Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1916/20.3T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: CUMPRIMENTO CONTRATUAL
DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA
Nº do Documento: RP202505221916/20.3T8MAI.P1
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ilicitude contratual, ainda quando em causa deveres acessórios da prestação, é relacional e respeita, assim, aos termos das obrigações reciprocamente assumidas, admitindo-se, excepcionalmente, a protecção de terceiros, na medida em que relacionados já ao contrato fonte.
II - Estava a Ré obrigada legal e contratualmente a instruir a exportação pela qual foi a responsável com o documento Cites. Veja-se, de resto, o teor deste, nos termos do qual é a “entregar ao escritório alfandegário de fronteira no lugar de introdução” da mercadoria.
III - Essa, contudo, é uma obrigação própria da Ré, perante as autoridades alfandegárias e perante a sua cliente angolana (como, admita-se, perante a exportadora italiana, enquanto contraparte na compra e venda subjacente ao transporte), que não um dever acessório de conduta do contrato de transporte que celebrou com a Autora, a organização e transporte da mercadoria da Itália para Portugal…
IV - Não resulta caracterizado mediante a não instrução da exportação para Angola com o certificado Cites o incumprimento de um qualquer dever emergente deste contrato ou relação, o do transporte terrestre da mercadoria entre Itália e Portugal.
V - Assinalada a violação já de um dever acessório do contrato outorgado entre as partes nestes autos, que resultou tê-lo sido pela Ré e perante as AA, assim, o de informar as AA que não fora instruído o processo de exportação que lhe cabia com o dito certificado e, nessa medida, afirmada a ilicitude da conduta da Ré, é o nexo causal entre essa conduta e o dano que falece agora, posto que este resulta da assunção do pagamento pela A. de uma obrigação alheia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1916/20.3T8MAI.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível da Maia - Juiz 4

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Maria Manuela Esteves Machado

2º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita


*

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A... - TRANSITÁRIOS, UNIPESSOAL, LDA., pessoa Colectiva n.º ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o mesmo número e com sede social sita à Rua ..., n.º ..., Fracção A, ... Maia – Portugal, e B..., S.P.A., com o NIPC ..., Pessoa Colectiva de Direito Italiano, com o n.º ... e sede social sita em Via ..., ... ... – Itália, propuseram acção contra C..., S.A., sociedade anónima, pessoa colectiva n.º ... e sede social sita na Estrada ..., Bairro ..., ... ..., pedindo que a ré seja condenada a pagar às autoras a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros), acrescidos dos juros vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Reconduzem-se à falta de entrega pela Ré, que as sub-contratou para a execução de um transporte rodoviário de mercadorias, entre Itália e Portugal, às Autoridades Alfandegárias, aquando da expedição da mercadoria, por si, para Angola, do certificado CITES, o qual era obrigatório, em razão de estar em causa o transporte de sapatos de pele de cobra para território extracomunitário. Ao não ter acompanhado a mercadoria, como devia, tendo-lhe o mesmo sido entregue previamente pela cliente Italiana, a 2ª autora viu-se confrontada com a obrigação de proceder ao pagamento da importância de €10.000,00 a título de coima.

Excepcionou a Ré, em sede de contestação, além do mais, a incompetência territorial e a ilegitimidade activa da autora A... e a prescrição do direito de acção.

Requereu ainda a intervenção principal provocada das sociedades, D... e E... Lda e, caso não fossem de admitir nessa qualidade, então requereu que o fossem a título acessório.

Veio ainda requerer a intervenção acessória da F... Companhia de Seguros, S.A..

No mais, concluindo pela improcedência do pedido, aduziu que toda a documentação recebida pela ré relativa à mercadoria em causa, foi remetida ao seu despachante que tratou de organizar e tratar das necessárias formalidades aduaneiras com vista à remessa da mercadoria de Itália para Portugal. Sempre nunca foi questão da necessidade da falta de qualquer documento suscitada por qualquer das entidades aduaneiras então intervenientes em tal remessa até ao destino final das mercadorias.

Foram admitidas as intervenções principais provocadas das sociedades D..., Lda e da E... Lda.

Foi ainda admitida a intervenção acessória da F... Companhia de Seguros, S.A.

Apresentaram a F... e a D..., Lda oposição.

A Seguradora pugnou pela improcedência do pedido, alegando que o sinistro em causa se encontra excluído das coberturas do contrato, ao abrigo das condições especiais e gerais da apólice.

E a D... pela improcedência do pedido e pela condenação da ré como litigante de má-fé.

Foi decidida a suscitada exceção dilatória de incompetência territorial.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido apreciadas as exceções dilatórias de ilegitimidade da co-autora A... e da prescrição do direito de acção, decisões estas das quais não foi interposto recurso.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença, a qual decidiu julgar a acção procedente por provada e, em consequência, condenar a ré a pagar à 2ª autora a importância de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida dos respetivos juros moratórios vencidos e vincendos, a contar desde a citação, à taxa vigente em cada um dos momentos para o cumprimento de obrigações comerciais, até efectivo e integral pagamento.

Mais decidiu absolver as três chamadas do pedido deduzido contra as mesmas.

Bem assim absolveu a Ré dos pedidos de condenação como litigante de má-fé que as chamadas haviam deduzido.

Foi desta decisão interposto recurso pela Ré, mediante as seguintes CONCLUSÕES:

A. O mui douto Tribunal a quo, na sentença ora em apreço, decidiu incorretamente quanto a parte da matéria de facto ali decidida como provada,

B. Em particular os factos ali dados como provados nos seus artºs 12º, 16º, 20º, 24º e 35º,

C. Atenta, para além da prova documental junta aos autos, e em particular,

D. Os depoimentos de algumas das testemunha inquiridas nas várias sessões da audiência de discussão e julgamento,

E. Em particular os depoimentos das testemunhas das Recorridas AA e BB,

F. Os depoimentos das testemunhas da Recorrente CC e DD,

G. E, ainda, o depoimento da testemunha EE.

H. Desta forma, do confronto quer da diversa prova documental com o decidido pelo Tribunal a quo no artºs 12º, 16º, 20º, 24º e 35º dos factos dados como provados na mui douta sentença ora recorrida,

I. E, ainda, em particular do depoimento prestado por tais testemunhas, resulta que estes pontos dos factos provados foram - com o devido respeito – erradamente decididos,

J. Sem devida fundamentação na integral prova produzida nos autos, em especial a testemunhal,

K. devendo estes, desta forma, serem alterados no seguinte sentido (conforme já supra aludido):

L. Quanto ao 12º: “Todos os procedimentos necessários para a obtenção e emissão do respectivo certificado “CITES” para aquela mercadoria seriam como o foram por conta das Autoras.”

M. Quanto ao 16º: “A qual encaminhou, por via terrestre, para o entreposto aduaneiro da D..., Lda, em ...”.

N. Quanto ao 20º: “Tendo entregue à Ré a mercadoria e a documentação identificadas no auto de recepção desta última junto à petição inicial como DOC. N.º 8 e à contestação como DOC. N.º 2”.

O. Quanto ao 24º: “O certificado CITES ..., emitido pelo “Corpo Forestale dello Stato – Servizio Cites”, em 12/06/2014 era válido até 12/12/2014 - Doc. N.º 4 junto à petição inicial.”

P. Quanto ao 35º: “A Ré C..., S.A., estando na posse de toda a documentação a si remetida e necessária, instruiu o competente processo de despacho de exportação da mercadoria em questão”

Q. Desta forma, e atento tais factos assim corretamente julgados como provados por V.Exªs, implicarão sempre uma alteração da douta decisão ora recorrida no sentido de ser, sempre, a Recorrente absolvida, in totum, do pedido contra si deduzido pelas Recorridas.

R. Porém, para além de tal erro de julgamento, o mui douto Tribunal a quo, no que quanto à sua motivação de tal decisão de facto concerne,

S. Também aqui errou ao se contrariar em parte de tais sua doutas motivações,

T. Resultando, neste ponto da mui douta sentença em apreço, a nulidade prevista nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 615º do C.P.C.;

U. Tal nulidade resulta, desde logo, do facto de em tal douta motivação o mui douto Tribunal a quo se contradizer quer no que quanto à requisição e emissão do certificado CITES (em discussão neste autos) - quem o requereu e a quem foi este emitido –

V. Como ainda baseia toda a sua decisão – errada, como supra demonstrada – de decidir como provado que tal certificado CITES acompanhou a mercadoria desde a sua origem, em Itália, até ao seu destino em Portugal,

W. Pela leitura simples - mas desatenta - do documento junto pelas Recorridas como documento n.º 5 da petição inicial, o nestes autos denominado como “Bordereau Terra”,

X. Assumindo, ainda, que tal tenha sido transmitido – até mesmo que parcialmente – à Recorrente,

Y. Quando resulta quer do seu teor como, ainda, do depoimento da testemunha AA (esta das Recorridas) e CC e DD (estas ambas da Recorrente)

Z. Que não só a Recorrente não é nem destinatária nem parte interveniente de tal documento,

AA. Como se trata de um documento interno do grupo de empresas do qual fazem partes as Autoras, emitido Recorrida B... tendo como destinatária a Recorrida A... Unipessoal, Lda. –

BB. Como ainda nem mesmo assim o seu teor tenha sido, de forma alguma, e até mesmo apenas em parte, transmitido à Recorrente pelas Recorridas, antes ou durante a expedição em causa,

CC. Conforme, aliás, resulta do depoimento gravado da testemunha das Recorridas AA (!),

DD. Recorrendo, ainda, sem fundamento algum, o mui douto Tribunal à imposição de especial obrigação à Recorrente neste expedição pelo simples facto de se tratar de uma empresa transitária quando, inexplicavelmente,

EE. Não coloca igual ónus e/ou dever às Recorridas, empresas igualmente transitárias e que, na expedição em causa (com origem em Itália e destino Portugal), incorreram - como se veio a confirmar – em maior risco de incumprimento perante as autoridades alfandegárias italianas.

FF. Destarte, tal mui douta fundamentação de facto da mui douta sentença ora recorrida, por se contrariar e não ir de encontro aos factos provados conforme objecto do presente recurso,

GG. Carece de revogação e, consequentemente, modificação da douta decisão ora em apreço, no sentido, sempre, de ser a Recorrente absolvida do pedido, in totum.

HH. Por último, igualmente a mui douta sentença em apreço, agora na sua fundamentação jurídica, se encontra enferma de erro, devendo, assim sempre, ser objecto de mui douta alteração pela parte de V.Exªs, porquanto

II. Reconhecendo o mui douto Tribunal a quo - bem - que a expedição em causa neste autos se tratou de uma expedição internacional de mercadorias por via terrestre,

JJ. Expedição a qual se encontra internacionalmente regulada juridicamente pela convenção CMR,

KK. Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, aprovada pelo Decreto Lei nº 46235 de 18 de Março de 1965, e alterada no seu artº 23º pelo Decreto nº 28/88, de 6 de Setembro (em vigor, assim, e plena aplicação no nosso ordenamento jurídico),

LL. Aplicável, ainda, à actividade da Recorrente por força do regime decorrente do Decreto-Lei N.º 255/99, de 7 de Julho, em particular o versado no seu artº 15º;

MM. Contudo, e inexplicavelmente, o mui douto Tribunal a quo fundamenta a sua mui douta decisão ora em apreço, juridicamente, pelas regras inserta no Código Civil,

NN. quando a sua aplicação, no caso em apreço nos autos, se encontra assim afastada pelas disposições de tal convenção CMR.

OO. Desta forma, fazendo-se a correta aplicação jurídica aos presentes autos, e atento o decorrente dos artºs 11º, 23º e 28º de tal Convenção CMR,

PP. E ainda que se aceitasse como existente qualquer tipo de possível responsabilidade na actuação da Recorrente na expedição internacional de mercadorias em causa – o que não se aceita mas se equaciona para efeitos de raciocínio lógico-,

QQ. Aliás, origem do fundamento da causa de pedir das Recorridas (alegado incumprimento de tratamento documental alfandegário devido às autoridade italianas com aplicação de posterior coima)

RR. Tal eventual responsabilidade da Recorrente encontrar se-ia - sempre- limitada por força da aplicação de tais dispositivos legais da Convenção CMR,

SS. Sem prejuízo, ainda, de atento o disposto no artº 32º de tal Convenção CMR, tal hipotética responsabilidade da Recorrente se encontrar, sempre, à data dos autos, prescrita.

TT. Desta forma, aplicando-se subsumindo-se aos factos provados - nos termos do presente recurso – a legislação aplicável aos mesmos, ou seja, os dispositivos legais insertos na Convenção CMR a uma hipotética responsabilidade da Recorrente nos factos em causa neste autos,

UU. Ao invés do realizado pelo mui doto Tribunal a quo,

VV. Resultará sempre a necessária reformulação da mui douta sentença em apreço,

WW. Sempre no sentido de ser Recorrente absolvida – in totum - no pedido.

XX. Por tudo o supra exposto, deve a mui douta decisão ora em apreço ser por V.Exªs revogada e substituída por outra que,

YY. Reapreciando os factos provados ali insertos nos seus artºs 12º, 16º, 20º, 24º e 35º os dê como correcta julgados nos termos supra evocados,

ZZ. Eliminando as contrariedades e obscuridades na de facto da mui douta sentença, trazendo assim, aos autos, certeza e segurança jurídicas,

AAA. E ainda com a sua correta subjugação à lei aplicável nestes autos, a supra aludida convenção CMR,

BBB. Ordenando-se a anulação da mui douta sentença ora em apreço

CCC. absolvendo, sempre e in totum, a ora Recorrente nos presentes autos

DDD. sendo, assim, dado pleno provimento ao presente recurso e, por via dele fazendo V.Exªs a mui douta e veneranda JUSTIÇA.

Contra-alegaram as Recorridas, pugnando pela total e completa improcedência do recurso, nos termos e com os fundamentos que melhor resultam dos autos.

Colhidos os vistos, cabe decidir.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar.

Assim:

- a da nulidade da decisão recorrida, mediante um duplo fundamento, a verificação das hipóteses das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC;

- a do erro de julgamento da matéria de facto, no que importa aos factos provados sob 12,16,20, 24 e 35 dos factos assentes[1];

- a do acerto ou correcção da solução jurídica da causa e, assim, a da prescrição do direito e a da inexistência de fundamento para a condenação ao abrigo da CTRM, a aplicável e/ou a da inexistência de responsabilidade civil da Ré.

1. Da nulidade da sentença

É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (artigo 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil).

A este propósito, Alberto dos Reis refere «dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento; a segunda enferma de erro de actividade (erro de construção ou formação)»[2].

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica: se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial[3].

Na concepção de Antunes Varela «não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro de construção do silogismo judiciário»[4].

A nossa lei impõe que o silogismo da decisão se ache correctamente estruturado por forma a que a conclusão extraída corresponda às premissas de que ele emerge e a desconformidade não está no conteúdo destas mas no processo lógico desenvolvido. E essa oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta, pois quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento.

Se, ao invés, ocorrer a assinalada desconformidade, a decisão é nula por contradição entre a fundamentação lavrada e o segmento decisório[5].

Está sedimentada na doutrina e na jurisprudência a ideia de que esta nulidade se verifica quando existe um vício real no raciocínio do julgador, na medida em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue direcção distinta.

Em síntese, a nulidade da sentença, por oposição entre os fundamentos e a decisão, só acontece quando aqueles conduzirem a uma decisão diferente.

Com referência já à alínea d) do n.º 1 do mesmo artigo 615º.

Como se aduz no Acórdão do STJ de 06-03-2024, proferido no processo sob o número 4553/21.1T8LSB.L1.S1 e bem assim acessível na base de dados da dgsi, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como o mesmo Supremo Tribunal o tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção). Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s), questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

O convocado vício ocorre quando não existe congruência entre o objecto do processo – tal como as partes e a lei o delimitam –, e a decisão proferida.

Desde logo, sequer se alcança das alegações de recurso a razão ou fundamento para ser convocada a alínea d) do n.º 1do art. 615º do CPC. A sentença recorrida apenas se pronunciou quanto ao pedido deduzido, mediante consideração tão só dos factos oportunamente alegados, sendo que a recorrente discorda já do enquadramento jurídico da decisão quanto ao qual, nos termos expostos, é o tribunal livre.

Não há qualquer “omissão” ou “excesso” da sentença, assim, improcedendo, s.m.o., a arguição desta nulidade da sentença.

Quanto à ininteligibilidade e contradição entre factos e entre fundamentação e decisão…

Importará e já nesta sede, ter em consideração os factos provados na sentença e a sua fundamentação.

A) Resultaram demonstrados na sentença os seguintes factos:

1º A Primeira Autora é uma sociedade comercial, unipessoal, por quotas, que tem como objeto social a “prestação de serviços a terceiros no âmbito da planificação, controle, coordenação e direção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias. Transitários.”,

2.º A qual possui como sua única sócia a Segunda Autora, tudo conforme certidão permanente da primeira Autora válida até 01/07/2021 com o código de acesso ..., junto como Doc. 1 com a petição inicial.

3.º A Segunda Autora é uma sociedade unipessoal de direito italiano e tem como objeto social a “actividade de expedição, embarque e desembarque, transporte de mercadorias terrestre, marítimo, fluvial e aéreo, representantes, transporte rodoviário de mercadorias por conta de terceiros; transporte internacional em geral, agências de navegação aérea”, tudo conforme certidão emitida pela Câmara de Comércio, Indústria, Artesanato e Agricultura de ..., documento e respectiva tradução junto e dá por integralmente reproduzido. – DOC 2 com a petição inicial.

4.º A Ré C..., S,A. é uma sociedade comercial que exerce a acividade transitária, detentora do necessário e competente alvará nº ... emitido pelo I.M.T., sendo, ainda, a associada nº ... da APAT - Associação dos Transitários de Portugal.

5.º No exercício da sua actividade, a Primeira Autora foi contactada pela Ré a fim de lhe prestar um serviço de organização de um transporte de mercadorias, via terrestre, com proveniência de Itália e com destino em Portugal.

6.º A Ré solicitou à 1.ª Autora que esta última lhe organizasse o transporte de 2 paletes de artigos de calçado, em pele de cobra, desde a empresa “G... SRL Unipersonale”, sita em ..., Itália, até às instalações da Ré, sitas em Portugal.

7.º A Ré transmitiu à Primeira Autora, que aquela mercadoria tinha como destino final a sociedade “H...”, sita em ..., Angola, competindo à Ré a sua expedição para este país, conforme facturas juntas sob doc 3 com a petição.

8.º Considerando a natureza da mercadoria em questão, 2 paletes de calçado em pele de cobra;

9.º O facto de a referida mercadoria ter como destino a sua exportação para Angola, um país extra- comunitário,

10.º Tornou-se exigível e obrigatório que aquela mercadoria fosse acompanhada por um certificado “CITES”.

11.º A Primeira Autora aceitou o serviço contratado e, no âmbito da parceria comercial que possui com a Segunda Autora, sua sócia única, solicitou-lhe a organização do transporte daquela mercadoria, desde Itália até às suas instalações sitas em ....

12.º Ficou ainda acordado que todos os procedimentos necessários para a obtenção e emissão do respetivo certificado “CITES” para aquela mercadoria seriam por conta da Ré.

13.º Tendo sido obtido o referido certificado “CITES” emitido pela entidade Italiana responsável para esse efeito, in casu o “Corpo Forestale dello Stato – Servizio Cites” pertencente à Direcção para a Protecção da Natureza do Ministério do Ambiente e da Tutela do Território e do Mar.

14.º Consequentemente, o “Corpo Forestale dello Stato – Servizio Cites”, em 12/06/2014, emitiu a favor da Segunda Autora, o certificado “CITES ...”, válido até 12/12/2014, conforme documento e respectiva tradução que ora se junta e dá por integralmente reproduzido. – DOC. 4 com a petição inicial.

15.º Tendo sido obtido o certificado “CITES ...”, a “B...”, em 05/09/2014, diligenciou pela recolha da mercadoria em questão nas instalações da sociedade “G... SRL Unipersonale”, sitas na cidade ..., Itália.

16.º A qual encaminhou, por via terrestre, para o entreposto aduaneiro da D..., Lda, em ..., devidamente acompanhado do referido certificado “CITES ...”, tudo conforme consta do Bordereau Terra, documento e respetiva tradução junta e se dá por integralmente reproduzido. – DOC. 5

17.º Tendo a mercadoria sido rececionada no referido entreposto aduaneiro a 08/09/2014.

18.º Subsequentemente, a Primeira Autora, no dia 09/09/2014, diligenciou pela entrega daquela mercadoria à Ré, mediante expedição da mesma, tendo, para o efeito, emitido a respetiva guia de transporte com o n.º ..., documento e respetiva tradução que ora se junta e dá por integralmente reproduzido. – DOC. 6

19.º Para o efeito de realização do transporte daquela mercadoria desde as suas instalações até às instalações da Ré, a Primeira Autora recorreu aos serviços da sociedade “E..., Lda.”, a qual, nessa mesma data de 09/09/2014, emitiu a guia de transporte n.º ..., tudo conforme documento que se junta e dá por integralmente reproduzido. - Doc. 7

20.º Tendo entregue a mercadoria e a documentação destinada à sua exportação para Angola nas instalações da Ré “C...”, pelas 16:41:57 desse mesmo dia, conforme auto de receção emitido pela Ré, tudo conforme documento que ora se junta e dá por integralmente reproduzido. – DOC. 8

21.º Concluída a prestação do serviço contratado, a “A...” emitiu a competente fatura à Ré, a qual foi por esta liquidada, conforme documento que ora se junta e dá por integralmente reproduzido. – DOC. 9

22.º Sem que nada o fizesse prever, a “B...”, no dia 5 de Fevereiro de 2019, foi notificada pelo GRUPPO CARABINIERI FORESTALE DI AREZZO – Núcleo Carabinieri C.I.T.E..S., alegadamente por, “No ano de 2019, no dia 04 do mês de fevereiro as horas 10,00, os abaixo assinados Uficiais de P.G. Tenente Coronel FF, Tenente cs GG e Brigadeiro Capo HH pertencentes ao Núcleo em intestação acordaram o seguinte: “O Senhor V II nascido a ..., em qualidade de: Presidente do Conselho de Administração da Empresa A... S.P.A. OVER SEAS TRANSPORT SYSTEM com sede em via ..., ... na municipalidade de ... Encarregado da empresa G... S.R.L. Sociedade Unipessoal de ... de cuidar das próprias operações de reexportação de mercadoria incluída na II apêndice da CITES e no anexo B do Regulamento CE n° 338/97 e sucessivas modificações, não providenciaram, ao ato da reexportação da acima citada firma, afixar os vistos necessários no certificado de reexportação emitido por esse escritório em data de 12/06/2014 n. ..., Intestado a Empresa G... S.R.L. Sociedade Unipessoal – Via ..., ... ..., assim como previsto da normativa vigente.”, tudo conforme notificação da entidade italiana responsável, o “Grupo Carabinieri Forestale di Arezzo – Nucleo Carabinieri Cites”, documento e respetiva tradução que ora se junta e dá por integralmente reproduzido. – DOC. 10.

23.º Tendo sido imputado por tais factos à “B...” o pagamento de uma coima no valor de € 10.000,00€ (dez mil euros).

24.º Atendendo a que o certificado CITES ..., emitido pelo “Corpo Forestale dello Stato – Servizio Cites”, em 12/06/2014 e válido até 12/12/2014 (junto como Doc. 4) acompanhou a referida mercadoria que foi entregue pela “A...” nas instalações da Ré C..., S.A.

25.º A A... interpelou a Ré a quem solicitou cópia do certificado CITES ..., a fim de proceder à impugnação daquele ilícito administrativo, conforme documentos que se juntam e dão por integralmente reproduzidos - DOCS. 11 e 12 com a petição.

26.º Sucede que, sem ter apresentado qualquer explicação à A..., a Ré não forneceu qualquer resposta.

27.º Tão pouco fez prova de ter entregue o certificado CITES ... aquando do despacho de exportação da mercadoria em questão na sua expedição para Angola.

28.º Perante esta atitude a “B...” viu-se confrontada com a obrigação de proceder ao pagamento da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) a título de coima pela infração em causa,

29.º O que efetivamente veio a acontecer no dia 13/03/2019, tudo conforme documentos que ora se juntam e dão por integralmente reproduzidos. – DOCS. 13 e 14)

30.º Em virtude deste pagamento, a “B...” solicitou à “A...” que esta reclamasse junto da Ré o pagamento da referida quantia.

31.ºA “A...”, dirigiu vários emails à Ré, nesse sentido – cfr. Docs. 10 e

32.º Bem como interpelou a Ré mediante carta expedida sob registo, tudo conforme documento que ora se junta e dá por integralmente reproduzida. – DOC. 15.

33.º Não obstante estas interpelações, e pese embora a Ré bem saiba que o reembolso da quantia dos € 10.000,00 pagos pela B..., resultam de uma omissão sua, jamais se disponibilizou para o fazer,

34.º Recusando inclusive o seu pagamento (cfr. doc. 12 – email de 10/08/2019 pelas 09:42)

35.º A ré C... S.A., apesar de estar na posse de toda a documentação necessária para o efeito, jamais a fez instruir no processo de despacho de exportação da mercadoria em questão.

36.º A instrução do processo de exportação era da competência da ré.

37.º A Ré participou na expedição em causa na sua qualidade de transitária e em nome e por conta da sua cliente “H...”, sita em Angola.

38.º Aquando da receção da mercadoria no seu armazém, em 09/09/2014 (Doc. 8 da petição inicial e DOCS. 2 e 3 juntos e que se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais) entregues à Ré pela transportadora contratada pela Autora A... para o efeito, a E..., Lda. (cifra Doc. 7 junto à petição inicial),

39.º A qual se encontrava acondicionada em 3 volumes (3 caixas) (cifra Doc. 7 junto à petição inicial),

40.º Procedeu a Ré à emissão dos recibos de entrada de tais mercadorias em armazém.

41.º Provado com o esclarecimento de que resultando precisamente dos mesmos não só a quantidade de volumes recebidos (2 + 1), mas também, pelo menos, alguns dos documentos que os acompanhavam nessa entrada, 4.

42.º Designadamente, entre outros,

---- “Referência ...”, no Doc. 8 junto à petição inicial e no DOC. 1 ora junto, e

---- “Referência ...” no DOC. 2 junto.

43º Remessa essa que veio, de facto, a suceder em 30/10/2014 (DOC. 5),

44.º O transporte da mercadoria fez todo o seu trajeto desde Itália a Portugal, no regime de grupagem.

45.º Nunca foi suscitada á ré a questão da necessidade de falta de qualquer documento por qualquer das entidades aduaneiras então intervenientes em tal remessa até ao destino final das mercadorias.

46.º Á data do transporte das mercadorias, a ré havia transferido a sua responsabilidade civil, decorrente da sua atividade transitária por intermédio da Apólice nº ... para a F..., Companhia de Seguros S.A., com sede na Rua ..., ... Lisboa.

47.º A intervenção da Ré D..., limitou-se apenas e tão somente ao armazenamento (que não manuseamento) da mercadoria, foi realizado no âmbito de relações comerciais estabelecidas com a 1ª A., e só com esta,

48.º A R., a pedido da 1ª A., e só desta, limitou-se à receção de cargas provenientes de Itália e posterior entrega e/ou disponibilização das mesmas de acordo com as expressas instruções da Autora.

49.º E tudo sem que do tratamento de qualquer documentação (vulgo, gestão documental) relativa à mercadoria pura e simplesmente armazenada estivesse a R. encarregue e/ou tratasse – documentação essa que nunca em momento algum foi entregue/disponibilizada e/ou do conhecimento da R.,

50.º Mercadoria essa que a R., como dos autos resulta, teve em armazém cerca de 24 (vinte e quatro) horas, que não mais.

51.º E que, segundo as expressas instruções da própria 1ª A., a R. entregou à transportadora que aquela identificou.

52.º Nenhuma outra intervenção tendo tido a R. no processo em apreço,

54.º A sociedade E..., Lda, limitou-se a efetuar o transporte da mercadoria desde o entreposto da D..., até ás instalações da ré.


*

Absolutamente falha de sentido e fundamento a argumentação da Recorrente quanto à ininteligibilidade ou contradição da sentença recorrida, que se reconduz à leitura isolada, truncada, interessada e melhor se diria interesseira, desarticulada e mediante comparação “abstracta” de factos (e sequer assim se vislumbrando a contradição a que se reconduz).

Reconheça-se já a imprecisão ou incorrecção de parte dos factos assentes na decisão recorrida, quando reconduzidos ao teor de documentos juntos. Assim, desde logo, a emissão da CITES à 2ª Autora, quando efectivamente o foi antes, como é mister, à entidade exportadora mesma, como resulta já do teor da cópia do documento junta sob 4 com a petição inicial[6]

De todo o modo, como qualquer articulado, a sentença reconduz-se a um acto jurídico não negocial, ao qual, nos termos e para os efeitos do artigo 295º do CC, se aplicam as disposições gerais da interpretação do negócio jurídico.

É consensual no STJ que a decisão proferida em demanda judicial constitui um verdadeiro acto jurídico, a que se aplicam (por analogia) as regras reguladoras dos negócios jurídicos – art. 295.º do CCiv. –, razão pela qual os preceitos que disciplinam a interpretação da declaração negocial – arts. 236º-238º do CCiv. – são aplicáveis à interpretação de uma qualquer decisão judicial, importando, desde logo, a imputação do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto – art. 236º, 1, do CCiv.[7] Mas não só[8]: “[s]endo as decisões judiciais actos formais – amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida –, tem de se aplicar à respectiva interpretação a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento ou escrito que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”[9], ou seja, o estatuído pelo art. 238º, 1, do CCiv. para os «negócios formais».

Neste contexto, essa tarefa interpretativa terá que lançar mão da adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, assim como aos seus próprios fundamentos, de acordo com uma regra de presunção de regularidade do acto decisório em relação à lei[10], para além da sua parte dispositiva, que, juntamente com essa fundamentação, são factores integrantes básicos e insuperáveis da sua estrutura[11]. Nessa fundamentação encontram-se os “antecedentes lógicos” dessa mesma decisão judicial, que tornaram a parte dispositiva possível e inteligível[12].

Indo mais longe, urge ainda, se necessário, surpreender o “iter genético” da decisão, atendendo ao desenvolvimento e às vicissitudes do processo concreto, nomeadamente perscrutando a petição inicial, “onde o autor configura o objecto do processo, expondo a(s) causa(s) de pedir e formulando o(s) pedido(s)”, e ao “conteúdo dos demais actos processuais anteriores (…) à prolação da sentença ou acórdão”[13]; por fim, atenda-se ainda “outras circunstâncias, mesmo que posteriores, que funcionem como meios auxiliares de interpretação, na medida em que daí se possa retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar”[14].

Desde logo, na medida da remissão na sentença recorrida nos concretos factos havidos como demonstrados aos documentos em que se estribou a convicção (e impondo-se concluir que em causa documentos juntos com a petição), não se alcança a “dúvida” da Recorrente ou a insuficiência da decisão, nem colhe a argumentação de que a remissão para o teor dos documentos foi genérica ou geral, que não caracterizada quanto a cada facto quanto a cada um dos referidos documentosSem esforço se alcança, como de resto o alcançou a Recorrente, como se infere do recurso apresentado, os documentos em causa e o relevo probatório respectivo. Nem omissão, nem ininteligibilidade, pois.

Certo que no actual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório. Em causa já a alínea b) do artigo 615º do CPC, não invocada.

Sempre, contudo, importa distinguir a falta de fundamentação, geradora da nulidade do acto decisório, da fundamentação errónea ou contraditória, seja a nível factual, seja a nível jurídico que constitui erro de julgamento.

Ora, existente e compreensível a fundamentação da convicção probatória, ainda no que tange aos documentos utilizados.

E ausente também a apontada contradição. É que uma coisa é a obrigação de lograr documentação imprescindível e obrigatória a instruir o transporte da mercadoria, tendo em vista o seu destino final, dependente já dos termos concretos do contrato outorgado entre a 1ª A e a Ré e outra a pessoa jurídica em nome de quem a emissão do documento é feita, relacionada já com a qualidade no negócio de que o transporte é função… Logica e juridicamente nada impede que a Ré tenha cometido à Autora apenas a execução do transporte e a organização deste, mantendo, na medida até da relação primeira com a cliente angolana, a responsabilidade ou encargo de acautelar a documentação, mesmo na medida em que a Cites é a emitir à entidade exportadora mesma…

E que dizer já da argumentação nos termos da qual não se alcança entre quem foi estabelecido o acordo quanto à obtenção do documento Cites? Manifestamente que em causa a alegação na petição de que tal obrigação foi assumida pela Ré, no confronto com a Autora, naturalmente…

Sem sentido a pretendida contradição.

A contradição entre os fundamentos e a decisão geradora da nulidade da sentença verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis. Sempre, para a integração desta patologia decisória não releva a contradição que possa eventualmente existir entre os factos provados e os não provados e a motivação desses juízos de facto.

Analisada a estrutura da decisão e as conexões existentes entre os motivos de facto e de direito a que faz apelo e o veredicto final verifica-se que existe uma lógica na arquitectura da sentença e, dessa forma, a invocada nulidade não se verifica.

Aliás, no conjunto de considerações e conclusões tiradas pela recorrente resulta até, não obstante o apelo ou recondução ao regime das nulidades da sentença, que a mesma se dirige antes claramente à injustiça do decidido.

Se a prova convocada justifica ou não tal aquisição probatória é questão que tem a ver com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento, mas que não está associada à construção lógica da sentença, a qual se mostra correctamente formulada.

Assim sendo, carece de fundamento a arguição efectuada ao abrigo do artigo 615º do Código de Processo Civil, não se evidenciando qualquer das nulidades argumentadas.


2. Da impugnação da matéria de facto

Nesta sede, tendo-se por cumpridos os pressupostos do conhecimento respectivo[15], caberia analisar a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pela recorrente, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, por forma a apurar se a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise. Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[16], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia. «Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Em resumo, reapreciação dos meios de prova, de todos os meios de prova, mas verificação ainda da correcção do juízo probatório constante da sentença recorrida, em termos de não estar em causa a substituição de um juízo probatório possível por outro, mas a confirmação da evidência da apreciação errada da prova pelo juiz recorrido.

Sempre a insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).

De todo o modo, a impugnação da matéria de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).

Com relevo decisivo na situação decidenda, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).

A reapreciação da decisão matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio de o recorrente poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que o recorrente pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente.

Logo que faleça a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão da matéria de facto poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito seja-o em sentido favorável, como desfavorável ao recorrente, deixa de ter justificação a impugnação deduzida, traduzindo-se antes na prática de um ato inútil, por isso ilícito.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que nada impede o Tribunal da Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil. Assim, “Não viola o dever de reapreciação da matéria de facto a decisão do Tribunal da Relação que não conheceu a matéria fáctica que o Apelante pretendia que fosse aditada ao factualismo provado (factos complementares e concretizadores de factos essenciais) tendo subjacente a sua irrelevância para o conhecimento do mérito da causa (por a mesma, por si só, na ausência de demonstração de factualidade essencial para o efeito, não poder alterar o sentido da decisão (…)”. Na verdade, “se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância”[17].

Ora, temos para nós que é justamente isso que sucede na situação decidenda, não obstante, reconheça-se, toda a audiência de julgamento ter decorrido à volta dos inócuos ou irrelevantes (sob a perspectiva da convocada causa de pedir, no enquadramento jurídico cabível) factos: da entrega ou falta desta do Cites pela A. à Ré e de quem se “obrigou” a lográ-lo junto da competente autoridade italiana…

Quanto a este último, tendo sido emitido/obtido, queda-se perfeitamente irrelevante quem assumiu o compromisso da sua obtenção, já que a questão colocada vem a ser, como é mister concluir-se, a da não entrega/anexação/afixação do mesmo à documentação que instruiu a expedição da mercadoria para Angola, a qual foi, como todos admitem, pela Ré…

Outrossim, quanto à entrega ou falta de entrega de tal documento pelas AA à Ré, independentemente da questão de a quem cabia a sua obtenção, não vindo posto em causa pela Ré que o não juntou, como provado, na expedição, a seu cargo, da mercadoria para Angola, ciente já da natureza da carga (posto que são as AA as subcontratadas da Ré e não o inverso, para o transporte entre Itália e Portugal, sendo certo que, como adquirido e não posto em causa no recurso, mencionando a factura subjacente a ambos os transportes – de Itália para Portugal e de Portugal para Angola- o Cites respectivo, entregue ou não o documento com os demais que acompanhavam a mercadoria, cabível na esfera de responsabilidade e disponibilidade da Ré diligenciar pelo seu envio/reenvio/junção[18]

Tudo para concluir que a discussão da matéria que a Recorrente coloca em causa se revela de uma inutilidade ou irrelevância concludentes…com o que dele se não conhecerá por absolutamente inútil.

A questão prende-se já e directamente com o segmento recursivo que põe em causa o acerto jurídico da decisão[19], sob as conclusões MM) e PP), ainda quando sem se dirigirem ao âmago da questão, pelo que passará a explicar-se nessa sede.

Também quanto às alegações recursivas se impõe a sua interpretação, sendo que, ainda quando conclusivamente referidas à ausência ou falta de qualquer tipo de possível responsabilidade na actuação da Recorrente, convocam a apreciação dos fundamentos jurídicos da decisão revidenda, no que tange à afirmação dos pressupostos da responsabilidade civil contratual.

Sem prejuízo, por serem determinantes agora, evidencia-se a necessidade de corrigir ou rectificar um dos factos assentes e a de eliminar/desconsiderar uma afirmação de um outro constante que se reconduz antes à matéria eminentemente jurídica.

Assim,

Imprescindível se mostra já corrigir/modificar/alterar, nos termos e para os efeitos do art. 662º, n.º 1 do CPC, o facto sob 14 dos factos assentes, como o impõe o mero confronto com o documento junto pelas AA mesmas sob 4 com a petição inicial, na medida em que, como é lógico e dele resulta, o certificado não foi emitido às AA, mas à exportadora, como era mister…

Assim, o ponto 14 passará a ter a seguinte redacção:

14.º Consequentemente, o “Corpo Forestale dello Stato – Servizio Cites”, em 12/06/2014, emitiu a favor da exportadora G... S.R.L., o certificado “CITES ...”, válido até 12/12/2014, conforme documento e respectiva tradução que ora se junta e dá por integralmente reproduzido. – DOC. 4 com a petição inicial.

Acresce que sob 33 dos factos provados se acha demonstrado um segmento que não caracteriza um verdadeiro e efectivo facto, mas um próprio juízo e de direito.

Assim é que ali se consignou que: 33.º Não obstante estas interpelações, e pese embora a Ré bem saiba que o reembolso da quantia dos € 10.000,00 pagos pela B..., resultam de uma omissão sua, jamais se disponibilizou para o fazer.

Desde logo, o art. 607/4 do CPC, nos termos do qual o tribunal só deve consignar os factos que julga provados e não provados, exclui a pronúncia, nesta sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.

A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), relatado por Fernanda Isabel Pereira, no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”

Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784, https://blogippc.blogspot.com/ [17.10.2023] (O autor retomou o tema em no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html), que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…).

A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. (…) Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”

Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento eclético.

Com efeito, ainda na vigência do CPC de 1961, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007 (07A3060), relatado por Nuno Cameira, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”

Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), relatado por Abrantes Geraldes, considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”

O relator deste Acórdão, Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”

Sem prejuízo, como salientado no Acórdão da Relação de Guimarães de 11.11.2021 (671/20.1T8BGC.G1), relatado por Raquel Batista Tavares, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… (e, acrescentamos, a causa de defender). De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”.

No mesmo sentido, o Acórdão da mesma Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1), relatado por Pedro Maurício, sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que:“Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”

Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.

Ainda quando os factos conclusivos estejam diretamente relacionados com o thema decidendum, apenas são a desconsiderar quando impeçam ou dificultem de modo relevante a percepção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor. Certo estar o objeto da pretensão dependente do significado real da expressão técnico-jurídica proposta (resultam de uma omissão sua), há que concluir que estamos perante matéria de conclusiva de direito e que tal expressão não pode ser submetida a prova e integrar a decisão sobre matéria de facto.

Como se adiantou, afirmações conclusivas, sobretudo quando correspondam ao objeto do litígio ou à questão a decidir, confundindo-se com o ‘conceito chave’ da solução jurídica da causa, devem ser excluídas ou consideradas não escritas. Como, mais uma vez, se concluiu no aludido aresto, deve-se ter por “não escrita” “a enunciação [que se] revele conclusiva”, mormente nos casos em que, citando o Acórdão do STJ de 14-07-2021, essa enunciação encerre um juízo “contendo (…) em si mesmo a decisão da própria causa” ou em que “se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”.

Mais são de evitar conclusões, ainda quando não jurídicas, despojadas de factos ou conteúdo, vagas ou genéricas, da qual não possa retirar-se efeito útil algum.

Temos para nós que o segmento referido (resultam de uma omissão sua) se reconduz justamente a um juízo conclusivo que vai directamente referido às questões de direito, que não de facto, assim, a do nexo causal que integra como pressuposto necessário a hipótese convocada de responsabilidade civil.…

Decide-se, pois, da sua eliminação, sendo a questão da causação do dano, mediante o pagamento, pela conduta da Ré a resolver em sede própria, a do aspecto jurídico da causa.

Altera-se, pois, o facto em apreço nos seguintes termos, eliminando-se o segmento conclusivo jurídico: 33.º Não obstante estas interpelações, a Ré jamais se disponibilizou a reembolsar a Autora da quantia de 10.000 EUR despendida por ela no pagamento da contraordenação.


3. Do erro de juízo no enquadramento jurídico da causa

Inadmissível a apreciação já da questão da prescrição, novamente suscitada, por a mesma estar abrangida pelo efeito negativo do caso julgado formal integrado pelo conhecimento da mesmíssima questão em sede de audiência prévia, no sentido da sua improcedência, sem impugnação por recurso, como era mister, atenta a natureza de mérito da decisão (cfr. art. 644º, n.º 1, al. b) do CPC)[20]/[21].

Improcedente bem assim a argumentação nos termos da qual a Convenção CMR é incompatível com a aplicação de regras de direito das obrigações “comum”, para além do âmbito das normas especiais naquela directa e expressamente reguladas…

Assim é que, como vem sendo uniformemente decidido, a Convenção CMR estabelece um regime especial, mormente em relação ao critério de relevância da culpa e suas consequências no plano ressarcitório (entre outras disposições particulares, rectius, especiais), em caso de incumprimento do contrato de transporte, mas não afasta a aplicação das regras gerais relativas ao incumprimento de obrigações contratuais, na parte em que não disponha de forma especial/diversa, de acordo aliás com o regime dos contratos típicos, sem distinção, por conseguinte…

A título meramente exemplificativo, o Ac. do STJ de 29.04.2010, processo 982/07.1TVPRT.P1.S1 e, por todos, de forma exemplar, o Acórdão desta Relação de 11.09.2023, 1471/18.7T8VRF.P1[22], nos termos do qual: O contrato de transporte rodoviário internacional de mercadorias, acordo celebrado entre transportador e expedidor nos termos do qual o primeiro se obriga, mediante remuneração, a deslocar mercadoria, por meios rodoviários, entre dois países e a entregá-las ao destinatário, rege-se: i) pelo direito nacional; e ii) pelas normas da CMR (Tratado multinacional em que o Estado Português é uma das partes Contratantes). Aplica-se o direito nacional em tudo o que a convenção não disponha (designadamente no que concerne à formação do contrato e à responsabilidade do transportador por factos anteriores à tomada da mercadoria e por factos posteriores à entrega da mesma ao destinatário), regendo a Convenção a execução do contrato de transporte, que se segue à tomada da mercadoria e vai até à entrega ao destinatário.

Assim, perfeitamente configurável, ainda no domínio deste contrato, a prefiguração de um incumprimento por violação de deveres acessórios de conduta.

Para a cabal explicitação destes e da sua natureza recorremos, data venia, ao Acórdão do STJ referido em último lugar, o de 29.04.2010, que seguiremos de muito perto, com as adaptações cabíveis à situação decidenda.

Como é sabido, o cumprimento do contrato deve ser pontual – art. 405º do Código Civil – no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto, não se satisfaz, em tempo de cada vez maior eticização das condutas negociais segundo os deveres do tráfego inerentes a cada tipo contratual, com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa-fé) entre credor e devedor, sobretudo, no domínio das relações intersubjectivas, mormente nos negócios jurídicos, avultando o dever de cooperação, de entre os deveres acessórios de conduta.

As partes sabendo do interesse económico do contrato reflectido na natureza das prestações que lhes incumbem não podem limitar-se, diríamos a uma actuação formal, automatizada, que desconsidere os interesses da parte contrária. Desenham-se, pois, deveres acessórios de conduta, implicando a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, avultando o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada.

Deveres acessórios de conduta que, na definição de José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”-1986, 42, nota 8: “São os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, págs. 124/125, depois de referir que, além dos deveres principais ou típicos da prestação nos contratos nominados, existem outros a que se pode chamar deveres secundários ou acidentais, define os deveres de conduta como aqueles que: “Não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cfr. art. 817º e segs.) são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”.

Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762º, nº2, do Código Civil – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.

O Professor Menezes Cordeiro, em “Tratado de Direito Civil Português – II – Direito das Obrigações – 2010 – pág. 365 e segs. – antes de abordar a problemática do cumprimento e do incumprimento do contrato-promessa, alude aos conceitos de cumprimento e do incumprimento, escrevendo acerca daquele: “Diz-se cumprimento a realização da prestação devida. Pela natureza das coisas, estamos perante uma realidade nodal, no seio das obrigações: a concretização, pelo devedor ou por terceiro, do programa previsto pela obrigação em causa.

Podemos simplificar fazendo corresponder, ao cumprimento, quatro princípios:

-princípio da correspondência: a actuação adimplente deve reproduzir, qualitativamente, o figurino abstracto prefixado pela obrigação;

-princípio da integralidade: a prestação não deve ser efectuada por partes (763 °/1) prevalecendo uma indivisibilidade de raiz:

-princípio da concretização: a conduta devida deve realizar, no terreno, o interesse do credor;

-princípio da boa fé: na execução do vínculo, há que acatar a medida de esforço exigível e os deveres acessórios existentes, de modo a acautelar os valores fundamentais do ordenamento, através da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente (1) (762° /2).

De todo o modo, o princípio geral da responsabilidade civil obrigacional, enunciado no art. 798º, do Código Civil, supõe um ilícito (o incumprimento de obrigação ou de um dever acessório de conduta, necessariamente emergentes do contrato mesmo concretamente outorgado[23]), a culpa, um dano e uma relação causal entre aquele e este, sendo que naquele regime há uma presunção geral de culpa do devedor (nº1, do art. 799º, de tal diploma legal).

Assim, os limites da boa-fé podem-se equacionar como limitação no exercício de um direito subjectivo, mas também como fonte de especiais deveres de conduta.

A relação de crédito é uma relação obrigacional complexa, contendo, além de um feixe de direitos de crédito e deveres de prestação, deveres secundários de prestação, destinados a possibilitar o fim contratual, protegendo pessoas e bens da outra parte “que podem ser afectados em conexão com o contrato (Erhaltungsinteresse), independentemente do interesse no cumprimento”, denominados de deveres “de protecção”, “de conduta” ou “de diligência”, ou “laterais”, dada a relação de confiança que o contrato fundamenta (MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pp. 337-9).

O dever de adopção de comportamentos que se pode esperar entre “contratantes honrados e leais”, tendentes a conseguir a consecução dos fins do contrato, enquadra-se na matriz em que se traduz a cláusula geral da boa-fé, “ou seja, a regra de valoração da conduta das partes como honesta, correcta, leal”, “implicando a sua culposa infracção, por qualquer dos sujeitos da obrigação, responsabilidade civil com fundamento em violação do contrato (art. 798º) (MOTA PINTO, ob. cit., p. 341). E a boa-fé, imposta nos termos dos arts. 334º e 762º CC, refere-se tanto aos deveres principais ou típicos de prestação e aos deveres secundários ou acidentais, como também aos deveres acessórios de conduta quer pelo lado do devedor, quer pelo lado do credor (v.g., evitar a maior e desnecessária oneração da prestação).

Ora, e é o que, finalmente, explica a total inutilidade/irrelevância da matéria de facto posta em causa pela Recorrente, que justificou a decisão supra pela sua não apreciação, do ponto de vista do enquadramento jurídico da causa, isto é, perante a causa de pedir mesma, a contratação pela Ré à 1ª A, que o sub-contratou à 2ª, do transporte da mercadoria da Itália para Portugal, é insusceptível de gerar qualquer dever acessório da Ré perante as AA de cumprir a obrigação legal de instruir com o Cites a reexportação da mercadoria…

As AA, nos termos alegados por elas mesmas, são estranhas a essa relação, essa sim a geradora do ilícito contra-ordenacional imputado…

Desde logo, não está em causa o incumprimento da obrigação mesma de obtenção do certificado[24].

Assente-se já em que a Ré estava obrigada legal e contratualmente a instruir a exportação pela qual foi a responsável com o Cites. Veja-se, de resto, o teor deste, sob documento 4 junto com a petição inicial, nos termos do qual é a “entregar ao escritório alfandegário de fronteira no lugar de introdução” da mercadoria.

Essa, contudo, é uma obrigação própria da Ré, perante as autoridades alfandegárias e perante a sua cliente angolana (como, admita-se, perante a exportadora italiana, enquanto contraparte na compra e venda subjacente ao transporte), que não um dever acessório de conduta do contrato de transporte que celebrou com a Autora, repita-se, nos termos alegados e assentes, a organização e transporte da mercadoria da Itália para Portugal…

Não resulta caracterizado mediante a não instrução da exportação para Angola com o certificado Cites o incumprimento de um qualquer dever emergente deste contrato ou relação[25], o do transporte terrestre da mercadoria entre Itália e Portugal.

O que ressalta já é a autoria própria da contra-ordenação pela Ré e, assim, um incumprimento da SUA obrigação de transporte, no confronto com quem lho deferiu.

A Ré obrigou-se perante a sua cliente a realizar o transporte marítimo e fê-lo, aí sim, mediante a omissão de um dever acessório de conduta, o de instruir devidamente a mercadoria com a documentação legalmente exigida e, assim, o Cites… Contudo, esse dever afirma-se perante o cliente da Ré e, admita-se, a contraparte do negócio subjacente e, pois, a empresa italiana exportadora….

A ilicitude contratual é relacional e respeita, assim, aos termos das obrigações reciprocamente assumidas, admitindo-se, excepcionalmente, a protecção de terceiros, na medida em que relacionados já ao contrato fonte. Donde, na medida em que a Ré não acautelou a posição da vendedora/exportadora, passível de ser responsabilizada perante aquela (ainda quando o contrato de transporte o tenha sido com a sociedade Angolana importadora). Não já perante as AA que são totalmente estranhas a esse outro contrato, no âmbito do qual surgido o apontado dever acessório.

Ausente, pois, a ilicitude da imputada conduta, na medida em que não se vislumbra um dever (ainda que acessório) da Ré para com as AA de instruir a exportação com o documento, tenha ou não sido entregue por elas…

E, decisivamente, ausente o nexo causal jurídico entre a conduta e o dano.

Basta, de resto, atentar nos termos da imputação contraordenacional que se constituiu como a causa da pretensão de ressarcimento, nos termos da matéria assente.

Já se consignou, em sede de alteração da matéria assente, que o certificado Cites não foi emitido às AA, mas à exportadora, como era mister…

E foi a esta, como resulta dos termos da imputação das autoridades italianas, que foi assacado o comportamento sancionado, sendo-o à A., como dela resulta, como e enquanto “encarregado da empresa G... SRL de cuidar das próprias operações de reexportação da mercadoria incluída no apêndice II da Cites”.

Na medida em que, nos termos alegados pelas AA mesmas, essa encarregada foi antes a Ré, no que importa ao transporte em que foi omitida a obrigação legal, a causa do pagamento da coima vem a sê-lo já a da não apresentação de defesa consentânea e eficiente pela Autora, assumindo, pois, pelo pagamento, uma responsabilidade que não era sua.

Mas a esse comportamento é já alheia a Ré.

E agora ainda quanto à caracterizada e manifesta violação já de um dever acessório do contrato outorgado entre as partes nestes autos, que resultou tê-lo sido pela Ré e perante as AA…Assim, o de informar as AA que não fora instruído o processo de exportação que lhe cabia com o dito certificado[26].

Nessa medida, afirmada a ilicitude da conduta da Ré, já que, alheia aos deveres de lealdade e protecção da contraparte, que se mantêm mesmo após o cumprimento das obrigações reciprocamente emergentes de um contrato, por força do princípio da boa fé, é o nexo causal entre essa conduta e o dano que falece também.

Na verdade, tendo resultado provado que as AA solicitaram à Ré informações, após a notificação das autoridades italianas, por forma a instruírem a sua defesa e que a Ré as não prestou, a verdade é que não é a ausência de tal informação a causa jurídica do dano.

Este resulta da assunção do pagamento pela A. de uma obrigação alheia, da Ré, pois…

Retomam-se os termos da imputação contra-ordenacional: apenas a demonstração do envio do certificado com a mercadoria para Angola (manifestamente impossível por o não ter sido)[27] teria aptidão defensiva. Com o que irrelevante que a Ré nada tenha dito à A., na medida em que não havia informação a prestar que pudesse evitar o cometimento da infracção, pela Ré, reitera-se.

Tudo, pois, para dizer, efectivamente, da inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar (o inadimplemento de deveres laterais de protecção emergentes de contrato) e, assim, da improcedência da acção[28].

III.

Concede-se, pois, provimento à apelação e, revoga-se a decisão recorrida, absolvendo-se a Ré dos pedidos contra si deduzidos.

Custas em ambas as instâncias pelas AA.

Notifique.


Porto, 22 de Maio de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Manuela Machado
Paulo Duarte Mesquita
______________
[1] Reconduz-se já ou também a Recorrente aos temas da prova, com o que emergindo que mais põe em causa os factos não provados e a totalidade destes.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pág. 122.
[3] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 670.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 686.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/02/2005, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 09/07/2014, in www.dgsi.pt.
[6] Bem assim a referência à solicitação pelas AA à Ré do documento Cites mesmo, quando do teor das comunicações para as quais remete o facto respectivo mais resulta que as AA reclamavam, o que está de resto de acordo com os termos da contra-ordenação imputada, informação e prova sobre o cumprimento da entrega ou junção daquele certificado em sede de procedimentos aduaneiros de embarque da mercadoria para Angola, como era mister…
[7] V. Ac. do STJ de 28/3/2019, processo n.º 54/14.2T8VRS.E1.S1, Rel. OLIVEIRA ABREU, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ, 2019, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/civel_sumarios_2019.pdf, págs. 241 e ss, ponto III do Sumário.
[8] Aqui nos reconduzimos, pela amplitude dos elementos referenciais da interpretação ali aludidos, ao Ac. do STJ de 24.11.2020, no processo 22741/12.0YYLSB-A.L1.S1, acessíven na base de dados da dgsi.
[9] V. Ac. do STJ de 3/2/2011, processo n.º 190-A/1999.E1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt.
[10] JOÃO DE CASTRO MENDES, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, Lisboa, 1974, pág. 255.
[11] V., por ex., os Acs. do STJ de 21/10/2010, processo n.º 155/03.2TBMUR.P1.S1, Rel. SERRA BAPTISTA, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ, 2010, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2010.pdf, pág. 891, e de 5/3/2009, processo n.º 331/09, Rel. OLIVEIRA ROCHA, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ, 2009, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2009.pdf, pág. 162 (“A interpretação da sentença exige que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva: a identificação do objecto da decisão passa pela definição da sua própria estrutura, constituída pela correlação teleológica entre a motivação e o dispositivo decisório, elementos que reciprocamente se condicionam e determinam, fundindo-se em síntese normativa concreta.”: ponto IV do Sumário).
[12] V. PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo. O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 64-65; entre outros, Acs. do STJ de 19/9/2019, processo n.º 6374/16.4T8GMR-A.G2.S1, Rel. GRAÇA AMARAL, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ, 2019 cit., págs. 596-597 (ponto V do Sumário), de 28/3/2019, cit. nt. (5), e de 8/6/2010, processo n.º 25163/05.5YYLSB.L1.S1, Rel. URBANO DIAS, in www.dgsi.pt.
[13] V. REMÉDIO MARQUES, “Em torno da interpretação das decisões judiciais. O limite temporal final para a definição dos direitos conferidos ao trabalhador no quadro das remunerações intercalares por despedimento ilícito”, Revista Lusíada Porto, n.os 7-8, 2013 (http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/ldp/article/view/2087/2203), pág. 87, 92-94.
[14] Assim, o mais longínquo Ac. do STJ de 8/5/2008, processo n.º 1113/08, Rel. OLIVEIRA ROCHA, in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2008.pdf, págs. 358-359 (ponto VI do Sumário).
[15] Pode dizer-se que, em geral, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem observado, fundamentalmente, um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo que os ónus previstos no art. 640.º do CPC têm em vista garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso. Deste modo, “a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640.º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco” , Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de junho de 2020 (Rijo Ferreira), proc. n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:1519.18.2T8FAR.E1.S1/.
Vide, no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de julho de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1, – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4081.17.0T8VIS.C1.A.S1/; de 16 de junho de 2020 (Henrique Araújo), proc. n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:8670.14.6TB8LSB.L2.S1/; de 5 de fevereiro de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 3920/14.1TCLRS.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:3920.14.1TCLRS.S1/. Para acesso a mais jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o tema do ónus de impugnação da matéria de facto, pode consultar-se o caderno de jurisprudência temática disponível in ttps://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/11/onus_-impugnacao_materia_facto-.pdf.
[16] Ob. citada, págs. 274 e 277.
[17] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de março de 2019 (Maria do Rosário Morgado), proc. n.º 8765/16.1T8LSB.L1.S2 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.
Vide ainda, a este propósito, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de fevereiro de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4821/16.4T8LSB.L1.S2 - (“I - O princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. II - Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada. III - O acórdão da Relação que altera os valores individuais da indemnização por danos não patrimoniais fixados na 1.ª instância e não impugnados por nenhuma das partes incorre em ofensa de caso julgado”) – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4821.16.4T8LSB.L1.S2/; de 28 de janeiro de 2020 (Pinto de Almeida), proc. n.º 287/11.3TYVNG-G.P1.S1 (“(…) IV - Decorre do princípio da limitação dos actos (art. 130.º do CPC), que, no processo, apenas devem ser praticados os actos que se revelem úteis para a resolução do litígio. Este princípio, previsto para os actos processuais em geral, deve ser também observado no âmbito da apreciação da impugnação da decisão de facto, se se verificar que daí não advirá qualquer elemento com relevo para a decisão de mérito”) – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:287.11.3TYVNG.G.P1.S1/; de 14 de janeiro de 2020 (Jorge Dias), proc. n.º 154/17.7T8VRL.G1.S2 - (“I - Se existem factos que “não chegaram a ser valorados”, verificar-se-á, eventualmente, erro na apreciação da matéria de facto, ou falta a aplicação do direito aos factos, o que constituirá omissão de pronúncia, mas não violação de caso julgado. II - O conceito de passagem com “normalidade” é um conceito apreendido pela generalidade das pessoas. As pessoas que conhecem o caminho sabem responder se quem por lá transita, pessoas, animais ou, carros, incluindo tratores, o faz de uma maneira normal, “com normalidade”. III - É irrelevante julgar, como provados, factos tidos como inócuos, (não sendo lícito realizar no processo actos inúteis, como determina o art. 130.º do CPC). IV - Não se verificando ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nem havendo lei que, no caso, fixe a força de determinado meio de prova, não há lugar a recurso de revista incidindo sobre a matéria de facto.”) - não se encontra disponível para consulta na www.dgsi.pt; de 13 de julho de 2017 (Fonseca Ramos), proc. n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1 (“I - Nos termos do art. 5.º, n.º 1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas. II - Factos não alegados pelas partes podem, no entanto, ser considerados pelo juiz. Esses factos, são os factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (n.º 2 al. a) do art. 5.º), e os que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar – al. b). III - Os factos que resultam da discussão da causa, como decorre da formulação do n.º 2 do art. 5.º do CPC – “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz” – são factos, passe a expressão, que só foram descobertos, que só chegaram ao conhecimento do tribunal na fase instrutória da causa. IV - Os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes, podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa. Não se nos afigura rigorosa a afirmação de que os factos sindicados pelos recorrentes – que foram por eles alegados na petição inicial e foram levados a debate em sede de instrução e julgamento - não devem ser objecto de julgamento em 2.ª instância, em sede de impugnação da matéria de facto, por serem instrumentais e o julgamento na 2.ª instância constituir um acto inútil. V - A consideração da inutilidade da reapreciação do julgamento da matéria de facto, quando a parte que recorre cumpriu o ónus de que depende a apreciação da sua pretensão, só pode/deve ser recusada em casos de patente desnecessidade.”) – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4bf735390cc090ee8025815c004762af?OpenDocument.
[18] Donde, se o documento se tivesse extraviado ou não tivesse acompanhado o transporte, cabendo à Ré pedi-lo às AA ou munir-se de uma 2ª via, junto da entidade exportadora. Irrelevando, pois, os factos respectivos.
[20] Alcançada a qualidade de imutabilidade, o enunciado constante da decisão passa a ter “força obrigatória” dentro do processo (cf. artigo 620.º, n.º 1, sem prejuízo dos despachos do artigo 630.º ressalvadas pelo respetivo n.º 2) e (também) fora dele, quando julgue do mérito da causa. Note-se que este diferente âmbito do caso julgado tem, pois, que ver com o objeto da decisão e corresponde, respetivamente, ao caso julgado formal e ao caso julgado material. O “caso julgado formal só tem um valor intraprocessual enquanto o caso julgado material além dessa eficácia intraprocessual é suscetível de valer num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada.” (Ac. do TRL de 05-07-2018 /Proc. 26902/13.6T2SNT.L1-2, na base de dados da dgsi.)
[21] O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem.
[22] Ambos acessíveis na base de dados da dgsi.
[23] Por não estar já em causa, manifestamente, uma situação de responsabilidade aquiliana.
[24] Com o que, reitera-se, inútil apreciar quem se obrigou a lográ-lo.
[25] E é por isso que irreleva também a “defesa” pela Ré de não lhe ter sido dado conhecimento da necessidade de tal documento pelas AA., a qual sempre seria improcedente quando se atente no âmbito da sua auto-responsabilidade, atenta a natureza da sua actividade profissional e o critério da culpa, mormente no quadro das normas especiais que regem o transporte terrestre e bem assim marítimo.
No que concerne à CMR, o regime de limitação da responsabilidade, nos termos do artigo 29º, nº 1, da CMR, é afastado se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo. Assim é que a CMR endossou à ordem jurídica nacional a definição do nexo de imputação ao transportador da responsabilidade efectivamente apurada; como para o nosso ordenamento o nexo de imputação é estabelecido tanto no caso de comportamento doloso como no de comportamento negligente, a falta em que este se traduz é equivalente àquele no quadro do artigo 29º da CMR. Para efeitos de definição da responsabilidade contratual, é indiferente que a falta de cumprimento ou a execução defeituosa da prestação se fique a dever a dolo ou a negligência do obrigado. O direito nacional lei equipara a negligência ao dolo no âmbito da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto desta.
Quanto ao transporte marítimo, regem as regras da Convenção de Bruxelas e as normas do Decreto lei 352/86. A responsabilidade do transportador está inserida numa especial caracterização, representada pela presunção da própria responsabilidade, ou seja, uma presunção agravada, pois incidente sobre todos os pressupostos legais necessários para o dever de indemnizar. Nesses termos, FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, Limitação da responsabilidade do transportador marítimo de mercadorias, Obra coletiva: I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo – O contrato de transporte marítimo de mercadorias, Centro de Direito Marítimo e dos Transportes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1ª edição, Lisboa, Editora Almedina, 2008, pp. 250-25. Na verdade, a presunção da responsabilidade do transportador significa que o interessado na carga não tem que provar o nexo de causalidade entre o dano suportado em decorrência da má execução do contrato de transporte da mercadoria e o comportamento culposo do transportador. Presume-se a própria responsabilidade do transportador. Nesse sentido: NUNO MANUEL CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos Transportes, 1ª edição, Coimbra, Editora Almedina, 2004, pp. 263-264.
Sempre, porque em causa o exercício de actividade profissional especializada, agravados os deveres de diligência nos termos gerais, em termos de ser perfeitamente inaceitável a alegada ignorância da necessidade de um documento CITES, novamente aduzida, não obstante, em sede recursiva(?).
[26] Alegados os factos pertinentes, ainda quando o enquadramento jurídico na petição não fosse claro no sentido de ser este o dever acessório constitutivo do ilícito gerador de responsabilidade, nada impedia a respectiva consideração.
[27] Ou uma eventual, porque dependente já das autoridades aduaneiras angolanas, bem assim, “possibilidade” de correcção/rectificação ulterior (como esclarecida em julgamento pelo despachante que tratou da expedição), sempre temporalmente limitada e necessariamente a fazer pela Ré, na qualidade de responsável pela instrução do transporte marítimo.
[28] Desnecessário, pois, afrontar a questão da aplicabilidade/aplicação dos limites da responsabilidade nos termos da CRM, aliás dependente de questões de culpa, considerações já totalmente ausentes na decisão recorrida.