Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
| Descritores: | AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS CONTAS APRESENTADAS PELO AUTOR AVERIGUAÇÕES CONVENIENTES JULGAMENTO | ||
| Nº do Documento: | RP202502206191/07.2TBVNG-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 02/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Na acção de prestação de contas, da decisão que declara a existência da obrigação de prestar contas contestada pelo demandado, cabe recurso de apelação a interpor de imediato; não sendo esse recurso interposto o demandado não pode posteriormente contestar a existência da obrigação. II - Para julgar as contas apresentadas pelo requerente das mesmas, na sequência da sua não apresentação pelo obrigado a prestar as contas, o juiz deve obter as informações e realizar as averiguações convenientes para apurar a receita e a despesa, e só depois disso pode julgar as contas segundo o seu prudente arbítrio. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2025:6191.07.2TBVNG.A.P1 * SUMÁRIO:……………………………… ……………………………… ……………………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: AA, titular do Cartão de Cidadão ..., contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., Vila Nova de Gaia, instaurou acção especial de prestação de contas contra BB, titular do bilhete de identidade nº ..., contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., Vila Nova de Gaia, requerendo que esta, na qualidade de cabeça-de-casal no inventário por óbito de CC, preste contas sobre o saldo das contas bancarias e o montante das rendas recebidas de imóveis arrendados entre 2009 e 2016. Ao abrigo do artigo 942.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, foi decidido que a ré está obrigada a prestar contas mas apenas das rendas que recebeu referentes a imóveis deixados por CC e que estiveram arrendados entre 2009 e 2016. Em simultâneo foi-lhe concedido o prazo de 20 dias para prestar as contas. A ré não interpôs recurso dessa decisão e não apresentou as contas. O autor foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 943.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. O autor apresentou então contas, concluindo que «o valor recebido das rendas» foi de «27.957,59€ … a fazer fé, nos dados fornecidos pela listagem do doc 11, corregidos de alguns gastos não aceites e na expectativa de que os custos apresentados, estejam assegurados por facturas e recibos legais». Após determinação para que o autor juntasse os contratos de arrendamento e documentos comprovativos das despesas, foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte: «… julgo a presente acção procedente por provada, condenando a cabeça de casal a proceder à divisão entre os interessados da quantia de 27.957,59€, podendo fazê-lo extrajudicialmente, se assim as partes o entenderem, ou por partilha adicional». Do assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: I- Salvo a devida vénia, a recorrente discorda, quer pelos factos dados como provados, quer pelos factos confessados nos autos que não foram considerados, quer da prova documental não considerada, quer das subsequentes conclusões de direito, que levaram à sua condenação em proceder à divisão entre os interessados da quantia de 27.957,59€. II- Salvo o devido respeito, na petição inicial o autor aduz factos e confessa factos com relevo para a presente decisão. III- Assim, no articulado em 2º o A. diz: Foi nomeado, para exercer as funções de Cabeça-de-casal, dessa mesma herança, o irmão do Autor, também ele herdeiro, CC, conforme Habilitação de Herdeiros, datada de vinte de Novembro de 2009 (doc 1a que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos). IV- Prossegue o A. no articulado em 11º da douta P.I.: Dos imóveis constantes da relação de bens apresentada (doc 6c e doc 6d), melhor identificados no doc 8a e doc 8b, alguns estavam arrendados aquando da abertura da herança e assim se mantiveram atéì 2016, altura em que se realizou a partilha judicial dos bens imóveis e móveis inventariados, conforme se junta, doc 9 que ora se juntam e cujo teor se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos). E no seu articulado em 12º, o A. diz: Estes imóveis sempre foram administrados, primeiro pelo Herdeiro CC e posteriormente, pela Herdeira DD, que cobravam as rendas, e celebravam contratos e outros actos de gestão. V- Na sequência do douto despacho datado de 28-11-2023 que mandou notificar o A. “para, em 10 dias, identificar os imóveis que terão sido arrendados, juntar os respectivos contratos de arrendamentos, bem como os documentos que atestam as despesas que menciona”; VI- O A. vem responder pelo seu douto articulado datado de 11-12-2023, o seguinte: 1. É do conhecimento deste Tribunal, que a relação do Autor com a sua irmãÞ DD, é conflituosa, estando no presente de relações cortadas. 2. Também jáì foi demonstrado a este Tribunal, que esta Interveniente, é quem efectivamente efectuou a administração dos imóveis, geradores das rendas em causa do pedido da presente Prestação de contas. 3. No entanto, como pode ser comprovado nos diferentes Requerimentos e Contestação apresentada por esta, bem como posição tomada na Audiência Prévia, que em tudo dificulta o acesso aos documentos de que é fiel depositária, e agora solicitados nomeadamente, documentos de despesas com os imóveis, cópias de contratos de arrendamentos, entre outros. 4. Jáì anteriormente foi requerido a este Tribunal, que DD, fizesse chegar aos autos esses mesmos documentos, sendo, no entanto, indeferido tal pedido. VII- A recorrente aceita estas confissões do recorrido, que são a prova cabal que a mesma nunca administrou a herança do autor, nem foi de facto sua cabeça de casal, como se comprova pela habilitação de herdeiros apresentada (doc. 1 da P.I.). VIII- De facto a recorrente nunca fez qualquer arrendamento, recebeu quaisquer rendas ou emitiu os competentes recibos, dos eventuais prédios que estavam arrendados desta herança, assim como nunca efectuou o pagamento de quaisquer despesas, encargos, taxas ou impostos referentes a esta herança. IX- Logo a recorrente não nem capacidade para este exercício e consequentemente não tem o dever de apresentar as contas desta herança na presente acção (artigo 941 do CPC). X- Por outro lado os contratos de arrendamento dos prédios arrendados, que tinham a renda mensal de 5.000$00, em 01-07-1997 (ou seja cerca de 25,00€) e de 650$00 em 01-08-1976 (ou seja cerca de 3,25€), que gerassem entre Outubro de 2009 e Março de 2017 rendas mensais superiores 310,00€/mês. XI- É pois impossível que estas rendas antigas, mesmo objecto da actualização extraordinária de 2012, pagassem mensalmente mais de 310,00€ para ao fim de 90 meses existir o valor líquido de 27.957,59€. XII- Nenhuma prova foi feita pelo recorrido da existência deste valor, que não se extrai de forma alguma dos contratos apresentados, antes pelo contrário invalida o valor decidido. XIII- Este valor ou qualquer outro valor da herança do recorrido nunca esteve na posse ou foi do conhecimento da recorrente, para a mesma ser responsável pela sua divisão, como aliás bem fica demonstrado pelos factos confessados pelo recorrido. XIV- Importa referir que no âmbito do processo principal foi celebrada transacção em audiência de conferência de interessados e na respectiva acta (ref. 379270611 de 02/03/2017) no seu ponto 8 refere: Os dinheiros existentes em depósitos bancários satisfazem o legado testamentário e o restante seráì dividido pelos herdeiros conforme os respectivos direitos, e acrescenta o seu ponto. C): Todos os herdeiros deste inventário consideram-se pagos com as adjudicações aqui feitas, aprovando ainda o passivo. XV- Acto continuo, o Meritíssimo Juiz proferiu sentença homologatória e tal sentença notificada a todos os interessados, transitou em julgado. XVI- O que significa que com o trânsito em julgado a decisão sobre a relação material controvertida, as contas quer do passivo, quer do activo referidas, passou a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do C.P.C. XVII- Estamos assim perante o instituto jurídico da autoridade do caso julgado, que visa o efeito positivo de impor a força vinculativa da decisão antes proferida e transitada em julgado, ao próprio tribunal decisor, ou a outro Tribunal a quem a se apresente a dita decisão anterior, como questão prejudicial ou prévia em face do “thema decidendum” na acção posterior. XVIII- Por outras palavras, e socorrendo-nos à nossa tão elementar jurisprudência “ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“excepção do caso julgado”). A função positiva opera por via de “autoridade de caso julgado”, que pressupõe que a decisão de determinada questão -proferida em acção anterior e que se inscreve, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda - não possa voltar a ser discutida.” – disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 1677/15.8T8VNG.P1, de 21/11/2016. XIX - Por esta razão, deverá a presente instância ser declarada extinta de acordo com o disposto nos artigos 577, al. i) e artigo 278º al. e) ambos do C.P.C. XX- Por outro lado, a recorrente nunca se recusou a apresentar contas, conforme fica patente no seu requerimento datado de 07/06/2023, pois não tendo a recorrente conhecimento de arrendamentos ou de rendas, requereu buscas na competente repartição de finanças (Gaia 3), que atestou não existirem no período de 2009 a 2016 qualquer contrato de arrendamento ou emissão de recibos de renda (conforme documento junto em 07/06/2023). XXI- Pelo que sem activos, nem passivos, era impossível e não exigível à recorrente prestar contas na herança do recorrido. XXII- Acresce que pelo requerimento datado de 28-06-2023, a recorrente apresentou escusa ao cargo de cabeça de casal, por ter mais de 70 anos e padecer de demência, nos termos do artigo 2085, nº 1, alíneas a) e b) do CC (e conforme se comprova pelo Doc. nº 1, junto ao diante). XXIII- A escusa unilateral, pode ser exercida a todo o tempo, e deveria em consequência ter iniciado o competente incidente e suspendido os autos para ser designado novo cabeça de casal. XXIV- Por douto despacho datado de 07-09-2023, o Meritíssimo Juiz recusou esse incidente “por desprovido de sentido para efeitos deste processo”. XXV- Salvo o devido respeito e melhor opinião, era necessário e obrigatório a abertura do competente incidente de escusa do cargo do cabeça de casal. XXVI- A recusa de tal incidente constitui uma nulidade processual, que afecta a própria sentença, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC. XXVII- Pois esta nulidade que afecta todo o processado posterior a 28-06-2023. XXVIII - Tanto mais que foi mal aplicado o direito, designadamente o estipulado nos artigos 577º, al. i), e artigo 278º al. e); artigo 615º, nº 1, alínea d) e artigo 941º todos do Código do Processo Civil e artigo 2085, nº 1, alíneas a) e b) do Código Civil. Nestes termos e nos mais de direito, deve ser dado provimento à presente apelação e, consequentemente, a douta sentença recorrida deve ser substituída, por decisão de extinção da instância por caso julgado; não sendo esse o douto entendimento que declare a nulidade processual subsequente à recusa do incidente de escusa do cargo de cabeça de casal; e ainda, não sendo esse o douto entendimento, que absolva a recorrente do pedido, com as demais consequências legais.. O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se a decisão recorrida é nula. ii. Se podem ainda ser apreciadas e decididas as questões suscitadas para defender a inexistência da obrigação de prestar contas. iii. Se estão reunidas as condições para se proceder ao julgamento das contas. III. Nulidades da decisão recorrida: Nas conclusões XXII a XXVIII a recorrente defende que a sentença recorrida é nula porque requereu a escusa do cargo de cabeça de casal e este incidente foi recusado pelo juiz a quo, situação que configura uma nulidade processual que afecta a própria sentença tornando-a nula nos termos da alínea d) do artigo 615.º do Código de Processo Civil. As deficiências desta argumentação são manifestas, como óbvia é a sua total improcedência. O objecto da presente acção é a prestação de contas por quem exerceu um cargo que o obriga a apresentar contas. Logo, o objecto da acção são os actos de administração realizados, não aqueles cuja ocorrência apenas possa ter lugar, ou não, no futuro. Por esse motivo, mesmo que o incidente de escusa do cargo pudesse ter lugar no âmbito do presente processo, o mesmo nunca interferiria com a obrigação de prestação de contas já fixada nos autos por decisão de que não foi sequer interposto recurso, nem com o saldo dessas contas que é apenas aquilo que resta para julgar nos autos. A nomeação de cabeça de casal ocorreu no âmbito do processo de inventário e para efeitos desse processo, pelo que a sua escusa só pode constituir um incidente desse processo, não um incidente de qualquer outro processo que mesmo correndo por apenso ao processo de inventário tem um objecto específico que se relaciona com os actos praticados pelo cabeça de casal, não com actos a praticar por este no futuro e cuja dispensa se ambiciona com aquele incidente. A obrigação de prestação de contas emerge do exercício de um cargo de administração de bens alheios num determinado período. Se essa administração foi realizada, constituiu-se a obrigação de apresentar contas, cujo cumprimento é exigível mesmo que entretanto a pessoa passe a estar incapaz de as apresentar, caso em que haverá que desencadear os mecanismos de suprimento da incapacidade judiciária da parte, o que absolutamente nada tem a ver com a dispensa do cargo de cabeça de casal. Tendo sido deduzido um incidente, o deve juiz proferir despacho judicial sobre o requerimento, no qual pode admitir o incidente e ordenar a prática dos actos processuais subsequentes ou rejeitar o incidente, por razões de natureza substantiva ou processual. Se o juiz proferiu esse despacho, designadamente indeferindo o incidente, o juiz fez o que era sua obrigação fazer, conheceu de questão de que tinha a obrigação de conhecer, pelo que evidentemente não cometeu qualquer nulidade processual, muito menos uma que torne a sua decisão igualmente nula. Se a decisão não era correcta e no caso o incidente devia ser admitido, a parte requerente tinha de interpor recurso dessa decisão, recurso que era de apelação, nos termos da última parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil, e cujo prazo de interposição era de 30 dias a contar da notificação da decisão a impugnar (artigo 638.º do Código de Processo Civil). No caso, não foi sequer interposto recurso do despacho de indeferimento do incidente, no prazo legal, pelo que o mesmo transitou em julgado. É conhecida a diferença entre nulidades processuais, que ocorrem quando é omitido um acto prescrito pela lei processual ou praticado um acto que aquela não admite, e as nulidades da decisão que são apenas aquelas que o artigo 615.º do Código de Processo Civil estipula de forma taxativa. Nem foi omitido qualquer acto processual (foi proferida decisão sobre o incidente), nem a decisão recorrida enferma de qualquer das nulidades previstas nesse preceito legal (tendo sido deduzido o incidente, o juiz não podia deixar de decidir se o admitia ou não, pelo que conheceu obviamente de questão de que tinha mesmo de conhecer, independentemente do mérito da decisão, que no caso era, aliás, indiscutível). Inexiste pois a nulidade apontada à decisão recorrida. IV. Fundamentação de facto: Para a decisão a proferir relevam os factos que constam do relatório. V. Matéria de Direito: O processo especial de prestação de contas está dividido em duas fases, distintas e sucessivas. Na primeira fase decide-se se o réu está obrigado a prestar contas e de que actos de administração deve prestar contas. Na segunda fase julgam-se as contas apresentadas. A segunda fase vem depois de na primeira terem sido decididas em definitivo as questões alegadas para defender que o demandado não tem a obrigação de prestar contas ou não tem essa obrigação em relação a todos os actos alegados pelo demandante. À segunda fase só se passa se tiver sido decidido que essa obrigação existe e em relação a que actos. O artigo 941.º do Código de Processo Civil define o objecto da acção de prestação de contas como sendo «o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se». Para alcançar essa finalidade, o artigo 942.º estabelece no n.º 1 que aquele que pretenda exigir a prestação de contas deve requer a citação do réu para, no prazo de 30 dias, as apresentar ou contestar a acção, sob cominação de não poder deduzir oposição às contas que o autor apresente. O n.º 3 estabelece que se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere decisão, imediatamente ou, se verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, depois de observar os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa. O n.º 4 prescreve que «da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo». Por fim o n.º 5 estabelece que sendo decidido «que o réu está obrigado a prestar contas, é notificado para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o autor apresente». Resulta destas normas que na petição inicial da acção de prestação de contas, o autor deve individualizar o fundamento do direito de exigir do réu a prestação de contas. Uma vez citado, o réu pode optar por não deduzir oposição; nesse caso, por não haver litígio sobre a existência da obrigação de prestar as contas requeridas, a acção passa directamente à fase subsequente da prestação de contas. O réu pode, pelo contrário, decidir contestar a obrigação de prestar contas; nesse caso, segue-se a tramitação dos n.ºs 3 a 5 do artigo 942.º. Para contestar a obrigação de prestar contas, o réu pode opor ao autor qualquer meio de defesa. O réu pode, por exemplo, arguir excepções dilatórias, defender que não existe nenhuma relação jurídica que o obrigue a prestar contas, sustentar que a relação jurídica alegada pelo autor existe mas não gera a obrigação de prestar contas, alegar que já prestou as contas tendo cumprido a obrigação correspondente. Nos termos do artigo 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum. Por isso, uma vez que toda a defesa deve ser exercida na contestação, nos termos do artigo 573.º do mesmo diploma, uma vez apresentada contestação fica precludida a arguição dos demais meios de defesa que o demandado podia opor à obrigação de prestar contas que lhe é exigida mas que não deduziu na contestação. Contestando o réu a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e após a resposta do autor ou o decurso do prazo para a resposta, o juiz deve ponderar se a decisão das questões suscitadas pelo réu deverá ocorrer de imediato ou seguindo os trâmites do processo comum. Da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe recurso de apelação, a interpor no prazo de 30 dias, o qual, sendo admissível, sobe nos próprios autos, com efeito suspensivo, isto é, o processo não passa à fase seguinte sem ficar definitivamente assente que existe a obrigação de prestar contas. Referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II - Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventario Judicial, 2024, pág. 412 e 413, o seguinte: «Tendo em conta a importância e a autonomia da primeira fase do processo especial de prestação de contas, que pode culminar com uma decisão que reconheça ou que negue a existência dessa obrigação, como condição necessária à efectivação das demais operações de natureza essencialmente material, a opção do legislador foi no sentido de prever especificamente a impugnação do que seja decidido nessa primeira fase, sem que exista motivo algum para limitar a possibilidade intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na resolução daquela questão de direito substantivo, da qual pode depender a posterior verificação de um saldo credor ou devedor. […] Verificada a obrigação do réu prestar contas, é fixado ao réu o prazo de 20 dias para as apresentar (notificação que não tem de ser pessoal, podendo ser feita na pessoa do mandatário judicial), sob pena de não lhe ser permitido contestar as que o autor apresente (nº 5). Tal prazo conta-se a partir do trânsito em julgado da decisão, tanto mais que o recurso de apelação que eventualmente seja admitido tem efeito suspensivo (n.º 4).» Ora, como consta do relatório, o tribunal a quo decidiu que a ré estava obrigada a prestar contas das rendas dos imóveis deixados por CC que estiveram arrendados entre 2009 e 2016. A ré não interpôs recurso dessa decisão, pelo que sobre essa questão se formou caso julgado nos autos, não sendo mais possível a parte suscitar e/ou o tribunal conhecer de qualquer questão que pudesse ter por efeito jurídico a inexistência ou a cessação da obrigação e prestar contas assim decidida. Por estas razões tudo quanto se defende nas conclusões I a IX, XIV a XIX e XX e XXI das alegações de recurso está coberto por anterior decisão com força de caso julgado e, por isso, extravasa o que é possível discutir no âmbito do julgamento das contas e/ou do recurso da decisão que julgou as contas, pelo que aqui não será apreciado sequer. Refira-se, no tocante à questão suscitada nas conclusões XIV a XIX, que a recorrente não tem razão na invocação do caso julgado da sentença homologatória da partilha. Na data em que essa sentença foi proferida e homologou o acordo dos interessados sobre a composição dos respectivos quinhões, as contas ainda não tinham sido apresentadas pela cabeça de casal pois que a sua apresentação só foi requerida vários anos depois, tendo sido decidido que a ré estava de facto obrigada a apresentar as contas. Por esse motivo, aquele acordo só pode ter abrangido os bens que se encontravam relacionados no inventário e não pode, evidentemente, ter incluído qualquer montante proveniente do saldo dessas contas que somente agora será julgado e fixado. Logo, a invocação do caso julgado impeditivo do julgamento das contas e do apuramento do respectivo saldo é totalmente desprovida de fundamento. Passíveis de ser conhecidas no âmbito deste recurso, restam, assim, as questões que correspondem às conclusões X a XIII das alegações de recurso. Nelas a recorrente impugna o julgamento das contas, sustentando que os contratos de arrendamento não geravam uma renda mensal de 310,00€ que permitisse receber em 90 meses rendas no valor de 27.957,59€, conforme foi decidido, sendo certo que o autor nenhuma prova produziu de que a ré recebeu esse valor de rendas que possa agora distribuir pelos herdeiros. Como já vimos, o n.º 5 do artigo 942.º do Código de Processo Civil estabelece que sendo decidido «que o réu está obrigado a prestar contas, é notificado para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o autor apresente». Todavia, esta é a única cominação prevista para a falta de apresentação das contas pelo réu. A norma não estabelece, por exemplo, que em consequência dessa falta se consideram aprovadas as contas que o autor vier a apresentar em substituição do réu devedor da apresentação das contas. O artigo 943.º do Código de Processo Civil regula os actos processuais que têm lugar quando o réu não apresenta as contas, estabelecendo no seu n.º 1 que, nesse caso, o autor pode apresentá-las, sob a forma de conta corrente (o n.º 4 diz que se as não apresentar também, então é o réu absolvido da instância). O n.º 2 prescreve depois que o réu não é admitido a contestar as contas apresentadas pelo autor, mas estas são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor. Daqui resulta que embora o réu não possa contestar as contas apresentadas pelo autor, o juiz não pode aprovar sem mais essas contas, designadamente considerando que as mesmas estão aprovadas por falta de contestação, antes tem, em qualquer caso, de diligenciar por obter as informações e realizar as averiguações convenientes para poder julgar as constas segundo o prudente arbítrio do julgador. Isso leva a considerar que, em boa lógica, embora não possa contestar as contas, o réu não está impedido de questionar se foram realizadas as diligências indispensáveis para julgar as contas e/ou se o julgamento das contas foi feito no prudente arbítrio. É por isso que essa questão pode aqui ser apreciada e decidida. O autor apresentou as contas indicando na receita as rendas, mas afirmando logo não ter em seu poder qualquer documento que ateste o valor das rendas. Recebida a conta corrente com as contas, o Mmo. Juiz a quo determinou a notificação do autor para identificar os imóveis arrendados e juntar os respectivos contratos de arrendamentos e os documentos que atestam as despesas. O autor veio informar que não tem documentos que comprovem as despesas indicadas, que só tem conhecimento de dois contratos de arrendamento que junta mas terá estado arrendado ainda outro imóvel, que não tem documentos comprovativos das rendas pagas. Na ocasião indicou testemunhas para serem ouvidas sobre a existência dos arrendamento e o montante das rendas. O Mmo. Juiz a quo proferiu de imediato decisão, em cuja fundamentação escreveu: «[…]No mais, tendo o requerente no artigo 26) do requerimento de 29/10/2023 especificado as despesas e receitas do arrendamento desses imóveis ao longo dos anos de Outubro de 2009 (CC faleceu em 29 de Setembro desse ano) a Março de 2017 (data da partilha), verifica-se que nenhum dos restantes interessados os colocou em causa ou impugnou. Acresce que não sendo o requerente cabeça de casal, não tendo por isso administrado ou representado a herança, compreende-se a dificuldade que foi reportando de juntar prova, designadamente documental, que demonstrasse as receitas e despesas, tendo inclusive por mais de uma vez, quando já lhe cabia a si apresentar as contas, requerido que a cabeça de casal o viesse fazer. Em face de todo o exposto, nos termos do artigo 945.º, 3, do CPC, nada mais resta ao tribunal senão aceitar os valores que apresenta, documentado que está o arrendamento de dois imóveis relacionados, dos quais resulta um apuro positivo de 27.957,59€.» Com todo o devido respeito, esta decisão parece precipitada. O apresentante das contas não é a pessoa que recebeu as rendas; os contratos de arrendamento parecem ter sido celebrados já em 1976 e 1997, respectivamente; não existem recibos de renda. Nesse contexto, não se vislumbra razão para aceitar sem mais os valores das rendas indicados na conta corrente e para os quais não é dada qualquer explicação e, sobretudo, não se vislumbra como possa ser dispensada a realização de mais diligências para determinar o valor das rendas pagas pelos inquilinos, designadamente a inquirição destes como testemunhas, conforme, aliás, foi requerido pelo autor aquando da informação da impossibilidade de juntar outros documentos. A afirmação de que como esses valores não foram colocados «em causa ou impugnados», «nada mais resta ao tribunal senão aceitar os valores» da conta corrente, não pode ser aceite. Desde logo, porque como se assinalou a ré não podia contestar as contas apresentadas pelo autor, mas essa circunstância não produz o efeito cominatório da aprovação das contas. Depois, porque o n.º 2 do artigo 943.º do Código de Processo Civil é claro no sentido de impor ao juiz, para que as contas possam ser julgadas no seu prudente arbítrio, o dever de diligenciar pela obtenção das informações e realizar as averiguações convenientes. Finalmente, porque estão em causa valores que são passíveis de serem apurados, designadamente ouvindo os depoimentos dos inquilinos para saber que rendas pagaram no período em causa, sendo certo que pela antiguidade dos arrendamentos os valores de rendas mencionados nos respectivos contratos não deverão ser iguais aos praticados nas datas relevantes, mas se ignora se e como foram actualizados entretanto, o que pode e deve ser apurado antes do julgamento das contas. Conforme o ora Relator já escreveu no Acórdão desta Relação de 09-10-2014, proc. 4509/04.9TVPRT.P1, in www.dgsi.pt, devendo o julgamento das contas apresentadas pelo autor na sequência da sua não apresentação pelo réu, orientar-se pelo critério do prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes: «Escreveu Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. I, pág. 322, que para o arbítrio no julgamento das contas poder ser prudente e avisado, é lícito ao juiz colher as informações que entender convenientes; mandar proceder às averiguações que considerar úteis; incumbir pessoa idónea de dar parecer sobre as contas. O mesmo Autor sublinhou, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 254, que a lei dá ao juiz um poder latitudinário, mas não um poder discricionário. No julgamento das contas o juiz move-se com grande liberdade e largueza; mas não pode emitir a decisão que lhe apetecer; há-de lavrar a sentença que, em seu prudente arbítrio, corresponder ao estado dos autos. Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 135, defende que o prudente arbítrio do julgador tem de ser entendido como pressupondo uma apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e de oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo (a justa composição do litígio com respeito pelos direitos e garantias processuais das partes). Como é óbvio, prudente arbítrio não é livre arbítrio, não só pela razão de que a prudência pressupõe um cuidado e uma atenção que a plena liberdade de actuação recusa, mas essencialmente pela razão de que nenhuma decisão judicial pode ser proferida com base no livre arbítrio. Cremos também que não se deve confundir prudente arbítrio com equidade. O juízo de equidade contrapõe-se ao juízo de legalidade, sendo por isso ambos conceitos que nos dizem se o juiz deve aplicar a legalidade estrita ou procurar a solução jurídica ajustada ao caso concreto, afastando-se, se necessário, da solução legal se tal for necessário para alcançar uma solução equidistante, ajustada, modelada pelas particularidades do caso. Já o juízo de prudente arbítrio reporta-se à apreciação da materialidade subjacente e, portanto, tem mais a ver com o apuramento dos factos do que propriamente com a aplicação do direito aos mesmos. Assim, para decidir se determinada despesa ou receita foi praticada ou recebida, o juiz deve actuar com prudente arbítrio, mas já será de acordo com critérios de legalidade estrita que lhe caberá decidir se a mesma, uma vez averiguada a verba, está compreendida no âmbito da obrigação. Cremos pois que o prudente arbítrio a que a lei se reporta significa essencialmente que perante matéria que pode ser difícil de apurar, em que é relativamente frequente que não haja documentação de suporte e em que, de acordo com as regras da experiência, é possível admitir com relativa facilidade a ocorrência de receitas ou despesas de determinada índole mesmo que não documentadas por serem comuns no exercício da administração, o juiz deve ser ponderado, razoável, cuidadoso, não especialmente exigente ou condescendente, usar abundantemente as regras da experiência e os ensinamentos da vida e procurando com elas suprir as dificuldades probatórias inseparáveis da matéria em jogo, abstraindo das regras do ónus da prova e procurando aproximar o mais possível a decisão daquilo que é normal que aconteça, sem submeter a posição de qualquer das partes a riscos especiais. Não lhe cabe decidir como quer, livremente e sem critério que não o próprio, cabe-lhe decidir fazendo especial apelo a regras de experiência, à prudência, à razoabilidade.» No mesmo sentido pronunciam-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, loc. cit., pág. 415, citando precisamente esse Acórdão, e acrescentando: «O juiz não tem necessariamente de aprovar as contas apresentadas pelo autor, antes profere o veredicto que tiver por justo (“julgadas segundo o prudente arbítrio”). Os poderes-deveres instrutórios previstos no nº 2 mostram a preocupação legal de que as contas sejam julgadas com base em elementos dotados de um mínimo de consistência. O prudente arbítrio não pressupõe “certeza”, sob pena de não haver 1ugar a tal tipo de julgamento, apelando mais a um juízo em que se ponderem, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva a menor margem de erro. […] o juiz começa por analisar as diferentes verbas de receita e de despesa, … se algumas dessas verbas, segundo a sua experiência, lhe provocam reparos ou suscitam dúvidas quanto à sua existência e quantificação … cabe ao juiz reunir os elementos de que precisa para se esclarecer, em cumprimento do princípio do inquisitório estipulado nos arts. 943º, nº 2, e 411º. Assim, poderá o juiz designadamente: a) obter informações e/ou documentos juntos de terceiros (arts. 417º, nº 1, 432º e 436º); b) obter informações e/ou documentos junto das partes (arts. 417º, nº 1, e 7º, nº 1); c) nomear perito para lhe dar parecer sobre parte ou todas as verbas inscritas pelo autor (arts. 467º, nº 1, e 360º, nº 4); d) convidar o autor e o réu a indicarem testemunhas sobre as verbas (arts. 6º, nº 1, 411º e 943º, nº 2). Note-se que nº 2 não estabelece qualquer restrição quanto aos meios prova, sendo a prova testemunhal um meio admissível para esclarecer e habilitar o juiz a decidir. […].» Nessa medida, não havendo na decisão recorrida qualquer justificação plausível (para além da falta de impugnação que, como vimos, não tem cabimento processual) para aceitar o valor das rendas apresentado pelo autor sem qualquer documento que o comprove e/ou para prescindir da prova indicada pelo autor para demonstrar o valor das rendas na falta de recibos de renda ou outro documento que comprove o pagamento desta, a decisão recorrida deve ser revogada, ordenando-se ao tribunal a quo que proceda às diligências instrutórias convenientes para apurar o valor das rendas no período relevante, procedendo ao julgamento das contas apenas depois e em função do resultado dessas diligências. VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, ordenando que a 1.ª instância realize as diligências instrutórias convenientes para apurar o valor das rendas no período abrangido pela prestação das contas, se necessário ouvindo os inquilinos em depoimento sobre as rendas que pagaram, procedendo só depois ao julgamento das contas à luz dos resultados dessas diligências. Custas do recurso pelo autor. * Porto, 20 de Fevereiro de 2025.* Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 874)Os Juízes Desembargadores José Manuel Correia Isabel Silva [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |