Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
663/22.9T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ATO INÚTIL
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
CONTABILIDADE ORGANIZADA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RP20240409663/22.9T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se o conhecimento da impugnação da decisão de facto, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, não tiver qualquer repercussão na decisão de mérito, não há que proceder a esse conhecimento, uma vez que no art. 130º do Cód. de Proc. Civil se proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de atos inúteis.
II – Os comportamentos previstos nos nºs 2 e 3 do art. 186º do CIRE só relevam para a qualificação da insolvência como culposa se tiverem ocorrido até três anos antes do início do processo de insolvência, conforme prescreve o nº 1 deste preceito.
III – Os efeitos suspensivos da legislação relativa à situação de pandemia decorrente da doença covid-19 no que concerne ao prazo de apresentação do devedor à insolvência nos termos do art. 18º, nº 1 do CIRE não se projetam no cômputo do período de três anos referido no art. 186º, nº 1 do mesmo diploma.
IV – Se o devedor tiver incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, tal constitui presunção inilidível de culpa grave da insolvente, nos termos do disposto no art. 186º, nº 2, al. h) do CIRE.
V – Porém, não é suficiente qualquer deficiência, exigindo-se que seja uma irregularidade relevante, com influência na perceção que a contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do devedor.
VI – Antes da Lei nº 9/2022, de 11.1. a doutrina e a jurisprudência estavam divididas sobre o âmbito objetivo das presunções previstas no art. 186º, nº 3 do CIRE.
VII – O setor maioritário entendia que do art. 186º, nº 3 resultava apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos administradores do devedor, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
VIII - Outros defendiam que a simples verificação das situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE constituía presunção (ilidível) da insolvência culposa - pressupondo-se, à partida, o nexo de causalidade exigido pelo nº 1 – e não apenas da culpa grave do devedor.
IX – Com a nova redação do art. 186º, nº 3 do CIRE, onde passou a constar “presume-se unicamente a existência de culpa grave”, ficou definido que para ocorrerem as presunções previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE é imprescindível demonstrar que a situação de insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta assumida pelo devedor integrativa dessas alíneas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 663/23.9 T8AMT-A.P1

Comarca do Porto Este – Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 2

Apelação

Recorrente: A...

Recorridos: “B..., SA”; AA; BB e CC

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Rui Moreira e Alberto Taveira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

Por sentença proferida em 26.10.2022, foi declarada a insolvência de “B..., S. A.”.

Não se abriu nesta incidente de qualificação de insolvência.

Porém, a Sr.ª Administradora Judicial apresentou parecer, onde peticionou a sua qualificação como culposa, invocando factualidade suscetível de preencher as alíneas a) e h) do nº 2 do artº 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE], bem como a alínea a) do nº 3 desta mesma norma.

Pede que sejam afetados pela qualificação, AA (Presidente), BB (Vice-Presidente) e CC (Vogal).

Foi então declarado aberto o presente incidente de qualificação da insolvência.

Aberta vista ao Min. Público para se pronunciar, nos termos previstos no nº 4 do art. 188º do CIRE, promoveu este a qualificação como culposa da insolvência, de acordo com o previsto nos arts. 185º e 186º, nºs 1, 2, alíneas a) e d) e 3, “ex vi” do nº 4 do mesmo artigo, ambos do CIRE, devendo ser afetados por tal qualificação AA (Presidente), BB (Vice-Presidente) e CC (Vogal), com as consequências decorrentes dos arts. 189º, nºs 2 a 4, também do CIRE.

O credor e requerente da insolvência, “A...”, aderiu e acompanhou a proposta da Sr.ª Administradora da Insolvência no sentido de que, pelos factos aduzidos no seu parecer, seja a insolvência qualificada como culposa, afetando tal qualificação os administradores nele devidamente identificados.

O processo seguiu contra a devedora e os seus administradores.

Regularmente citados e/ou notificados, vieram os requeridos “B..., SA”, AA, BB e CC deduzir oposição, pedindo a qualificação da insolvência como fortuita.

Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, que declarou válida a instância nos seus pressupostos objetivos e subjetivos, identificou o objeto do litígio, fixou os temas da prova, admitiu os meios probatórios apresentados e designou data para a audiência de discussão e julgamento.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais.

Seguidamente, foi proferida sentença que qualificou como fortuita a insolvência da devedora “B..., S. A.”.

Inconformado com o decidido, interpôs recurso o credor/requerente “A...”, tendo este finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da sentença que qualificou como fortuita a insolvência da Recorrida B..., S.A. (Ref. Citius 93789196).

2. A decisão ora impugnada enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto e faz uma desadequada aplicação do Direito; vícios estes que, a não existirem, sempre conduziriam à qualificação da insolvência como culposa.

● Impugnação da matéria de facto

-> Facto Provado 5

3. A Recorrente não consegue discernir em que meios de prova se baseou o tribunal a quo para decidir acerca da factualidade contida na segunda parte do Facto Provado 5; o que configura uma NULIDADE por falta de fundamentação que expressamente se argui (cf. artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil ex vi do artigo 17.º do CIRE).

Sem conceder,

4. A transferência do imobilizado para a sociedade C..., S.A. foi alegada pela Recorrente e provada por documento (i.e. as contas do ano de 2018 que foram juntas com a petição inicial), tendo sido confessada na oposição e confirmada em juízo pelo administrador AA. Pelo que essa materialidade sempre deveria considerar-se provada.

5. Já a restante matéria dada como provada na sentença recorrida foi alegada pelos Recorridos, cabendo-lhes a eles o ónus de a provarem. Contudo, esta factualidade não foi confirmada por qualquer documento; resulta única e exclusivamente das declarações do administrador AA e do depoimento das testemunhas (arroladas pelos Recorridos) DD e EE.

6. Atento o interesse direto que o administrador AA, ora Recorrido, tem no desfecho da causa e o vínculo socioeconómico que as testemunhas têm com as sociedades implicadas (DD é trabalhador e EE é prestador de serviços da C..., S.A.), impunha-se que as afirmações feitas em juízo fossem confirmadas por outro meio de prova, mormente documento. Contudo, não foi exibido um único contrato de trabalho, declaração à Segurança Social ou sequer (e seriam os mínimos olímpicos) uma lista com o nome e antiguidade dos trabalhadores para prova da invocada transferência de trabalhadores.

7. Também não foi junto qualquer documento relativo aos alegados saldos de empréstimos. A testemunha dos Recorridos EE referiu que não viu documentos do que quer que seja, limitando-se a tomar como boas as informações que lhe foram transmitidas pelo administrador AA (cf. declarações disponibilizadas na plataforma informática Citius, com início às 14h55 e fim às 15h33, aos minutos 00:37:53). Aliás, ele chegou mesmo a asseverar que os alegados empréstimos foram feitos, a título pessoal, pelo Recorrido AA – e não pela sociedade C..., S.A. (cf. declarações disponibilizadas na plataforma informática Citius, com início às 14h55 e fim às 15h33, aos minutos 00:38:18 a 00:38:28).

8. Considerando que nenhum crédito foi reclamado nos presentes autos pela C..., S.A. – ou sequer por AA – e que, pelo contrário, existem indícios na contabilidade o administrador dever montantes avultados à Insolvente (cf. declarações da Sr.a Administradora da Insolvência disponibilizadas na plataforma informática Citius, com início às 10h57 e fim às 11h36, aos minutos 00:13:20 a 00:13:40), impunha-se que o tribunal recorrido, na sua livre ponderação, encarasse com as devidas reservas as afirmações tendenciosas feitas em juízo.

9. Acresce que, tendo em conta o Facto Provado 11, deveria ter sido dado como provado que foram transferidos direitos, inventários e equipamentos para a C..., S.A. (que não se subsume apenas ao imobilizado).

10. Assim, vindo a considerar-se que a decisão recorrida não é nula por falta de fundamentação, deverá a redação do Facto Provado 5 ser alterada para «No ano de 2017, todo o património detido pela empresa insolvente foi transferido»

-> Facto Não Provado a)

11. A Recorrente não concorda com o raciocínio do tribunal a quo relativo ao Facto Não Provado a), já que foi precisamente o facto de a administração não ter apresentado a devedora à insolvência que permitiu encobrir a transferência de património a favor de uma sociedade relacionada e defraudar as expectativas de ressarcimento dos credores.

12. Em consequência, esta materialidade deverá ser dada como provada.

● Direito

o Da dissipação do património (cf. artigo 186.º, n.º 2, alínea a) do CIRE)

13. O tribunal de primeira instância considerou que, embora provada a dissipação de património e verificada a presunção inilidível de culpa do artigo 186.º, n.º 2, alínea a) do CIRE, a insolvência não poderia ser qualificada como culposa pela circunstância de a factualidade relevante ter ocorrido há mais de três anos.

14. Para a Requerente, a situação deveria ser enquadrada igualmente na alínea b) da mencionada norma, já que a transferência do património constituiu um negócio ruinoso realizado em proveito de pessoas especialmente relacionadas com a devedora – i.e. a sociedade C..., S.A., que tem uma estrutura acionista e administração (parcialmente) coincidentes com a Insolvente (cf. Factos Provados 2 e 6).

15. Mais entende a Recorrente que as presunções inilidíveis de insolvência culposa versadas no n.º 2 da mencionada norma têm tal gravidade que o legislador não quis subordiná-las ao limite temporal ínsito na previsão genérica do n.º 1 (pensada para infrações menos graves).

16. Acresce que, entre março de 2020 e agosto de 2023, o prazo de apresentação à insolvência esteve suspenso, em consequência da pandemia da doença Covid-19, assim como todos os prazos de caducidade e prescrição associados a esse dever.

17. Sendo incontestável que a Insolvente estava obrigada a apresentar-se à insolvência em 2018 (cf. Factos Provados 15 e 16), deverá considerar-se o prazo de três anos suspenso entre março de 2020 e agosto de 2023. Pelo que, quando, em 11 de maio de 2023, o pedido de insolvência deu entrada em juízo ainda não estava completado o limite temporal do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE.

18. Deste modo, encontrando-se preenchida a presunção inilidível contida no artigo 186.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CIRE (cf. Factos Provados 2, 5 e 6), impõe-se que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inibição dos Recorridos administradores da Insolvente e os condene solidariamente a indemnizar os credores da B..., S.A. até ao montante dos créditos reclamados e não satisfeitos na presente insolvência.

o Das irregularidades contabilísticas (cf. artigo 186.º, n.º 2, alínea h) do CIRE)

19. O tribunal de primeira instância julgou provadas as irregularidades apontadas pela Sr.ª Administradora da Insolvência no seu parecer (ao qual o Ministério Público aderiu) e que foram factualmente aceites pelos Requeridos, ora Recorridos (cf. Factos Provados 8 a 10). Entendeu, contudo, que não assumem caráter substancial, não impedindo a compreensão da situação patrimonial e financeira da Insolvente.

-> Do saldo positivo constante do balancete reportado ao dia 31.12.2022

20. Em 2022, a Insolvente já estava sem atividade há cinco anos, sendo, portanto, implausível que tal valor tenha origem em créditos incobráveis. A Sr.ª Administradora da Insolvência explicou em juízo que, embora o balancete não revele se uma sociedade tem ou não atividade, a movimentação inscrita em 2022 (para uma sociedade confessadamente inativa desde 2017) é duvidosa.

21. Nenhuma fatura referente aos alegados créditos incobráveis foi exibida nem produzida qualquer evidência de terem sido feitas diligências para os cobrar.

22. Em qualquer caso, o facto de tais putativos créditos não terem sido tratados como incobráveis durante anos e de haver faturas de protótipos por anular é, em si mesmo, demonstrativo da falta de organização da contabilidade da Insolvente. O próprio contabilista da sociedade, EE, admitiu que deveriam ter sido emitidas notas de crédito, desconhecendo a razão pela qual tal não sucedeu (cf. depoimento disponibilizadas na plataforma informática Citius, com início às 14h55 e fim às 15h33, aos minutos 00:10:00 a 00:11:21 (Diligencia_663-23.9T8AMT-A_2023-11-14_14-55-16). Também afirmou que não fez a análise dos saldos para saber se haveria alguma expectativa de cobrança, limitando-se a tomar como boa a informação que lhe foi transmitida pela Insolvente.

-> Movimentação da conta caixa a débito e crédito

23. As boas práticas contabilísticas ditam que a conta caixa sirva para dinheiro de bolso (i.e. valores reduzidos sem suporte documental), mas a Insolvente usou-a para movimentar valores avultados sem ter de justificar a sua origem.

24. Os Recorridos escudam-se em formulações vagas, tantas vezes exemplificativas, sem cuidarem de concretizar a materialidade que esteve na base de movimentos contabilísticos no elevado montante de €327.304,84 – e muito menos provar. Como o contabilista confessou em tribunal, esta conta serviu para limpar dívida.

25. Os Recorridos alegam que os acionistas realizaram pagamentos à Segurança Social, mas essa justificação não merece credibilidade. Como a Sr.ª Administradora da Insolvência esclareceu em audiência, os pagamentos a terceiros devem ser lançados na conta 27 (e não na conta caixa), sendo que não existe qualquer evidência na contabilidade desses invocados pagamentos. Como tal, não foram reconhecidos quaisquer créditos subordinados na relação de credores. Curioso é que tais créditos também não tenham sido reclamados…

26. Nem tem cabimento alegar que não foram reclamados porque, sendo créditos subordinados, não seriam pagos no âmbito da insolvência. Como frisou a magistrada na audiência de julgamento, a reclamação de créditos teria, pelo menos, a vantagem de permitir levar a dívida a prejuízo para efeitos de IRC. Isto, claro está, se tal dívida existisse realmente. Pois, como o diretor financeiro relatou em juízo, não existe qualquer contrato de suprimento ou outro suporte documental para tais «créditos».

27. De igual forma, nada é demonstrado relativamente à invocada expectativa de recebimento de prémio do IAPMEI no montante de €181.801,47 que foi reflectido na conta 2783: nem a candidatura ao mesmo, a decisão do organismo ou que o valor em causa tenha sido levado a imparidades. Neste capítulo, a Sr.ª Administradora da Insolvência declarou que o extrato não evidencia nenhum prémio do IAPMEI, referindo tão somente devedores diversos. E ainda que, mesmo que os factos relatados pelos Recorridos correspondessem à verdade, existe uma conta específica para subsídios não pagos à empresa. É, uma vez mais, suspeito que a contabilidade tenha decidido «regularizar» esta situação em 2022, quando a B..., S.A. já se encontrava inativa há vários anos.

28. A Sr.ª Administradora da Insolvência alertou para o facto de os saldos positivos a favor da Insolvente inscritos nas contas clientes (na ordem dos cinquenta e oito mil euros) e outros devedores (na ordem dos cento e oitenta e um mil euros) terem sido anulados por perdas por imparidade registadas, nas contas 219 e 27, exactamente pelo mesmo valor; o que é, no mínimo, uma coincidência suspeita e que não mereceu qualquer justificação documental pela parte do diretor financeiro das sociedades (cf. declarações disponibilizadas na plataforma informática Citius, com início às 10h57 e fim às 11h36, aos minutos 00:11:11 a 00:12:53).

29. Estes saldos poderiam permitir satisfazer os créditos reclamados nos presentes autos, mas tal missão foi dificultada pela falta de visibilidade que a Sr.ª Administradora da Insolvência tem sobre a contabilidade da Insolvente, caracterizada por movimentos à margem das regras contabilísticas e sem suporte documental que legitimamente se pode questionar se tiveram como propósito ocultar precisamente a existência de créditos.

30. É também implausível que a Insolvente tivesse necessidade de lançar movimentos a crédito (no montante de € 4.875,56) numa conta de custos (conta 69) a título de «regularizações com origem em juros indevidamente debitados». Tal justificação não merece qualquer crédito e, ademais, sempre equivaleria ao reconhecimento de que se verificaram movimentos indevidos na contabilidade. Com efeito, a Sr.ª Administradora da Insolvência afirmou, nas suas declarações, que a conta 6 se movimenta a débito e a conta 7 se movimenta a crédito, sendo ambas saldadas no final do ano. E asseverou que um movimento a crédito na conta 6 configura uma irregularidade contabilística de acordo com o plano nacional de contabilidade.

31. Refira-se, ademais, que os Recorrentes juntaram à sua oposição documentos extraídos de programas de outras entidades e que registam lançamentos a débito e a crédito com data-valor de 03.01.2022 a 31.12.2022; factos suspeitos se tivermos em conta que a Insolvente está sem atividade desde 2017.

32. A factualidade acima descrita aponta claramente num sentido: a contabilidade da Insolvente não tem aderência com a realidade.

33. Tendo as vagas explicações propostas pelas testemunhas dos Recorridos sido totalmente refutadas, em tribunal, pela Sr.ª Administradora da Insolvência (com formação superior em economia e finanças e vasta experiência na análise de elementos contabilísticos de sociedades insolventes).

34. Neste quadro, a Sr.ª Administradora da Insolvência concluiu que a contabilidade da B..., S.A. não está correta e organizada, não indiciando corretamente e com transparência o estado da empresa e comprometendo, por essa razão, a avaliação da situação patrimonial da empresa.

35. Atendendo à multiplicidade de irregularidades demonstradas (e detetadas em apenas dois meses), é pacífico dizer-se que o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada ocorrer «em termos substanciais».

36. Facto que indiscutivelmente causa prejuízo relevante aos credores, no seu legítimo interesse de serem ressarcidos dos seus créditos e frusta todo o propósito da insolvência. Com efeito, a Sr.ª Administradora da Insolvência continua a efectuar diligências com vista a apurar a existência de património, sem que possa apoiar-se numa contabilidade fiável para a orientar. Tal como declarou em tribunal, o facto de um crédito ter sido lançado arbitrariamente em imparidades pode frustrar o ressarcimento dos credores.

37. A materialidade acima descrita globalmente considerada consubstancia a prática de irregularidades contabilísticas que prejudicam a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora.

38. Por último, a ausência de certificação legal de contas em 2022 não é indiferente pelo facto de existir um balancete e depósito de contas, já que tal certificação permitiria aos credores ter o conforto do olhar imparcial de um profissional sobre os movimentos realizados pelos Recorridos na contabilidade desse exercício.

Recorde-se que foi a certificação legal de contas de 2018 que permitiu, na sua ênfase, revelar o que os Recorridos se esforçaram por esconder: que houve uma transferência total de património para outra sociedade por si administrada (cf. Facto Provado 11). É caso para perguntar: o que está a esconder a contabilidade de 2022 que a falta de certificação permitiu encobrir?

39. Muitos destes factos ocorreram em 2022, pelo que, mesmo que se pugne pela aplicação do limite temporal dos três anos a todas as situações contidas no artigo 186.º do CIRE (interpretação que, conforme supra exposto, não se perfilha), esta baliza não se encontrava ultrapassada quando foi apresentada a presente insolvência.

40. Donde se conclui que se encontra preenchida a previsão do artigo 186.º, n.º 2, alínea h) do CIRE, impondo-se que, por verificada presunção inilidível, seja a sentença revogada e substituída por outra que declare insolvência como culposa.

Subsidiariamente,

41. Caso se considere que a falta de certificação se enquadra na previsão da alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, a solução jurídica passará, de igual forma, pela revogação da sentença e substituição por decisão que declare a insolvência culposa com base em presunção de culpa grave, não ilidida pelos Recorridos, e que causou prejuízos aos credores por ter retirado a prerrogativa da validação independente dos movimentos inscritos na contabilidade da Insolvente em 2022, mormente a anulação de dívida do administrador AA à sociedade.

o Do incumprimento do dever de apresentação à insolvência (cf. artigo 186.º, n.º 3, alínea a) do CIRE)

42. Entendeu o tribunal a quo que, apesar de ter ficado provado que a Insolvente se encontra sem património e sem atividade desde 2018 (cf. Factos Provados 7 e 16) e acumulou dívidas de rendas e à Segurança Social (cf. Facto Provado 4) – ao longo de um período de tempo extenso dado que até já tinha estado em processo especial de revitalização – «Não se provou, contudo, que do facto da insolvente não se ter apresentado à insolvência no prazo legal tenha ocorrido prejuízo para os credores.»

43. A Recorrente não se conforma com esta conclusão. Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que, perante a prova dos factos índice, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a atuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, cabendo aos administradores incumpridores ilidir a presunção de culpa grave na não adoção do comportamento a que estava obrigado (v.g. alegando que se apresentaram oportunamente à insolvência), mediante prova em contrário (cf. artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil), e também demonstrar que aquela omissão em nada contribuiu para criar ou agravar a situação de insolvência. O que manifestamente os Recorridos não lograram provar.

44. Ainda que assim não se entenda – o que se equaciona por mero dever de patrocínio – entende a Recorrente que a instrução da causa demonstrou que a omissão dos Recorridos esteve diretamente ligada com o agravamento da situação de insolvência, sendo factos indissociáveis.

45. Regista-se que a administração da Insolvente acumulou, entre 2014 e 2018, uma avultadíssima dívida, referente a rendas do imóvel em que laborava, ao Recorrente (cf. Facto Provado 4); dívida, essa, que teve um perdão substancial de 50% em contrapartida da devolução do mencionado prédio.

46. A administração da Insolvente acumulou igualmente dívidas à Segurança Social – que reclamou créditos (cf. Facto Provado 4) – e ao IAPMEI (conforme declarado pela Sr.ª Administradora da Insolvência em tribunal).

47. O Administrador AA, nas declarações que prestou em juízo, confirmou que sabia que não conseguiria honrar o plano de pagamento aprovado no processo especial de revitalização, mas que nunca equacionou apresentar a devedora à insolvência,

48. Apesar de, já em 2018, estar verificada uma situação de perda de metade do capital social (cf. Certificação Legal de Contas de 2018 junta como Documento n.º 17 da petição inicial) e de a Insolvente estar sem atividade e ter ficado sem as instalações onde laborava (cf. Factos Provados 7, 11, 15 e 16), a administração não cuidou de apresentar a sociedade à insolvência.

49. Em alternativa e à margem dos credores sociais, decidiu transferir, sem qualquer contrapartida monetária, toda a unidade empresarial para uma sociedade gerida pelas mesmas pessoas (cf. Factos Provados 2, 5 e 6), não se responsabilizando, contudo, pelo passivo acumulado.

50. O Recorrido AA confessou em tribunal que não operou a fusão da Insolvente na C..., S.A. – à semelhança do que sucedeu com outras empresas do grupo – porque não pretendia onerar esta com as dívidas daquela cf. declarações disponibilizadas na plataforma informática Citius, com início às 10h03 e fim às 10h56, aos minutos 00:31:19 a 00:31:36 (Diligencia_663-23.9T8AMT-A_2023-11-14_10-03-20).

51. É deveres gritante que esta conduta viola grosseiramente os deveres que são impostos ao conselho de administração.

52. Defender outra coisa seria abrir espaço para que a administração possa optar, numa situação de insolvência atual, por contornar o processo universal e transparente regulado pelo CIRE, pondo em causa a segurança do tráfego comercial e jurídico.

53. Importa ter presente que a consagração do dever de apresentação oportuna à insolvência visa, sobretudo, a proteção dos credores contra o risco da diminuição do património social, que perpassa ainda no interesse geral de afastar da vida económica aqueles que não estejam em condições de nela participarem sem porem em risco (precisamente pela sua insolvência) a normalidade que para ela se pretende.

54. In casu, é evidente o nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e o agravamento da situação dos credores, pois que a não apresentação à insolvência visou dissimular a dissipação do património da Insolvente (que foi entregue, a título gratuito, a uma sociedade do mesmo grupo – cf. Facto Provado 5). Ainda que este património pudesse ser recuperado (que já não pode), ter-se-ia desvalorizado de tal modo, ao longo destes anos, que já não permitiria ressarcir os credores.

55. Por outro lado, caso os Recorridos tivessem apresentado a devedora à insolvência em 2018, as probabilidades de pagamento das dívidas seriam elevadas já que ainda existiria a possibilidade – privilegiada, aliás, pela lei – de vender a unidade industrial como um todo (com equipamentos e trabalhadores). Ao contrário do que sucede hoje em dia, em que a resolução do negócio com a C..., S.A. em benefício da massa já não é possível, alguns equipamentos já foram desmantelados, estão mais desgastados pelo decurso do tempo e pelo uso e os trabalhadores, como a próprio administrador AA afirma, «foram saindo».

56. Como foi admitido pelo Recorridos na sua resposta, nunca houve expectativa de recuperação da Insolvente.

57. Perante todo o exposto e em consonância com a resposta da Sr.ª Administradora da Insolvência, reitera-se o pedido de qualificação da insolvência como culposa por verificação das circunstâncias previstas no artigo 186.º, n.º 2, alíneas a), b) e h) e n.º 3, alínea a) do CIRE.

58. Em função da gravidade da conduta dos administradores da Insolvente, que denota culpa grave, deverá o quantum indemnizatório ser fixado no máximo legal, i.e. pelo valor dos créditos reconhecidos que não sejam satisfeitos no quadro da presente insolvência.

Nestes termos, pretende que o presente recurso seja julgado procedente, e em consequência revogada a sentença e substituída por outra que qualifique a insolvência como culposa e decrete a inibição dos administradores AA, BB e CC, ora recorridos, condenando-os a indemnizar os credores pelo montante dos créditos reconhecidos na presente insolvência.

Os recorridos “B..., SA”, AA, BB e CC apresentaram resposta, na qual se pronunciaram pela confirmação do decidido.[1]

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

A Mmª Juíza “a quo” consignou ainda o seguinte neste despacho:

“Em sede de alegações, veio a recorrente arguir a nulidade da sentença proferida por falta de fundamentação de facto e de direito, nos termos do art.º 615.º, al. b) do CPC.

Estamos em crer que a decisão não padece da nulidade apontada.

Com efeito, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 615.º, al. b) do CPC, referindo-se na sentença os fundamentos de facto em que assenta a decisão proferida.

Pelo exposto, julgo improcedente a arguida nulidade.”

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

II. Qualificação da insolvência por força do preenchimento das alíneas a) e/ou b) do nº 2 do art. 186º do CIRE;

III. Qualificação da insolvência por força do preenchimento da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE;

IV. Qualificação da insolvência por força do preenchimento da alínea a) do nº 3 do art. 186º do CIRE.


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É a seguinte a factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida:

Factos Provados

1. A sociedade B..., SA foi constituída no ano de 1993 e tem como objeto social a fabricação e comercialização de mobiliário de madeira e afins.

2. No quadriénio de 2015/2018 o Conselho de Administração da sociedade B..., SA era constituído por AA (Presidente), BB (Vice-Presidente) e CC (Vogal).

3. Por sentença proferida em 13.6.2023, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “B..., SA”.

4. No âmbito da insolvência foram reconhecidos créditos no valor global de 720.389,03€, sendo 631.383,33€ do requerente da insolvência e relacionados com rendas e outros valores decorrentes do contrato de locação e 88.985,70€ do Instituto da Segurança Social.

5. No ano de 2017, o imobilizado detido pela empresa insolvente foi transferido para a sociedade C..., com a condição de serem transferidos os colaboradores da B..., SA e compensar parcialmente os saldos de empréstimos da C... concedidos para a aquisição de matérias primas e pagamento de salários.

6. AA (Presidente) e BB (vogal) são membros do conselho de administração da empresa C....

7. A empresa insolvente não realiza vendas nem presta serviços desde 2018, apresentando desde 2018 resultados negativos.

8. No balancete datado de 31/12/2022, a conta Caixa tem um movimento de 327.307,84€ a débito e crédito e existem alguns saldos que se anulam com as perdas por imparidade acumuladas.

9. No balancete referido em 8) a conta 2783-Devedores e Credores, apresenta um saldo positivo de 181.801.47€ e a conta 69- Gastos e Perdas de Financiamento apresenta um movimento a crédito no valor de 4.875,56€.

10. O IES relativo ao ano de 2022, não tem certificação legal de contas pelo ROC.

11. Na certificação legal das contas de 2018 foi colocada a seguinte reserva: No exercício de 2017, a entidade (B..., SA), cessou a sua atividade e cedeu a exploração dos direitos associados à linha de mobiliário contemporâneo à C..., bem como todos os inventários, os equipamentos e o pessoal.

Refere-se ainda que: por dificuldade de liquidez, a sociedade não vinha a cumprir com todas as obrigações, nomeadamente as rendas do imóvel no montante de 389.554,00€”.

12. Entre a requerente da insolvência e a insolvente vigorou um contrato de arrendamento que foi revogado por comum acordo em 9 de maio de 2018.

13. Nessa data, as Partes fixaram o dia 30 de maio de 2018 para a entrega do Imóvel.

14. A insolvente restituiu o Imóvel, livre de pessoas e bens, às proprietárias na data acordada.

15. Após 30 de Maio de 2018, a insolvente ficou sem as instalações industriais onde exercia atividade.

16. A insolvente não logrou pôr a sua unidade de produção em funcionamento noutras instalações, estando sem atividade desde que lhe entregou o Imóvel.

Factos Não Provados:

a) Após 30 de maio de 2018 tenha ocorrido um agravamento dos prejuízos para os credores da insolvente.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I – Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

1. O credor/recorrente principia as suas alegações de recurso pela impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, insurgindo-se contra o facto dado como provado sob o nº 5 que tem a seguinte redação:

- No ano de 2017, o imobilizado detido pela empresa insolvente foi transferido para a sociedade C..., com a condição de serem transferidos os colaboradores da B..., SA e compensar parcialmente os saldos de empréstimos da C... concedidos para a aquisição de matérias primas e pagamento de salários.

Sustenta que relativamente a este facto ocorre falta de fundamentação, por não conseguir discernir em que meios de prova se baseou o tribunal recorrido para o dar como assente, o que, a seu ver, configura a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. b) do Cód. de Proc. Civil.

Nulidade esta que se verifica quando a sentença não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que manifestamente não sucede no presente caso.

Com efeito, da mera leitura da sentença recorrida decorre, sem margem para dúvidas, que desta constam os fundamentos de facto e de direito em que assentou a decisão de qualificar a insolvência como fortuita.

O que eventualmente poderia estar em causa em relação ao facto provado nº 5, que na motivação da decisão de facto não se mostra destacado, em termos de fundamentação, pela Mmª Juíza “a quo” seria o cumprimento do disposto no art. 662º, nº 2, al. d) do Cód. de Proc. Civil, onde se dispõe que a Relação, mesmo oficiosamente, deve determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

De qualquer modo, nada justifica que se dê cumprimento a este dispositivo processual, até porque, lendo a motivação elaborada pela Mmª Juíza “a quo”, a prova do facto nº 5 decorreu das declarações de parte do Presidente do Conselho de Administração da Insolvente, AA e do depoimento da testemunha DD, que se mostram sintetizadas.

Além disso, a Mmª Juíza “a quo”, reportando-se ao dito nº 5, escreveu ainda que “a análise da prova acima indicada permite concluir que a insolvente procedeu à alienação de todo equipamento que possuía à sociedade C.... Não obstante, também resulta da prova produzida que tais factos ocorreram no ano de 2017, ou seja, há mais de três anos tendo por referência o início do processo de insolvência. Assim sendo, por não terem relevância para estes autos, não serão objeto de análise critica.”

Entendemos, assim, que a motivação da decisão de facto abarca também o seu nº 5.

2. Prosseguindo.

Em termos de impugnação propriamente dita a credora/recorrente pretende que a redação do nº 5 seja alterada, passando a ser a seguinte:

- No ano de 2017, todo o património detido pela empresa insolvente foi transferido.

Dessa redação seria assim suprimido o seu segundo segmento [com a condição de serem transferidos os colaboradores da B..., SA e compensar parcialmente os saldos de empréstimos da C... concedidos para a aquisição de matérias primas e pagamento de salários], para o que refere não ter sido apresentada qualquer prova documental que o confirme e indica ainda excertos do depoimento produzido pela testemunha EE e das declarações prestadas pela Sr.ª Administradora da Insolvência.

Por outro lado, na resposta ao recurso interposto, quanto a este ponto factual, os recorridos indicam excertos das declarações prestadas por AA e do depoimento da testemunha DD.

3. Ora, não tendo a recorrente posto em causa que a transmissão do equipamento/património pertencente à insolvente para a sociedade C..., independentemente das circunstâncias que a rodearam, tenha ocorrido no ano de 2017, o que determinou, por desrespeito do prazo de três anos previsto no art. 186º, nº 1 do CIRE, a irrelevância do facto constante do nº 5 para a qualificação da insolvência como culposa nos termos do seu nº 2, al. a), entendemos que a reapreciação deste facto nenhuma consequência terá para a decisão do presente caso.

Com efeito, mesmo que se acolha a tese da credora/recorrente circunscrevendo o ponto factual impugnado à transmissão de todo o património detido pela empresa insolvente, a sua localização no ano de 2017, inquestionada, sempre colocaria este facto fora do referido período de três anos que permitiria considerá-lo para a qualificação da insolvência.      

Ou seja, o êxito da impugnação fáctica levada a cabo pela recorrente não terá qualquer reflexo na solução jurídica do caso e, por isso, por inútil, entendemos não ser de proceder à reapreciação do nº 5 da factualidade provada.

Em abono desta solução, transcrever-se-á o que, a propósito, se escreveu no Acórdão do STJ de 17.5.2017 (proc. 4111/13.4TBBRG.G1.S1, relatora FERNANDA ISABEL PEREIRA, disponível in www.dgsi.pt)

“Definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág.11), cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos ou produzir actos inúteis.
O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.
Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.”[2]
Deste modo, tal como já atrás se expôs, uma vez que o facto nº 5 impugnado pela credora/recorrente, mesmo na redação modificada que esta propõe e conforme adiante melhor se explanará, não é suscetível de alterar a decisão de mérito, não se procede à sua reapreciação.
4. A credora/recorrente procedeu também à impugnação do facto não provado a) – que após 30 de maio de 2018 tenha ocorrido um agravamento dos prejuízos para os credores da insolvente – pretendendo que este seja dado como provado.

Estatui-se o seguinte no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, no que concerne aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;  

(…)»
Sucede que a recorrente ao impugnar o facto não provado a), conforme decorre da sua motivação de recurso, não especificou os concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa da recorrida, o que significa o incumprimento do ónus resultante da alínea b) do nº 1 do art. 640º do Cód. de Proc. Civil.
Como tal, rejeita-se a impugnação da matéria de facto no que concerne ao facto não provado a).

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II. Qualificação da insolvência por força do preenchimento das alíneas a) e/ou b) do nº 2 do art. 186º do CIRE

1. O art. 186º do CIRE estatui o seguinte, nos seus nºs 1, 2 e 3[3]:

«1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º

3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.»

Cabe desde logo sublinhar que todos estes comportamentos só relevam para a qualificação da insolvência como culposa se tiverem ocorrido até três anos antes do início do processo de insolvência – art. 186º, nº 1.

Por outro lado, face à letra do nº 2 deste art. 186º, quando afirma que a insolvência se considera «sempre» culposa se ocorrer qualquer dos comportamentos elencados nas suas alíneas, deve entender-se que nele se estabelecem presunções inelidíveis, “juris et de jure”.

Neste sentido aponta, além do advérbio «sempre», o confronto com o texto do nº 3 do mesmo preceito, onde tal palavra não é usada, donde se conclui que as presunções deste número são elidíveis, “juris tantum”, segundo a regra geral do nº 2 do art. 350º do Cód. Civil.[4]

Há assim a concluir que no nº 2 do art. 186º do CIRE se prevêem presunções juris et de jure de insolvência culposa, uma vez que a lei consagra aqui uma presunção de existência de culpa grave e também uma presunção de nexo de causalidade dos comportamentos aí previstos para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não sendo admitida a produção de prova em contrário.[5] [6]

2. De uma maneira geral, as situações previstas nas várias alíneas do nº 2 não suscitam difíceis problemas de interpretação, sem prejuízo de, na sua aplicação concreta, se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 719.

Estas alíneas podem ser agrupadas em três categorias fundamentais:

1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros;

3) incumprimento de certas obrigações legais.

No primeiro grupo incluem-se as situações das alíneas a) e c).

No segundo grupo enquadram-se as alíneas b), d), e), f) e g).

Por fim, no terceiro grupo acham-se as alíneas h) e i).[7]

3. Na sentença recorrida, tendo-se em conta que no exercício de 2017, a B..., SA cessou a sua atividade e cedeu a exploração dos direitos associados à linha de mobiliário contemporâneo à C..., bem como todos os inventários, os equipamentos e o pessoal, entendeu-se que houve dissipação do património da insolvente para outra empresa.

Esta situação, que na perspetiva da Mmª Juíza “a quo” era suscetível de integrar o preenchimento da previsão da alínea a) e na da recorrente também a da alínea b), não viria a ser considerada para a qualificação da insolvência como culposa, porquanto se reporta a factos ocorridos em 2017, de tal modo que na data em que se iniciou o processo de insolvência – 11.5.2023 – já haviam decorrido mais de três anos após a sua verificação.

E, conforme se sublinha na sentença recorrida, para a qualificação apenas interessam os factos ocorridos nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

4. Porém, nas suas alegações de recurso, o credor/recorrente veio sustentar que para o cômputo deste período de três anos previsto no art. 186º, nº 1 do CIRE se deverá ter em atenção que o prazo para a apresentação à insolvência esteve suspenso em consequência da pandemia da doença Covid-19 e assim, no seu entendimento, quando o pedido de insolvência deu entrada em juízo, em 11.5.2023, ainda não estava completado aquele limite temporal.

Com efeito, flui do art. 7º, nº 6, al. a) da Lei nº 1-A/2020, de 19.3., na redação da Lei nº 4-A/2020, de 6.4, que, em virtude da situação pandémica, ficou suspenso o prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº 1 do art. 18.º do CIRE.

Suspensão que, em resultado das sucessivas alterações legislativas verificadas, passou a constar depois do art. 6º-A, nº 6, al. a) [Lei 16/2020, de 29.5.], do art. 6º-B, nº 6, al. a) [Lei 4-B/2021, de 1.2.] e do art. 6º-E, nº 7, al. a) [Lei 13-B/2021, de 5.4.].   

Desde logo, convém notar que esta suspensão apenas se refere ao prazo de apresentação do devedor à insolvência previsto no art. 18º, nº 1 do CIRE e não a qualquer outro prazo ou período referido neste mesmo diploma.

Ora, com tais normas visou-se essencialmente garantir a proteção das empresas, em particular num contexto de crise económica para a qual nada contribuíram, bem como salvaguardar a sustentabilidade geral da economia portuguesa – cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Atos processuais e prazos no âmbito da pandemia da doença Covid-19”, págs. 15/16, disponível in repositorium.sdum.uminho.pt.

Explicitando melhor esta ideia, CATARINA SERRA escreveu que “[a] necessidade de uma medida que suspenda a obrigação de apresentação à insolvência durante este período é evidente. Os empresários ou administradores das empresas estão, nesta altura, sob fortíssima pressão. Por um lado, sabem que, por uma causa extraordinária, a empresa deixou de ter liquidez e que em breve lhes será impossível fazer face aos compromissos correntes (se não atingiu já essa situação); por outro lado, sabem que se não cumprirem a obrigação de apresentação à insolvência nos trinta dias seguintes à data do conhecimento da insolvência ou à data em que devessem conhecê-la, ficam sujeitos aos efeitos da insolvência culposa [cfr. artigo 18.º, n.ºs 1 e 3, 19.º e 189.º, n.º 2, al. a), e 186.º, n.º 2, do CIRE].”[8]

Acresce que, visando as normas aqui referidas, apenas a suspensão do prazo para o devedor se apresentar à insolvência, o credor, agora recorrente, não estava impedido de, mesmo nesse período, requerer a insolvência da devedora, como de resto o viria a fazer posteriormente.

Deste modo, atendendo a que a legislação relativa à situação de pandemia decorrente da doença Covid-19, não projetou os seus efeitos suspensivos sobre o cômputo do período de três anos referido no art. 186º, nº 1 do CIRE, teremos que concluir, como se fez na sentença recorrida, no sentido de que a factualidade passível de integrar o preenchimento das alíneas a) e/ou b) do nº 2 daquela mesma norma não poderá ser tomada em conta para a qualificação da insolvência como culposa, uma vez que, referindo-se essa factualidade ao ano de 2017, quando se inicia o processo de insolvência, em 11.5.2023, já se mostrava transcorrido o dito período de três anos.[9]

Por conseguinte, nesta parte, improcede o recurso interposto.


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III. Qualificação da insolvência por força do preenchimento da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE

1. Afastadas as alíneas a) e b), há agora que apreciar se se verifica – ou não – o preenchimento da alínea h) por força da qual a insolvência será sempre qualificada como culposa se o devedor tiver incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Ora, no que concerne a esta alínea há a salientar que «o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada é prevista, a par de outras situações que denunciam mais claramente a gravidade exigível: manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticar irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Contudo, o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada preenche por si a primeira parte da previsão da citada al. h).

Segundo Pires Cardoso, em Noções de Direito Comercial, pág. 114, (citado no Ac. Rel. Porto de 27/02/2014) “a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados - lucros e perdas de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (...).

Mas além disto, a escrituração mercantil é também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova para fazer valer em juízo ou fora dele, essas mesmas reclamações. (…)

Mais ainda: A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa.”

No mesmo registo Menezes Cordeiro, em Manual de Direito Comercial, vol. I, pág. 297 e 298, escreve: “a escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante (…) Mas além disso, desde cedo se verificou que servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título:

- incentivando o comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas;

- permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades.

A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado actuar, com fins de polícia, de fiscalização ou de supervisão.”

A contabilidade assume, assim, particular relevância para aferir se a actividade da sociedade respeitou as normas que protegem os terceiros que com ela contratam, permite controlar e evitar a concorrência desleal e assim proteger as outras empresas do mesmo sector, os próprios sócios da sociedade, não gerentes para que estes possam controlar a actividade da sociedade e os interesses gerais da comunidade, designadamente para possibilitar ao Estado arrecadar os impostos legalmente fixados.

Apesar da relevância em abstracto da contabilidade para se verificar a previsão da 1ª parte da al. h) do n.º 2 art. 186º não é suficiente qualquer deficiência, tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas e com influência na percepção que tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.

Assim, como se escreveu no Ac. da Rel. de Coimbra de 08.02.2011, Proc. 1543/06.8TBPMS-O.C1, C J, Tomo I/2011, pág. 32[10], “o incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”.»[11]

No mesmo sentido, no Ac. da Relação de Coimbra de 25.5.2021 (proc. n.º 5165/18.2T8VIS-C.C1. relator ARLINDO OLIVEIRA, disponível in www.dgsi.pt.)[12], consignou-se o seguinte no respetivo sumário:

“Relativamente às alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do C.I.R.E. deve ser colocada alguma exigência no preenchimento de tais alíneas, no sentido de dever exigir-se alguma “densidade” factual para poder dar como provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”[13] constantes das mesmas.”

2. Posto isto, para aferir do preenchimento desta alínea, há que ter em atenção a factualidade dada como assente no tocante à situação contabilística da insolvente e, quanto a este aspeto convém referir que, apesar da recorrente, quanto a eventuais irregularidades contabilísticas, ter aludido a excertos das declarações e depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento[14], não procedeu à impugnação de qualquer ponto factual, nem pugnou por qualquer aditamento a essa mesma factualidade.

Assim, ter-se-ão em conta os seguintes factos:

- No balancete datado de 31/12/2022, a conta Caixa tem um movimento de 327.307,84€ a débito e crédito e existem alguns saldos que se anulam com as perdas por imparidade acumuladas [nº 8];

- No balancete referido em 8) a conta 2783-Devedores e Credores, apresenta um saldo positivo de 181.801.47€ e a conta 69- Gastos e Perdas de Financiamento apresenta um movimento a crédito no valor de 4.875,56€ [nº 9];

- O IES relativo ao ano de 2022, não tem certificação legal de contas pelo ROC [nº 10];

- Na certificação legal das contas de 2018 foi colocada a seguinte reserva: No exercício de 2017, a entidade (B..., SA), cessou a sua atividade e cedeu a exploração dos direitos associados à linha de mobiliário contemporâneo à C..., bem como todos os inventários, os equipamentos e o pessoal.

Refere-se ainda que: por dificuldade de liquidez, a sociedade não vinha a cumprir com todas as obrigações, nomeadamente as rendas do imóvel no montante de 389.554,00€” [nº 11].

Sucede que, tal como entende a Mmª Juíza “a quo”, tomando como referência esta factualidade, constata-se existir uma única irregularidade que se prende com o facto da IES[15] relativa ao ano de 2022, não ter certificação legal de contas por parte do ROC [nº 10].

Com efeito, o art. 45º do Estatuto dos Revisores Oficiais de Contas, aprovado pela Lei nº 140/2015, de 14.9., impõe a emissão de certificação legal das contas, através de Revisor Oficial de Contas.

Porém, esta irregularidade não assume o carácter substancial que é imposto pela alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, pois importa sublinhar que a IES não deixou de ser entregue e que existe balancete referente ao ano de 2022.

Assim, a irregularidade cometida não impedia os credores de aferirem da situação patrimonial da empresa, uma vez que a documentação contabilística existente permitia a qualquer pessoa ou entidade analisar e reconstituir, com fidedignidade, a vida comercial da sociedade nesse ano de 2022.

Quanto às demais situações referidas [saldo positivo constante do balancete datado de 31.12.2022 – nºs 8 e 9; movimentação da conta caixa a débito e crédito – nº 8] entendemos, também em sintonia com a sentença recorrida, que as mesmas não constituem sequer irregularidades, reconduzindo-se a meras formas de processamento contabilístico.

Por isso, entendemos não estar preenchida a previsão da alínea h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, tal como também não se mostra preenchida a previsão da alínea b)[16] do nº 3 desta mesma disposição, aflorada pela recorrente na sua motivação, improcedendo, igualmente nesta parte e sem necessidade de outros considerandos, o recurso interposto.


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IV. Qualificação da insolvência por força do preenchimento da alínea a) do nº 3 do art. 186º do CIRE

1. Prosseguindo, há agora que apurar se se acha preenchida a previsão da alínea a) do nº 3 do art. 186º do CIRE, onde se estatui presumir-se a existência de culpa grave quando o devedor tiver incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

No art. 18º do CIRE estabelece-se no seu nº 1 que «[o] O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la.»

Depois no nº 3 diz-se que «[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.”

As obrigações, cujo incumprimento generalizado está na base da presunção inilidível do nº 3 do art. 18º do CIRE, acham-se previstas na al. g) do nº 1 do art. 20º do CIRE e são as seguintes:

i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.

2. No que concerne às presunções previstas no nº 3 do art. 186º do CIRE há que ter em conta a alteração da redação deste preceito introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11.1, estando agora expressamente previsto que nas suas alíneas a) e b) “se presume unicamente a existência de culpa grave”.

Tal como refere MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO (in “Manual de Direito da Insolvência”, 8ª ed., págs. 161/162), ficou assim definitivamente solucionado o dissenso que dividia a doutrina e a jurisprudência nacionais sobre o âmbito objetivo das presunções previstas no nº 3 do art. 186º do CIRE.

Para a maioria da jurisprudência[17] e da doutrina nacionais[18] entendia-se que “o que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.”[19]

Porém, outros defendiam que a simples verificação das situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE constitui presunção (ilidível) da insolvência culposa - pressupondo-se, à partida, o nexo de causalidade exigido pelo nº 1 – e não apenas da culpa grave do devedor.[20]  

De qualquer modo, face à alteração legislativa decorrente da Lei nº 9/2022, ficou definido que para ocorrerem as presunções previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 186º do CIRE é imprescindível demonstrar que a situação de insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta assumida pelo devedor integrativa dessas alíneas.[21]

3. Há agora que retornar ao caso dos autos.

Escreveu o seguinte a Mmª Juíza “a quo”:

“In casu, e como acima referido, desde logo, não há matéria de facto que permita concluir pelo agravamento da situação de insolvência, pela circunstância da sociedade não se ter apresentado à insolvência em momento anterior. E isto porque, ainda que as dividas tenham gerado débito de juros, importa salientar que, conforme se concluiu no Acórdão do STJ de 19/04/2012 (Revista nº 434/11.5TJCBR-D.C1.S1) « (…) O atraso na apresentação à insolvência não pode causar prejuízo aos credores com a invocação de que os juros se avolumam na medida em que continuam a ser contados até àquela apresentação.».

Fundamentando esta conclusão, diz-se nesse aresto: «[…] o regime estabelecido na primeira parte do nº 2 do artigo 151º no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que estabelecia a cessação da contagem dos juros “na data da declaração de falência” deixou de existir com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, passando os juros a ser considerados créditos subordinados, nos termos da alínea b) do nº1 do artigo 48º deste Código - neste sentido, ver Carvalho Fernandes e João Labareda “in” ob. cit., em anotação ao artigo 91º.

Vejamos, assim, se temos por verificados algum dos factos base da presunção do nº 3 do art. 18º, a fim de concluirmos a partir de que momento poderemos afirmar com segurança que a devedora tinha obrigação de se aperceber que se encontrava já em estado de insolvência.

Encontram-se dados como provados os seguintes factos, com interesse para a questão em apreço:

A empresa insolvente não realiza vendas nem presta serviços desde 2018, apresentando desde 2018 resultados negativos.

A empresa tem dívidas perante o Instituto da Segurança Social.

Tendo em conta a factualidade descrita não estamos perante nenhuma das presunções inilidíveis mencionadas, uma vez que não temos um incumprimento generalizado das obrigações tributárias ou outras, apesar do incumprimento perante o ISS.

Assim sendo, e uma vez que não estamos perante nenhuma situação inilidível, para se qualificar a presente insolvência como culposa, impõe-se a exigência de agravamento dos prejuízos dos credores em face dessa falta de apresentação.

Ora, não se provou, contudo, que do facto da insolvente não se ter apresentado à insolvência no prazo legal tenha ocorrido prejuízo para os credores.

Não se verifica, pois, e no caso concreto, a existência de um nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e o agravamento desta.

Tudo para afirmar que a insolvência em causa não deve qualificar-se como culposa, em consonância com o disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 3, al. a) do CIRE.”       

Sucede que concordamos inteiramente com a posição assumida na sentença recorrida, pois da matéria da facto dada como provada não resulta demonstrada, relativamente à devedora, a existência de nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de se apresentar à insolvência [arts. 186º, nº 3, a) e 18º] e o agravamento desta mesma situação de insolvência.    

Por conseguinte, ainda nesta parte, improcede o recurso interposto, o que implicará a confirmação da sentença recorrida.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo credor “A...” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo do recorrente.


Porto, 9.4.2024
Rodrigues Pires
Rui Moreira
Alberto Taveira
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[1] O Digno Magistrado do Min. Público, apesar de antes se ter pronunciado no sentido da qualificação da insolvência como culposa, não interpôs recurso, nem apresentou resposta ao recurso interposto, donde se deverá inferir a sua não discordância relativamente à sentença recorrida que qualificou a insolvência como fortuita.
[2] Neste sentido, cfr. também, por ex., Ac. STJ de 29.9.2020, p. 129/10.7 TBVNC.G1S2 (JORGE DIAS), Ac. STJ de 19.5.2020, p. 22172/17.5 T8PRT.L1S1 (ANTÓNIO MAGALHÃES), Ac. Rel. Guimarães de 15.12.2016, p. 86/14.0 T8AMR.G1 (MARIA JOÃO MATOS), disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Com as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
[4] Cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, pág. 262.
[5] Cfr., por ex., na jurisprudência, Acórdãos Rel. Porto de 18.6.2007, p. 0730992; Rel. Porto de 27.11.2007, p. 0723926; Rel. Porto de 3.3.2009, p. 0827686; Rel. Coimbra de 19.1.2010, p. 132/08.7 TBOFR-E.C1, Rel. Guimarães de 29.6.2010, p. 1965/07.7 TBFAF-A.G1; Rel. Lisboa de 10.5.2011, p. 1166/08.7 TYLSB.B.L1-7; Rel. Porto de 27.2.2014, p. 1595/10.6 TBAMT-A.P2, Rel. Porto de 28.9.2015, p. 1826/12.8 TBOAZ-C.P1, Rel. Porto de 1.6.2017, proc. 35/16.1 T8AMT-A.P1 e Rel. Porto de 29.9.2022, proc. 2367/16.0 T8VNG-H.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. também na doutrina, MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., pág. 284 e MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 8ª ed., págs. 154/157.
[7] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob. cit., págs. 157/158.
[8] In “Covid-19/Para uma legislação para a crise das empresas em tempos de “crise total”, disponível em “https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/03/covid-19-para-uam-legislacao-para-a-crise-das-empresas-em-tempos-de-crisetotal”)
[9] Daqui resulta também, como atrás exposto, a inutilidade da reapreciação do facto provado nº 5.
[10] Relator BEÇA PEREIRA.
[11] Esta citação, também feita na sentença recorrida, surge igualmente noutros acórdãos como sejam: Rel. Porto de 27.2.2014, proc. 1595/10.6 TBAMT-A.P2, relator LEONEL SERÔDIO; Rel. Porto de 9.10.2018, proc. 2928/16.7 T8AVR-A.P1, relator ESTELITA DE MENDONÇA; Rel. Guimarães de 12.1.2017, proc. 2253/15,0 T8GMR-A.G1, relator JOSÉ CRAVO; Rel. Porto de 7.5.2019, proc. 521/18.9 T8AMT-C.P1, do presente relator, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Mencionado em sede de contra-alegações.
[13] Referente à alínea i).
[14] Depoimentos das testemunhas EE e DD e declarações da Sr.ª Administradora da Insolvência.
[15] Informação Empresarial Simplificada.
[16] Incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
[17] Cfr. Ac. STJ de 6.10.2011 (SERRA BAPTISTA) “(…) III – o nº 3 do mesmo art. 186º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas. IV – Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”. No mesmo sentido, veja-se, entre outros, os Acs. da Rel. Lisboa., de 22.1.2008 (GRAÇA AMARAL) e de 21.4.2009 (SÍLVIA PIRES) e o Ac, Rel. Coimbra de 8.2.2011 (BEÇA PEREIRA).
[18] Por ex. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “CIRE Anotado”, 3ª ed., pág. 681, nota 8; ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 4ª ed., pág. 572; A. RAPOSO SUBTIL e outros, “CIRE Anotado”, 2006, pág. 265.
[19] Cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit., pág. 285.
[20] Cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 5.2.2009, proc. 0837835 (LUÍS ESPÍRITO SANTO), disponível in www.dgsi.pt.; CATARINA SERRA, “Lições de Direito da Insolvência”, 2019, págs. 301/302; Ac. Tribunal Constitucional nº 564/2007, de 13.11.2007 (SOUSA RIBEIRO), disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
[21] CATARINA SERRA (in “O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Revista Julgar, nº 48, págs. 20/24), na sequência da posição por si sustentada, discorda desta alteração legislativa e sobre ela, além do mais, escreve o seguinte: “A medida é intrigante, se não mesmo incoerente no plano da política legislativa. Servindo o incidente para sancionar todos os sujeitos que, com desprezo pelas suas obrigações profissionais, contribuam para a insatisfação geral dos credores, seria essencial que se disponibilizassem mecanismos eficazes, designadamente aptos a superar as situações de prova excessivamente difícil ou impossível – sem atropelo, bem entendido, dos direitos fundamentais dos visados. As presunções são o mecanismo ideal para este efeito, mas é preciso configurá-las de modo a que possam ser úteis. Ora, uma presunção (unicamente) de culpa grave serve de pouco ou de nada se for dificílimo provar os restantes requisitos da insolvência culposa. Em quantos casos se demonstrará o nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência ou entre o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de submeter as contas à fiscalização ou de depositar as contas na conservatória do registo comercial e a criação ou o agravamento da insolvência? (…) Em conclusão, a alteração legislativa reduz drasticamente a utilidade das presunções consagradas nas als. a) e b) do nº 3 do art. 186º, dada a dificuldade em provar o nexo de causalidade nestes casos.”