Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
131/21.3GDSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA TEIXEIRA
Descritores: RECURSO DO ASSISTENTE SOBRE A MEDIDA DA PENA
INTERESSE EM AGIR/RECORRER
LEGÍTIMA DEFESA E RETORSÃO
Nº do Documento: RP20241107131/21.3GDSTS.P1
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFRÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A questão de saber se o assistente pode recorrer (no exercício de uma faculdade que a lei diretamente lhe confere (cfr. artigo 69.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal), de forma autónoma, desacompanhado do Ministério Público (e exclusivamente), quanto «à espécie e medida da pena aplicada», ficou decidida desde a publicação do então denominado Assento 8/99, de 30 de Outubro de 1997.
II - Não demonstrando o assistente – para além da defesa de interesses pessoais, que não podem ser considerados na determinação da espécie e medida da pena a ser imposta neste âmbito - qualquer interesse concreto e próprio relevante que permita afirmar que a decisão recorrida foi proferida contra ele, falta-lhe o interesse em agir/recorrer.
III - Legítima defesa e retorsão são realidades jurídicas incompatíveis, pois enquanto na primeira há defesa relativamente a uma agressão iminente ou em execução, na retorsão o agente procura fazer represália, obter vindicta, tirar esforço, replicar.
IV - Quando o agente “responde” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor), empregando a força física, estamos no âmbito da retorsão e não da legítima defesa, fundando-se a possibilidade de dispensa da pena numa diminuição da ilicitude da conduta e da culpa daquele que responde.

(Da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 131/21.3GDSTS.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de ...- J 1)

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

1. No Juízo Local Criminal de ..., foram os arguidos AA, BB e CC submetidos a julgamento em processo comum por Tribunal Singular e a final foi proferida sentença que decidiu:

«- absolvo a arguida AA do crime de ofensa à integridade física pp pelo artº 143º, nº 1, do CP, por que foi acusada,

- absolvo a arguida AA do crime de dano simples pp pelo artº 212º, nº 1, do CP, por que foi acusada,

- Condeno a arguida CC como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples pp pelos artºs 143º, nº 1, CP na pena de CENTO E CINQUENTA dias de multa;

- Condeno o arguido BB como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples pp pelos artºs 143º, nº 1, CP na pena de CENTO E CINQUENTA dias de multa;


*

- Condeno a arguida AA pela prática de dois crime de injúria pp pelo artº 181º do CP na pena de cinquenta dias de multa para cada crime, sendo que em cúmulo das mesmas, a pena única de cinquenta dias de multa à taxa diária de seis euros, no montante global de trezentos euros;

- Condeno a arguida CC pela prática de um crime de injúria pp pelo artº 181º do CP na pena de setenta dias de multa;

- Condeno o arguido BB pela prática de um crime de injúria pp pelo artº 181º do CP na pena de setenta dias de multa;

- Operando cúmulo jurídicos das penas parcelares, condeno a arguida CC na pena única de DUZENTOS DIAS DE MULTA À TAXA DIÁRIA DE OITO EUROS, no montante global de mil e seiscentos euros;

- Operando cúmulo jurídicos das penas parcelares, condeno o arguido BB na pena única de DUZENTOS DIAS DE MULTA À TAXA DIÁRIA DE OITO EUROS, no montante global de mil e seiscentos euros;


***

Parte cível

- Quanto ao pedido de indemnização civil, julgo manifestamente no que concerne ao crime de dano e de ofensa à integridade física simples, improcedente por não provado o pedido deduzido pelos demandantes CC e BB; absolvendo-se do pedido a demandada AA;

- Julgo parcialmente procedente, por provado, o pedido indemnizatório deduzido pelos assistentes/demandantes BB e CC, condenando a demandada AA a pagar, a título de danos não patrimoniais, a quantia global de trezentos euros, para cada um, quantia acrescida de juros contados da presente sentença até integral pagamento; absolvendo-se do demais peticionado.

- Julgo parcialmente procedente, por provado, o pedido indemnizatório deduzido pela assistente/demandante AA, condenando os demandados CC e BB a pagar à demandante em regime de solidariedade, a título de danos não patrimoniais, a quantia global de três mil euros, quantia acrescida de juros contados da presente sentença até integral pagamento; absolvendo-se do demais peticionado.

- Condeno os arguidos no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça em 3 (três) UC´s para cada (cf. artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º9 do Regulamento das Custas Processuais). (…).»


*

2. Inconformados, vieram os arguidos interpor recurso tendo extraído da respetiva motivação as seguintes conclusões:

2.1. Da arguida AA:

« I. O presente recurso tem por fundamento a discordância da Recorrente com os seguintes segmentos decisórios sobre matéria de facto da Sentença proferida:

a) A condenação da Recorrente pela prática de dois crimes de injúria;

b) A improcedência parcial do pedido indemnizatório deduzido pela ora Recorrente, contra os demandados CC e BB.

II) A sentença em crise deu como provado, que:” quando a arguida AA foi agredida nos termos descritos na acusação, e quando saia do local dirigiu-se aos ofendidos e disse-lhes “ ladrões, filhos da puta, és um corno”, tendo agido de livre vontade e com consciência da censurabilidade da sua conduta e que ofendia os assistentes na sua honra e consideração.”

III) Da fundamentação constante da sentença, quanto a este tema, conclui-se que o Tribunal recorrido apoiou-se, para tal decisão, nos seguintes elementos:

(*Sublinhados nossos)

a) “A arguida CC prestou declarações, referindo ter ouvido muito barulho a baterem-lhe com violência na sua porta e que a AA logo lhe diz corno, filho da puta, ladrão. ...”

b) “DD, vizinha, depois de ouvir barulho na porta, referiu que vê as arguidas a discutirem e depois desce o BB, tendo ouvido a AA a dizer es um corno, filho da puta. Não viu ninguém bater em ninguém e que agora vejo arranhões na porta que não via.”

c) “EE, sobrinha da arguida AA, ouviu falar do ouro, que a AA, sabendo da entrega do ouro aos arguidos, foi a casa destes. Acompanhou a AA a casa dos arguidos, só tendo visto a sua tia com uns óculos na mão e que esta quando saiu chamou nomes aos arguidos.”

d) “Ponderou-se as declarações dos arguidos CC e BB e bem assim de DD para a formação da convicção dos factos descritos na acusação particular que se deram por provados, bem como o relatado por FF que sendo amiga da AA, referiu ouvi muito barulho mas não me lembro do que foi dito, o que denota que também a arguida AA terá naturalmente atenta a animosidade instalada injuriado os arguidos tal como estes referem.”

IV. A Recorrente terá todavia de discordar com a apreciação efetuada à matéria de facto, porquanto considera que a prova produzida deveria ter conduzido a uma decisão de absolvição do crime de injúrias de que vinha acusada.

V. É que, a fundamentação identificada em III a): “A arguida CC prestou declarações, referindo ter ouvido muito barulho a baterem-lhe com violência na sua porta e que a AA logo lhe diz corno, filho da puta, ladrão. ….” Assenta na hipótese de as declarações desta arguida serem verdadeiras.

VI. Considera-se todavia que as declarações da arguida CC representam um exemplo típico de falta de verdade e falsas declarações e que não podem merecer qualquer credibilidade na apreciação do Tribunal.

VII. O Tribunal deveria ter sopesado o facto de a arguida CC, assim como o arguido BB, terem prestado declarações onde, sem qualquer vergonha nem pudor, após juramento e advertência legal da possibilidade de incorrerem num crime de falsas declarações, afirmaram, perentoriamente, perante o Tribunal e perante o Magistrado do Ministério Público, que nunca “encostaram um dedo” sobre a Recorrente:

VIII. Quando, de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento resultou totalmente o oposto, o que levou aliás à condenação de ambos por crime de ofensa à integridade física simples.

IX. Cumpre ainda salientar que a arguida CC refere nas suas declarações que a Recorrente teria proferido as injúrias que lhe vêm apontadas quando estava na porta da casa dos arguidos, já depois de uma discussão, antes de o Arguido BB;

X. Foi também essa a versão relatada pelo arguido BB.

XI. Todavia, a sentença considerou que a arguida CC declarou que a Recorrente proferiu as injúrias assim que a porta foi aberta por aquela CC.

XXII. Não obstante a Recorrente discorde o facto de ser dado como provado que a mesma proferiu expressões injuriosas, não pode aceitar que se considere, apoiado nas declarações dos arguidos, que as alegadas injúrias ocorreram logo à abertura da porta por parte dos Arguidos à recorrente, porque nem os próprios arguidos afirmaram tal.

XXIII. Tal facto demonstra apenas a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal recorrido.

XIV. Quanto ao segmento de fundamentação que afirma que “DD, vizinha, depois de ouvir barulho na porta, referiu que vê as arguidas a discutirem e depois desce o BB, tendo ouvido a AA a dizer es um corno, filho da puta. Não viu ninguém bater em ninguém e que agora vejo arranhões na porta que não via.”,

XV. Realce-se que esta testemunha DD é a única (além dos arguidos CC e BB), que afirmou ter ouvido a Recorrente a injuriar os Arguidos;

XVI. Considera-se, todavia, que o Tribunal recorrido deveria ter questionado a veracidade das declarações desta testemunha DD, até mesmo no que se refere à sua presença ali.

XVII. É que, conjugando o depoimento desta testemunha com os demais produzidos em audiência de julgamento e sobretudo, com as regras da experiência comum, não nos parece que o mesmo fosse de todo apto para formar uma convicção seria acerca do cometimento, por parte da Recorrente, da prática do crime de injúrias.

XIII. É no mínimo inusitado que a testemunha em questão afirme que, estava dentro da casa dos Arguidos BB e CC, que ouviu bater à porta e que, a partir daí, não terá ouvido ou visto mais nada, quando, simultaneamente, refere que saiu daquela casa porque a filha dela – que segundo a mesma estaria no apartamento que se situa no andar de baixo ao dos Arguidos – estava a gritar.

XIX. Dir-se-á que as mais elementares regras da experiência comum ferem de impossibilidade tal facto.

XX. Do depoimento desta testemunha apenas de pode concluir, com certeza, que a ter estado efetivamente no local optou por, deliberadamente, ocultar uma série de factos que poderiam ser essenciais para a descoberta da verdade, apenas porque eram desfavoráveis aos arguidos BB e CC;

XXI. É desprovido de qualquer sentido e realidade que, como alega esta testemunha, esta tenha saído pela porta onde estariam naquele momento a Recorrente e a arguida CC e não tenha visto qualquer agressão de uma parte ou outra mas, essencialmente, que não tenha ouvido qualquer palavra a ser proferida entre as duas;

XXII. Para depois, rematar dizendo que ouviu apenas proferir as palavras “És um filho da puta, és 1 corno”, endereçada ao arguido BB e que “Devia ser a D. AA” a proferir tais palavras, porque era a única que estava nas escadas.

XXIII. O facto de esta testemunha reiterar, por diversas vezes, que não havia mais ninguém nas escadas comuns do prédio naquele momento, além da Recorrente, demonstra que o depoimento desta testemunha não é credível.

XXIV. Tal versão é contrariada pelo depoimento da testemunha FF que acompanhou a Recorrente desde o primeiro momento em que esta decidiu se dirigir a casa dos arguidos CC e BB;

XXV. E pelo depoimento da testemunha GG.

XXVI. Testemunhas às quais o Tribunal conferiu plena credibilidade, como resulta explanado na sentença.

XXVII. Assim, de toda a prova produzida em sede de audiência e aqui reproduzida, conjugadas com as regras de experiência comuns, apenas se poderia concluir que o depoimento da testemunha DD não é apto para formar a convicção que a Recorrente tenha dirigido aos arguidos expressões injuriosas.

XXVIII. Ainda que se valorizasse o depoimento de tal testemunha (no que obviamente não se concede mas que aqui se coloca como mera hipótese de raciocínio), daqui teria de resultar provado que tais injúrias foram dirigidas apenas ao arguido BB e não à arguida CC, uma vez que foi isso que esta testemunha referiu.

XIX. E, em tal hipótese, tal valoração positiva do depoimento daquela testemunha teria então de conduzir à condenação da Recorrente pela prática de um crime de injúrias e não de dois.

XX. Quanto ao fundamento que levou à condenação da Recorrente e identificado supra no ponto III c) destas conclusões: “EE, sobrinha da arguida AA, ouviu falar do ouro, que a AA, sabendo da entrega do ouro aos arguidos, foi a casa destes. Acompanhou a AA a casa dos arguidos, só tendo visto a sua tia com uns óculos na mão e que esta quando saiu chamou nomes aos arguidos.”

XXI. Impõe-se a reapreciação da gravação do depoimento desta testemunha para se aferir que estamos aqui perante um erro notório na apreciação da prova produzida.

XXII. Pois que o que esta testemunha referiu, foi que foram os arguidos CC e BB que “chamaram nomes” à Recorrente e não o contrário, como resulta da fundamentação da sentença em crise.

XXIII. Ao contrário do que resulta plasmado na sentença em crise, nunca a testemunha EE afirmou ter visto a sua tia, aqui Recorrente, a chamar nomes aos arguidos BB e CC.

XXIV. Finalmente e quando à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto identificada supra sob o ponto III d): “…, bem como o relatado por FF que sendo amiga da AA, referiu ouvi muito barulho mas não me lembro do que foi dito, o que denota que também a arguida AA terá naturalmente atenta a animosidade instalada injuriado os arguidos tal como estes referem.”

XXV. Dir-se-á que se trata de uma mera conclusão, sem qualquer elemento adicional que a fundamente e violadora do princípio in dúbio pro reo.

XXVI. Devendo assim ser eliminada da fundamentação da sentença.

XXVI. A sentença proferida deve assim ser revogada, na parte em que condena a ora Recorrente pela prática de dois crime de injúria;

XXVII. Ou, na hipótese de os motivos de discórdia quanto a tal condenação, aqui exarados pela Recorrente, não merecerem a concordância deste Digno Tribunal da Relação, a ser considerado provado que a Recorrente praticou tal crime (facto no qual não se concede mas que aqui se coloca como mera hipótese de raciocínio), a Recorrente apenas poderá ser condenada na prática de um crime de injúrias e não dois, uma vez que a única testemunha que depôs quanto a estes factos afirmou que as injúrias foram endereçadas, exclusivamente, ao arguido BB.

XXVIII. Quanto à improcedência parcial do pedido indemnizatório deduzido pela ora Recorrente, contra os arguidos CC e BB, na parte em que peticionou, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 500,00 de cada um daqueles arguidos, referentes ao valor de aquisição de óculos para substituir os que ficaram danificados durante as agressões,

XXIX. Discorda-se da decisão vertida na sentença que decidiu julgar tal pedido improcedente por manifesta falta de prova.

XXX. O facto de os óculos da Recorrente terem caído no chão durante as agressões de que foi vítima, foi devidamente comprovado através do depoimento da testemunha FF;

XXXI. A Recorrente também mencionou esse facto nas suas declarações.

XXXII. E a própria sentença deu tais factos como provados.

XXXIII. A Recorrente juntou aos autos com a sua contestação, prova documental a atestar a irreparabilidade dos seus óculos bem como a fatura de aquisição dos óculos de substituição, no valor de € 830,50 (oitocentos e trinta euros e cinquenta cêntimos)

XXXIV. Dúvidas não podem resultar quanto à causalidade adequada a estabelecer entre a quedas dos óculos no local das agressões e o facto de estes terem ficado arranhados, danificados;

XXXV. Pelo que a Recorrente considera que deveria ter sido dado como provado a verificação deste dano patrimonial, que resultou diretamente dos atos ilícitos perpetrados pelos arguidos CC e BB,

XXXVI. E, consequentemente, deveriam os arguidos terem sido condenados no pagamento de indemnização à Recorrente, em montante que lhe permitisse restituir o valor despendido para a aquisição de novos óculos.

Nestes termos e noutros melhores de direito que V/Exas. doutamente determinarão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

- Ser a sentença proferida substituída por outra que, face à reapreciação da prova produzida nos termos aqui enunciados:

a) Absolva a Recorrente dos crimes de injúria;

b) Condene os Arguidos CC e BB, solidariamente, no pagamento à Recorrente de danos patrimoniais, em valor nunca inferior a € 830,50 (oitocentos e trinta euros e cinquenta cêntimos).

Com o que V/Exas. farão, devida justiça!»


*

2.2. Dos arguidos BB e CC:

«1. Na douta sentença recorrida, o Tribunal a quo deu como provado, quanto à douta acusação pública, que: “HH, nascida a ../../1932, é mãe de AA (doravante designada apenas por “AA”) e no mês de Junho de 2021 encontrava-se, a seu pedido, aos cuidados de CC (doravante designada apenas por “CC”) e de BB (doravante designado apenas por “BB”), sendo estes quem lhe forneciam as refeições, efetuavam a sua higiene pessoal e limpeza da habitação.

“No dia 10 de Junho de 2021, pelas 18h30m, AA deslocou-se à residência de CC e de BB, sita na Rua ..., ..., ..., por ter ouvido comentar que a sua mãe tinha entregue a estes uma pulseira e um anel em ouro.

“AA começou com as mãos a bater com bastante força na porta de entrada da referida residência.

“Ora, depois da porta ter sido aberta, gerou-se uma discussão entre os intervenientes, sendo que no decorrer de tal discussão:

- CC desferiu com a palma da mão uma pancada na face de AA;

- BB agarrou com as mãos o cabelo de AA, arrancando-lhe partes do cabelo, e com a mão fechada vibrou-lhe pancadas na cabeça e tronco.

“Como consequência necessária e direta destas agressões AA sofreu as seguintes lesões:

- Crânio: área de alopecia traumática, com pontuado hemorrágico disperso a nível da pele, com 3cm de diâmetro, localizada na região parieto-temporal esquerda;

- Pescoço: escoriação com 1 cm de diâmetro, em vias de cicatrização, localizada na face posterior do pescoço;

- Tórax: equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 2 cm de maiores dimensões, localizada na região mamária esquerda;

- Membro superior direito: equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 3 cm de maiores dimensões, localizada no terço superior da face antero-medial do braço;

- Membro superior esquerdo: equimose de coloração roxa amarelada, com 4cm x 2 cm de maiores dimensões localizada na região escapular. Múltiplas escoriações lineares, em vias de cicatrização, a maior das quais com 8 cm de comprimento dispersas por toda a região escapular e terço superior da face posterior do braço;

- Membro inferior direito: equimose de coloração roxa amarelada, com 8 cm x 5 cm de maiores dimensões, localizada no terço médio da perna.

“Estas lesões determinaram sete dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho.

“CC agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de AA.

“BB agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de AA.

“Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

Tendo o Tribunal a quo, na douta sentença recorrida, dado como não provado, relativamente à douta acusação pública:

“- que CC e de BB forneciam diariamente refeições a HH.

“- que AA, de modo não concretamente apurado, tenha riscado a madeira do lado exterior da porta e que com as mãos apertou com força o pescoço de CC, provocando-lhe dor;

“O valor dos danos causados por AA na porta da residência de CC e de BB ascende a 369,00 €.

“AA atuou de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de desfigurar a citada porta e de molestar o corpo de CC.”

2. As contradições insanáveis da sentença, por omitir partes significativas dos depoimentos prestados, conduzirão à obrigação de absolver os Recorrentes, desde logo porque, a Recorrida começou por se remeter ao silêncio, deixando convenientemente o seu depoimento para o fim dos restantes depoimentos, pese embora seja um direito que assiste a qualquer arguido, no mínimo indicia um comportamento cauteloso de não comprometimento.

3. Se é verdade que o direito ao silêncio exercido durante a audiência pelos arguidos, quanto a factos que lhe vêm imputados, não os pode prejudicar, não é menos verdade que, no caso concreto, também não os poderá beneficiar. Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, II volume, pág. 359, em anotação ao art. 343º, não se deve confundir “desfavorecer” com o “não favorecer”. A confissão, se espontânea, beneficia a posição do arguido. E se do silêncio do arguido resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer – e de que, porventura, só ele tem conhecimento – então poderá esse silêncio nitidamente desfavorecê-lo.

4. Da concatenação do depoimento dos Recorrentes e das testemunhas DD e EE, a matéria de facto assente e provada deverá ser a seguinte:

● No dia 10 de Junho de 2021, pelas 16 horas, CC e BB encontravam-se em sua casa na companhia de DD que os foi visitar;

● No mesmo dia a arguida AA deslocou-se na companhia da sobrinha EE a casa da sua mãe - HH – e tomou conhecimento de que esta havia oferecido aos arguidos BB e CC duas peças em ouro;

● Na posse dessa informação a AA deslocou-se a casa do BB e da CC com o intuito de reaver os referidos objetos;

● Ali chegada, e ao invés de tocar à campainha a arguida AA desferiu murros e deu pontapés contra a porta dos arguidos BB e CC;

● Quando a CC, abriu a porta foi imediatamente agredida pela AA, que lhe apertou e arranhou o pescoço;

● Ato contínuo a CC tentou empurrar a AA para fora da sua casa;

● Neste momento a DD, desceu as escadas para ir em auxílio da filha que começou a gritar- não se tendo cruzado com mais nenhuma pessoa no percurso;

● A arguida AA gritava contra os arguidos: ladrões, filhos da puta, és um corno;

● Os gritos da AA ouviram-se por todo o prédio;

● A sobrinha da arguida AA quando ouviu a tia a gritar foi à porta da casa da D. HH, mas a tia AA já estava a descer para casa da mãe.

5. Os demais depoimentos, designadamente os das testemunhas FF, GG e II, devem ser desconsiderados, porquanto, encontram-se em contradição entre si e com os prestados pelas duas testemunhas supra referidas.

6. Não obstante o Tribunal a quo ter dado como não provado que “O valor dos danos causados por AA na porta da residência de CC e de BB ascende a 369,00 €.”, este facto devia ter sido dado como provado, tendo tal resultado dos depoimentos das testemunhas DD e JJ.

7. No que concerne à fundamentação de direito, resulta da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que: “Vêm os arguidos acusados pela prática na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples pp pelo art. 143º do Código Penal. “Foi imputada à arguida AA um crime de dano “De acordo com o art. 212º/1 “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. “Foi imputada a todos os arguidos o crime de injúria. “Dispõe o art. 181º, no seu n.º 1 do CP que: “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”; “Tendo-se em atenção a factualidade dada como provada, não existem dúvidas quanto ao cometimento pelos arguidos do crime de injúria: “Os arguidos CC e BB dirigindo-se à assistente AA disseram-lhe: “És uma filha da puta …”; “Sua lambona”; “”; “És uma chupista, andas a chupar o dinheiro da tua mãe”.”

8. Os depoimentos exaustivamente transcritos das testemunhas da Recorrida, EE, FF, GG e EE apresentam versões completamente díspares dos factos ocorridos, pelo que devem ser claramente desconsiderados e desvalorizados - não resultou provado que os Recorrentes proferiram qualquer expressão injuriosa contra a Recorrida - pelo que os Recorrentes deveriam ter sido absolvidos da prática de tal crime.

9. O Tribunal a quo considerou ainda que: “Também quando a arguida AA foi agredida nos termos descritos na acusação, e quando saia do local dirigiu-se aos ofendidos e disse-lhes “ladrões, filhos da puta, és um corno”, tendo agido de livre vontade e com consciência da censurabilidade da sua conduta e que ofendia os assistentes na sua honra e consideração. “Tendo em conta os factos apurados, não restam dúvidas quanto ao carácter injurioso, das palavras proferidas pela arguida. Tais expressões são suscetíveis de ferir a honra daquele que é destinatário de tais insultos. “Quanto ao elemento subjetivo, para que alguém cometa o crime de injúria é necessário que haja com dolo, bastando para tal que “o agente atue de forma a violar o dever de abstenção implicitamente imposto nas normas incriminatórias respetivas, levando a cabo a conduta ou ação nelas previstas (...), sabedor da genérica perigosidade imanente, sem que seja necessária a previsão do perigo (concreto).”. – Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra acima referido.

10. No que concerne ao crime de injúria praticado pela Recorrida contra os Recorrentes resultou mais do que provada a prática do mesmo, com a ressalva que deveria ter sido feita pelo Tribunal a quo, que tendo tais injúrias sido proferidas na casa de morada dos arguidos, que habitam o prédio há mais de 40 anos, na presença de vizinhos e amigos, reveste natureza ainda mais gravosa, pelo que a arguida deveria ter sido mais severamente condenada!

11. Com exceção do relatório do GML, que para este particular vale o que vale, ou seja, muito pouco… o único facto que não foi controverso da narrativa das testemunhas que nos merecem credibilidade foi que ambas as arguidas se agrediram, sendo que, num primeiro momento, foi a Recorrida quem agarrou e arranhou o pescoço da Recorrente e esta, para se defender, terá empurrado a Recorrida, pelo que poderia e deveria ter sido equacionado o comportamento da Recorrente como legítima defesa, face à forma inusitada e de má-fé com que a Recorrida acedeu à casa da Recorrente que se encontrava desprotegida e julgando que algo de muito grave havia acontecido no prédio e que, mal abriu a porta, foi alvo de uma tentativa de estrangulamento. Aqui deveria ter sido valorado o depoimento da Recorrente, designadamente quando refere que foi ela quem primeiro se deslocou à GNR para apresentar queixa contra a Recorrida e que só não a formalizou por pedido misericordioso da D. HH, mãe da Recorrida, tanto mais que, quer a D. HH (impossibilitada de depor em julgamento) quer o irmão já falecido da Recorrida prestaram declarações na GNR, como testemunhas, em sentido contrário ao declarado pela Recorrida.

12. O Tribunal a quo considerou que, “No que concerne ao crime de dano, improcede naturalmente a acusação pública, por falta de prova e dos seus elementos típicos danificar coisa alheia”; porém, resultou do depoimento dos Recorrentes e da testemunha DD a prática deste crime, que, de passagem, também foi concretizado na sentença quando se lê “AA começou com as mãos a bater com bastante força na porta de entrada da referida residência,” pelo que a Recorrida deveria ter sido condenada por este crime, mais uma vez, de forma exemplar, porque não é um dano qualquer, é um dano na porta de uma residência, com o intuito de alcançar os arguidos e de os privar do seu direito ao sossego, bem estar e liberdade.

13. A Recorrida deveria, assim, ter sido condenada pelo crime de ofensa à ntegridade física contra a Recorrente, bem como pelo crime de dano e de forma muito mais severa pelo crime de injúria aos Recorrentes.

14. Os Recorrentes deverão ser absolvidos da prática de qualquer crime, porque resultou provado que a Recorrente não iniciou a contenda, apenas agiu com intenção de se defender, razão pela qual se afasta a aplicação do artigo 32.º do Código Penal. Por esse motivo, o Tribunal a quo deveria entender que inexiste qualquer causa de justificação da conduta adotada pela “alegada Ofendida”; todavia, e sendo a conduta da Recorrente considerada ilícita, importa considerar que houve lesões recíprocas, tendo-se logrado provar que a Recorrida foi quem agrediu primeiro. Com efeito, as arguidas envolveram-se em confronto físico, do qual resultaram lesões para ambas. Os requisitos cumulativos previstos no artigo 74.º, n.º 1 do Código Penal são: - que a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas; - que o dano tenha sido reparado; - que à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção. No caso concreto, mostram-se preenchidos todos os pressupostos a que alude o citado normativo, porquanto a ilicitude e culpa da Recorrente foram diminutas [atendendo ao tipo de agressão desferida e ao contexto em que a mesma ocorreu], não foram invocados danos que mereçam tutela penal e não existem razões de

prevenção que se oponham à dispensa de pena [atente-se que os arguidos não têm averbados quaisquer antecedentes criminais].

15. O Tribunal a quo considerou ainda que: “No que concerne ao PIC dos demandantes deduzido a fls. 249, por manifesta falta de prova do facto típico de dano e de ofensa à integridade física simples da arguida AA, nos termos supra referidos, não se verificando os pressupostos previstos no artº 483º do CC, improcede o pedido. “No demais, considerando aos factos provados – crime de injúria da arguida AA e danos sofridos pelas demandantes, apelando aos ensinamentos supra descritos, fixo em equidade, a indemnização a pagar pela demandada AA aos demandantes a quantia de trezentos euros para cada um dos arguidos”; sendo chocante a disparidade da aplicação dos princípios/valores ao caso concreto!

Como é que, na mesma sentença, com arguidos com condições socioeconómicas idênticas, da mesma idade, se consegue arbitrar duas indemnizações tão díspares, sendo certo que resulta dos autos que os Recorrentes, cuidadores da mãe da Recorrida, D. HH, estavam no sossego da sua casa, encontrando-se o Recorrente a recuperar de uma delicada cirurgia a um cancro da próstata, foram importunados por uma pessoa, nas palavras da Recorrente, “que trazia o diabo consigo”, que agrediu a Recorrente, danificou a porta da casa destes e ainda os injuriou e são indemnizados em € 300,00 cada um?

16. Houve, assim, no que diz respeito ao direito relativo à alegada prática dos crimes em causa, bem como aos pedidos de indemnização civil, uma errada interpretação da lei por parte do tribunal a quo.

17. Não obstante os doutos ensinamentos vertidos ao longo da douta sentença, os mesmos, salvo melhor, não foram devidamente aplicados, ressaltando, de forma límpida, do texto da douta sentença, que não teve o Tribunal a quo ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtendo convicção plena, subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados aos arguidos/recorrentes e que motivaram a sua condenação, apreciando a prova precisamente em violação das regras da experiência comum.

Termos em que, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue o presente recurso provado e procedente e, em consequência, a Recorrida condenada em conformidade, será feita JUSTIÇA

M SE FAZENDO JUSTIÇA.»


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3. Após a admissão dos referidos recursos, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso interposto pelos arguidos CC e BB, pugnando pelo seu não provimento.

*

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral emitiu parecer, no qual acompanhou a argumentação da resposta apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, tendo ainda questionado a legitimidade dos arguidos/assistentes CC e BB para recorrer da medida da pena de multa em que a arguida AA foi condenada.


*

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.

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Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
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Questões prévias:

Os recorrentes, arguidos e assistentes nos autos, CC e BB, no recurso que interpuseram, além do mais, pedem que a pena de multa à qual a recorrida, AA, foi condenada pela prática de dois crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181º do Código Penal, [cinquenta dias de multa para cada crime, sendo que em cúmulo das mesmas, a pena única de cinquenta dias de multa à taxa diária de seis euros, no montante global de trezentos euros] seja agravada.

Para tanto alegam: «… tendo tais injúrias sido proferidas na casa de morada dos arguidos, que habitam o prédio há mais de 40 anos, na presença de vizinhos e amigos, reveste natureza ainda mais gravosa, pelo que a arguida deveria ter sido mais severamente condenada!»

Por seu lado, o Ministério Público conformou-se com esta decisão.

Importa, desde já, afirmar que, nesta parte, o recurso não é admissível, por falta de interesse em agir por parte dos recorrentes.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, 1994, III, pág. 317), com o recurso o recorrente visa a revogação da decisão impugnada e a sua substituição por outra. Importa que o recorrente tenha interesse na revogação e na nova decisão. Note-se, porém, que o interesse em agir, o interesse na revogação da decisão impugnada, não é um interesse meramente abstracto, interesse na correcção das decisões judiciais, mas um interesse em concreto, pelo efeito que se busca sobre a decisão em benefício do recorrente, salvo no que respeita ao Ministério Público.

A posição processual e as atribuições do assistente estão definidas no artigo 69º, do Código de Processo Penal, que dispõe, o seguinte:

1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, ressalvadas as excepções previstas na lei;

2. Compete em especial aos assistentes:

(…)

c) interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o MP o não tenha feito.

Por sua vez, o artigo 401º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe de “Legitimidade e interesse em agir” dispõe que:

1. Têm legitimidade pare recorrer:

(…)

b) o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas.

(…)

2. não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

Para que o recurso seja admissível, não basta, portanto, que o recorrente tenha legitimidade; é necessário, ainda, que possua interesse em agir.

Assim, a admissibilidade do recurso depende da verificação de ambos os pressupostos, que, embora exprimam realidades distintas – a legitimidade refere-se à posição do sujeito em relação ao processo, enquanto o interesse em agir diz respeito à possibilidade de obter um ganho ou vantagem – devem confluir, no caso concreto, para aferir se, face a determinada decisão, o assistente pode ou não recorrer.

A questão de saber se o assistente pode recorrer (no exercício de uma faculdade que a lei diretamente lhe confere (cfr. artigo 69.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal), de forma autónoma, desacompanhado do Ministério Público (e exclusivamente), quanto «à espécie e medida da pena aplicada», ficou decidida desde a publicação do então denominado Assento 8/99, de 30 de Outubro de 1997, que fixou jurisprudência no sentido de que o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.

Recorde-se que, no acórdão recorrido subjacente a esta decisão, estava em causa o facto de o assistente ter recorrido para impugnar tanto a espécie da pena, (nomeadamente a suspensão da sua execução) quanto a medida concreta da mesma.

A partir desta decisão foi-se consolidando a doutrina de que «a possibilidade de recurso autónomo por parte do assistente (…) refere-se, pois, às situações processuais em que aquele é directamente afectado, a decisão directamente o desfavorece, enfim, atinge algum «concreto próprio interesse» seu, digno de protecção» (cfr. Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar, António Pereira Madeira e outros, Almedina, 2014, pág. 1287).

Ora, a questão da espécie e medida da pena aplicada, como decidiu o Assento n.º 8/99, é essencialmente orientada por razões de interesse público, tendo em vista a realização dos fins atribuídos à punição criminal (os «fins das penas»). Só assim se compreende que, quanto a essa matéria, o assistente só possa recorrer se, conforme decidido nesse Assento, «demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».

No caso em apreço, na fixação da pena, o Tribunal a quo, ponderando os critérios legalmente previstos, concluiu que a pena pecuniária fixada em 50 dias à taxa diária de € 6.00 era suficiente para alcançar as finalidades da punição. O Ministério Público, responsável por representar os interesses da comunidade, aceitou tal decisão.

Assim, se a posição dos recorrentes conflitua com a do Ministério Público a esse respeito, aqueles só poderiam recorrer demonstrando que são titulares de um interesse próprio, e relevante a defender. Caso contrário, como também é assinalado no Assento n.º 8/99, «se o assistente não demonstrar um real e verdadeiro interesse, um seu pedido de agravação da pena (em termos de espécie ou de medida) tem um cunho, ou, pelo menos, aparenta tê-lo, de regresso à vindicta privada».

No presente processo, como se verificou, os recorrentes não demonstram possuir – para além da defesa de interesses pessoais, que não podem ser considerados na determinação da espécie e medida da pena a ser imposta neste âmbito - qualquer interesse concreto e próprio relevante que permita afirmar que a decisão recorrida foi proferida contra eles (e, portanto, que justifique a necessidade de, ou o interesse em, recorrer). Assim, conclui-se que falta aos recorrentes, assistentes nos autos, «interesse em agir».

Não vinculando o despacho de admissão do recurso proferido pela 1.ª instância, este Tribunal (artigo 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), nada impede que não se conheça, nesta parte, do recurso.

De facto, quando o recurso contém várias pretensões, como ocorre no caso em apreço, se a irrecorribilidade afectar apenas algumas dessas pretensões, o recurso não deve ser rejeitado ab initio. Deve-se julgar a parte não afectada em conferência e deixar de conhecer a restante, em conformidade com o princípio da cindibilidade do conhecimento do recurso (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da CRP e da CEDH”, 3ª ed., pág. 1142, comentário ao artigo 420º).

Assim, nos termos dos artigos 401º, nº 2, 414º, nºs 2 e 3 e 420º, nº1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, não se conhece, nesta parte, do recurso interposto pelos recorrentes BB e CC, ficando, portanto, prejudicado o conhecimento da pretensão de agravamento da medida da pena fixada à recorrida AA.


*

A arguida/demandante civil AA recorre do segmento da sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância, no qual, ao conhecer do Pedido de Indemnização Civil por ela formulado contra os arguidos/demandados BB e CC, julgou improcedente o pedido quanto aos danos patrimoniais peticionados, no valor de € 500.00, por cada um dos demandados, referentes ao valor de aquisição dos seus óculos (cfr. pontos XXVIII a XXXVI das Conclusões apresentadas).

Recorde-se que a demandante/assistente, AA, deduziu Pedido de Indemnização civil, requerendo nos seguintes termos:

«Em razão dos factos praticados pela arguida CC:

- € 750,00 a título de danos não patrimoniais pelas injúrias proferidas contra a Demandante;

- € 1.000.00 a título de danos não patrimoniais pelas agressões perpetradas contra a Demandante;

- € 500,00 a título de danos patrimoniais (correspondentes a metade do valor de aquisição dos óculos da Demandante, danificados no decorrer das agressões)

«Em razão dos factos praticados pelo arguido BB:

- € 750,00 a título de danos não patrimoniais pelas injúrias proferidas contra a Demandante;

- € 2,500.00 a título de danos não patrimoniais pelas agressões perpetradas contra a Demandante;

- € 500,00 a título de danos patrimoniais (correspondentes a metade do valor de aquisição dos óculos da Demandante, danificados no decorrer das agressões)»

Termina formulando o seguinte petitório: « .. serem os Arguidos condenados a pagar à Demandante quantia não inferior a €6.000.00 …».

Desde já adiantando, verifica-se, quanto à parte cível, que o recurso não é admissível.

Estatui o artigo 400º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”

O recurso da parte cível depende, assim, de dois pressupostos cumulativos:

-o valor do pedido de indemnização civil tem de ser superior à alçada do tribunal recorrido.

-o valor da sucumbência (a decisão seja desfavorável para o recorrente) tem de ser superior a metade daquela alçada.

A alçada do tribunal da 1ª instância está fixada no valor de 5.000,00 €, por força do disposto no artigo 44º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de Agosto.

Apesar do valor do pedido civil ser superior aos € 5.000 da alçada do Tribunal da 1ª instância, a recorrente sucumbiu em valor inferior a metade daquela alçada (€ 1.000), [1]não se verificando o segundo dos indicados pressupostos de admissibilidade do recurso da parte cível da decisão.

Pelo exposto, pela conjugação do artigo 414º, nºs 2 e 5 com o artigo 420º, nº 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal, rejeita-se in limine o conhecimento ad quem do recurso cível de AA.

Rejeição sem prejuízo duma ulterior consideração do disposto no artigo 403º, nº 3, do Código de Processo Penal, conforme o qual «A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida», se e na estrita medida que oportunamente competir.


*

Por sua vez, BB e CC recorrem do segmento da sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância que condenou AA ao pagamento a cada um deles da quantia de € 300.00, pois entendem que o quantum indemnizatório fixado se mostra reduzido (cfr. pontos 15 e 16 das Conclusões apresentadas).

No caso presente, considerando que o valor do pedido de indemnização civil dos recorrentes se cifrava em € 2.000.00, não se verifica o primeiro dos indicados pressupostos de admissibilidade do recurso da parte cível da decisão.

Em consonância com o disposto nos referidos artigos 414º, nºs 2 e 5, 420º, nº 1, al. b), rejeita-se in limine o conhecimento do recurso cível de BB e CC.

Rejeição sem prejuízo duma ulterior consideração do disposto no artigo 403º, nº 3, do Código de Processo Penal.


*

Nada mais obsta ao conhecimento do mérito da causa.

Cumpre apreciar e decidir.

***

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Questões a decidir

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código.

No caso concreto, as questões suscitadas nos recursos a apreciar, segundo a respetiva ordem lógica de conhecimento, são aquelas que se enumeram de seguida:

1. Recurso de CC e BB

A. Apurar se houve erro no julgamento da matéria de facto, determinante:

- da absolvição dos recorrentes dos crimes de injúria e do arguido BB do crime de ofensa à integridade física simples;

- da condenação da arguida AA pelos crimes de ofensa à integridade física simples e de dano.
B. Apreciar, com base na pretendida alteração da matéria de facto:

1- se, no caso, deve considerar-se verificada a causa de exclusão de ilicitude por legítima defesa relativamente à actuação de CC;
2- se CC agiu no âmbito de retorsão contra AA;
3- se CC deve ser dispensada de pena.

*

2. 1. Recurso de AA

A. Apurar se houve erro no julgamento da matéria de facto, determinante da absolvição da recorrente dos crimes de injúria.


*

II.2. A decisão recorrida

Tendo em consideração o objeto dos recursos interpostos, afigura-se relevante proceder à transcrição dos seguintes segmentos da sentença recorrida:

i. Factos provados e não provados (a numeração dos factos provados foi por nós acrescentada):

«Da acusação pública

1. HH, nascida a ../../1932, é mãe de AA (doravante designada apenas por “AA”) e no mês de Junho de 2021 encontrava-se, a seu pedido, aos cuidados de CC (doravante designada apenas por “CC”) e de BB (doravante designado apenas por “BB”), sendo estes quem lhe forneciam as refeições, efectuavam a sua higiene pessoal e limpeza da habitação.

2. No dia 10 de Junho de 2021, pelas 18h30m, AA deslocou-se à residência de CC e de BB, sita na Rua ..., ..., ..., por ter ouvido comentar que a sua mãe tinha entregue a estes uma pulseira e um anel em ouro.

3. AA começou com as mãos a bater com bastante força na porta de entrada da referida residência.

4. Ora, depois da porta ter sido aberta, gerou-se uma discussão entre os intervenientes, sendo que no decorrer de tal discussão:

5. - CC desferiu com a palma da mão uma pancada na face de AA;

6. BB agarrou com as mãos o cabelo de AA, arrancando-lhe partes do cabelo, e com a mão fechada vibrou-lhe pancadas na cabeça e tronco.

7. Como consequência necessária e directa destas agressões AA sofreu as seguintes lesões:

-Crânio: área de alopecia traumática, com pontuado hemorrágico disperso a nível da pele, com 3cm de diâmetro, localizada na região parieto-temporal esquerda;

- Pescoço: escoriação com 1 cm de diâmetro, em vias de cicatrização, localizada na face posterior do pescoço;

- Tórax: equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 2 cm de maiores dimensões, localizada na região mamária esquerda;

- Membro superior direito: equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 3 cm de maiores dimensões, localizada no terço superior da face antero-medial do braço;

- Membro superior esquerdo: equimose de coloração roxa amarelada, com 4cm x 2 cm de maiores dimensões localizada na região escapular. Múltiplas escoriações lineares, em vias de cicatrização, a maior das quais com 8 cm de comprimento dispersas por toda a região escapular e terço superior da face posterior do braço;

- Membro inferior direito: equimose de coloração roxa amarelada, com 8 cm x 5 cm de maiores dimensões, localizada no terço médio da perna.

8. Estas lesões determinaram sete dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho.

9. CC agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de AA.

10. BB agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de AA.

11. Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.


***

Da acusação particular da assistente AA:

12. A 16 de junho de 2021, a Assistente efetuou uma visita à sua mãe, a Sra. HH, que residia, há data dos factos, na Rua ....; Após ter conversado com a sua mãe, teve esta conhecimento que esta teria entregue a um casal vizinho algumas joias e outros bens que haviam pertencido também ao pai da Assistente,

13. A Assistente dirigiu-se ao 2.º andar do mesmo prédio onde residia a mãe, para conversar com os Arguidos, no sentido de lhes solicitar que agissem com bom senso e devolvessem à sua mãe os bens que esta lhes havia entregue, especialmente aqueles que haviam pertencido ao seu pai.

14. A Assistente bateu à porta e tendo falado com os Arguidos acerca da devolução dos bens da sua mãe, quase que de imediato, foi agredida por ambos simultaneamente, enquanto perpetravam as violentas agressões físicas, não satisfeitos com tal, iam ainda injuriando em alto e bom som a Assistente, proferindo frases tais que: “És uma filha da puta …”;“ Sua lambona”; “”; “És uma chupista, andas a chupar o dinheiro da tua mãe”.

15. Tais injúrias foram proferidas no vão das escadas do prédio onde residia a mãe da Assistente.

16. Com tais comportamentos, os Arguidos quiseram, de forma consciente e voluntária, ofender e humilhar a Assistente, dirigindo-lhe expressões injuriosas que atentaram contra a sua honra, bom nome e consideração.

17. Os Arguidos agiram de forma livre, concertada e consciente, bem sabendo que a sua conduta para com a Assistente era proibida por lei,


***

Da acusação particular dos assistentes BB e CC

18- quando a arguida AA foi agredida nos termos descritos na acusação, e quando saia do local dirigiu-se aos ofendidos e disse-lhes “ladrões, filhos da puta, és um corno”, tendo agido de livre vontade e com consciência da censurabilidade da sua conduta e que ofendia os assistentes na sua honra e consideração.


***

FACTOS PROVADOS DO PIC da assistente AA

19. A Demandante é filha de HH, que à data de 10 de junho de 20221 residia na Rua ..., Rés-do-chão esquerdo;

20. Nessa mesma morada, mas no 2.º andar residiam os Arguidos BB e CC:

21. Nessa data e após ter conversado com a sua mãe, a Demandante teve conhecimento por esta que a mesma teria entregue aos Arguidos algumas joias e outros bens que haviam pertencido também ao pai da Assistente,

22. Dirigiu-se assim ao 2.º andar para conversar com os Arguidos, no sentido de lhes solicitar que agissem com bom senso e devolvessem à sua mãe os bens que esta lhes havia entregue, especialmente aqueles que haviam pertencido ao seu pai.

23. Bateu à porta e tendo falado com os Arguidos acerca da devolução dos bens da sua mãe, foi recebida por ambos, quase que de imediato, com insultos agressões

24. Como bem se descreve em sede de acusação, a Arguida CC, logo após abrir a porta à Demandante, desferiu-lhe uma pancada na face, tendo depois agarrado a Demandante e imobilizado a mesma enquanto o marido da Arguida, o Arguido BB lhe agarrava o cabelo com uma mão e, com a outra, lhe desferia pancadas no corpo e na cabeça de punho cerrado.

25. O Arguido não só agarrou o cabelo da Demandante como também lhe arrancou partes do mesmo, tendo ficado espalhados pelo chão molhos de cabelo da Demandante,

26. Tendo inclusive arrancado parte do cabelo pela raiz, gerando falhas no couro cabeludo da Demandante.

27. As agressões perpetradas pelos Arguidos tiveram como consequência direta e necessária várias lesões, a saber:

- No crânio, uma área de alopecia traumática, com pontuado hemorrágico disperso pela pele, com 3cm de diâmetro, localizada na região parieto-temporal esquerda;

- No pescoço, uma escoriação com 1 centímetro de diâmetro, na face posterior do pescoço,

- No tórax, uma equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 2 cm de maiores dimensões, localizada na região mamária esquerda;

- No membro superior direito uma equimose de coloração roxa-amarelada, com 3 x 3 cm de maiores dimensões, no terço-superior da face antero-medial do braço;

- No membro superior esquerdo uma equimose de coloração roxa-amarelada, com 4 x 2 cm de maiores dimensões, na região escapular, bem como múltiplas escoriações lineares, a maior delas com 8 cm de comprimento e estando as mesmas dispersas por toda a região escapular e terço superior da fase posterior do braço;

- No membro inferior direito, uma equimose de coloração roxa-amarelada, com 8 x 5 cm de maiores dimensões, no terço médio da perna.

28. A descrição das lesões padecidas pela Demandante mercê dos atos praticados pelos Arguidos revela a extensão das agressões: do crânio, passado pelo tronco, braços até às pernas,

29. Lesões essas que demandaram para cura sete dias.

30. Que, sem qualquer margem de dúvida, foram praticadas consciente e voluntariamente;

31. No momento em que ocorreram os factos, a Demandante envergava os seus óculos graduados, sem os quais não consegue ver com nitidez,

32. Óculos esses que, quando foi agarrada pela cabeça, foram projetados para o chão,

33. Não bastara as lesões físicas sofridas, para a Demandante resultaram ainda graves danos psicológicos, resultantes da atuação dos Arguidos.

34. Não satisfeitos, enquanto perpetravam as violentas agressões físicas, os Arguidos iam ainda injuriando em alto e bom som a Demandante, proferindo frases tais que: “És uma filha da puta …”;“ Sua lambona”; “; “És uma chupista, andas a chupar o dinheiro da tua mãe”.

35. Tais injúrias foram proferidas no vão das escadas do prédio onde residia a mãe da Demandante.

36. Enquanto saía ainda em pânico do local, “descabelada” e ferida, a Demandante sentiu-me completamente humilhada.

37. O meio onde tais factos ocorreram é pequeno, tendo-se propagado rapidamente a história agressão e dos insultos,

38. Vexando assim ainda mais Demandante e atentando contra a sua honra e bom nome.

39. Toda esta situação causou-lhe, como ainda causa, tristeza.


*

FACTOS PROVADOS DO PIC DE BB E CC:

40- O VALOR ORÇAMENTADO PARA REPARAÇÃO DA PORTA É DE 369,00 Euros.

41. - os factos descritos na acusação particular dos assistentes causaram-lhes constrangimento e vergonha.

(…)


***

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Da acusação pública:

a) que CC e de BB forneciam diariamente refeições a HH.

b) que AA, de modo não concretamente apurado, tenha riscado a madeira do lado exterior da porta e que com as mãos apertou com força o pescoço de CC, provocando-lhe dor;

c) O valor dos danos causados por AA na porta da residência de CC e de BB ascende a 369,00 €.

d) AA actuou de forma livre, deliberada e consicente, com o propósito concretizado de desfigurar a citada porta e de molestar o corpo de CC.

Do pedido de indemnização civil do demandante/assistente AA

e) que a ofendida ainda hoje tenha falhas no couro cabeludo e que são visíveis;

f) E que no decorrer das agressões foram inclusivamente chutados e pisados os seus óculos, que havia adquirido pelo montante de € 1.000,00 (mil euros), tornaram-se totalmente irreparáveis

g) Que além da dor física inerente às agressões a Demandante vivenciou momentos de pânico que lhe pareceram durar uma eternidade;

h) Que nos dias seguintes, quedou-se fechada em casa completamente desanimada, triste e sem vontade de conviver sequer com família. Não conseguindo esquecer os momentos de terror vivenciados nas mãos dos Arguidos, De manhã, olhando-se no espelho, sentia-se envergonhada pelas mazelas na face e pescoço e pela falta de cabelo em partes do seu crânio. A Demandante é pessoa com vários problemas de saúde, tendo aliás sido submetida já uma intervenção cirúrgica à coluna cervical há cerca de 5 anos; E, mais recentemente, à mão direita por força de problemas neste membro; Sofre de artrose crónica e é submetida a diversos tratamentos para a dor. No mais a Demandante é uma pessoa de bem, mãe de dois filhos e avó de dois netos, muito educada, recatada e bem vista na sociedade, com uma reputação incólume, nunca cogitou sequer a Demandante poder um dia encontrar-se numa situação semelhante à que se relata nos presentes autos.


*

Do PIC dos assistentes BB e CC

i) que a arguida AA desatou a desferir murros e pontapés na porta dos assistentes, que estes são pessoas sérias e respeitadas no meio social e que vivem em constante estado de ansiedade, receando novas investidas por parte da arguida.»


*

ii. Sob a epígrafe «FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO» foram vertidas na decisão recorrida as seguintes indicações e considerações (transcrição parcial das partes relevantes):

«A convicção do Tribunal, no que concerne à matéria de facto dada como provada fundou-se na análise crítica da totalidade da prova produzida.

Concretizando:

O Tribunal louvou-se na prova pericial junta aos autos a fls. 14-15 quanto aos danos sofridos por AA. E nos doc. De fls. 154, 155, e orçamento de fls. .

Foi ponderado o CRC dos arguidos juntos aos autos certificativos da inexistência de antecedentes criminais.

Inicialmente AA usou do direito a não prestar declarações.

A arguida CC prestou declarações, referindo ter ouvido muito barulho a baterem-lhe com violência na sua porta e que a AA logo lhe diz corno, filho da puta, ladrão. Referiu que a porta ficou toda arranhada e que foi arranhada pela AA no pescoço;

BB, com fundamento de ter saído operado e se encontrar debilitado, referiu não ter agredido a AA e que esta lhe chamou de ladrão e de corno. Negou os puxões de cabelo.

DD, vizinha, depois de ouvir barulho na porta, referiu que vê as arguidas a discutirem e depois desce o BB, tendo ouvido a AA a dizer es um corno, filho da puta. Não viu ninguém bater em ninguém e que agora vejo arranhões na porta que não via.

EE, sobrinha da arguida AA, ouviu falar do ouro, que a AA, sabendo da entrega do ouro aos arguidos, foi a casa destes. Acompanhou a AA a casa dos arguidos, só tendo visto a sua tia com uns óculos na mão e que esta quando saiu chamou nomes aos arguidos. Não viu qualquer agressão, embora tenha visto a ofendida AA com a s mão ao cabelo, a queixar-se e viu esta com peladas de cabelo na mão. Também os arguidos BB e CC chamaram nomes à AA.

KK, vizinha da AA, ouviu falar que a mãe da AA tinha entregue ouro aos arguidos e a sua filha, a AA decidiu ir a casa dos arguidos para saber da razão. Acompanhou a arguida AA, esta bateu com a palma da mão na porta, veio a CC agressiva e começou logo a bater na AA, tendo os óculos caído ao chão, e depois olha para trás e vê o BB a agarrar no cabelo da AA, esta com a cabeça para baixo, sendo agredida, tendo dada “uns berros” e o BB largou-a. Pronunciou-se a cerca do estado físico da AA e anímico, como nervosismo, ansiedade. Acompanhou a ofendida ao hospital.

GG, vizinha de baixo dos arguidos CC e BB, viu a AA com a cabeça para baixo e os dois, referindo-se ao casal, a baterem-lhe e pela posição em que estava a AA esta não poderia ter agredido ninguém. Não ouviu injurias. Só conheceu a AA naquele dia, o que reforça a credibilidade do seu depoimento. Conclui que nesse dia a primeira testemunha da acusação DD não estava no local.

LL, GNR: referiu que a ofendida AA quando formalizou a queixa estava muito nervosa e indignada, queixando-se de dores.

II; amiga da AA: foi com a AA a casa dos arguidos tendo ficado no carro, e não assistiu aos factos, apenas relatou que viu a AA com madeixas de cabelo na mão que lhe haviam arrancado e que depois ouviu da outra senhora “levaste o que pudeste”. Refere que a AA queixava-se muito da cabeça e que desde então nunca mais foi a mesma pessoa, tendo ficado a chorar e com muitas dores e muito abalada.

MM, casado com a AA: não assistiu aos factos, no entanto encontrou a mulher com madeixa de cabelo na mão e a chorar. Nos dias seguintes sofreu muitas dores, tomou medicamentos e que tal foi episódio traumático.

JJ, pronunciou-se acerca do orçamento para reparação da porta.

NN não assistiu aos factos, apenas viu a AA a ir à GNR.

OO não assistiu aos factos e apenas referiu que o BB havia sido operado.

A arguida AA prestou declarações, que pela forma muito espontânea, coerente, se revelaram assertivas quanto aos factos de que foi vítima, sendo que, no que concerne ao dano na porta, ninguém se pronunciou a cerca de tais danos, apenas a referencia genérica a riscos, que desconhecemos de que fora foram feitos e quando.

Ainda que os todos os arguidos tenham negado os factos, o Tribunal, pela forma convincente como foram prestadas as declarações da arguida AA, que se revelaram, quanto à execução dos factos, verosímeis e coerentes, em conjugação com a prova pericial junta no que concerne à agressão e consequências imediatas da mesma, convenceu-se que os arguidos, no dia e hora descritos na acusação pública agiram conforme lhe é imputado, causando as lesões descritas.

Note-se que nenhuma das testemunhas referiu ter visto a AA a agredir a ofendida CC.

As declarações da arguida AA em conjugação com o depoimento das testemunhas EE (que viu de imediato madeixas de cabelo da ofendida), FF, cujo depoimento foi muito isento, objetivo e sem contradições ou hiatos) e de GG (objectivo e desinteressado), permitiu ao tribunal formar a convicção, para além da dúvida razoável, da ocorrência dos factos tal como supra descritos e bem assim nas acusações particulares.

Ponderou-se as declarações da arguida AA, seu marido, o elemento da GNR e FF para formara convicção positiva dos factos descritos no PIC da AA.

Ponderou-se as declarações dos arguidos CC e BB e bem assim de DD para a formação da convicção dos factos descritos na acusação particular que se deram por provados, bem como o relatado por FF que sendo amiga da AA, referiu ouvi muito barulho mas não me lembro do que foi dito, o que denota que também a arguida AA terá naturalmente atenta a animosidade instalada injuriado os arguidos tal como estes referem.

No que concerne aos factos não provados da acusação, refira-se que da dinâmica dos factos e do confronto das declarações da arguida AA, com as testemunhas presenciais FF e GG, resultou apurado que a arguida AA nem sequer teve a oportunidade de agredir a ofendida nos termos descritos na acusação pública, porquanto foi logo agredida pelo BB e colocada pelos cabelos com a cabeça para baixo.

Ademais, ninguém se pronunciou acerca dos cuidados diários dos arguidos à mãe da ofendida, eram cuidados gerais, mas não foi referido ser diariamente. Quanto ao dano na porta, da prova realizada, pese embora os arguidos CC e BB tenham referido um grande estrondo, não foi provado que os riscos na porta advieram de uma conduta imputável à arguida AA, porque esta referiu ter dados palmadas e ninguém referiu a utilização de qualquer objecto, pelo que não foi feita prova pela do dano imputado à AA.

No que concerne aos demais factos não provados das acusações particulares ou dos PIC´s sempre se diga que resultou realidade oposta ao que consta de tais peças processuais ou a prova realizada não permitiu formar um juízo pleno da ocorrência dos factos tais como descritos, razão pela qual e por que um non linquet se resolve em desfavor da acusação, se deram por não provados tais factos.


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II.3. Apreciação dos recursos

II.3.1. Recurso de CC e BB

A- Recurso em matéria de facto

No regime legal vigente, o recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto pode assumir, duas vias de invocação: (1) invocação dos vícios da chamada revista alargada, isto é, vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal; (2) alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação (artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal – impugnação ampla da matéria de facto) .

Como decorre do disposto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, os vícios previstos neste normativo legal - a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova –, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

Na impugnação ampla da decisão da matéria de facto [a apreciar sob a disciplina do artigo 412º, nº 3, coloca-se em causa a apreciação que o tribunal a quo fez da prova produzida em 1ª instância.

Ao recorrente é lícito lançar mão dos dois modos de impugnação da matéria de facto, não deve nem pode é misturá-los.

Verificação de vícios da sentença integradores da previsão normativa do artigo 410º, nº 2

Os recorrentes invocam conclusivamente [conclusão 2ª] que a decisão recorrida padece de contradições insanáveis «por omitir partes significativas dos depoimentos», parecendo, com isso, assacar à decisão recorrida o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, previsto no artigo 410º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.

Afigurando-se embora que os recorrentes o que verdadeiramente quiseram invocar foi o erro de julgamento, manifestando a sua discordância quanto à convicção do Tribunal recorrido, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso deste Tribunal procederemos à respectiva análise.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no citado artigo 410º, n.º 2, al. b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Na síntese do Acórdão do S.T.J. de 3.07.2002 (Processo n.º 1748/02 - 3.° Secção, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Dr. Armando Leandro, acessível em www.dgsi.pt), este vício verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados ou não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal.

Analisado a sentença recorrida não se vislumbra qualquer contradição entre os factos provados e não provados, entre qualquer destes e a fundamentação ou entre os factos provados e as conclusões ou apreciações de direito.

Improcede, pois, nesta parte, o recurso.


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Impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento

Os recorrentes invocam o erro de julgamento em relação à matéria de facto.

Quanto a este tipo específico de recurso (da decisão sobre a matéria de facto: cfr. artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal) cumprirá referir, ainda que sinteticamente, por um lado, os requisitos legais da sua invocação e, por outro lado, os critérios orientadores que norteiam a reapreciação, por este tribunal superior, da prova produzida em primeira instância.
Esta via de impugnação da matéria de facto, visa a revisão de um possível erro de julgamento quanto à apreciação da prova produzida em audiência (testemunhal, documental, pericial ou de outra natureza), em contraste com a revista alargada, que se restringe aos vícios decisórios evidentes. Cabem aqui todos os casos de erro (não notório) na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo o error in judicando (erro de julgamento), no qual se inclui o erro na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de prova documental, erros que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação.
De acordo com a jurisprudência mais avalizada, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou quando viole, de forma manifesta, as regras de experiência comum e da lógica ou o princípio in dubio pro reo.
Ao contrário da revista alargada, a impugnação ampla da matéria de facto implica a análise de toda a prova documentada, desde que o recorrente cumpra o ónus de especificação previsto no artigo 412º.

O tribunal de recurso deve, então, reapreciar as provas, mas dentro dos limites estabelecidos pelo recorrente, e não procede a um novo julgamento da matéria de facto. O recurso não implica reavaliar toda a prova como se fosse o tribunal de primeira instância, que beneficia da imediação e oralidade no julgamento, mas apenas verificar se houve um erro de apreciação. O tribunal de recurso altera a decisão factual apenas se os elementos probatórios impuserem uma decisão diversa, e não apenas uma alternativa possível. Se existirem várias soluções de facto possíveis, e se a decisão de primeira instância estiver devidamente fundamentada e dentro de uma das soluções possíveis, ela prevalecerá.

A reapreciação da matéria de facto só pode ocorrer dentro dos limites impostos pela gravação dos atos da audiência e pela necessidade de o recorrente especificar:

• Quais os pontos de facto incorretamente julgados.

• Quais as provas que impõem uma decisão diversa da recorrida, referenciando os suportes técnicos de gravação.

A fundamentação do recurso deve ser precisa, indicando quais as passagens das provas que demonstram o erro de julgamento, e discutindo esses elementos probatórios de forma a mostrar como o tribunal a quo errou na sua análise. O recorrente não pode limitar-se a alegar genericamente que as provas foram mal apreciadas, devendo, em vez disso, apontar concretamente as partes da prova que demonstram o erro, e relacionar esses elementos com a decisão.


Ao tribunal de recurso cabe verificar se o tribunal de primeira instância fez um bom uso do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, que estabelece que o julgamento deve ser feito com base na livre convicção do julgador, segundo as regras da experiência comum e a lógica. Contudo, a livre convicção do juiz não é ilimitada, devendo estar sempre fundamentada de forma lógica e motivada, de acordo com o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal

É, pois, o momento de verificar as objeções dos recorrentes quanto à matéria de facto.

De acordo com a alegação recursiva encontram-se incorretamente julgados os factos provados 3º a 11º, que consideram deverem ser dados como não provados.

Impugnam ainda o julgamento dos factos não provados sob as alíneas a) a d) que entendem que deveriam ser considerados provados.

Tais factos são os seguintes:

«3. AA começou com as mãos a bater com bastante força na porta de entrada da referida residência.

4. Ora, depois da porta ter sido aberta, gerou-se uma discussão entre os intervenientes, sendo que no decorrer de tal discussão:

5. - CC desferiu com a palma da mão uma pancada na face de AA;

6. BB agarrou com as mãos o cabelo de AA, arrancando-lhe partes do cabelo, e com a mão fechada vibrou-lhe pancadas na cabeça e tronco.

7. Como consequência necessária e directa destas agressões AA sofreu as seguintes lesões:

-Crânio: área de alopecia traumática, com pontuado hemorrágico disperso a nível da pele, com 3cm de diâmetro, localizada na região parieto-temporal esquerda;

- Pescoço: escoriação com 1 cm de diâmetro, em vias de cicatrização, localizada na face posterior do pescoço;

- Tórax: equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 2 cm de maiores dimensões, localizada na região mamária esquerda;

- Membro superior direito: equimose de coloração roxa amarelada, com 3 x 3 cm de maiores dimensões, localizada no terço superior da face antero-medial do braço;

- Membro superior esquerdo: equimose de coloração roxa amarelada, com 4cm x 2 cm de maiores dimensões localizada na região escapular. Múltiplas escoriações lineares, em vias de cicatrização, a maior das quais com 8 cm de comprimento dispersas por toda a região escapular e terço superior da face posterior do braço;

- Membro inferior direito: equimose de coloração roxa amarelada, com 8 cm x 5 cm de maiores dimensões, localizada no terço médio da perna.

8. Estas lesões determinaram sete dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho.

9. CC agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de AA.

10. BB agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de AA.

11. Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»

(…)

«a) que CC e de BB forneciam diariamente refeições a HH.

b) que AA, de modo não concretamente apurado, tenha riscado a madeira do lado exterior da porta e que com as mãos apertou com força o pescoço de CC, provocando-lhe dor;

c) O valor dos danos causados por AA na porta da residência de CC e de BB ascende a 369,00 €.

d) AA actuou de forma livre, deliberada e consicente, com o propósito concretizado de desfigurar a citada porta e de molestar o corpo de CC. HH, nascida a ../../1932, é mãe de AA (doravante designada apenas por “AA”) e no mês de Junho de 2021 encontrava-se, a seu pedido, aos cuidados de CC (doravante designada apenas por “CC”) e de BB (doravante designado apenas por “BB”), sendo estes quem lhe forneciam as refeições, efectuavam a sua higiene pessoal e limpeza da habitação.»

Para apoiar a impugnação indicam segmentos das suas próprias declarações e toda a prova testemunhal, de que selecionam excertos que localizam no registo áudio e transcrevem.

Por via da prova pessoal indicada no recurso – declarações e depoimentos -, que o tribunal ouviu através do respetivo registo informático, em contraposição com a motivação da decisão de facto, não se conclui que o juízo formulado pelo tribunal da 1ª instância seja desprovido de razoabilidade e que houvesse que decidir de forma diversa.

Da audição da prova gravada indicada resulta que as sínteses de declarações e depoimentos constantes da motivação da decisão de facto correspondem, com fidelidade à prova produzida em audiência de julgamento.

No caso em apreço, a decisão recorrida baseia-se num juízo de credibilidade das declarações da arguida/assistente AA quanto aos factos de que foi vítima da conduta dos recorrentes, em confronto com um juízo de não credibilidade das declarações destes. Esses juízos dependem de factores ligados à imediação, dos quais nesta sede estamos privados.

De qualquer modo, no caso em apreço também é importante destacar que as declarações de AA – que, contrariamente ao que é invocado pelos recorrentes, não se manteve em silêncio durante a audiência – estão corroboradas pelos depoimentos das testemunhas FF e GG, que o tribunal a quo considerou isentos e objetivos. Essas testemunhas descrevem de modo detalhado e coincidente os acontecimentos, não tendo sido identificadas as alegadas contradições que, embora mencionadas no recurso, não foram concretizadas.

Ouvida a gravação, não identificamos qualquer razão para censurar o juízo sobre a credibilidade formulado pelo tribunal recorrido. Também corrobora essas declarações e depoimentos, ainda que parcialmente, o depoimento da testemunha EE. Além disso, as lesões sofridas por AA resultam da perícia médico-legal realizada.

Em relação ao depoimento da testemunha II, que, como os recorrentes referem, não presenciou os factos, este tribunal de recurso não consegue compreender a relevância desse meio de prova e o que os recorrentes pretendem extrair dele. O mesmo se aplica ao depoimento da testemunha JJ, convocado para demonstrar a factualidade contida na al c) dos factos não provados, uma vez o depoimento dessa testemunha não recaiu sobre a realidade fáctica ali mencionada, simplesmente porque ele também não presenciou os factos.

Quanto ao depoimento da testemunha DD, o tribunal considerou-o não credível, desvalorizando-o em comparação com os depoimentos das testemunhas FF e GG, aos quais conferiu inteira fiabilidade. Ambas afirmaram de forma peremptória que não a viram no local aquando dos acontecimentos. O tribunal afastou a credibilidade do depoimento de DD de forma fundamentada e razoável. Além disso, é claro que a explicação que a testemunha deu para se ter ausentado do local durante os acontecimentos, é inverosímil, à luz do seu próprio depoimento. De facto, se a sua filha, que segundo afirmou, sofre de uma «incapacidade de 95%», tinha ficado com o pai em casa do sobrinho, no rés-do-chão do prédio, enquanto ela se deslocou ao 2º andar, à casa dos recorrentes, não se compreende a urgência com que teria descido para buscar a filha (que estaria tranquilamente com o pai) e ausentar-se do local, ainda ouvindo a AA a insultar o recorrente.

Não vemos, assim, que tenha existido erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos, sendo que o caminho percorrido pelo Tribunal na formação da convicção foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que não se violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Em síntese, sendo a factualidade dada como provada e não provada uma das que razoavelmente é possível extrair da prova produzida – senão mesmo a mais razoável -, nos moldes em que vimos, não merece qualquer censura a avaliação que dela efetuou o tribunal a quo, segundo a sua livre convicção, não sendo de se sobrepor à livre convicção do julgador a opinião (aliás, legítima) dos recorrentes acerca dos meios de prova considerados na decisão sob recurso.

Assim, não ocorrendo também qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, do Código de Processo Penal, não pode deixar de improceder, nesta parte, o presente recurso.

B - Da legítima defesa ou retorsão relativamente à actuação da arguida CC

Em primeiro lugar, entende a recorrente CC que se verificam os pressupostos da causa de exclusão de ilicitude por legítima defesa.

Em alternativa, alega que a sua actuação constitui uma retorsão à agressão ilícita anterior da arguida AA, e, por conseguinte, pretende ser dispensada de pena.

Vejamos.

A legítima defesa – causa de exclusão da ilicitude – tipicamente prevista nos artigos 31º, nº 2, al. a) e 32º, do Código Penal, tem por requisitos a ocorrência de uma agressão, levada a cabo por um comportamento humano voluntário, devendo a agressão ser actual – isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente – e ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a inflingir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado – 18ª edição, 2007, p. 167), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja, a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-la ou neutraliza-la.

Legítima defesa e retorsão são realidades jurídicas incompatíveis, pois enquanto na primeira há defesa relativamente a uma agressão iminente ou em execução, na retorsão o agente procura fazer represália, obter vindicta, tirar esforço, replicar. Quando o agente “responde” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor), empregando a força física, estamos no âmbito da retorsão e não da legítima defesa, fundando-se a possibilidade de dispensa da pena numa diminuição da ilicitude da conduta e da culpa daquele que responde.

No caso dos autos, a alegação da recorrente não procede, pela singela razão que da matéria de facto provada [dada a total improcedência da impugnação da matéria de facto] não resulta qualquer circunstancialismo fáctico que suscite a apreciação da existência de causa de exclusão da ilicitude, nomeadamente a legítima defesa ou a verificação de uma situação de retorsão.

Assim sendo, resulta manifesta a improcedência, nesta parte, do recurso.


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II.3.2. Recurso da arguida/assistente AA

A - Impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento

Considera a recorrente incorrectamente julgado como provado o facto do ponto 18 do elenco dos provados:

«18- quando a arguida AA foi agredida nos termos descritos na acusação, e quando saia do local dirigiu-se aos ofendidos e disse-lhes “ladrões, filhos da puta, és um corno”, tendo agido de livre vontade e com consciência da censurabilidade da sua conduta e que ofendia os assistentes na sua honra e consideração.»

Para apoiar a impugnação indica excertos das declarações dos arguidos CC e BB, as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF e GG.

Reiteram-se neste ponto as considerações tecidas supra (ponto II.3.1.) quanto à forma de impugnação da matéria de facto regulada no artigo 412.º do Código Processo Penal.

Resulta da motivação expressa na sentença recorrida – quanto àquele segmento da matéria de facto dada como provada – que o tribunal a quo fundamentou a sua convicção principalmente no teor das declarações dos arguidos/assistentes CC e BB, que nesse ponto específico, considerou credíveis, conjugando-as com a avaliação que, nesse particular, fez do depoimento da testemunha FF. Embora amiga da arguida AA e tendo relatado os acontecimentos com grande pormenor e objetividade, nesta parte limitou-se a dizer, de modo vago e evasivo, «ouvi muito barulho mas não me lembro o que foi dito». Daí, o tribunal extraíu a ilação de que, no caso, os factos ocorreram num contexto de discussão, exaltação e de animosidade de ambos os lados, sendo natural à luz das regras da experiência comum que a arguida AA tenha proferido as referidas expressões injuriosas, como relataram os ofendidos.

AA alega ainda que, contrariamente ao que é afirmado pelo Juiz a quo, a testemunha EE em momento algum do seu depoimento afirmou ter «ouvido chamar nomes aos arguidos.»

Após ouvir a gravação do depoimento da referida testemunha constatamos que, de facto, ela não afirmou ter ouvido a arguida AA, sua tia, a “chamar nomes” aos arguidos ... DD e BB.

No entanto, como vimos, o tribunal convenceu-se de que a arguida AA injuriou os arguidos/assistentes dirigindo-lhes as expressões «ladrões, filhos da puta, és um corno», com base em outras provas.

Ouvida a gravação das declarações dos arguidos e dos depoimentos das testemunhas indicadas, no que ao facto impugnado diz respeito, e tendo em conta o já explicitado, não se reconhece fundamento para afastar o juízo probatório que sustentou a fixação de tal facto como provado. Ademais, ao contrário do defendido pela recorrente, as expressões «ladrões e filhos da puta» foram dirigidas a CC e BB, e não apenas a este último, conforme decorre das declarações prestadas.

A arguida não demonstrou o erro do julgamento conforme os requisitos impostos pela lei. Tendo o tribunal baseado a sua convicção em provas que apresentam uma versão dos factos com adequação causal à discussão e altercação ocorrida e compatível com as regras da experiência, é claro que a prova indicada no recurso não impõe uma decisão diversa.

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II.3.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas

Uma vez que os recorrentes decaíram totalmente nos recursos que interpuseram, são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar - artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.

Tendo em conta a complexidade mediana do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3, 5 UC`s relativamente a cada um dos recorrentes.


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III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam as juízes do Tribunal da Relação do Porto em:
- rejeitar o conhecimento do recurso interposto por BB e CC no que se refere à pretensão de agravamento da medida da pena fixada à arguida AA;
- rejeitar o conhecimento do recurso cível dos demandantes BB e CC.
- no mais, negar provimento ao recurso interposto por BB e CC.

Custas a cargo dos recorrentes BB e CC, fixando-se a taxa de justiça em 3,5 UC´s.
- rejeitar o conhecimento do recurso cível de AA.
- no mais negar provimento ao recurso interposto por AA.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3,5 UC´s.


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Porto, 07 de Novembro de 2024

(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)

Os Juízes Desembargadores

(Amélia Carolina Teixeira - Relatora)

(Paula Natércia Rocha – 1ª Adjunta)

(Maria Ângela Reguengo da Luz – 2ª Adjunta)

Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)

Assinado digitalmente pela relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos (assinaturas eletrónicas)__________________________
[1] Cfr. Ac. RE 28/02/2012  https://jurisprudencia.pt/acordao/53891/
" O valor da sucumbência, para efeitos de admissibilidade de recurso, reporta-se ao montante do prejuízo que a decisão recorrida importa para o recorrente, o qual é aferido em função da alegação do recurso e da pretensão nele formulada, o que equivale ao valor do recurso traduzido na utilidade económica que com o mesmo se pretende obter";
- Ac. do STJ de 13/06/2006    https://jurisprudencia.pt/acordao/137349/
"subjacente à exigência da medida da sucumbência encontra-se a repercussão económica da decisão recorrida para a parte vencida, na perspectiva desta, que pode, no requerimento de interposição do recurso, restringi-lo a qualquer dos segmentos decisórios da decisão impugnada e, nas conclusões da alegação, restringir o objecto inicial do recurso, sendo que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso"