.º, n.º 1 do Código de Processo Penal estabelece que «… o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento». Ora, a este propósito, escreveu Paulo Pinto de Albuquerque que «o despacho final do inquérito proferido pelo MP não é uma sentença, nem beneficia da protecção a protecção constitucional do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República, mas ele produz efeitos jurídicos preclusivos importantes que são protegidos pela lei processual, isto é, ele tem força de caso decidido. As disposições dos artigos 279.º, 282.º, n.º 3, e 449.º, n.º 2, prevêem o regime do caso decidido do despacho de arquivamento do Ministério Público. Deste conjunto de normas resulta claro que o legislador rejeitou a solução do artigo 385.º do Progetto preliminare de 1978, correspondente ao artigo 414.º do Código de Processo Penal Italiano, que permite a reabertura do inquérito com base na mera reavaliação pelo Ministério Público dos elementos de prova existentes nos autos».[3] Na mesma linha segue Anabela Miranda Rodrigues, quando sustentou que «tendo em vista os casos em que o Ministério Público não chega a um juízo definitivo sobre a existência ou inexistência de crime e a determinação dos seus agentes (art.º 277.º, n.º 2), esta realidade há-de limitar a eficácia processual definitiva a atribuir ao despacho do arquivamento, mantendo-se ela sob reserva da cláusula rebus sic standibus, ou seja, condicionada à superveniência de novos elementos de prova que devem considerar-se "novos" em relação aos já apreciados. Caso em que será sempre possível requerer a reabertura do inquérito (art.º 279.º), o que efectivamente terá lugar quando o Ministério Público deferir tal pedido (art.º. 279.º, n.º 2)». Deste modo, a ausência de novas provas que invalidassem os fundamentos convocados pelo Ministério Público no despacho que proferiu no sentido do arquivamento do primeiro inquérito teve por efeito precludir a possibilidade de o reabrir para uma segunda vez investigar os factos objecto daquele….».. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29/01/2013 in www.dgsi.pt: «1. A cláusula rebus sic stantibus (“permanecendo as coisas como estão” ou "enquanto as coisas estão assim") representa a teoria da imprevisão e a sua utilização pela jurisdição criminal assenta na ideia de inexistência de caso julgado formal e na possibilidade de alteração da decisão sobre medidas cautelares, ocorrendo alteração das circunstâncias que determinaram anterior decisão sobre a mesma matéria e no mesmo caso concreto». No mesmo sentido, embora numa abordagem lateral o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2013 in www.dgsi.pt: «….o art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa dispõe «que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.» Muito sinteticamente diremos que o ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado. Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal, a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez. Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal, mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa. Nesta perspectiva, a delimitação do objecto do processo pela acusação tem ainda como efeito que a garantia conferida pelo princípio ne bis in idem implique que se proíba a investigação e o posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo. Na verdade, como refere Henrique Salinas, «a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.» O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal, entendendo-se aqui por crime não um certo tipo legal abstractamente definido como crime mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente determinado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objecto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare, mas independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado. Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica ….» (negrito acrescentado). Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/12/2015 in www.dgsi.pt: «Se determinados factos foram objecto de investigação em inquérito que veio a terminar por despacho de arquivamento subsequente à desistência de queixa, não ocorre violação do princípio ne bis in idem, se posteriormente vierem a constar da acusação como integrando um crime de violência doméstica, por esta nova realidade jurídica não estar abrangida pelo caso julgado emergente do despacho de arquivamento». Vide parte narrativa: «….Em primeiro lugar, importa precisar que o despacho final proferido pelo Ministério Público em sede de inquérito – in casu, autónomo em relação a este processo - não constitui uma sentença, nem beneficia de toda a extensão da proteção constitucional estatuída no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa[18], embora produza efeitos jurídicos preclusivos importantes, protegidos pela lei processual. Nestes termos, o despacho final de arquivamento adquire "uma força análoga à do caso julgado", a qual é designada pela doutrina "caso julgado rebus sic stantibus"[19], ou seja, apenas é eficaz, enquanto se mantiverem os pressupostos em que o despacho foi produzido….». Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 15/11/2016, proc. n. 52/15.9 PEEVRE1, disponível in www.dgsi.pt: "apenas nos casos de arquivamento do inquérito abrangidos pelo n. 1 do artigo 277. ° do CP Penal é que há consolidação do decidido, não podendo ser reaberto o inquérito. Não se trata propriamente de "caso julgado" pois este respeita apenas a decisões de natureza jurisdicional, mas de um caminho paralelo. Tendo entendido o Ministério Público arquivar porque não se verificou um crime, ou porque o arguido não é o autor do crime ou porque é inadmissível o procedimento, não pode vir mais tarde, em nome da segurança e da certeza jurídicas, afirmar o contrário". Ora, a lei prevê, nos termos do art. 279.°, do Cód. Proc. Penal, que o inquérito possa vir a ser reaberto, desde que surjam "novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento". Assim, da leitura do normativo em causa desde logo se retira que o despacho de arquivamento por ausência de indícios não forma caso julgado, podendo haver lugar a nova análise caso haja elementos de prova posteriores que invalidem os fundamentos de tal arquivamento. O caso julgado é um instituto inerente ao exercício do poder judicial e não do Ministério Público. E, embora o entendimento de que uma decisão de arquivamento proferida nos termos do disposto no artº 277º nº 1 do CPP impede a reabertura do inquérito contra a mesma pessoa e sobre os mesmos factos, tal entendimento só é admissível por força de norma legal expressa, a norma do artº 279º nº 1. Todavia não existe norma que impeça ou condicione a abertura de novo inquérito desde que surjam novos factos que invalidem a decisão anteriormente tomada. A razão de ser desta solução tem a ver com a natureza da intervenção do Ministério Público e da dinâmica do processo de investigação, que é totalmente distinta da intervenção do poder judicial. O Juiz tem perante si, para decidir, um acervo fáctico bem definido, que só pode ser alterado nos precisos termos e com as limitações decorrentes da Lei. A fixação do thema decidendum e consequente thema probandum mais que uma comodidade, é uma garantia para todos os intervenientes processuais. E o resultado desta intervenção, traduzida na sentença que fixa definitivamente o direito daquele caso, constitui outra garantia adicional de que o poder judicial se pronunciou definitivamente – repete-se, com as excepções previstas na Lei – sobre aquela controvérsia. Todavia, não é essa a dimensão da intervenção do Ministério Público no processo penal. A investigação criminal é um processo dinâmico, sempre em evolução e não tem propriamente um thema decidendum previamente fixado. A base investigatória pode ser alargada, restringida, alterada, enfim sujeita aos condicionalismos da investigação. Surgindo factos novos, a que o Ministério Público possa ter acedido por intervenção de terceiros, por hipótese, seria inconcebível que deixasse de os investigar só por que em momento anterior se entendeu de maneira diferente. Se o cidadão tem o direito de ver o seu caso definitivamente encerrado no momento em que o Tribunal profere a decisão final, já tal entendimento não se justifica quando o Ministério Público exerce as suas competências investigatórias em fase de inquérito. Excepto nas situações onde a lei prevê expressamente de forma diferente, como é o caso do artº 279º nº 1 do Código de Processo Penal – C.P.P. Acórdão do Tribunal da Relação de Porto – T.R.P. de 09/11/2011 in www.dgsi.pt: «I - Os actos do Ministério Público não revestem natureza jurisdicional pelo que não são susceptíveis de recurso, nem formam caso julgado». Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 08/09/2021 in www.dgsi.pt: «1 - Um despacho de arquivamento do Ministério Público em inquérito não forma caso julgado, pela razão simples de não ser uma decisão jurisdicional e não transitar em julgado». Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – T.R.C. de 30/10/2024 in www.dgsi.pt: «Não é recorrível – artigo 399.º do CPP – o despacho do magistrado do Ministério Público que decide, em processo de inquérito, no sentido de não admitir a intervenção hierárquica, nos termos e para os efeitos do artigo 278.º do Código de Processo Penal». Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 09/02/2022 in www.dgsi.pt: «I- A forma processualmente correcta de reagir face a decisão do Ministério Público que põe fim ao inquérito reconduz-se à formulação de pedido, perante o juiz de instrução criminal, de judicialmente comprovar tal decisão no caso, entendendo o arguido não se encontrarem reunidos os pressupostos legalmente previstos para a suspensão provisória do processo, deveria ter requerido a abertura de instrução por forma a judicialmente comprovar a decisão de não submissão da causa a julgamento; II- Persistindo o arguido no entendimento que verteu no recurso agora em análise isto é, que não se mostram reunidos os pressupostos da suspensão provisória do processo, bastar-lhe-á que não cumpra qualquer das injunções concretamente fixadas para que o processo prossiga – alínea a) do nº 4 do artigo 282º do Código de Processo Penal; III-Não é admissível recurso de qualquer decisão do Ministério, sendo que o recurso interposto é claramente extemporâneo por ter sido interposto largos meses após o despacho Judicial recorrido». Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 29/06/2023 in www.dgsi.pt: «I – No âmbito de um inquérito criminal, face à tomada de posição do Ministério Público, proferindo dois despachos de arquivamento e um de suspensão provisória do processo, o ofendido/denunciante (com faculdade de se constituir assistente ou já constituído como tal) pode lançar mão do mecanismo legalmente previsto para o efeito que é suscitar a intervenção do imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público. Não o tendo feito, no prazo legal, de nada vale agora (em sede de recurso abrangendo despachos judiciais) querer invalidar todo os actos do processo inquérito desde um dos aludidos despachos do Ministério Público (inclusive) com qual discorde. Pois, os despachos e/ou actos decisórios do Ministério Público não são susceptíveis de recurso - este Tribunal de recurso não sindica promoções, despachos ou decisões do Ministério Público, a sua fundamentação ou a falta dela, nem o acerto dela ou não». Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 07/12/2021 in www.dgsi.pt: «I – Não sendo uma decisão jurisdicional, o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público não é susceptível de recurso, nem de trânsito em julgado. III – A preclusão do direito de perseguição criminal decorrente do arquivamento do processo relativamente a diversas condutas - no caso, por força de desistência da queixa -, não invalida que outros comportamentos posteriores venham a ser valorados de forma independente daquelas, e preencham os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica». Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 14/10/2015 in www.dgsi.pt «I - O arquivamento de um inquérito pelo Ministério Público não tem os efeitos de caso julgado». DA PRETENSA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. O recorrente invoca e alega que a sentença recorrida não cumpriu ou observou devidamente o dever constitucional e legal de fundamentação. Ora, nos termos do artigo 205º, nº 1, da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P. «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei», conferindo-se assim ao legislador ordinário a conformação desse princípio basilar do Estado Constitucional de Direito Democrático. Paralelamente, a exigência de fundamentação constitui também um direito fundamental subjacente a um processo equitativo, consagrado no artigo 20º, nº 4 da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P. «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo»), bem como uma garantia essencial no âmbito do processo criminal - o artigo 32º n.º 1 também da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P.. Tal exigência constitucional e direito fundamental pressupõe a possibilidade efetiva de sindicância das decisões judiciais, bem como a necessidade de convencer os destinatários, a comunidade e os cidadãos em geral da sua correção, lisura e justiça. No que à sentença especificamente se refere, estabelece o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal – C.P.P. que: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». Por sua vez, o artigo 379.º do Código de Processo Penal – C.P.P., no que para esta decisão interessa e releva, reza assim: «1. É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.° 2 e na alínea b) do n.° 3 do artigo 374.º (...). 2. As nulidades da sentença devem ser arguidas e ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414º do CPP. (…)» Tem-se entendido que a fundamentação da sentença penal, conforme decorre da norma do artigo 374.°, n.° 2, do Código de Processo Penal – C.P.P., assenta em dois grandes segmentos ou paradigmas: o primeiro é a enumeração dos factos provados e não provados; o segundo é a exposição, de forma concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. Neste segundo segmento, a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa, mas concisa, e conter a enunciação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal - sem que seja necessário, relativamente à prova por declarações, realizar uma transcrição dos depoimentos produzidos em audiência - bem como a análise crítica dessas provas. O que implica expor as razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, a indicação dos motivos de determinada opção por um ou outro dos meios de prova, a menção sobre as razões que justificaram a atribuição de credibilidade a determinados depoimentos, eventualmente em detrimento de outros, a explicitação da valoração conferida a documentos e exames, ou seja, a sentença deve exteriorizar os raciocínios e apreciações que incidiram sobre os meios de prova que interferiram na formação da convicção do tribunal. No caso vertente, a crítica que o recorrente aponta como fundadora da nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação, é destituída de razão. A sentença recorrida – concorde-se ou não com ela – encontra-se devidamente fundamentada, na medida em que, com relevância para o caso dos autos, e considerando que, neste particular, está em causa a fundamentação da matéria de facto, elenca os factos provados e não provados e motiva a sua convicção de um modo tal que pode ser sindicada pelos seus destinatários. Tal fundamentação permite ao recorrente exercer, plenamente, o contraditório e o direito de defesa, nos termos do artigo 32º, n.º 1, da Constituição Política da República Portuguesa – C.R.P.. A fundamentação apresentada tem amplitude suficiente para abranger toda a matéria de facto em discussão, provada ou não provada, como decorre da simples leitura da motivação que dela mesmo consta. O facto de a motivação de facto e as escolhas da valoração da prova não merecerem a concordância do recorrente não constitui, por si só, fundamento para sustentar a alegada deficiência na fundamentação. Na conformidade do que vem sido dito e essencialmente pelo exposto, tudo visto, analisado e ponderado, sem necessidade de ulteriores ou mais apuradas considerações, não se verifica, de todo, a nulidade invocada. NO QUE RESPEITA À SINDICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO. O recorrente logo no início das alegações disse que pretende impugnar a matéria de facto e de direito que depois (não) concretiza na narrativa das motivações. Porém, analisando-se de forma global, integrada e abrangente a pretensão recursória formulada pelo(a) recorrente, depreende-se com clareza, de modo implícito mas inequívoco14 que não disse (ou fez) tudo aquilo que pretendia dizer, e aquilo que pediu (ou concretizou) não o fez de forma expressa. De todo o modo, é possível perscrutar no desenho especifico das alegações por si subscritas, com lucidez, segurança e de forma indubitável, que o(a) recorrente, sem o dizer expressamente, manifestou a vontade de neste recurso impugnar a matéria de facto ao abrigo da disciplina normativa contida no disposto do artigo 412.º do Código de Processo Penal – C.P.P. pois insurge-se, aqui e acolá, com mais ou menos frequência e veemência, contra os factos dados como provados, não concordando com a seleção dos factos dados como assentes e não provados ou divergindo das respostas dadas pelo tribunal recorrido à avaliação dos diversos elementos de prova, bem como à taxa de creditação, avaliação ou empoderamento da prova produzida em audiência de discussão e julgamento. 14 - Embora as pretensões devam ser formuladas de forma directa e expressa, isto é – id est – preto no branco, por vezes (que não são raras) assim não ocorre. Com efeito, existem declarações ou pretensões inequívocas que foram formuladas de forma implícita, sendo licito ao tribunal conhecê-las e aborda-las, como acontece no caso concreto em apreciação, creio. Quanto à premência de articular as necessidades de celeridade, aproveitamento dos actos processuais imperfeitos, acautelamento e tutela mínima das expectativas, com a clareza, concisão, densidade e inteligibilidade que deve acompanhar as pretensões recursórias e com a possibilidade de as conhecer, já se pronunciaram, ainda que lateralmente, pela admissibilidade sobre este modo de escrutínio e monitorização judicial, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25/03/2015 e 24/10/2012, bem como, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/06/2015, consultáveis em www.dgsi.pt que, para além do mais, igualmente convocam o Acórdão do mesmo alto tribunal de 05/11/2009, prolatado no âmbito do proc. nº 36/07.0TASLV-A.E1. Assim, no âmbito da realização do direito, bem como, da execução processual das prerrogativas substantivas e sem prejuízo das normas que estabelecem regras imperativas e de preclusão, neste dilema, tal como noutros, deve sempre prevalecer a substância em detrimento da forma. Esta é um veículo de realização daquela, meramente instrumental e não deverá constituir um obstáculo ou impedimento à efectivação dos bens jurídicos juridicamente tutelados. Neste sentido vide, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 4677/02-3, ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo 2176/99, ou ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 0004973, não publicados mas acessíveis nos respectivos processos. Estas afirmações têm inteira aplicação às decisões judiciais, desde que das mesmas se retire de forma inequívoca e indubitável que as questões foram implicitamente tratadas, quer pelo seu conhecimento ter ficado prejudicado, quer por terem sido, sem sobra de duvida, afastadas. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2019 in www.dgsi.pt: «I - Uma decisão é implícita quando está subentendida noutra que foi expressamente tomada». Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – T.R.L. de 06/02/2025 in www.dgsi.pt: «I - Constitui hoje entendimento corrente que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico e que quanto à sua interpretação se aplicam, com as devidas adaptações, as regras reguladoras dos negócios jurídicos, devendo a interpretação da parte decisória assentar na análise dos seus antecedentes lógicos que a tornam possível e a pressupõem, dada a sua interdependência. II - Da interpretação da motivação do acórdão, resulta implicitamente que o tribunal a quo afastou a execução da pena de prisão, em regime de permanência da habitação previsto no art.º 43º, do Código Penal». Com efeito e em síntese, a questão suscitada pelo recorrente gravita, pois, no âmbito da chamada impugnação ampla da matéria de facto ou, mais apropriadamente, do erro de julgamento, como consagrado no artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal – C.P.P., situação que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Porém, gratia argumentandi, se aquilo que não disse não obsta ao conhecimento das questões que implicitamente suscitou, já aquilo que expressamente afirmou é manifestamente inidóneo e imprestável para o acolhimento da pretensão que formulou. Equacionada assim sumariamente a questão e adiantando desde já a solução, podemos dizer, na nossa modesta opinião e com o máximo respeito, que as doutas alegações de recurso, densificadas nas conclusões, são ostensivamente imprestáveis e constituem um instrumento com um conteúdo francamente inadequado, lacunar e manifestamente inviável para impugnar com o êxito que delas se esperaria, a matéria de facto, a avaliação concreta que o tribunal recorrido fez incidir sobre a mesma e o núcleo mais essencial da decisão, face à disciplina normativa contida no travejamento medular do disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal – C.P.P. (como tentaremos demonstrar) razão pela qual a matéria provada e não provada será insindicável e deve permanecer intocada, restringindo-se necessariamente o objecto do recurso à matéria de direito15. 15 - Vide, entre outros, o Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 10/09/2024 in www.dgsi.pt: «II - A falta de concretização dos pontos de facto impugnados e da consequente especificação da decisão que sobre eles devia ser tomada, implica, neste caso e como também é regra, a rejeição da reapreciação da matéria de facto». Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 09/09/2024 in www.dgsi.pt: «I - Deve ser rejeitado o recurso da impugnação da matéria de facto quando o recorrente, nem nas conclusões nem na motivação, indica a decisão alternativa sobre os pontos objeto de impugnação». Na verdade, incumprindo o(a) recorrente o ónus de impugnação especificada omitindo a indicação dos pontos de facto que considera incorretamente julgados, especificação dos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente, as exatas passagens dos depoimentos que integrem tais meios probatórios gravados, e a decisão que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, deve o recurso ser rejeitado, uma vez que na economia normativa reguladora do recurso relativo à impugnação da matéria de facto não se admite o despacho de aperfeiçoamento. Sem pretender quebrar o elevadíssimo respeito por opinião divergente, e até, porventura, mais avisado e sedimentado entendimento (com a especial e inarredável ressalva que ao contrário dos “factos”, as opiniões não são “falsas” nem “verdadeiras”, e muito menos, a minha, constituirá o critério barométrico da solução jurídica ideal e infalível) se o objetivo do recorrente era porventura uma revisão alargada da matéria de facto, é evidente, tautológico e perfeitamente claro que o recorrente não cumpriu minimamente o ónus de especificar corretamente os pontos concretos da matéria de facto que pretende ver reexaminados, bem como de identificar os meios de prova que justificariam ou antes que imporiam uma decisão diferente. O recorrente apenas procedeu a um ensaio exploratório de uma pretensa impugnação da matéria de facto, mas não a concluiu, ficando muito aquém do procedimento devido e soçobrou no trilho das coisas inacabadas. Com efeito, ao invés de efectuar uma verdadeira impugnação da matéria de facto observando os termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal – C.P.P., o recorrente não se conforma com o julgamento da matéria de facto, pretendendo fazer ele próprio o seu julgamento, o que esbarra com o princípio da livre apreciação da prova. Também, na minha modesta opinião, não foi alinhada qualquer linha de raciocínio válida nem uma retorica argumentativa suficientemente densa ou robusta para demonstrar qualquer erro vicio que resulte directa e claramente do texto da decisão recorrida, conforme decorre lapidarmente do programa norma contido na disciplina do disposto no artigo 410.º do Código de Processo Penal – C.P.P.. Com todo o respeito, todos os requisitos legais, de forma e de substância, foram literalmente postergados e não observados, quer em termos de revista alargada quer sobretudo na impugnação ampla da matéria de facto – in claris non fit demonstratio16. 16 - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – T.R.L. de 24/10/2024 in www.dgsi.pt: «I. Quando o recorrente impugne a matéria de facto, pretendendo o seu reexame, deve especificar os concretos pontos que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa (e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas) com indicação expressa das passagens da gravação em que se funda a impugnação. II. O incumprimento das formalidades impostas pelo artº 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por via da reapreciação da prova. III. O recorrente, ao não indicar as provas produzidas que impunham decisão diversa, e ao não fazer referência às concretas passagens da prova gravada, na parte impugnada, deixa o recurso sem objeto, na parte relativa à reapreciação da prova gravada, nos termos definidos por lei para a cognição deste fundamento de recurso. IV. Quando os elementos em falta não constam das conclusões nem das alegações é inadmissível a formulação de um convite ao seu aperfeiçoamento, porquanto, nos termos do artº 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, só é admissível o aperfeiçoamento das conclusões quando os elementos em causa (e em falta nas conclusões) constem das alegações. V. Não constando os elementos em falta, nem sequer das alegações, um convite ao aperfeiçoamento implicaria permitir ao recorrente ampliar o objeto do recurso e o seu âmbito, o que equivaleria a conceder-se-lhe um novo prazo para recorrer, o que contende com o caráter perentório do respetivo prazo e não está incluído no âmbito do direito ao recurso (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 259/2002 de 18/06/2002, in DR, IIª Série, de 13/12/2002, e nº 140/2004, de 10/03/2004, in DR, IIª Série, de 17/04/2004)». Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – T.R.L. de 06/02/2025 in www.dgsi.pt: «I- Para ser conhecida, pelo Tribunal de recurso, a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento), tem o recorrente, nas suas conclusões, o ónus de especificar os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas concretas que impõe decisão diversa da recorrida, bem como, estando a prova gravada, de transcrever ou indicar a passagem ou passagens das declarações/depoimentos da gravação áudio, que suportem entendimento diverso, com indicação do início e termo desses segmentos em cumprimento do previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP. II- Não se mostrando cumprido esse ónus de especificação, e não sendo possível o seu aperfeiçoamento, outra solução não resta que considerar que esta parte do recurso não pode ser conhecida, por incumprimento das formalidades legalmente prescritas, nos n.ºs 2 e 3 do art.º 412.º, do CPP. III- Na impugnação restrita da matéria de facto, evidenciando o próprio texto da decisão recorrida que o Tribunal recorrido, na fundamentação da matéria de facto, tem uma posição segura e inequívoca, relativamente quer aos factos dados como provados quer aos dados como não provados, decidindo à luz das as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127.º, do CPP, estando a apreciação da prova, em primeira instância, enriquecida pela oralidade e pela imediação, que fez o Julgador atribuir credibilidade às declarações da arguida, sendo essa opção admissível face às regras da experiência comum, não padece a decisão do vício de facto de erro notório na apreciação da prova a que alude a alínea c) do n.º2 do art.º 410.º, do CPP.». Acórdão do Tribunal da Relação de Évora – T.R.E. de 11/02/2025 in www.dgsi.pt: «II - Não impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que se limita a invocar os vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, mas não concretiza em que consistem esses vícios, nem em que partes da decisão é que os mesmos se verificam. Não cumpre as exigências legais da impugnação da matéria de facto indicadas no art.º 412º, nºs 3, 4 e 6 do Cód. Proc. Penal o recorrente que não indica os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, os meios de prova que impunham decisão diversa, as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas que fundamentam a falta de prova dos factos, as partes da gravação dos depoimentos que o Tribunal de recurso deveria ouvir e a factualidade que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados». Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – T.R.C. de 22/01/2025 in www.dgsi.pt: «1 - Estando em causa uma sindicância da matéria de facto por via da impugnação ampla, o recorrente, para além de indicar concretamente os factos que considera incorretamente julgados, tem de concretizar o que é que nos meios de prova por si indicados e especificados não sustenta, no seu entender, o facto por si impugnado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico que impõe a alteração da decisão com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem a decisão diversa e em que sentido devia ter sido a decisão». Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – T.R.L. de 06/11/2024 in www.dgsi.pt: «I- Quando o recorrente não indica concretamente os excertos ou segmentos dos depoimentos e das declarações nos termos previstos no nº 3 al. b) e no nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que seriam aptos a demonstrar a incorreção do julgamento dos factos dados como provados sendo tal omissão transversal à motivação e às conclusões do recurso há improcedência da impugnação ampla da matéria de facto porque há um vício estrutural que obsta à modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, já que a inobservância do tríplice ónus de impugnação especificada imposto pelo artigo 412º afasta a aplicabilidade da norma contida no artigo 431º al. b) do Código de Processo Penal. II- Quando o exercício explicativo da convicção do tribunal a quo assenta em critérios de senso comum, nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência tal convicção do julgador terá de prevalecer sobre a divergente convicção do arguido acerca do sentido da prova». Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – T.R.L. de 20/01/2020 in www.dgsi.pt: «10- Nas situações em que se depreende que o recorrente pretende impugnar a decisão em matéria de facto por erro de julgamento, apesar de invocar o vício decisório, o tribunal de recurso deve conhecer dessa impugnação “ampla”, desde que o recorrente tenha cumprido o ónus de especificação imposto no artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal». Desta forma e como já ventilamos, uma vez que o incumprimento das formalidades exigidas no citado artigo 412º, 3 e 4 do Código de Processo Penal – C.P.P., inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla e não se descortinando qualquer erro vicio do texto da decisão recorrida nos legais termos do disposto no artigo 410.º do Código de Processo Penal – C.P.P., tem se de considerar incólume e intangível a matéria de facto assente na decisão criticada17. Assim e em consequência, afigura-se-me que nada haverá a decidir quanto à eventual modificação ou alterabilidade da matéria de facto nem no que à pretendida absolvição ou alteração da qualificação jurídica dos factos respeita, razão pela qual, terá liminarmente de ser desatendida a pretensão em causa, considerando a manifesta improcedência do recurso relativamente à impugnação da matéria de facto. 17 - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – T.R.C. de 26/03/2025 in www.dgsi.pt: «4. As menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pelo que não cumprindo o recorrente tal ónus inviabiliza o seu conhecimento». DETERMINAÇÃO E MEDIDA DAS PENAS – PRINCIPAL E ACESSÓRIA. Quanto à medida da pena, esta deve ser graduada pelo Juiz, dentro da moldura fixada nos termos do artigo 71.º, do Código Penal, ou seja, em função dos factos praticados, das circunstâncias do seu cometimento, da culpa do arguido e das exigências de prevenção, quer geral, quer especial, ponderando-se, para esse efeito, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor do arguido ou contra ele. A este propósito, o Prof. Figueiredo Dias “Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal”, in Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 110. assinala que toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos, e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; e dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva, de integração ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação. Assume, assim, a referida prevenção geral positiva - de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, o primeiro lugar como finalidade da pena - Figueiredo Dias in “ Estudos de Homenagem ao Professor Eduardo Correia, p. 815. Como refere Roxin, a prevenção geral positiva implica três efeitos: o ensino pedagógico-socialmente motivado o qual deve provocar a aprendizagem da fidelidade ao direito; o efeito de confiança que se produz quando o cidadão vê que o direito se impõe; e o efeito de satisfação que se apresenta quando o delinquente já foi penalizado de uma forma que a consciência jurídica geral tranquiliza-se perante a infração ao direito e considera solucionado conflito com o autor – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – S.T.J. de 08.06.2011 (Santos Cabral), proc. n.º 1584/09.3PBSNT.L1S1, em www.dgsi.pt . No caso em apreço, a recorrente entende que as penas são exageradas ou inadmissíveis, pelo que deveriam ser reduzidas ou inaplicáveis. Mas sem razão, mais uma vez. Como já foi realçado, vista a matéria de facto dada como provada na decisão revidenda em articulação com as sólidas considerações expendidas pelo tribunal recorrido como fundamento da reação criminal apurada e encontrando-se tudo eximiamente justificado (e igualmente demonstrado na resposta do Digníssimo(a) magistrado(a) do Ministério Público junto da 1.ª instância), afigura-se-me, na cor da lente pela qual vejo as coisas, que as penas aplicadas (principais e acessória), dentro da catalogação fechada legalmente prevista, para além de bem escolhidas ou primorosamente selecionadas e serem as adequadas às circunstâncias envolvidas e envolventes do caso concreto, encontram-se fixadas ou doseadas com rigor, ponderação e equilíbrio, isto é – id est – para além de as penas serem inevitáveis tal quale e terem observado os parâmetros materialmente previstos, obedeceram ainda escrupulosamente a todos os requisitos legais inerentes a um processo justo, humanista, leal e equitativo – artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal – C.P.; artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos - C.E.D.H.; artigos 3.º, 8.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos - D.U.D.H.; artigos 9.º, 10.º, 14.º e 15.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – P.I.D.C.P.; artigos 1.º, 6.º, 41.º, 47.º e 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – C.D.F.U.E. em articulação com os artigos 8.º, 18.º, 29.º e 32.º da Constituição Política da República Portuguesa. Estas normas constituem como que as “estrelas guias” ou as pautas paramétricas essencialmente caracterizadoras do sistema legal da escolha, determinação e medida das penas. Vide também a clausula 39.ª da Constituição dos U.S.A. que constituiu a norma legal originária germinadora da ideia agora generalizada no nosso entorno civilizacional e geopolítico do Direito Subjectivo Publico de qualquer Cidadão a um processo equitativo: «No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor will we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land». No que respeita à pena acessória aplicada e face aos factos dados como assentes, a mesma surge como a decorrência logica e necessária, diríamos inevitável, das condenações sofridas pelo recorrente face à existência e manutenção dos perigos emergentes ainda existentes. No caso em apreço, pese embora a pena acessória de proibição de contacto com a vítima não seja de aplicação obrigatória, julgamos mostrar-se plenamente justificada esta opção pelo tribunal recorrido. Na verdade, para além da gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido, que perduraram por um período temporal significativo, com as necessárias consequências delas decorrentes para a ofendida, verifica-se que o arguido não tenha interiorizado o desvalor da sua conduta ou que tenha de alguma forma reparado ou procurado reparar as consequências das suas condutas, como aliás se depreende do presente recurso. Tudo isto serve para dizer que as exigências de prevenção especial fazem-se sentir por forma expressiva, importando, por forma acrescida, prevenir que o arguido possa repetir o seu comportamento para com a ofendida. Assim, a pena acessória de proibição de contacto com a vítima não é exagerada, desproporcional e não ajustada à situação concreta. Nesta sede, não podemos deixar de salientar - quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena principal da pena acessória em sede de recurso - que entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada. Como se disse no Acórdão do T.R.C. - Tribunal da Relação de Coimbra de 12/07/2023 in www.dgsi.pt: «V – A proibição de contactos e de aproximação do agressor à vitima constituem um dos meios para, por um lado, assegurar a protecção e segurança das vítimas e diminuir o seu risco de revitimização, uma vez que as vítimas deste tipo de crime correm o risco acrescido de intimidação, retaliação e vitimização secundária ou repetida, requerendo especial atenção e necessidade de protecção, e, por outro, permitir que o arguido interiorize a ilicitude da sua conduta. VI – A determinação da medida de afastamento da vitima tem que ter em consideração a factualidade provada, nomeadamente as condições pessoais do agente, de modo a não frustrar, de um lado, os efeitos pedagógico e educativo que se pretendem extrair da medida, de promoção da reintegração do agente na sociedade, e, por outro, a protecção da vitima. E igualmente no Acórdão do T.R.L. - Tribunal da Relação de Lisboa de 07/12/2023 in www.dgsi.pt: I.- Na aplicação das penas acessórias, o julgador está vinculado aos mesmos critérios e elementos de ponderação utilizados aquando da determinação concreta da sanção penal principal, designadamente tal sanção acessória terá de se conformar em função da gravidade da infracção (censurabilidade do facto) e da culpa (censurabilidade do agente), fazendo com que a sua aplicação não seja automática, mas sim gizada por critérios legais de necessidade, adequação e proporcionalidade. II. - A pena acessória surge como um adjuvante da pena principal, na realização das finalidades de prevenção especial, numa lógica de prevenção do conflito e de prevenção/intimidação que efectivamente proteja a vítima do risco de reincidência, como meio indispensável/imprescindível para a proteção dos seus direitos….». ***** Em jeito conclusivo, com o devido respeito, que para além de sincero é superlativo, os elementos de racionalidade jurídica, factual e intelectual em que se apoiam os alicerces da retórica argumentativa utilizada requintadamente pelo(s) recorrente(s) na presente instância recursória, não obstante a inteligência, argúcia e erudição que manifestamente apresentam, são francamente assépticos, estruturalmente frágeis, globalmente estéreis, tendencialmente omissos e todos sem cabimento legal, razões pelas quais, o(s) recurso(s) está(ão) votado(s) ao insucesso e não merece(m) provimento18. 18 - No final de variegadas peças forenses todos pedem Justiça, mais ou menos enfaticamente, mais ou menos, ritualisticamente. Não será a mesma Justiça que uns e outros em cada caso invocam e pretendem obter. O mesmo ocorre, cum grano salis, nos despachos e nas decisões judiciais, onde nunca deve deixar de estar presente uma ideia de Justiça. No que respeita a este parecer, pode-se assegurar que as únicas certezas que possui foram as minhas duvidas, partindo sempre da incerteza que os meus pontos de vista são incontestáveis e com uma profunda tolerância vigilante para com as opiniões que não perfilho, estando esta peça inevitavelmente sujeita ao teste do falibilismo jurídico. Aliás, cada parecer é sempre transpor uma porta para lá da qual, não sei muito bem o que me espera, embora saiba o que trago para o que me possa esperar. Porém, acima de tudo, veicula uma tentativa de contribuir para se fazer a tal Justiça apoiada numa perspetiva marcadamente institucional, articulada com uma convicção pessoal amadurecida e assente na pretensão de afirmar o primado ou maximização jus natural da consagração da prioridade do justo na aplicação jurisdicional do Direito. Ora, na cor das minhas lentes (que não são negras nem opacas), a actividade leginterpretativa em confronto com a factualidade apurada, reclama uma hermenêutica sistémica das disposições legais, na unidade do sistema jurídico, que permite formular o entendimento seguro que as razões apresentadas nas doutas alegações de recurso estão destituídas na necessária capacidade demonstrativa que atribua ou confira à pretensão recursória o indispensável apoio ou respaldo legal. Nessa conformidade, essencialmente pelo exposto, sem necessidade de mais aturadas considerações, tudo visto, analisado e ponderado, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, à reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas tem merecido, à plêiade, força e validade dos argumentos aduzidos, à dogmática vigente, numa interpretação sistémica, integrada e entrelaçada das normas legais pertinentes, compatibilizando o que é conciliável, não desvalorizando o que deve ser valorizável e face à altíssima complexidade de tudo o que é humano, bem como, no empoderamento de um acto prudencial de eliminação, esbatimento ou minimização do risco para patamares socialmente suportáveis inerente a qualquer decisão judicial cujo objecto diga directamente respeito aos direitos, liberdades e garantias como aquela que criteriosamente se proferirá no enquadramento de uma ponderação final de síntese e tendo presente que a conduta do arguido foi ilícita e culposa, integrando a prática do crime pelo qual vinha acusado/pronunciado e foi condenado, não se verificando qualquer causa de exclusão ou dirimente da ilicitude (objectiva e/ou subjectiva), afigura-se-me que, na desinência da pretensão formulada, se deverá julgar o presente recurso improcedente e manter-se a decisão recorrida nos seus precisos e exactos termos, com todas as legais consequências substantivas e adjectivas. Tal é o teor do meu parecer e que ora se dá à estampa. * Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais de relevante se acrescentou e, após exame preliminar, sem outras vicissitudes, colheram-se os vistos e foram os autos à conferência. * Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Muito embora as conclusões do presente recurso sejam manifestamente insuficientes dado que apenas enunciam telegraficamente as questões suscitadas, sem concretizarem uma única, como competia, contudo, não se procede ao convite ao aperfeiçoamento por forma a não retardar os autos. As matérias neste caso relevantes no objeto do recurso são as seguintes:
- violação do ne bis in idem quanto a certos factos; - Nulidade de sentença por falta de fundamentação crítica; - exagerada medida da pena, e falta de fundamentação na aplicação da sanção acessória, e ausência de razões para a sua cominação, assim como o seu caráter exagerado. * O acórdão recorrido: “Acordam os Juízes que compõem o Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia: I - RELATÓRIO Em Processo Comum e perante Tribunal Coletivo, a Digna Magistrada do M.ºP.º acusou: - CC nascido a ../../1986 em ..., Vila Nova de Gaia, filho de BB e de FF, solteiro, desempregado, residente na Rua ... nº ..., 2º andar/direito, Vila Nova de Gaia; e - BB, nascido a ../../1948, em ..., filho de JJ e de KK, casado, empresário, residente na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, imputando: A) ao arguido CC, a autoria material de: - 3 (três) crimes de violência doméstica agravada previstos e punidos pelo art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Código Penal (em relação à vítima AA); e - 1 (um) crime de violência doméstica agravada previstos e punidos pelo art. 152º nº 1 al. d) e e) e nº 2 al. a) do Código Penal (em relação ao menor DD); devendo serem-lhe aplicadas as sanções acessórias previstas pelos nº 4 a 6 da mesma disposição legal; B) ao arguido BB constituiu-se autor material de: - 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo art. 143º e art. 145º nº 1 al. a) do Código Penal; - 1 (um) crime de sequestro p. e p. pelo art. 158º nº 1 do Código Penal; e - 1 (um) crime de sequestro agravado p. e p. pelo art. 158º nº 1 e nº 2 al. e) do Código Penal, tudo conforme despacho de acusação de fls. 583 a 593 dos autos, que aqui se dá por reproduzido. O Ministério Público requereu ainda que fosse fixado à vítima AA um montante a título de reparação, nos termos do artigo 82.º - A, do Código Penal e artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/09, de 16 de setembro. AA deduziu pedido de indemnização civil contra CC e BB, a final, que seja o mesmo condenado no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por ela sofridos, de montante nunca inferior a €3.750,00, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento. AA deduziu acusação particular contra CC imputando-lhe a prática de um crime de injúria p. e. p. pelo artigo 181º do Código Penal. Mais deduziu pedido de indemnização civil contra o mesmo peticionando que o mesmo seja condenado no pagamento à mesma pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, de montante nunca inferior a €1.000,00, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento. Os arguidos CC e BB apresentaram contestação invocando, em suma: Os factos descritos na acusação até ao ano de 2016, inclusive, foram já alvo de inquérito no âmbito do Processo n.ᵒ ..., tendo aí sido proferido despacho de arquivamento. Donde, percorridos os autos, não se vislumbra qualquer novo elemento, e muito menos despacho do Ministério Público, que justifique a reabertura do inquérito e, por conseguinte, que sirva de base à introdução dos mesmos na acusação agora proferida, motivo pelo qual devem aqueles factos ser tidos por não escritos, não devendo o Tribunal deles conhecer. Os arguidos negam, em absoluto, a prática dos factos que lhe são imputados, remetendo para a prova a produzir em audiência de julgamento oferecendo o merecimento dos autos. Por conseguinte, impugnam, porque falsos, os factos constantes dos pedidos de indemnização civil. Relativamente à questão prévia suscitada pelos arguidos na sua contestação a mesma já foi apreciada no sentido do seu indeferimento por despacho de 21.10.2024. Os arguidos CC e BB deduziram ainda pedido de indemnização civil que não foi admitido por intempestividade. A Mm.ª Juiz de Instrução proferiu decisão de pronúncia contra a arguida AA imputando-lhe a prática de: - um crime de introdução em local vedado ao público p. p. pelo art.º 191 º do Código Penal; - dois crimes de ameaça agravada p. e p. pelo artº 153º, nº1 e e 155º, nº1 als a) e b) com referência ao art.º 131º do Código Penal; - um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.º 143º, nº1 e 145º, nºs 1 al a) e 3 com referência ao art.º 132º, nº2, al c) do Código Penal, na pessoa do assistente BB; - um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143 /1 do Código Penal na pessoa do assistente CC; - um crime de dano p. e p. pelo art.º 212/1 do Código Penal (ofendido BB), tudo conforme despacho de pronúncia de fls. 828 a 838 dos autos, que aqui se dá por reproduzido. Realizou-se por fim a audiência de discussão e julgamento com a observância das formalidades legais, como da respetiva ata consta. * Mantêm-se os pressupostos de validade e de regularidade da instância. Inexistem quaisquer outras circunstâncias que tenham a virtualidade de impedir o conhecimento do mérito da causa. II - FUNDAMENTAÇÃO II.1 - Fundamentação de facto: Factos provados: Da acusação pública - A ofendida AA e o arguido CC iniciaram uma relação de intimidade, com coabitação, tinha a mesma 17 anos de idade e, portanto, por volta do ano de 2013. - No período de tempo (pré-coabitação), estando a ofendida já grávida, o arguido desferiu-lhe uma bofetada, pelo facto de a mesma ter ido à praia sem prévio conhecimento por parte do mesmo. - Perante a gravidez da ofendida, foram residir para casa dos pais do arguido e passados cerca de cinco meses, adotaram residência na Rua ... nº ..., 2º andar/direito, em ..., Vila Nova de Gaia. - E logo que iniciaram a coabitação, o CC passou a proibir a ofendida de sair de casa, a proibi-la de contactar com as amigas e retirou-lhe o telemóvel. - Em ../../2015, nasceu o filho de ambos, DD. - Algum tempo após tal nascimento e contra a vontade do arguido, a ofendida foi trabalhar, o que despoletou discussões motivadas por ciúmes daquele. E assim, o arguido passou a transportar a ofendida de e para o local de trabalho, proibiu-a de possuir telemóvel e de contactar com amigos e familiares. - Para além disso, a ofendida era obrigada a entregar ao arguido todo o seu vencimento, recebendo deste, semanalmente, apenas um euro. - Cerca das 11:30 horas do dia 5 de Novembro de 2016 e no decorrer de mais uma discussão, o arguido agarrou a ofendida pelos cabelos e desferiu-lhe um número indeterminado de bofetadas. - Como consequência direta e necessária da referida conduta, a ofendida sofreu dores ligeiras, pelo que não recorreu a serviços médico-hospitalares. - Nessa data, a polícia foi chamada ao local, tendo corrido Inquérito onde a ofendida não prestou depoimento. - Entretanto a ofendida regressou à casa de morada da família. - Em data também não concretamente apurada e no interior da viatura, o CC pegou no isqueiro ali existente e colocou-o (quente) no pescoço da ofendida. - Posteriormente, também em data não apurada – mas quando o filho de ambos tinha 2 anos de idade (entre 05.02.2017 e 05.02.2018), – no decurso de mais uma das discussões, o arguido conduziu a ofendida para um local isolado, nas proximidades da Ponte ..., em Vila Nova de Gaia, onde, puxando-lhe pelo cabelo, a retirou do interior da viatura. - Nesse momento, a ofendida sentiu algo junto à sua cabeça, ouviu um barulho semelhante a um disparo de arma de fogo pelo que, convencida que ia ali morrer, desatou a fugir e ocultou-se por entre a vegetação do local. - Após algum tempo escondida e depois de o CC ter abandonado o local, a ofendida acabou por ser intercetada por este, que a agarrou e colocou à força (empurrando-a) para dentro da viatura e dizendo que lhe ia tirar a vida ou o filho. - E tudo isto, na presença do filho menor de ambos. - E assim, temendo pela sua vida e pelo facto de poder ficar sem o filho, a ofendida manteve o relacionamento com o arguido até setembro de 2018, data em que, com o menor, fugiu para casa da sua mãe. - A partir da gravidez, CC nunca se absteve de apodar a ofendida de «vaca», «porca» referindo-lhe também «não vales nada como mulher» e «não vales nada como mãe», tudo isto, não obstante saber que a mesma sofria ou tinha sofrido de depressão. - Decorridos alguns meses, a ofendida viu-se obrigada a sair de casa da mãe, pelo facto de existirem suspeitas de abuso, por parte do irmão mais novo, sobre o seu filho. E assim, no sentido de proteger o seu filho e por sugestão da CPCJ, a ofendida acabou por concordar que o menor DD fosse entregue à guarda e cuidados dos avós paternos, onde todos os dias o recolhia para levar à Escola e o entregava pelas 19:00 horas e com que passava quinzenalmente um fim de semana. - Desde aí, a ofendida passou a evitar qualquer contacto com o arguido. - No início da tarde de 23 de Junho de 2021 (véspera do feriado de S. João) a ofendida, fazendo-se acompanhar de uma amiga (EE) dirigiu-se à residência dos avós do menor – sita na Rua ..., Vila Nova de Gaia – com o propósito de o recolher. - Antes da sua chegada, a mesma ainda recebeu uma chamada telefónica do menor para que ali não o fosse buscar, mas sem que lhe tivesse apresentado qualquer motivo. - No local, aguardavam-na o arguido CC e o pai, o arguido BB, a quem a ofendida solicitou que lhe franqueassem o portão para poder estar a sós com o menor, até porque se apercebeu que este estava acanhado e com um comportamento estranho. - Tal pedido foi recusado pelo arguido BB e, por seu turno, o arguido CC exaltou-se e puxou o filho para junto de si. - Perante a reação da ofendida que entrou no pátio de acesso à citada residência, o mesmo – apelidando-a de «puta» e «vaca» - desferiu-lhe uma bofetada na face, com força tal que a mesma caiu desamparada no chão. - E, nesta posição, o arguido CC ainda lhe puxou o cabelo. - Por seu turno, o arguido BB, desferiu-lhe, pelo menos, um murro dizendo «é morte que tu queres, é morte que tu vais ter». - Como consequência direta e necessária da conduta de ambos os arguidos, a AA sofreu as lesões descritas, fotografadas e examinadas a fls. 125 a 127, 145 a 147 e 141 a 143, as quais demandaram – para a respetiva cura – 8 (oito) dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral. Também nestas mesmas circunstâncias de tempo e local, o menor assistiu a todos estes factos. EE acorreu em auxílio da amiga, altura em que o arguido BB fechou o portão do pátio, impedindo assim, momentaneamente, que as mesmas saíssem do local, tendo acedido ao pedido da primeira quando esta, notoriamente grávida, lhe pediu para sair acompanhada da ofendida. Para além disso, o arguido CC – dirigindo-se à EE, mas em alusão à ofendida AA - declarou: «essa puta, essa vaca». O arguido CC agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de – ao molestar a ofendida no seu corpo e saúde, ao afetar a respetiva capacidade de reação e movimentação e ao atentar contra a honra e consideração – atentar contra a saúde (física psíquica e emocional) desta e contra o direito de confiança que lhe assistia no estabelecimento e restabelecimento de uma relação de intimidade (com filho comum), sem atos daquela natureza. Por seu turno, o arguido BB agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar fisicamente a ofendida AA. Não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável de todas as suas condutas.
Do pedido de indemnização civil deduzido por AA A prática, pelo arguido CC, da agressão na via pública, junto ao filho menor, provocou na vítima, para além das dores físicas, sentimentos de insegurança, vergonha, diminuição da autoestima, inferioridade e rejeição. Teve necessidade de ter cuidados médicos, no Centro Hospitalar .... Nos 8 (oito) dias seguintes apresentava hematomas visíveis e dores físicas. As condutas deliberadas e conscientes do arguido, concretizadas repetidamente e continuamente, ofenderam gravemente a sua honra e consideração. Na violência doméstica de que foi alvo, foi vítima de vários atos de violência física, não se coibindo o arguido de os praticar, nem sequer durante o período de gestação do filho de ambos. A ofendida temeu o arguido. Sofreu um forte abalo físico, sofreu dores e viu-se afetada psicologicamente, sofreu vergonha, perturbação, medo do seu agressor, e ainda o desgosto, vexame, dissabores e tristezas por tudo o que passou. Ao longo dos tempos revivia o sucedido na sua cabeça, como se naquele momento estivesse a acontecer, o que culminava em ataques de choro compulsivo que não conseguia evitar. Da acusação particular No dia 23 de junho de 2021 a ofendida, fazendo-se acompanhar, de uma amiga EE, dirigiu-se à casa dos pais de CC, sita na Rua ..., Vila Nova de Gaia, com o propósito de recolher o menor. No local, aguardavam-na CC e o seu pai, BB. A ofendida apercebeu-se que o menor estava acanhado e com um comportamento estranho. Razão pela qual pediu que os deixassem a sós, para percecionar o sucedido. Tal pedido foi recusado pelo avô e o pai puxou o menor repentinamente para si. Perante tal reação a ofendida entrou no pátio de acesso à casa, para acolher o menor que ficou perturbado com o ocorrido. Nesse momento, CC, começou a insultá-la, chamando-a de «puta», «vaca», não se inibindo de o fazer perante o filho, com 7 anos de idade, e de todos aqueles que ali se encontravam. Sentiu a vergonha e a humilhação pública por algo que é absolutamente mentira e que afeta o seu bom nome e a sua honra, como mãe, mulher, cidadã inserida socialmente e com comportamento social e cívico adequado. Tais expressões foram proferidas em voz alta e por forma a serem escutadas por quem se encontrava nas imediações, como na verdade aconteceu. Com tais expressões quis ofender gravemente a honra e consideração social da ofendida. Do pedido de indemnização civil deduzida pela assistente AA As injúrias que lhe foram dirigidas no dia 23 de junho de 2021 geraram na ofendida sentimentos de vergonha, indignação, vexame. O que lhe provocou sentimentos de insegurança, vergonha, e diminui a autoestima da ofendida, provocando lhe sentimentos de inferioridade e de rejeição. Do despacho de Pronúncia No dia 23-06-2021, AA deslocou-se à habitação de BB, onde também estavam presentes CC, FF e GG, com o intuito de aí ir buscar o filho menor de idade, na altura com 6 anos. Aí chegada, aguardou no lado de fora do portão, sendo que o filho menor de idade se recusou a ir com a arguida. Da condição socioeconómica e antecedentes criminais dos arguidos À data dos factos que deram origem ao presente processo e que se circunscrevem ao hiato temporal entre 2013 e 2017, CC residia na morada identificada em epígrafe, situação que se mantém. A morada corresponde a um apartamento de tipologia T2+1, com boas condições de habitabilidade, adquirido pelo arguido com recurso a crédito bancário e onde reside desde 2005. A habitação está inserida em espaço periurbano do concelho de Vila Nova de Gaia onde não se vislumbram fenómenos de exclusão social ou criminalidade. CC e AA, ofendida e coarguida nos presentes autos, conheceram-se em 2013 através de amigos em comum. À data, a ofendida, ainda menor de idade (17 anos), encontrava-se institucionalizada no Lar ..., no Porto. No decorrer do ano seguinte, a ofendida engravidou, e, em conjunto com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que acompanhava o caso, o arguido assumiu a responsabilidade pela ofendida. Em consequência, o casal começou a coabitar no final de junho de 2014. O filho do casal nasceu a ../../2015. Relativamente à dinâmica do casal, o arguido afirmou que a ofendida apresentava frequentemente um comportamento agressivo e conflituoso. CC sugeriu que essas atitudes poderiam resultar de uma possível desregulação emocional ou, alternativamente, serem consequência da imaturidade e das experiências disfuncionais vividas pela ofendida no seio da sua família de origem. Segundo o arguido, a relação da ofendida com a sua família, especialmente com a mãe, era disfuncional. O arguido referiu ainda que, em várias ocasiões, foi necessário transportá-la ao Hospital ..., onde foi observada na especialidade de psiquiatria. Contudo, a ofendida recusava seguir o tratamento indicado e não tomava a medicação prescrita. Durante o relacionamento, trabalhou numa empresa de montagem de toldos e tendas, enquanto a ofendida permaneceu desempregada até o filho completar 6 meses. Nessa altura, através do IEFP, conseguiu colocação profissional num lar de idosos, nas ..., Vila Nova de Gaia, e posteriormente trabalhou no Centro Logístico da “A...”, em .... A separação do casal ocorreu em 2017, de comum acordo, com a ofendida a regressar à casa da sua mãe, levando consigo o filho do casal. Contudo, em 2018, a situação sofreu uma alteração significativa, com a entrega do menor aos avós paternos, devido a um caso de abuso sexual perpetrado por um tio materno, na altura, também ele menor. Após o término da relação com a ofendida, CC iniciou uma nova relação afetiva com GG, que resultou em coabitação e durou cerca de cinco anos. A relação terminou pelo desgaste próprio das relações e de forma consensual. Apesar do fim do relacionamento, ambos mantêm uma relação de amizade, sendo GG uma visita frequente à casa dos pais de CC. CC possui o 9º ano de escolaridade e tem um percurso profissional diversificado. Iniciou a sua vida laboral aos 17 anos num bar de praia em ..., Vila Nova de Gaia. Desde então, desempenhou várias funções, como estofador, empregado de balcão, operário da construção civil, trabalhou na manutenção e jardinagem em condomínios, foi funcionário da EDP, sendo o seu último emprego o de carpinteiro de cofragens, até 2018. Em 2012, teve uma experiência como emigrante em França, onde trabalhou durante alguns meses na montagem de painéis solares. Em 2019, os pais do arguido começaram a manifestar um agravamento do estado de saúde, o que os levou a "contratar" CC para os apoiar nas tarefas diárias, nomeadamente no cuidado do irmão mais velho, BB, de 56 anos, diagnosticado com atraso no desenvolvimento psicomotor e epilepsia. Além destas patologias, BB sofre também de obesidade, o que requer apoio permanente de uma terceira pessoa, 24 horas por dia. CC é ainda responsável por parte das tarefas domésticas e pela manutenção da moradia, além de prestar apoio ao seu filho. O pai do arguido dispõe de um valor mensal aproximado de 850,00€ para compensar os serviços prestados pelo filho/arguido. Foram também documentadas as despesas fixas mensais do arguido, incluindo consumíveis domésticos, água (20,86€), eletricidade (38,29€) e o serviço de telecomunicações (45,49€). Adicionalmente, o arguido apresentou o recibo referente ao pagamento do condomínio (34,26€) e o extrato do Banco 1..., comprovando o valor correspondente à amortização do empréstimo à habitação (299,00€). CC dedica o seu quotidiano no apoio aos pais, irmão e filho, referindo que nunca mais teve qualquer contacto pessoal com a ofendida. Referiu ainda que faz regularmente fisioterapia na sequência de distúrbios musculoesqueléticos. CC menciona que este é o seu primeiro contacto com o sistema de administração da justiça penal e que a sua constituição como arguido lhe causou grande sofrimento, sobretudo pela natureza dos factos pelos quais está acusado. Considera que a aplicação da medida de coação de afastamento da vítima com recurso a meios de controlo à distância – Vigilância Eletrónica – foi excessiva, dado que, após o término da relação com a ofendida, evitava qualquer contacto com ela. Afirma ainda que, em muitas ocasiões, delegava nos pais a resolução de questões relacionadas com o filho de ambos, com o intuito de evitar conflitos ou confrontos diretos com a ofendida. Refere o desgaste emocional que o aproximar do julgamento lhe tem provocado, referindo que a sua expectativa é conseguir esclarecer toda a situação em sede de julgamento. O agregado familiar de BB é constituído pela esposa e pelo filho, BB, que tem diagnóstico de atraso no desenvolvimento psicomotor e epilepsia. Além dessas patologias, sofre ainda de obesidade, o que exige apoio permanente de uma terceira pessoa, 24 horas por dia. Esse apoio é prestado pelo irmão, CC, arguido nos presentes autos. Faz ainda parte do agregado o neto, filho dos coarguidos CC e AA, filho e ex-nora de BB. BB reside, desde 1992, na morada identificada em epígrafe. A habitação corresponde a uma moradia unifamiliar de tipologia T4, com boas condições de habitabilidade, implantada numa zona residencial sossegada, onde as relações de vizinhança primam pela discrição. BB estudou até à conclusão do 4º ano de escolaridade e está reformado desde 2012. A situação económica do agregado familiar é considerada suficiente para cobrir as despesas fixas mensais, com base nas pensões de velhice do arguido e do cônjuge. O arguido recebe duas pensões de velhice pelo tempo de trabalho em França (138,92€ + 355,46€) e uma pelo tempo de trabalho em Portugal (246,61€). O cônjuge nunca contribuiu para a Segurança Social em Portugal, pelo que recebe apenas as pensões relativas ao tempo de trabalho em França (89,74€ + 49,14€). O arguido declarou ainda como rendimento do agregado a pensão de alimentos paga pela coarguida/mãe do neto (75,00€) e a pensão social do filho mais velho, portador de deficiência física e cognitiva (298,42€). BB possui alguns imóveis arrendados, o que lhe proporciona um rendimento ilíquido anual de 23.424,00€. Deduzidas as despesas anuais com os imóveis, nomeadamente os encargos de condomínio (4.021,98€) e o imposto sobre rendimentos prediais (6.538,52€), obtém um rendimento anual líquido de 12.863,50€. O arguido destina ainda um valor que ronda os 850,00€ para o pagamento dos serviços prestados pelo seu filho, CC, também coarguido, nos cuidados ao irmão, bem como na ajuda à casa e aos pais, que necessitam de apoio para realizar algumas atividades diárias. O arguido refere ocupar o seu quotidiano de forma estruturada e positiva, nomeadamente no convívio com a esposa, o neto e os filhos. Menciona ainda que dedica parte do seu tempo, com o apoio do filho CC, à gestão e manutenção dos imóveis de que é proprietário. BB apresenta um quadro de saúde debilitado. De acordo com o relatório médico apresentado, é acompanhado em consultas de pneumologia e cirurgia vascular, ambas na Unidade Local de Saúde ... (ULS...). As suas patologias incluem hipertensão arterial (HTA), dislipidemia, diabetes tipo 2, hiperplasia benigna da próstata, insuficiência vascular e esteatose hepática. Em 2002, BB teve uma doença oncológica, um carcinoma do cólon, que o obrigou a submeter-se a cirurgia e tratamento de quimioterapia. Sendo este o primeiro confronto do arguido com o sistema da administração da justiça penal, BB vivencia-o com sentimento de injustiça pela sua constituição como arguido e de desilusão nomeadamente pela natureza dos factos pelos quais está acusado. O presente processo não teve repercussões negativas ao nível social e familiar, beneficiando do apoio da esposa e dos filhos, com quem mantém uma relação próxima e de interajuda. AA reside sozinha. O filho DD, nascido em ../../2015, na decorrência da relação afetiva que manteve com CC, pai do menor, entre 2013 a 2018 e que se mantém a residir com os avós paternos, pernoita semanalmente em casa da arguida de quinta para sexta-feira, assim como fins de semana alternados, conforme o estipulado no Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais, em Conferência das Partes ocorrida em dezembro de 2022 e que vigora à data. AA iniciou uma relação de namoro com CC aos 17 anos, resultando na gravidez do filho de ambos, DD. Ainda no decurso da gravidez, AA passou a viver em união de facto na residência onde o companheiro coabitava com os pais, na Rua ..., ..., Porto. As informações recolhidas junto de AA sugerem uma vivência em alegado quadro de violência doméstica, em contexto de agressões verbais, físicas e psicológicas perpetradas pelo companheiro CC, alegando ter sido este o motivo para abandonar a residência familiar, em setembro de 2018. A arguida reside na morada Rua ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, desde 2019, tratando-se de uma habitação de tipologia 1+1, com condições de habitabilidade satisfatórias. AA frequenta o curso de Esteticista de nível 4 no Centro de Formação do Instituto de Emprego e Formação Profissional ..., recebendo bolsa de formação de 254,63€. Iniciou a formação em 18.09.2023, estando o seu termo previsto para 28.02.2025, o qual, se concluído com aproveitamento, confere equivalência ao 12º ano de escolaridade. AA tem exercido atividade laboral como empregada de limpezas, sem contrato formal, com obtenção de rendimentos na ordem dos 350€ por mês. AA trabalhava como auxiliar de geriatria em estruturas residenciais de apoio a idosos, da Santa Casa de Misericórdia ..., atividade que exercia desde os 18 anos de idade. As condições económicas foram avaliadas como modestas e assentam apenas nos rendimentos obtidos como empregada de limpezas e pelo benefício de bolsa de formação profissional. Contudo, AA considera ter asseguradas as suas necessidades de subsistência imediatas, mediante uma gestão criteriosa das despesas. A situação económica da arguida, à data dos factos, apresentava-se mais favorável, resultante do vencimento que recebia por se encontrar a trabalhar como auxiliar de geriatria e também porque mantinha uma união de facto, estando o companheiro laboralmente ativo. Este relacionamento afetivo perdurou entre 2019 a março de 2024. Encontrando-se a vivenciar a sua constituição como arguida com sentimento de injustiça, AA aguarda com expectativa o desfecho do processo, que antecipa, contudo, como positivo. Os arguidos não possuem qualquer averbamento nos seus certificados de registo criminal. * Não se provaram quaisquer outros factos, constantes da acusação pública ou da contestação, que não se encontrem descritos como provados ou que sejam contraditórios em relação aos mesmos, sendo a demais matéria alegada, irrelevante, conclusiva ou de direito, designadamente que: Da acusação pública 1 - Desde o início da relação o arguido revelou-se controlador, passando a consultar os conteúdos do telemóvel da AA, a opor-se aos respetivos convívios sociais e a intrometer-se na forma como aquela se vestia. 2 - Ainda na fase de namoro e, em concreto, no dia 14 de dezembro de 2013, em local não apurado, mas no interior da viatura conduzida pelo mesmo, o arguido desferiu um estalo na face da ofendida. Como consequência direta e necessária da referida conduta, a ofendida recorreu aos serviços médicos do Centro Hospitalar ..., por traumatismo parietal esquerdo com ferida corto contusa. 3 – Após ter agredido a ofendida com um estalo (antes da coabitação) CC manteve, durante algumas horas, a AA fechada no interior da habitação dos pais, até que as marcas de agressão no rosto desaparecessem. 4 – O arguido proibiu a ofendida de se maquilhar ou de cortar o cabelo. 5 - Em data não apurada – mas quando o filho de ambos tinha 2 anos de idade (entre 05.02.2017 e 05.02.2018), – nas proximidades da Ponte ..., em Vila Nova de Gaia, o arguido empurrou a cabeça da ofendida na direção do chão e declarou-lhe «agora vais morrer, vou-te matar». 6 - CC nunca se absteve de apodar a ofendida de «cabra» e «badalhoca», referindo-lhe também «vai para o caralho», «vai-te foder». 7 – No dia 23.06.2021, o arguido BB, disse à ofendida «não tenho medo de dar um tiro a ti, nem a ninguém». 8 - O arguido BB fechou o portão do pátio, impedindo assim, durante cerca de dez minutos, que as mesmas saíssem do local, não obstante as súplicas daquela (que se encontrava notoriamente grávida) para que as deixasse sair. 9 - Para além disso, o arguido CC – dirigindo-se à EE, mas em alusão à ofendida AA - declarou: «é desta que a tua amiga vai ficar sem o filho de vez, só quer noites e agora com casa nem do filho quer saber». 10 - O arguido CC actuou de forma livre voluntária e consciente, com o propósito de – ao expor o seu filho menor (expressa ou implicitamente) à violência que exercia sobre a mãe – defraudar a confiança destes no dever que tinha de prover pela respetiva educação e desenvolvimento livre e saudável, sem atos daquela natureza. 11 - Por seu turno, o arguido BB agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de amedrontar a ofendida – afetando-a na respetiva capacidade de reação – ao fazê-la crer que poderia atentar, com arma de fogo, contra a sua vida ou integridade física. 12 - E este último arguido também atuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de reter as duas ofendidas – contra as respetivas vontades – num espaço confinado, obstando à respetiva locomoção e sujeitando-as a violência verbal. Do pedido de indemnização civil deduzido por AA Adquiriu pomadas e outros medicamentos para tratamento dos hematomas no valor de €40,00 (quarenta euros). Algumas peças de vestuário, foram inclusivamente rasgadas s e/ou danificadas na perpetração dos crimes, a saber: t-shirt da marca “zara”, 3 blusas das marcas “pull and bear” e “lefties” e, ainda, vestido da marca “bershka”, no valor aproximado de €100,00 (cem euros). Sentiu-se alvo de olhares e conversas. Viu a sua imagem afetada. Tem medo da sua presença, da sua aproximação e, por isso, medo de sair à rua e conviver com as pessoas próximas e outras. Não conseguiu durante bastante tempo refazer a sua vida, não deixava que nenhum homem chegasse perto de si. Chegou, inclusivamente, a padecer de um distúrbio alimentar. No que concerne ao episódio de sequestro vivenciado, engendrado pelo arguido CC e pelo seu pai BB, fez com que a arguida não conseguisse sair de casa, aumentou o medo que tinha de andar sozinha na rua, sentia-se constrangida cada vez que tinha de pedir a familiares ou amigos para a acompanharem para onde quer que fosse, privou-se muitas vezes convívio social. Durante meses teve pesadelos, situação que perdurou no tempo, provocando sequelas irreversíveis, na personalidade e modo de estar perante a própria e os outros sendo manifestamente coartada, sem que nada o justificasse sendo patente a insegurança. Atualmente, ainda recorre a medicação para tratamento do sono, cujo montante para a aquisição de cada embalagem ultrapassa os €15,00, preço equiparado ao dos antidepressivos de que também depende. Ainda hoje vive com sentimentos de desconfiança, o que a condiciona a fazer novas amizades e nas suas relações pessoais em geral. Tornou-se uma pessoa melancólica e inquieta. É notório o seu nervosismo sempre que sai à rua, frequenta sítios públicos ou até mesmo quando está em causa sozinha, independentemente do facto de ter acionado o seu botão de pânico, porque sabe que isso não é suficiente para travar as condutas dos arguidos. Foi e é assoberbada por sentimentos de impotência, aflição e humilhação como mãe e mulher. Da pronúncia 3 - Nessa sequência, e após breve troca de palavras entre a arguida e BB, aquela, aproveitando o facto de o portão delimitador do pátio anexo à habitação, se encontrar semiaberto, introduziu-se, sem que para isso fosse autorizada por quem quer que fosse, naquele pátio, de onde arrastou o menor de idade para fora do portão. 4 - Porque aquele menor de idade se amedrontou com a situação ocorrida, começando a chorar dizendo que não queria acompanhar a mãe (aqui arguida), BB deu a mão àquele primeiro e levou-o, de novo, para dentro do pátio. 5 - Nessa sequência, e de novo sem autorização para o efeito, por quem quer que fosse, a arguida reentrou no pátio da habitação e, sem que nada o fizesse prever, empurrou violentamente BB no peito, o que o fez desequilibrar-se, embora sem cair, e embater na caleira da habitação. 6 - Em seguida, a arguida desferiu uma cabeçada na zona da face de BB, pessoa com 73 anos de idade (à data dos factos), com inúmeros problemas de saúde, debilitado fisicamente, tudo do conhecimento da arguida. 7 - Com tal comportamento, os óculos que BB trazia consigo na face, sem os quais não consegue definir objectos e pessoas, o que aliás é do conhecimento da arguida, saltaram-lhe do rosto, caindo no chão. 8 - Sem perceber onde se encontravam os óculos, BB tentou recuperá-los, embora com as dificuldades inerentes à falta de visão, sendo que, nesse momento, a arguida pontapeou aqueles óculos, riscando-os nas lentes e partindo parte da armação. 9 - À arguida foi, por diversas vezes, solicitado por BB que abandonasse aquele espaço, porque privado, o que a mesma se recusou a fazer. 10 - Apercebendo-se do que estava a suceder, CC foi ao encontro do seu filho e de BB, com a intenção de levar aquele para dentro de casa. 11 - Quando tentava afastar a criança daquele local, a arguida dirigiu-se a CC e, sem que nada o fizesse prever, agarrou-o pelo braço, desferindo-lhe um número não concretamente apurado de socos no peito. 12 - Acto contínuo, arranhou-lhe o peito com as unhas, provocando-lhe aí ferimentos e tendo ainda rasgado a camisola que o mesmo vestia. 13 - Este, enquanto com um braço tentava afastar a arguida de si e com o outro tentava acalmar/proteger o filho de ambos, solicitou àquela que parasse com a conduta e abandonasse aquele local, sendo que a nada a mesma acedeu. 14 - Nesse seguimento, também GG se aproximou do local referido, colocando-se entre CC e a arguida, o que permitiu que aquele se conseguisse afastar com a criança e parar com as agressões da segunda para com o ofendido CC. 15 - De novo, à arguida foi solicitado que abandonasse o pátio, desta vez quer por BB, quer por GG, o que aquela continuou sem fazer. 16 - Já com a criança em segurança, junto da avó paterna, CC dirigiu-se junto da arguida e encaminhou-a para fora do pátio. 17 - Acto contínuo, e enquanto estava a ser encaminhada para fora do pátio, a arguida, dirigindo-se a CC e a BB, disse-lhes com foros de seriedade: «vocês compraram uma guerra, são dois homens mortos». 18 - Já fora do pátio, a arguida, dirigindo-se a CC, disse-lhe com foros de seriedade: «tu não vales nada, eu agora tenho um bom homem, ele vai tratar de ti, estás morto». 19 - Com a conduta descrita, BB sofreu dores nas zonas atingidas, tendo ainda sofrido um derrame no olho esquerdo, o que lhe determinou pelo menos três dias de cura, sem afectação da capacidade de trabalho. 20 - Com a conduta descrita, CC sofreu dores nas zonas atingidas, o que lhe determinou pelo menos três dias de cura, sem afectação da capacidade de trabalho. 21 - Com a conduta descrita, BB teve um prejuízo de 214,50 EUR (duzentos e catorze euros), porquanto se viu na obrigação de adquirir uns óculos novos, sendo que aqueles estragados pela conduta da arguida haviam sido comprados escassos 5 dias antes. 22 - Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente, com a intenção de se introduzir no pátio da habitação de BB, sabendo que tal pátio era privado e pertencia àquela habitação, sabendo igualmente que o mesmo se encontrava vedado e delimitado com muros, grades e portões, e mais sabendo não ter autorização para aí entrar e que lhe foi solicitada a saída, o que mesmo assim não a impediu de concretizar os seus intentos. 23 - De igual forma livre, deliberada e consciente, a arguida agiu com o propósito concretizado de molestar CC no seu corpo e saúde, dirigindo-lhe expressões que sabia atingi-lo na sua honra e consideração, como de facto atingiu, e ainda expressões que sabia serem adequadas a provocar-lhe medo ou inquietação, porque ameaçadoras da vida daquele. 24 - Agiu a arguida da mesma forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de ofender a integridade física de BB, o que conseguiu, mesmo tendo perfeita consciência da idade, fragilidade física e falta de destreza daquele, mais sabendo que não podia, atenta a sua condição, defender-se. 25 - Agiu a arguida dessa mesma forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de destruir/estragar os óculos que sabia pertencerem a BB, o que conseguiu. 26 - Também de forma livre, deliberada e consciente, a arguida agiu sabendo que as expressões que dirigiu a BB eram adequadas a provocar-lhe medo ou inquietação, porque ameaçadoras da vida daquele, o que mesmo assim não foi impeditivo de levar a cabo os seus intentos, ademais tendo perfeita consciência da idade e fragilidade física daquele. 27 - Agiu a arguida, em todas as condutas, mesmo sabendo que tais comportamentos eram e são proibidos e punidos por lei penal, tendo, por isso, consciência da ilicitude dos seus actos. *** III - A convicção do tribunal: A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal. O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis. Tal princípio não é, porém, absoluto, e entre as exceções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial. De sublinhar que estamos perante factos que poderão consubstanciar a prática, pelo arguido, do crime de violência doméstica. Nestas situações, é do conhecimento comum ser muito raro haver testemunhas diretas dos factos, pois tudo se passa maioritariamente no seio familiar, “entre quatro paredes”, em que os mesmos são perpetrados pelos arguidos justamente no pressuposto de não serem testemunhados por terceiros. Com efeito, é certo que muitas vezes o único elemento de prova existente nestas situações resume-se às declarações da própria ofendida, por vezes conjugados com elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem ao julgador formar a sua convicção sobre a verdade dos factos nos termos relatados pela própria vítima. Por outro lado, e como bem se refere no Ac. TRP de 11.10.2023, disponível em www.dgsi.pt, “se lidamos com um crime de violência doméstica, com factos ocorridos ao longo de um período temporal de meses ou anos e que se traduzem em palavras ou agressões dirigidas a outro, o grau de possibilidade dessa exacta concretização é evidentemente menor. Veja-se que é o próprio tipo que pressupõe a possibilidade de ocorrência de reiteração embora o agente, a final, seja sempre condenado por um único crime, independentemente do período de tempo decorrido e do número de vezes em que ocorreu repetição dos factos. É evidente que perante este quadro legal e contexto factual não é exigível que as vítimas de violência doméstica tenham presente o dia e hora em que, por exemplo, lhe são dirigidas palavras ou acções como as supradescritas, no fundo, fazendo recair sobre as mesmas a obrigação de anotarem todas as ocorrências. (…)Um entendimento tão estrito da lei, que imponha um rigor descritivo exacerbado e que não permita em alguns casos, fruto das limitações indicadas, a comprovação da prática de crimes por tal razão é desproporcionado e desadequado aos bens jurídicos e valores que a Justiça protege e prossegue, pois deixa desprotegidas as vítimas mais vulneráveis em nome da garantia de direitos de defesa dos arguidos que não deixam de ser mantidos com regras interpretativas mais maleáveis. E o legislador ao configurar este tipo crime estava certamente ciente das limitações que as vítimas teriam na concretização dos episódios vividos, por vezes, ao longo de toda uma vida(…). O tribunal ponderou de forma conjugada os seguintes elementos de prova, analisados de acordo com regras de razoabilidade e experiência comum: - Assento de nascimento constante de fls. 182 – menor DD; - Registos clínicos constantes de fls. 526, 527 e 528 – registo de episódios depressivos da ofendida AA de junho a agosto de 2015 – pós parto; - Relatório de perícia de avaliação do dano corporal constante de fls. 200 a 201 v. no que concerne aos factos ocorridos em 5.11.2016 e a dores sofridas pela mesma; - Relatório de perícia de avaliação do dano corporal constante de fls. 141 a 143 – ocorrência do dia 23.06.2021 e constatação de lesões no crânio, face, dois braços e membro inferior direito; - Registos constantes de fls. 56 e 145 a 146 v. relatório da urgência para a polícia e verbete de socorro e transporte na ambulância no dia 23.06.2021; - Registos clínicos constantes de fls. 334 a 335 v. - dia 23.06.2021; - Fotogramas constantes de fls. 124 a 127 ilustrativos das lesões sofridas pela ofendida AA no dia 23.06.2021; - Documento constante de fls. 348 a 349 v. – ata de conferência de partes relativa ao menor DD; - o depoimento seguro, sentido e coerente da ofendida AA a qual relatou que tinha 17 anos quando começou a namorar com o arguido CC. Engravidou depois e ele ficou seu tutor, isto em ../../2015. Nessa altura passou a viver com o CC. Logo no início do relacionamento de ambos este não a autorizava a ir para a Praia porque dizia que se ia exibir e chegou a bater-lhe com um estalo num dia que foi à praia sem autorização dele. Ao longo da sua gravidez o CC dizia que ela não sabia fazer nada como mulher. Quando passou a trabalhar ele ia levá-la e traze-la, tinhas que se vestir com trajes compridos e ele ficava-lhe com o seu ordenado, limitava-a a três cigarros por dia, não podia ter telemóvel nem estar com amigos. Ele ficou com o seu cartão multibanco e dava-lhe apenas um euro por semana. Como não tinha condições para ficar com o filho ia aceitando aquelas atitudes. Por volta dessa altura, recorda um episódio em que ele, no carro, tirou o isqueiro e atirou-lho queimando-a no pescoço. Teve que ir ao hospital dessa vez mas disse que foi ao esticar o cabelo que se queimou. Ele partia-lhe o telemóvel se soubesse que tinha contactos através da rede social Facebook, não a deixava ir ao cabeleireiro por questões económicas, chegou a agarrá-la pelos cabelos e deu-lhe estalos e murros. Não a deixava sair de casa. Fugiu de casa por causa disto. Mais recordou estar o seu filho na altura com dois anos, quando o arguido CC agarrou-a pelos cabelos e levou-a até ao ... em V.N.Gaia, puxou-lhe pelos cabelos para fora do carro e fez que tinha uma arma, imitou o som de uma arma. O filho estava no carro a assistir a tudo. Com medo dele fugiu e escondeu-se e quando ele apareceu outra vez disse que a ia matar e puxou-a pelos cabelos de volta para o carro. Com frequência o CC dizia-lhe que não prestava, chamava-lhe vaca, porca, que não tinha a casa arrumada, não sabia estender a roupa. não valia nada como mãe nem como mulher, que ia ficar sem o filho e sem ninguém. Os insultos ocorreram a partir da gravidez. Separou-se novamente do CC e a sua mãe acolheu-a – foi para casa dela lá com o seu filho tinha este 3 anos e meio. Depois viu-se obrigada a sair de casa da sua mãe por suspeitas de abusos sexuais ao seu filho que não se vieram a confirmar. Porém, perante esta situação, a CPCJ decidiu atribuir a guarda do menino aos avós paternos. Entretanto, arranjou casa e autonomizou-se mas esteve sempre em contacto com o seu filho. Em 2021 foi buscar o seu filho para passar a véspera do feriado de São João acompanhada pela EE. O filho ligou-lhe a dizer que não queria ir sem dizer porquê. Foi na mesma para falar com ele e dar-lhe pelo menos um beijinho. Quando lá chegou veio o pai e o avô do menor, abriram o portão e falou com o filho perguntando porque não queria ir. Pediu ao avô (BB) posso falar a sós com o meu filho. Entretanto o CC puxou o filho para dentro e deu-lhe uma chapada que a atirou ao chão ficando sem reação. Chamou-lhe vaca, puta, que ia ficar sem o seu filho. O avô ainda lhe puxou os cabelos e deu-lhe dois socos quando estava no chão. Não desferiu qualquer cabeçada. Depois o avô fechou o portão e disse que não as ia deixar sair de lá já que a sua amiga foi em seu auxílio. O CC foi à sua beira a dar-lhe cabeçadas e ia para EE mas a namorada dele impediu-o. Entretanto deixaram-nas sair e o avô disse que “é morto que queres é morte que vais ter”. Negou ter batido em quem quer que fosse ou rasgado a camisola do CC. Chamou ao local a polícia e o INEM. Tirou fotos a si mesma e juntou-as ao processo, tinha a cara inchada, os braços pisados e cabelos arrancados. Foi também ao INML. O CC apareceu às autoridades com uma camisola ao pescoço e em tronco nú. Ele estava a puxar a gola da camisola. Negou ter-se esbofeteado a si própria. Relatou ter sofrido de depressão pós-parto e tomou medicação até aos 4/5 meses depois de ter nascido o filho. Tinha que ir trabalhar sem telemóvel pois o CC partia-lhe o telemóvel e não podia comprar outro. Teve que dar o contacto do seu marido para fins profissionais. Quando viviam no ... chegou a ficar fechada em casa e não podia sair. Umas vezes ele saia e fechava-a em casa. Outras vezes fechava a porta com os dois lá dentro e dizia que não podia sair. O seu filho foi sempre assistindo ao que se passava; - o depoimento genuíno, sincero, sentido e desinteressado da testemunha EE, que nos descreveu de forma pormenorizada o episódio ocorrido em 23.06.2021. Descreveu que ao longo da relação da AA com o arguido CC foi mantendo contacto com ela sempre que ela tinha telemóvel pois, por vezes, o CC partia-lhe os cartões e os telemóveis. Também numa vez, durante uma chamada telefónica, ela disse-lhe que ele a tinha marcado com um isqueiro no pescoço. Noutra vez ligou-lhe dando conta que teve que fugir grávida porque o companheiro lhe queria bater. Quando começou a namorar com ele não conseguia sequer localizá-la, não tinha como a contactar. Depois de uma separação, esteve duas semanas a morar consigo e aí contou-lhe com maior pormenor o que tinha acontecido. No dia 23.6.2021 estava grávida de seis meses e foi com a AA buscar o filho dela a casa dos avós pois iam passar o São João consigo. O menor ligou à mãe e ela achou-o estranho. Quando chegaram à parte de fora do portão de casa dos avós apareceu o menor com o pai e o avô. Abriram o portão e a AA pediu ao avô para falar com o meu filho a sós. Ai, ela é puxada para dentro do portão pelo CC que lhe deu estalos e atirou-a para o chão. Para ir buscar a AA entrou atrás dela. Já o arguido BB, avô do menor agarrou a AA, puxou-lhe os cabelos, bateu-lhe na cara/esbofeteou-a e disse que não ia levá-lo. Ainda disse à AA “queres mortes então é mortes que vais ter”. Entretanto entrou para a ajudar e fecharam o portão. O arguido CC vinha na sua direção e a companheira dele disse-lhe “olha que ela esta grávida”. Pediu então para sair ao avô do menor dizendo que estava grávida, e ele lá acedeu saindo as duas. Ficou chocada com toda esta situação por serem dois homens contra uma senhora. A AA não bateu em nenhum deles, controlou-se. Ninguém agrediu o avô nem lhe fez cair os óculos. A LL não insultou nenhum deles nem ameaçou e ela não deu nenhum encontrão nem fez nada ao Sr. CC. A AA chamou a polícia a partir do seu telemóvel, veio também o INEM. O CC rasgou a própria camisola porque ninguém lha rasgou e ele apareceu assim com a camisola por cima do ombro. Quando saiu da beira dele tinha a camisola intacta. O CC ainda lhe disse “A tua amiga é uma puta, uma vaca”. Como consequência destas agressões a sua amiga AA tinha peladas na cabeça, os braços marcados/pisados e cara inchada dos estalos que levou. Mais assegurou que a sua amiga AA, depois da separação, passou um mau bocado. Muitas vezes tinha ataques de choro, chegou a ir a uma psicóloga. Tinha medo do CC depois da separação. Tinha traumas e os contactos com os amigos só foram retomados aos poucos; - o depoimento sincero e isento do agente da PSP II, agente da Polícia de Segurança Pública, que elaborou o auto de notícia de fls. 46 e confirmou o seu teor. Elaborou também outro auto de notícia na mesma situação – Apenso 713, fls. 3 e pensa existir ainda mais um auto de notícia relacionado com esta situação. Descreveu que se deslocou ao local no dia ali assinalado sendo que se recorda de duas pessoas, a vítima e uma amiga. A senhora foi assistida pelo INEM e depois foi ao hospital falar com ela apresentando a mesma marcas de agressões e os ferimentos que estão mencionados no auto de notícia. Recorda-se apenas de ter perguntado a um sr. de idade se queria ir ao hospital e ele disse que não - o Sr. BB tinha os óculos estragados e tinha uma marca no rosto (não tendo este Tribunal apurado que esta marca proviesse de qualquer agressão por parte da arguida AA). Já o Sr. CC não apresentava quaisquer ferimentos como também fez constar do auto de notícia. *** Não se valorou o teor do auto de declarações constante de fls. 196, pois tal documento comporta declarações da ofendida não prestadas em audiência de julgamento. Por seu turno, os registos clínicos constantes de fls. 332 a 332 v.º não demonstram qualquer agressão imputável ao arguido CC e referem-se a um episódio em que a mesma terá sido atingida por uma pedra. O Relatório de perícia de psicologia constante de fls. 502 a 505, relativo ao menor DD atesta apenas que o mesmo se encontra sujeito a um ambiente de conflitualidade parental relativamente à sua guarda é ali assinalado que existe um importante condicionamento da narrativa do examinado uma vez que pretende responder às expectativas de cada progenitor. Também o relatório de perícia de psicologia constante de fls. 507 a 510 relativo à ofendida AA encontra-se orientado para a parentalidade e seus conflitos. Ainda a participação constante de fls. 109 a 110 v. refere-se somente ao exercício do direito de visitas no mês de agosto de 2021. *** Obviamente que os depoimentos dos arguidos BB e CC foram no sentido de negar os factos que lhe foram imputados procurando até, ao invés, conferir responsabilidade exclusiva à ofendida AA nos factos ocorridos a 23.6.2021 em que referem que apenas aquela os agrediu, o que não é minimamente credível face à disparidade de serem dois homens perante uma mulher e numa situação de tensão latente relacionada com a filho da ofendida e do arguido CC e com o exercício das responsabilidades parentais/entregas do menor. Chegaram mesmo a dizer que a ofendida se autoinfligiu lesões, o que é de todo inverosímil atentas as lesões ilustradas nos autos através das fotografias juntas pela mesma. De qualquer forma, o conjunto da prova produzida e já acima analisada, corrobora a versão dos factos trazida aos autos pela ofendida AA, não tendo sido as declarações dos arguidos CC e BB e das testemunhas FF e GG, desacompanhadas de outros meios probatórios, suscetíveis de infirmar tal conclusão. Na verdade, a versão dos factos trazida pelos arguidos, sustentada também pelos depoimentos de FF, mulher e mãe respetivamente dos arguidos, e de GG, companheira do arguido CC à data da ocorrência dos mesmos, não tem suporte em qualquer elemento clínico quanto a eventuais lesões sofridas pelos mesmos contando apenas com as fotografias de fls. 661 a 664 (alegadas lesões sofridas por ação da ofendida) que estranhamente não foram juntas em sede de inquérito/queixa apresentada pelos mesmos em 24.6.2021 e 25.6.2021 mas apenas e tão só com o requerimento de abertura de instrução entrado em juízo em 29 de março de 2023, quase dois anos depois da data dos factos aqui em apreço. Diga-se que estas, apesar de datadas, não confirmam a ocorrência das agressões naquela ocasião já que tais datas podem ser livremente configuradas e colocadas nas fotografias. Também não existe nos autos qualquer relatório pericial que possa confirmar as alegadas lesões sofridas pelos dois queixosos. Estranha-se também que a queixa apresentada por BB esteja estribada num relato escrito em duas páginas em que a letra é claramente de caligrafia feminina e com um discurso bastante aproximado do que nos trouxe a testemunha GG. Todas estas testemunhas foram no essencial concordantes entre si ao que não serão estranhos os laços familiares que os ligam e ligavam à data relativamente à testemunha GG já que esta mantem relação de amizade com o arguido CC, sendo visita frequente à casa dos pais deste. O depoimento da testemunha HH, irmão do CC e filho do BB, em suma, atestou que o seu irmão e a AA discutiam muito, não tinham uma boa relação e que, por mais que uma vez lhes pediu para não terem discussões à frente do menor DD. Quanto às condições socioeconómicas dos arguidos, levou-se em conta o teor do seus relatórios sociais juntos aos autos (ref.ªs 40443478; 40444113 e 40444126). No que se refere à ausência de averbamentos no CRC dos arguidos, o tribunal valorou o teor dos seus C. R. Criminal juntos aos autos (ref.ªs 40366610; 40366611 e 40366612). No que se refere aos factos não provados estes decorreram da ausência de mobilização probatória bastante suscetível de convencer o Tribunal da sua verificação. No que se refere às armas encontradas na sequência da busca efetuada à residência do arguido BB – suporte informático de fls. 128, auto de busca e apreensão constantes de fls. 278 a 286 e documentos e exame pericial de fls. 555 a 575 não irá este Tribunal pronunciar-se pois que foi determinada a instauração de inquérito autónomo para a investigação do crime de detenção de arma proibida conforme despacho final proferido nestes autos em 21.01.2023. * IV - Fundamentação de direito: IV.1. Subsunção jurídico-penal dos factos dados como provados: Feita a fundamentação de facto, importa agora proceder à respetiva qualificação jurídica. Vem o arguido acusado da prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal. Dispõe tal artigo: 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos. Acompanhando a progressiva consciencialização ético-social da gravidade individual e social dos comportamentos violentos perpetrados no seio da família e abandonando a conceção tradicionalmente prevalecente do lar conjugal como um espaço tendencialmente auto-regulador da atuação dos seus membros e subtraído, por natureza, à intervenção do direito penal, o legislador assumiu o inequívoco propósito de prevenir e reprimir as mais relevantes formas da chamada violência doméstica através da especial tutela que o direito penal tem por função dispensar. O crime de violência doméstica é, desde logo, um crime específico, no sentido em que só pode ser levado a cabo por pessoa que se encontre ou se tenha encontrado numa determinada relação para com o sujeito passivo. Como resulta das anotações do Professor Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 329 e ss. "A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão "subtis" quão perniciosas, para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem estar - formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho" ... "A ratio do tipo não está pois, na proteção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana" ... "As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.) E, no caso de maus tratos a cônjuge, é um crime específico e de resultado, pois que pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo dos comportamentos ilícitos assumidos. O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação. No crime de violência doméstica, a acção típica tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima (Ac. TRP de 26.05.2010, disponível em www.dgsi.pt). Maus tratos psíquicos são também os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. (cfr., entre outros, os Acs. do T.R.Évora de 08/01/2013, processo n.º 113/10.0TAVV.E1, e do T.R.Lisboa de 05/07/2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Não exigindo o tipo legal uma reiteração de ações, um único ato ofensivo só consubstanciará “maus tratos” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana. No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19.09.2012, disponível em www.dgsi.pt, refere-se que “… admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”. A nível do tipo subjetivo de ilícito, o tipo base previsto no art. 152.º, n.º 1, do CP, exige o dolo, em qualquer das suas modalidades (já desde a reforma de 1995, que foi abandonada a exigência de “dolo específico” ou de qualquer requisito adicional ao dolo simples), tendo o agente que naturalmente conhecer a relação particular que tem com a vítima (em que se baseia o crime), bem como conhecer e querer praticar determinada conduta (que integra a prática do crime), sendo que o resultado previsto no n.º 3, é imputado a título de negligência. É necessário igualmente o dolo genérico (conhecimento e vontade) em relação ao preenchimento do tipo qualificado previsto no art. 152.º, n.º 2, do CP, em qualquer das suas modalidades.1 1 Maria do Carmo Silva Dias, “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA” NA CONVENÇÃO DE ISTAMBUL E NO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS, in Violência doméstica e de género e mutilação genital feminina, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, disponível na internet em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_VD2019.pdf. Procedendo ao cotejo das considerações expendidas com a factualidade vertente, verifica-se que a ofendida foi namorada do arguido entre 2013 e fevereiro de 2015 e companheira do mesmo desde essa data até setembro de 2018. Durante este relacionamento este injuriou-a com as expressões tidas por provadas de forma reiterada. Também a minimizava, diminuía dirigindo-lhe expressões tais como «não vales nada como mulher» e «não vales nada como mãe», tudo isto, não obstante saber que a mesma sofria ou tinha sofrido de depressão. Também o arguido controlava a vida da ofendida transportando-a de e para o local de trabalho, proibindo-a de possuir telemóvel e de contactar com amigos e familiares. Por diversas vezes a ameaçou e atingiu a integridade física da assistente com puxões de cabelo e socos/estalos. Para além do mais, levou a cabo estas condutas estando a ofendida grávida e também quando estava com depressão. Após o nascimento do filho de ambos na presença do mesmo. O arguido CC agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de – ao molestar a ofendida no seu corpo e saúde, ao afetar a respetiva capacidade de reação e movimentação e ao atentar contra a honra e consideração – atentar contra a saúde (física psíquica e emocional) desta e contra o direito de confiança que lhe assistia no estabelecimento e restabelecimento de uma relação de intimidade (com filho comum), sem atos daquela natureza. Não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta. Cometeu assim o arguido um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea b) e n.º 2 alínea a) do Código Penal. No que concerne ao número de crimes cometidos pelo arguido em relação à ofendida AA cremos não haver factos que permitam concluir pela existência de mais que uma resolução criminosa por parte do arguido CC tendo, ao invés, o mesmo atuado sempre no mesmo quadro de menorização, depreciação e humilhação da sua namorada e depois companheira, desde 2013 até setembro de 2018. Temos assim por verificado apenas um crime de violência doméstica. Relativamente ao imputado crime de violência doméstica em que seria vítima o seu filho menor, não resultaram demonstrados nenhuns atos por parte do arguido que visassem diretamente atingir física ou psiquicamente este de forma a que se revelasse em relação ao mesmo um tratamento cruel, degradante ou desumano. Temos assim por não verificados os pressupostos objetivos e subjetivo do crime de violência doméstica relativamente a DD. Já quanto aos factos ocorridos em 23.06.2021 entendemos que os mesmos, ocorridos quase 3 anos depois da separação do casal, não configuram a prática de um crime de violência doméstica, mas antes um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. 143º e 145º, n.º 1 al. a) do Código Penal. Na verdade, tratou-se de uma situação que teve a sua origem a entrega do menor filho de ambos à mãe e a recusa do mesmo em ir com a mesma como era pressuposto, tendo-se ali despoletado uma agressão física à ofendida – através de uma bofetada na face, com força tal que a mesma caiu desamparada no chão e de puxões de cabelo. Prescreve este artigo que se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
(..) 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º Na verdade, o facto de o crime ter sido praticado contra pessoa com quem o agente manteve uma relação análoga à dos cônjuges (e na presença do filho menor de ambos), vai buscar a sua razão justificativa à circunstância de «os laços familiares básicos com a vítima deverem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade» (neste sentido, o Ac. TRL de 19.05.2015, disponível em www.dgsi.pt). In casu, o arguido atingiu a integridade física da ofendida através de agressão à bofetada na face, com força tal que a mesma caiu desamparada no chão e de puxões de cabelo. CC agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar a ofendida no seu corpo e saúde, contra o direito de confiança que lhe assistia proveniente de uma anterior relação de intimidade (com filho comum), sem atos daquela natureza. Não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta. Estão assim preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivo do tipo legal de crime em apreço. Do crime de ofensa à integridade física Dispõe o art. 143.º, n.º 1 do Código Penal que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” Nesta matéria, dispõe o artigo 25º, da Constituição que «A integridade moral e física da pessoa é inviolável», o que concede um direito a ninguém ser agredido ou ofendido no corpo ou espírito. Pretende-se, com a citada prescrição, proteger a integridade física da pessoa humana, integridade entendida como corporal e psíquica e, por consequência, punir o agente que inflige na vítima «mau trato através do qual (aquela) é prejudicada no seu bem estar físico de forma não insignificante» (ofensa no corpo), ou age de modo a pôr «em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a» (lesão da saúde) (Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense, Tomo I, págs. 202 e ss.). É elemento objectivo do tipo de ilícito, qualquer ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ainda que não cause dor ou sofrimento. O crime de ofensa à integridade física é um crime de resultado, na medida em que supõe tal dano, imputado objectivamente à conduta do agente, cuja consumação depende da verificação da ofensa entendida como efeito e não como acção de ofender. «O tipo legal em análise abrange (…) um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais». É também um crime de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito, que pode ser uma ofensa no corpo ou uma ofensa na saúde da pessoa visada. Subjectivamente, para o preenchimento do mesmo crime, é imposto que o agente actue com consciência e vontade de que a sua conduta lesa o corpo ou a saúde de outra pessoa. Tem como elemento subjectivo o dolo, em qualquer das suas modalidades, dolo, que deve ser dirigido à ofensa do corpo ou da saúde de terceiro, sendo irrelevante a motivação do agente. Os factos relativos ao dia 23.06.2021 relativamente ao arguido BB, integram a prática de um crime de ofensa à integridade física simples e não qualificada como vem acusado. Na verdade, não se demonstrou a ocorrência de qualquer circunstância que pudesse conduzir à conclusão que a agressão perpetrada por este arguido à ofendida AA – uma agressão com a mão nua na cara daquela – se revestisse de especial censurabilidade ou perversidade do agente. Assim, no dia 23.06.2021, o arguido BB, desferiu na ofendida, pelo menos, um murro dizendo «é morte que tu queres, é morte que tu vais ter». Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar fisicamente a ofendida AA. Não desconhecendo do caráter ilícito e criminalmente censurável de todas as suas condutas. Estão assim preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivo do tipo legal de crime em apreço. Do crime de Injúria O art. 181º do Código Penal estatui“ Quem injuriar outra pessoa imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias“. No crime de injúrias protege-se a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas, daí que o bem jurídico lesado pela injúria seja, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal. Este, para a sua verificação, pressupõe, desde logo, um elemento objectivo - concretizado na circunstância de o agente, na presença do sujeito passivo, lhe imputar factos ofensivos da sua honra ou consideração, tratando-se, nesta medida pois, de um crime de dano; Por outro lado, no que tange ao elemento subjectivo, é largamente dominante a doutrina e a jurisprudência que entende bastar-se o crime em apreço com a presença do dolo enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude, isto é, o conhecimento de que determinados factos são lesivos da honra ou consideração de outrem e a vontade, ao menos eventual, de os concretizar (cfr. Silva Dias, «Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúria», AAFDL, 1989, págs. 35 e 36 e Maia Gonçalves, «Código Penal Português, Anotado», 6º ed., 1992, págs. 425 e 426). Ora, perante o caso sub iudice, dúvidas não restam quanto ao preenchimento integral dos elementos deste tipo legal de crime, porquanto as expressões (palavras utilizadas) pelo arguido CC, dirigidas à ofendida AA, no dia 23.06.2021: «puta», «vaca», não se inibindo de o fazer perante o filho, com 7 anos de idade, e de todos aqueles que ali se encontravam, são objectivamente atentatórias da honra e consideração devidas à assistente. Com tais expressões quis o arguido ofender gravemente a honra e consideração social da ofendida, o que conseguiu. Consigna-se que nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2024, DR n.º131/2024, Série I de 2024-07-09: «O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.» Do crime de sequestro Dispõe o artigo 158º do Código Penal: 1 - Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 - O agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos se a privação da liberdade: a) Durar por mais de dois dias; b) For precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano; c) For praticada com o falso pretexto de que a vítima sofria de anomalia psíquica; d) Tiver como resultado suicídio ou ofensa à integridade física grave da vítima; e) For praticada contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; f) For praticada contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; g) For praticada mediante simulação de autoridade pública ou por funcionário com grave abuso de autoridade. 3 - Se da privação da liberdade resultar a morte da vítima o agente é punido com pena de prisão de três a quinze anos. Através da proteção dispensada pela norma incriminadora ora em análise, garante-se uma ampla e adequada tutela a um bem jurídico que, reportando-se diretamente à liberdade de locomoção, se apresenta como um elemento essencial e indispensável à mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade. Seguindo de perto as considerações a propósito expendidas por Taipa de Carvalho, dir-se-á que, embora não estabeleça o tipo legal em presença qualquer duração de privação de liberdade para que o crime se tenha por consumado, é entendimento geral da doutrina que as privações insignificantes não bastam, isto é, não são subsumíveis à duração mínima de privação de liberdade que se deve considerar pressuposta pela ratio do tipo de crime de sequestro (cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 408). Uma vez que se trata de um crime permanente ou duradouro, a consumação material ocorre com a efetiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima. Assim, a gravidade do ilícito é tanto maior quanto maior for a duração da privação da liberdade. A conduta prevista pelo tipo de sequestro consiste em privar outra pessoa da liberdade de se deslocar, da liberdade de mudar de lugar. A conduta pode ser uma acção – “detiver, prender” – ou uma omissão – “mantiver presa ou detida”. A descrição legal contém, ainda, a cláusula geral “ou de qualquer forma privar a liberdade”. Não se trata de uma alternativa às condutas de deter, manter presa ou detida, mas sim de uma referência aos meios da conduta privadora da liberdade, indicando que são relevantes e, portanto, subsumíveis ao tipo legal todo e qualquer meio, desde que adequado a impedir a liberdade de deslocação. A impossibilidade de a pessoa se libertar não precisa de ser absoluta, não precisa de ser invencível, bastando que o meio utilizado seja um impedimento sério, isto é adequado. No que se refere ao elemento subjectivo, trata-se de um crime essencialmente doloso, pelo que se exige que o agente tenha conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do tipo objectivo de ilícito. No caso em apreço, de acordo com os factos provados tratou-se de um momento de curta duração temporal que não teve a duração mínima de privação de liberdade que se deve considerar pressuposta pela ratio do tipo de crime de sequestro. Assim, resultam desde logo inverificados os pressupostos objetivos e subjetivo deste tipo legal de crime. ***** No que se refere aos crimes de: - introdução em local vedado ao público p. p. pelo art.º 191 º do Código Penal; - ameaça agravada p. e p. pelo artº 153º, nº1 e 155º, nº1 als a) e b) com referência ao art.º 131º do Código Penal; - ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.º 143º, nº1 e 145º, nºs 1 al a) e 3 com referência ao art.º 132º, nº2, al c) do Código Penal, na pessoa do assistente BB; - ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143 /1 do Código Penal na pessoa do assistente CC e - dano p. e p. pelo art.º 212/1 do Código Penal (ofendido BB), imputados à arguida AA, atenta a matéria de facto não provada, não se verificam os pressupostos objetivos e subjetivos que os constituem.
IV.1.2. As consequências do crime - determinação concreta da pena: O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 al. b) e 2 al. a) do Código Penal, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos. Para o crime de ofensas à integridade física qualificada prevê a lei no art. 145º, n.º 1 al. a) do C. Penal, pena de prisão até 4 anos. Para o crime de ofensas à integridade física qualificada prevê a lei no art. 145º do C. Penal, pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” Para o crime de injúria prevê a lei no art. 181º do C. Penal, pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 120 dias. Dada a dualidade em regime de alternatividade que actualmente a lei prescreve para o tipos legais de crime de ofensa à integridade física simples e injúria, entende-se, tendo em conta o art. 70º do C. Penal, desde já, optar pela pena de multa já que os arguidos são primários e pessoas integradas familiar, socialmente e profissionalmente, pelo que entendemos que com a aplicação de uma pena de multa ficam realizadas de forma suficiente e adequada as finalidades da punição. Importa agora determinar a medida das penas a aplicar, de acordo com o disposto no artigo 71º do Código Penal, tendo presente que «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» (cfr. Figueiredo Dias, in «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, p. 227) – cfr. artº 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal. Assim, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes. Nessa conformidade, nos termos do nº 2, do artº 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal. Assim: A culpa revelada pelo arguido CC é, para o tipo legal de crime de violência doméstica e dentro dos limites da sua conduta concretamente apurados, de mediana intensidade uma vez que o arguido agiu em todas as situações com dolo direto, provocou lesões físicas e psíquicas à sua então companheira, mantendo a sua conduta pelo período de aproximadamente cinco anos. Para o tipo legal de ofensa à integridade física qualificada e de injúria a culpa revelada por este arguido não é elevada tendo agido com dolo direto. No que se refere ao arguido BB e ao tipo legal de ofensa à integridade física simples a culpa revelada por este arguido é mediana tendo agido com dolo direto. As necessidades de prevenção geral são acentuadas, considerando a frequência com que vêm sendo cometidos crimes de violência doméstica, por vezes com consequências muito graves como o homicídio da vítima, bem como o sentimento de repúdio que os mesmos provocam na comunidade em geral. Em relação aos crimes de ofensas corporais e injúria as necessidades de prevenção geral são medianas atenta a frequência com que ocorrem nesta comarca. Já no que respeita às necessidades de prevenção especial estas são reduzidas, pois os arguidos são primários, estão bem inseridos laboral e familiarmente e, a nível social não se conhecem fatores de rejeição. Mais se atenta nas condições pessoais de cada um dos arguidos tidas como provadas. Tudo visto: a) variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de violência doméstica entre 2 e 5 anos de prisão, julgamos adequada a imposição de uma pena de 3 anos de prisão relativamente ao crime de violência doméstica cometido pelo arguido CC; b) variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de ofensa qualificada entre 30 dias e 4 anos de prisão, julgamos adequada a imposição de uma pena de 1 ano de prisão relativamente ao crime de ofensa qualificada cometido pelo arguido CC; c) variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de injúria entre 10 a 120 (art. 47º, n.º 1 do C.Penal) dias de multa, julgamos adequada a imposição de uma pena de 40 dias, à taxa diária de €6 (atenta a sua situação socioeconómica tida como provada) relativamente ao crime de injúria cometido pelo arguido CC.
Tendo em conta o preceituado no art. 77º n.º 2 do Código Penal, deverá ser construída uma moldura penal entre os 3 anos de prisão e os 4 anos de prisão, onde o Tribunal deverá ter em conta os factos e a personalidade do agente, ou, como refere Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado”, apontando este autor como critério avaliativo a seguir o da “conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” para além de uma “avaliação da personalidade unitária” reconduzível ou não a uma tendência criminosa (in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 421). Assim, feita a avaliação global da gravidade dos ilícitos perpetrados pelo arguido e a sua personalidade revelada por diversas ocasiões neste tipo de práticas, reputa-se como necessária aplicar a pena unitária de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão. Variando a moldura penal abstrata aplicável ao crime de ofensa à integridade física simples entre 10 e 360 dias de multa (art. 47º, n.º 1 do C. Penal), julgamos adequada a imposição de uma pena de 120 dias, à taxa diária de €10 (atenta a sua situação socioeconómica tida como provada) relativamente ao crime de injúria cometido pelo arguido BB. Da suspensão da pena de prisão Dispõe o artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, que: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr. artº 40º, nº 1, do Código Penal). O objectivo de política criminal visado pelo instituto é, como ensina Figueiredo Dias “(…) o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos – «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 343). As finalidades da punição, ou seja, as finalidades das penas, são a protecção dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na comunidade (art. 40º, nº 1 do C. Penal). São, portanto, razões de prevenção, geral e especial, e não considerações relativas à culpa (como sucede aliás, com todas as operações de escolha das penas de substituição), que fundam o instituto da suspensão da execução da pena de prisão. Os objectivos de prevenção especial, de reinserção social do agente, têm sempre como limite o conteúdo mínimo da prevenção geral de integração. A prevenção geral “ deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.” (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 333). O juízo de prognose a realizar pelo tribunal, elemento fundamental do funcionamento da suspensão da execução da pena de prisão, parte da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade, análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade. Deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir)2. 2 Neste sentido, Ac. T.R.Coimbra de 29-11-2017, disponível em www.dgsi.pt. Na formulação deste juízo o tribunal deve correr um risco prudente na medida em que a prognose é apenas uma previsão, uma conjetura, e não uma certeza. Quando tenha dúvidas sérias e fundadas sobre a capacidade do agente para entender a oportunidade de ressocialização que a suspensão significa, a prognose deve ser negativa e a suspensão negada (Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I Vol., 2ª Edição, Rei dos Livros, pág. 444 e Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344). No caso em apreço, verifica-se que o pressuposto formal estabelecido por aquela disposição se encontra preenchido, dado que a pena imposta é inferior a 5 anos de prisão. Por outro lado, é consabido que as necessidades de prevenção geral são acentuadas, considerando a frequência com que vêm sendo cometidos crimes de violência doméstica, por vezes com consequências muito graves como o homicídio da vítima, bem como o sentimento de repúdio que os mesmos provocam na comunidade em geral. O arguido é primário e está inserido social, familiar e laboralmente. Assim sendo, o cumprimento efetivo da pena de prisão, não se revela necessário, nem tão pouco conveniente, à ressocialização daquele, bastando a ameaça da pena de prisão. Assim, entende-se ser adequado suspender a pena de prisão imposta ao arguido por 3 (três) anos e 4 (quatro) meses. Nos termos previstos no artigo 34.º-B da Lei 112/2009, de 26/9 - Suspensão da execução da pena de prisão: 1 - A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostos separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio. 2 - O disposto no número anterior sobre as medidas de proteção é aplicável aos menores, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal. Neste conspecto, decide-se não subordinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, a regras de conduta, designadamente, a proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida (art. 34º-B, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16/09), mas sim ao cumprimento da pena acessória de idêntico conteúdo. É sim fortemente aconselhável à sua reinserção social, a sujeição do arguido a regime de prova, devendo do mesmo constar obrigatoriamente a obrigação de frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica, de molde a reajustar o seu comportamento em contexto familiar e doméstico. IV.1.3. Das penas acessórias O artigo 152.º do Código Penal prevê as seguintes penas acessórias relativas ao crime de violência doméstica: “(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. (…) Como o próprio elemento literal indica, a aplicação de qualquer destas penas acessórias não é automática, exigindo a ponderação dos contornos que o ilícito penal assumiu no caso concreto. No caso sub judice, não resultou demonstrado que a atuação do arguido envolvesse a utilização de armas, pelo que não se justifica submetê-lo à pena acessória de proibição de uso e porte de arma, prevista no nº4 do artigo 152.º do Código Penal. Por outro lado, subsistindo ainda algumas necessidades de proteção da vítima, entendemos ser de aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio com a ofendida incluindo o afastamento da residência ou do local de trabalho desta (não havendo razões ponderosas para que o seu cumprimento deva ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância), pelo período de 3 anos e 4 meses. V. Dos pedidos de indemnização civil AA deduziu pedido de indemnização civil contra CC e BB, a final, que seja o mesmo condenado no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por ela sofridos, de montante nunca inferior a €3.750,00, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento. Mais deduziu pedido de indemnização civil contra CC na decorrência da prática do crime de injúria peticionando que o mesmo seja condenado no pagamento à mesma pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, de montante nunca inferior a €1.000,00, acrescida de juros legais a contar da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento. Cumpre apreciar e decidir. A responsabilidade civil emergente de crime é regulada pela lei civil, como estabelece o artigo 129.º do Código Penal. Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito encontram-se previstos no artigo 483.º, nº1, do Código Civil, assim enunciados: a) facto voluntário; b) ilicitude; c) nexo de imputação subjectiva ou culpa; d) dano; e e) nexo de imputação objectiva ou de causalidade entre o facto e o dano. Verificados em concreto tais pressupostos legais e atento o disposto nos artigos 483.º, nº1, 562.º e 563.º do Código Civil, o arguido constitui-se na obrigação de indemnizar o lesado pelos danos que o mesmo provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Desde logo se consigna não terem ficado demonstrados quaisquer danos patrimoniais. Em sede de responsabilidade penal, em relação ao crime de violência doméstica e ofensa à integridade física qualificada, ficou demonstrado que a ofendida foi pelo arguido CC dolosamente lesada na sua integridade física, honra e dignidade pessoais, que são tuteladas como direitos de personalidade (cf. artigos 25.º, nº1, e 26.º, nº1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 70.º do Código Civil), absolutos, e que, como tal, impõem a todos um dever geral de respeito e de abstenção da prática de atos lesivos dos mesmos. A ofendida sofreu dores físicas em virtude das agressões de que foi alvo e suportou 8 (oito) dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral. Foi afetada na sua dignidade pessoal, sentindo medo, vergonha, perturbação e desgosto, vexame, dissabores e tristezas por tudo o que passou. Ao longo dos tempos revivia o sucedido na sua cabeça, como se naquele momento estivesse a acontecer, o que culminava em ataques de choro compulsivo que não conseguia evitar. Verifica-se, ainda, que se estabelece o necessário nexo de causalidade adequada entre os factos ilícitos praticados pelo arguido e os danos acima enunciados, na medida em que todos eles foram consequência necessária e direta da sua conduta. Importa, pois, quantificar os referidos danos não patrimoniais sofridos pela lesada, os quais, pela sua inequívoca gravidade, são juridicamente relevantes. Nos termos dos artigos 496.º, nºs 1 e 3, 494.º e 566.º, nºs 1 e 2, do Código Civil, não sendo possível, no caso concreto, a reconstituição natural, entendemos que tais danos devem ser compensados com a quantia global de € 3250 (três mil duzentos e cinquenta euros) que se afigura equitativa, tendo em conta que resultaram demonstradas consequências relevantes ao nível do bem-estar físico e psíquico da lesada e sem deixar de atender ao elevado grau de culpa do arguido manifestado nos factos e à sua situação económica tida por provada. Em sede de responsabilidade penal, em relação ao crime de ofensa à integridade física simples, ficou demonstrado que a ofendida foi pelo arguido BB dolosamente lesada na sua integridade física, que é tutelada como direito de personalidade (cf. artigos 25.º, nº1, e 26.º, nº1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 70.º do Código Civil), absoluto, e que, como tal, impõem a todos um dever geral de respeito e de abstenção da prática de atos lesivos do mesmo. A ofendida sofreu dores físicas em virtude das agressões de que foi alvo. Verifica-se, ainda, que se estabelece o necessário nexo de causalidade adequada entre os factos ilícitos praticados pelo arguido e os danos acima enunciados, na medida em que todos eles foram consequência necessária e direta da sua conduta. Importa, pois, quantificar os referidos danos não patrimoniais sofridos pela lesada, os quais, pela sua inequívoca gravidade, são juridicamente relevantes. Nos termos dos artigos 496.º, nºs 1 e 3, 494.º e 566.º, nºs 1 e 2, do Código Civil, não sendo possível, no caso concreto, a reconstituição natural, entendemos que tais danos devem ser compensados com a quantia global de € 500 (quinhentos euros) que se afigura equitativa, tendo em conta que resultaram demonstradas consequências relevantes ao nível do bem-estar físico da lesada e sem deixar de atender ao elevado grau de culpa do arguido manifestado nos factos e à sua situação económica tida por provada. Em sede de responsabilidade penal, em relação ao crime de injúria, ficou demonstrado que a ofendida foi pelo arguido CC dolosamente lesada na sua honra e dignidade pessoais, que são tuteladas como direitos de personalidade (cf. artigos 25.º, nº1, e 26.º, nº1, da Constituição da República Portuguesa e artigo 70.º do Código Civil), absolutos, e que, como tal, impõem a todos um dever geral de respeito e de abstenção da prática de atos lesivos dos mesmos. A ofendida, em virtude das injúrias que aquele lhe dirigiu, sofreu vergonha, indignação, vexame, insegurança, vergonha, viu diminuída a sua autoestima, provocando-lhe ainda sentimentos de inferioridade e de rejeição. Verifica-se, ainda, que se estabelece o necessário nexo de causalidade adequada entre os factos ilícitos praticados pelo arguido e os danos acima enunciados, na medida em que todos eles foram consequência necessária e direta da sua conduta. Importa, pois, quantificar os referidos danos não patrimoniais sofridos pela lesada, os quais, pela sua inequívoca gravidade, são juridicamente relevantes. Nos termos dos artigos 496.º, nºs 1 e 3, 494.º e 566.º, nºs 1 e 2, do Código Civil, não sendo possível, no caso concreto, a reconstituição natural, entendemos que tais danos devem ser compensados com a quantia global de € 350 (trezentos e cinquenta euros) que se afigura equitativa, tendo em conta que resultaram demonstradas consequências relevantes ao nível do bem-estar psíquico da lesada e sem deixar de atender ao elevado grau de culpa do arguido manifestado nos factos e à sua situação económica tida por provada. VI. DECISÃO (…)”.
Cumpre apreciar.
Aferindo a invocada violação do princípio ne bis in idem sustentada pelo arguido CC, reportando-a à factualidade do processo de inquérito que fora arquivado, e que não tivera despacho de reabertura do inquérito, não permite, segundo alega, que se aprecie a factualidade aí contida desde 2013 a 2016, por falta da referida reabertura. Antes de mais, cumpre esclarecer que a nomenclatura usada por alguma doutrina, salvo o devido respeito, parece-nos imprópria, pois, as decisões finais da fase de inquérito, concretamente de arquivamento (cfr.art.277º nºs1 e 2 do CPP) não serão nunca dotadas da força de caso julgado (ainda que com a adição da nuance rebus sic stantibus), dado que, pura e simplesmente, não constituem uma decisão (julgado) de um Tribunal (neste sentido ver, entre outros os seguinte acórdãos do T.R.G. de 12/09/2022 in www.dgsi.pt: “A decisão de arquivamento, não tendo natureza jurisdicional e, por isso, não comportando a noção de “trânsito em julgado”, não deixa de produzir efeitos. – Uma vez decorridos os prazos para a sua impugnação, quer através da abertura de instrução, quer da intervenção hierárquica, adquire a força de “caso decidido”; o acórdão do T.R.P. de 04/12/2024 in www.dgsi.pt: “As decisões emanadas do Ministério Público, porque não são decisões judiciais, não beneficiam dos efeitos de caso julgado.”; o acórdão do T.R.P. de 08/11/2023 in www.dgsi.pt: “Embora não se possa falar de caso julgado ou de decisão transitada em julgado a propósito de despachos do Ministério Público de arquivamento do inquérito, dado que não se trata de uma decisão jurisdicional e por isso é que um inquérito arquivado pode ser “reaberto”, o certo é que tal reabertura apenas pode ocorrer se surgirem novos elementos de prova, conforme dispõe o artigo .279.º, n.º2, do Código de Processo Penal; o arquivamento está, pois, sujeito à cláusula rebus sic stantibus. - Trata-se de um instituto paralelo ao do caso julgado, o “caso decidido”, que igualmente se manifesta no artigo 282.º,. n.º 3, do Código de Processo Penal e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional non bis in idem (artigo 29.º, n.º5, da Constituição).”). As decisões do MP de arquivamento, ainda que sejam caso decidido (após o curso do prazo de instrução e de reclamação hierárquica), não equivalem a um juízo de absolvição ou de extinção do procedimento criminal, pois são decisões com caráter provisório, podendo o inquérito ser reaberto logo que surjam novos elementos de prova cfr.art.279º nº1 do CPP, por isso mesmo, o princípio/instituto em causa, não é o regime do caso julgado, mas simplesmente algo próximo ao corolário do princípio ne bis in idem, (com consagração constitucional, no n.º 5 do artigo 29.º, «ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime”), visando impedir que uma pessoa seja “julgada” duas vezes pelos mesmos factos, onde estes mesmos factos só podem voltar a ser reponderados neste inquérito arquivado. Portanto, mesmo no princípio ne bis in idem, o regime do art.279º do CPP aflora-o de modo impróprio, porquanto, no caso, a conduta do arguido, aferida no despacho de arquivamento, ainda não foi objeto de apreciação de mérito quanto a estes factos (neste sentido ver, Ac.TRC de 22/03/2023 “ Ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a julgamento por um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida já objeto de sentença ou decisão que se lhe equipare (…)”, também o Ac.TRE de 10/10/2023 “O princípio ne bis in idem deve ser entendido na sua dupla vertente – substantiva e processual – e não faz sentido que o arguido seja confrontado numa nova acusação com os factos imputados em processo já definitivamente julgado. Tais factos são “pertença” do objeto do processo já julgado por decisão transitada em julgado e, como tal estranhos ao presente processo. Se os factos assumem relevância enquanto comportamento do arguido historicamente relevante, bastaria a mera referência a condenação anterior, como é usual.”), tão só representando um mecanismo processual que visa prevenir a violação do ne bis in idem, dado que fixa esse processo arquivado, como o único lugar onde poderão ser reavaliados os mesmos factos (e que somente ali pertencem), e não num novo inquérito. Como fora apreciado pelo Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 08/11/2023 in www.dgsi.pt: reportando-se ao arquivamento do inquérito e sua possível reabertura que classifica, e bem, como “o caso decidido”, referindo que “igualmente se manifesta no artigo 282.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional non bis in idem (artigo 29.º, n.º5, da Constituição).”. E esta reabertura do inquérito prevista no art.279º nº1 do CPP, nada tem que ver com a densidade, ou com a relevância dos fundamentos de revisão de sentença transitada em julgado previstos no art.449º nº1 alínea d) do CPP[1]. Muito embora o legislador no art.277º nº1 contenha a expressão “recolhido prova bastante”, também aqui essa nomenclatura é imprópria, dado que, quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução, embora existam meios de prova, não existe prova produzida (a qual apenas ocorre em fase de julgamento, em pleno contraditório com cumprimento de todos os princípios, v.g. concentração, imediação), apenas existe a aferição de indícios, devendo entender-se aquela expressão de “prova bastante” como reportando-se à concludência de elementos respeitantes à in/validade do procedimento criminal (já que o nº2 do mesmo preceito, esse sim, reporta-se à aferição indiciária dos factos), ou que os factos denunciados não correspondem à tipicidade de um ilícito criminal, ou que aprecie a invalidade de provas proibidas, ou outras nulidades. Aliás, contrariamente ao sustentado pelo arguido, num despacho de arquivamento, por definição, não existe caráter de consolidação na ordem jurídica, subsistindo sempre (até à prescrição do procedimento) a hipótese de reabertura nos termos do art.279º nº1 do CPP. Continuando a apreciação, cabe referir que, por despacho de 21 de outubro de 2024 o Tribunal “A Quo” veio a decidir esta mesma questão, indeferindo a pretensão deduzida pelo arguido, sustentando que “O inquérito a que se alude no requerimento do arguido CC com a ref.ª 40381527 - Processo n.ᵒ ... - já se encontra incorporado nos presentes autos, desde 14.09.2021 – vd. Informação com a ref.ª 40420013. Não existiu assim qualquer despacho de arquivamento ou de reabertura de inquérito relativamente ao Inquérito ..., mas sim a sua apreciação, nestes autos, em conjunto com a restante factualidade constante dos demais inquéritos apensados, culminando com o despacho final proferido naquela fase processual.”. Como não foi interposto recurso desta decisão, veio a mesma a transitar, operando caso julgado formal. Com efeito, os termos dessa decisão não são indiferentes, circunstância que obvia que este Tribunal de recurso seja chamado a apreciar a questão já transitada. Seja como for, sempre se dirá que, a decisão do MP que determinou a apensação do inquérito ... a estes autos (por despacho de 16.07.2021), em cumprimento, aliás, de um critério de competência obrigatório, ainda em fase de inquérito, significou essa apensação, a imediata incorporação do objeto de processo do inquérito ..., no inquérito destes autos, sendo esse, o efeito legal e típico da apensação, não existindo qualquer lesão ao princípio ne bis in idem, e muito menos ao regime do caso julgado que, como vimos, não existe. A decisão de apensação contém, ela própria, a incorporação do objeto do inquérito ..., no objeto destes autos, cuja tramitação única passou a ser feita nos presentes autos, sendo completamente desnecessária e inútil uma decisão no apenso, a declarar a formal reabertura, que afinal acontecera com a decisão que ordenou a apensação, aqui assistindo razão ao Digno PGA quando sustentou no seu douto parecer “Desta forma, o despacho que ordenou a apensação desse processo de inquérito funcionou assim como uma espécie paralela e equivalente de reabertura do mesmo o que legitimou que o arguido fosse acusado e condenado pelos factos que constituíam o seu objeto. (…) Assim, se houver em novo e posterior processo elementos que possam invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento anteriormente proferido, deve o primeiro processo ser apensado e reapreciado à luz desse novo contexto, procedendo-se às necessárias diligências, não se exigindo um despacho formal e tabelar de reabertura.”. Ou seja, os factos do processo nº... foram integrados nos presentes autos, e nessa medida não faz o menor sentido invocar a violação do ne bis in idem, porque os factos em causa, foram corretamente integrados no objeto de processo e apreciados pelo Tribunal em fase de julgamento. Sendo igualmente pertinente invocar o Acórdão do TRE – Objecto do processo de 11/03/2018 (relator Dr Ribeiro Cardoso) quando sustenta “O princípio do ne bis in idem – ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos - para proceder, precisa de uma decisão de mérito que é mais do que uma decisão de conteúdo estritamente processual.” Deste modo, improcedem a este respeito as conclusões do recurso. * Depois, vêm os arguidos suscitar nulidade da sentença por falta de fundamentação crítica nos termos dos arts.374º nº2 e 379º nº1 alínea a) do CPP, referindo que o Tribunal “A Quo” não procedeu a análise crítica da prova, desqualificando os fundamentos aduzidos pelo Tribunal, sustentando que quando aí se adjetivam as qualidades dos depoimentos da ofendida e da testemunha EE, se não explica o porquê dessa adjetivação. Enfatizando que, para os factos não provados os fundamentos são conclusivos. Depois, quando argui a nulidade por falta de fundamentação, centra a sua argumentação sobre os fundamentos críticos usados pelo Tribunal dela discordando, procurando identificar erros no julgamento de facto, ao mesmo tempo, sustentam que a confrontação dos depoimentos, assim como a valoração de uns e desvalorização de outros não se encontra devidamente fundamentada. Contudo, diversamente, as razões da nulidade invocada são infundadas, porquanto, lida a fundamentação, o Tribunal “A Quo” na decisão da matéria de facto, integrou os necessários parâmetros de ponderação critica da prova testemunhal e documental, conjugando e aferindo importância de cada meio de prova, articulando e revelando, com sinceridade, os trâmites da sua convicção, só se compreendendo esta invocação, a quem não prestou a mínima atenção aos fundamentos aduzidos, assim improcedendo a nulidade. A adjetivação de depoimentos de sinceros, genuínos, sentido e desinteressados, nada tem de conclusivo ou enigmático, antes é explicativo das qualidades que o Tribunal “A Quo” encontrou em determinadas testemunhas, e cujo significado é acessível aos destinatários da sentença, sendo dessa forma que os Tribunais, o MP e os mandatários, exprimem a relevância dada a certos depoimentos. Quanto ao elenco de factos não provados, depreende-se que quanto a vários acontecimentos e factos não houve, pura e simplesmente, prova produzida e aí justifica-se como suficiente a fundamentação apresentada no acórdão. Depois, na interseção de alguns factos não provados com a versão apurada, na decisão do Tribunal “A Quo”, consta, igualmente, fundamentação a esse respeito, acresce que podendo a fundamentação dos factos não provados ser concisa, não é omissa. Por outro lado, os recorrentes, a propósito desta nulidade, misturam e associam, indevidamente, os termos da impugnação pelo erro de julgamento. que é própria do regime previsto no art.412º nº3 do CPP. Ora, apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objeto de recurso), verifica-se que os arguidos não cumpriram os respetivos ónus de impugnação que a lei obriga no nº3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), nos quais, se contam a necessária a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a) do nº3 do referido preceito); a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal); a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação sobre cada facto, por referência ao consignado na ata (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal). Como se observa das motivações, os recorrentes não procedem às necessárias transcrições, sua localização e exata referenciação nas gravações, como a lei impõe. Limitando-se a referenciar o que foi referido por algumas testemunhas, tal impugnação é assim inoperante nos termos do art.412º do CPP. Os recorrentes que pretendem proceder à impugnação nos termos do art.412º nº3 do CPP não se podem furtar às legais e localizadas transcrições, por forma a permitir ao Tribunal de recurso proceder à sua aferição no conjunto com a restante prova, na medida em que se justifique. Como os recorrentes não procedem à correta transcrição dos depoimentos, é inoperante a sua impugnação, não devendo, por isso, ser apreciadas as “nuances” interpretativas que introduzem. Seja como for, da prova produzida, o Tribunal A Quo na apreciação que fez, revelou uma aferição segura, equilibrada e conservadora da prova, sempre sustentado em depoimentos e declarações com razão de ciência direta, merecendo por isso a nossa concordância. Aferidos os termos da convicção do Tribunal, designadamente a análise da prova testemunhal, este Tribunal de recurso concorda com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção. Não vislumbramos que haja sido formulado qualquer juízo destituído de razoabilidade e que contrarie os ditames da lógica ou da experiência comum, devendo deste modo improceder a impugnação movida à decisão a matéria de facto. * Os recorrentes também discordam das penas que considera excessivas, ainda que conclusivamente, sem concretizar parâmetros que pretendem discutir. A sua pretensão é manifestamente infundada, dado que o Tribunal, no crime de violência doméstica agravado em que o arguido CC foi condenado, com uma amplitude de ponderação de três anos (entre 2 e 5 anos) usou um ano da mesma, correspondendo a 1/3 dessa amplitude, o que, face à gravidade do delito que se prolongou por 5 anos, constitui uma ponderação equilibrada, que não merece censura; de igual modo, no crime de ofensa à integridade física qualificada em que o arguido CC foi condenado, com uma amplitude de ponderação de cerca de 4 anos (de 1 mês a 4 anos) usou 11 meses, correspondendo aproximadamente a 1/4 dessa amplitude, o que, face à ilicitude do delito, constitui também uma ponderação equilibrada; no cúmulo jurídico com cerca de 12 meses de amplitude (entre 3 e 4 anos de prisão), o uso da medida ótima de 4 meses na pena única não merece censura. Quanto à amplitude de ponderação até 120 dias de multa no crime de injúrias, a fixação da pena em 40 dias, claramente abaixo do ponto médio da moldura, igualmente se situa na aludida ponderação equilibrada. No que concerne ao arguido BB no crime de ofensa à integridade física, a aferição da amplitude com 350 dias da pena de multa (de 10 a 360 dias), o Tribunal “A Quo” usou 120 dias, correspondendo aproximadamente a 1/3 dessa amplitude, o que constitui também uma ponderação não excessiva. Portanto, face à mensuração dos parâmetros do limite da culpa e das exigências de prevenção geral e especial (cfr.art.71º do Cód.Penal), sem perder de vista o peso da ilicitude, as penas que o Tribunal “A Quo” fixou, fê-lo com ponderação e equilíbrio, não merecendo por isso censura, permanecendo no seu “quantum”, no regime de execução, conforme fora determinado, assim improcedendo as conclusões do recurso. * Mais impugna o recorrente CC a sanção acessória de proibição de contactos, sustentando, não só que, o Tribunal não fundamentou as necessidades de proteção da vítima, como não existem razões para a sua aplicação e em última análise que a mesma é exagerada. Sobre os fundamentos situados nas necessidades de proteção da vítima, o Tribunal “A Quo” pronunciou-se, considerando que existiam essas necessidades de proteção. Este argumento poderá ser insuficiente, mas não representa a omissão de fundamentação, até porque o filho em comum, pelo pretexto de proximidade que essa circunstância representa, contém o risco de futuros conflitos, face à animosidade. Por outro lado, as razões de conveniência invocadas pelo arguido irrelevam por completo, face às necessidades de proteção da vítima, afigurando-se que a medida de proibição adotada situa-se ainda longe do limite máximo do período atendível. Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso não poderá merecer provimento.
DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, mantendo-se a douta decisão do Tribunal a quo. Custas do recurso pelos arguidos recorrentes, fixando a taxa de justiça em quatro unidades de conta para cada um dos arguidos. Notifique. |