Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
606/20.1TXPRT-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
LIBERDADE CONDICIONAL AO MEIO DA PENA
PRESSUPOSTOS
CONCESSÃO
JUÍZO DE PROGNOSE
Nº do Documento: RP20240221606/20.1TXPRT-G.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGANDO-SE PROCEDENTE O RECURSO, DETERMINOU-SE A REVOGAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA E A LIBERDADE CONDICIONAL DO RECLUSO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – A concessão da liberdade condicional - quando se encontrarem cumprido metade da pena – depende da possibilidade de se formular um juízo de prognose favorável:
a) sobre o comportamento futuro do condenado uma vez restituído à liberdade – exigindo um juízo sobre a satisfação das finalidades preventivas especiais da pena; e
b) sobre a satisfação das finalidades preventivas gerais;
II – A lei é rigorosa na aferição das exigências preventivas concretas ainda subsistentes em relação ao agente do crime, não sendo suficiente, sequer, uma qualquer evolução positiva do seu comportamento e da sua personalidade em meio prisional que viabilize a sua libertação condicional e, por outro lado, as exigências não poderão ser tais que, na prática, inviabilizem toda e qualquer liberdade condicional, mesmo naqueles casos em que as exigências preventivas já não se fazem sentir de forma evidente.
III – O juízo de prognose favorável ao recluso, suscetível de viabilizar a concessão da liberdade condicional, poderá ser formulado num caso em que o mesmo:
a) deixou de consumir estupefacientes ainda antes de estar recluso, afastando o principal fator que o motivou a cometer o crime de tráfico de estupefacientes;
b) assumiu a prática do crime cuja pena se encontra a cumprir;
c) se apresentou voluntariamente no estabelecimento prisional para o cumprimento da pena, apesar de ter estado emigrado;
d) mantém um comportamento exemplar, dedicando-se primeiro ao estudo, depois ao trabalho e ao desporto, mantendo um modo de vida saudável;
e) beneficiou de duas licenças de saída jurisdicionais, que decorreram sem registo de anomalias; e
f) o recluso tenciona ir residir e trabalhar numa cidade longínqua, onde não é conhecido, diminuindo o risco de voltar a conviver com os toxicodependentes que foram seus clientes do narcotráfico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 606/20.1TXPRT-A.P1
Data do acórdão: 21 de Fevereiro de 2024


Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Elsa Paixão
Desembargador 2º Adjunto: João Pedro Pereira Cardoso

Origem: Tribunal de Execução das Penas do Porto - Juízo de Execução das Penas do Porto

Acordam, em conferência e por maioria, os juízes acima identificados da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos, em que figura como recorrente o recluso AA;


I - RELATÓRIO

1. Por decisão datada de 25 de Setembro de 2023, foi proferida nos autos principais uma decisão de não concessão de liberdade condicional ao recluso acima referido.

2. Inconformado com tal decisão, este interpôs recurso da mesma, terminando a motivação com as conclusões a seguir reproduzidas:

“I. O ora Recorrente vem interpor recurso da, aliás, Douta, Sentença que proferida pelo Tribunal de Execução das Penas – Juízo de Execução das Penas do Porto – Juiz 4, datada de 25.09.2023 e notificada ao Condenado ora Recorrente a 27.09.2023, decidiu-se não colocar o Condenado AA em liberdade condicional ao meio da execução da pena aplicada;

II. O Condenado, por não se conformar com a decisão proferida, que considera infundada e arbitrária, pretende recorrer da mesma no sentido da decisão proferida ser revogada e substituída por outra que lhe conceda a liberdade condicional uma vez que é possível prognosticar que o mesmo não voltará a delinquir;

III. Considera o Condenado que em matéria de prevenção geral, muito embora seja inquestionável a gravidade do crime pelo qual foi condenado, não se vislumbram aqui especiais preocupações nessa matéria, a não ser as normais para casos deste tipo, as quais, porque apenas centradas na gravidade objetiva do crime cometido, tiveram já a sua avaliação em sede própria, isto é, aquando da análise da culpa e das penas inerentemente aplicadas;

IV. As preocupações em sede de prevenção foram já devidamente refletidas na condenação e na concreta pena aplicada, não podendo preconizar-se aqui uma dupla punição da conduta;

V. Como bem se vê, a questão central do recurso é o preenchimento dos requisitos de natureza material estabelecidos no artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, que o Condenado, ao invés do Tribunal a quo, considera que se devem dar como verificados;

VI. Considera o Condenado que o Tribunal recorrido não avaliou convenientemente o seu processo de reintegração, a evolução da sua personalidade e comportamento, e que tais elementos permitem um claro juízo de prognose positivo, pelo que a decisão que não concede a liberdade condicional ao ora Recorrente viola de forma ostensiva o estatuído no artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) e b) do C.P.P.;

VII. A natureza do crime pelo qual foi o Recorrente condenado e as abstratas necessidades de prevenção geral e especial não permitiam a recusa da liberdade condicional, devendo, pois, a decisão ora colocada em crise ser substituída por outra que conceda a liberdade condicional, impondo, caso assim se entenda necessário, quaisquer regras de conduta ou o regime de prova;

VIII. Resulta do teor da, aliás Douta Sentença que o juízo probatório alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das certidões recebidas do processo de condenação, do certificado de registo criminal, dos relatórios elaborados pelos Serviços de Reinserção Social e Prisional de Educação (com as fontes neles indicadas), dos esclarecimentos resultantes da reunião do Conselho Técnico e das declarações prestadas pelo Condenado em sede de audição, com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção;

IX. Com a devida vénia, não nos parece que efectivamente assim tenha ocorrido pelo que o ora Recorrente considera a sentença infundada e arbitrária, que não releva o comportamento francamente positivo que o condenado tem vindo a demonstar em reclusão, pretendendo que a decisão proferida seja revogada e substituída por outra que lhe conceda a liberdade condicional uma vez que é possível prognosticar que o mesmo não voltará a delinquir;

X. Já, em matéria de prevenção geral, muito embora seja inquestionável a gravidade do crime pelo qual foi o Recorrente condenado (trafico de droga), não se vislumbram especiais preocupações nessa matéria, a não ser as normais para casos deste tipo, as quais, porque apenas centradas na gravidade objetiva do crime cometido, tiveram já a sua avaliação em sede própria, isto é, aquando da análise da culpa e das penas inerentemente aplicadas;

XI. O instituto da liberdade condicional deve ser entendido, não como uma recompensa por boa conduta prisional mas, antes, como um auxílio e incentivo ao condenado, através da criação de um período de transição entre a prisão e a liberdade, que lhe permita uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais, necessariamente enfraquecida pelo período de reclusão suportado.

XII. Na verdade, trata-se de um incidente de execução da pena de prisão a que preside uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, e que assenta na formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro e em liberdade, do condenado que já cumpriu parte considerável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 528).

XIII. A liberdade condicional depende de pressupostos formais e materiais, sendo que no plano formal, e nos termos do artigo 61.º, n.º 2, do Código Penal, o tribunal coloca o condenado em prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se: - a) for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e b) a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social;

XIV. A respeito do primeiro dos referidos pressupostos substanciais (a viabilidade de um juízo de prognose favorável em relação ao condenado, no sentido de que este, caso seja colocado em liberdade condicional, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes), há que considerar a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo.

XV. Ora, face à factualidade dada como provada, não se vislumbra onde poderão radicar acentuadas necessidades de prevenção especial no presente caso.

XVI. É que pese embora a interiorização do desvalor das condutas, que o Recorrente assumiu, embora explicasse que tal se deveu à sua dependência de drogas e para assegurar o seu consumo, o facto ter o Recorrente ter “(...) construído adequada percepção da censurabilidade da sua conduta criminosa (...)”, de ser notado “(...) no decurso da sua reclusão esforço, conseguido, de manutenção de hábitos de trabalho (o que já se verificava depois da prática do crime e antes da reclusão – cfr. 4) e de auto-contenção (denotada no bom comportamento prisional, designadamente na ausência de registos disciplinares), bem como o de abstinência do consumo de drogas (que, como resulta do sumariado em 1, esteve relacionado com a prática do crime).”, o facto de beneficiar “(...) de sólidos suporte e motivação familiar e aptidão e experiência laboral em diversas áreas, factores que facilitarão o seu reingresso normativo a meio livre.”, considerou o tribunal a quo que não obstante o “(...) enquadramento familiar favorável à motivação para a abstenção da prática de crimes, o que não se revelou bastante para que não praticasse o que motivou a condenação em execução (...)”.

XVII. A reflexão autocrítica efectuada pelo para Recorrente sobre a conduta criminosa e suas consequências são indispensáveis para uma cabal interiorização do desvalor da conduta e, como tal, essenciais para que se conclua que o Condenado está munido de um relevante inibidor endógeno, como acreditamos ser o caso, e que o Condenado, ora Recorrente, está efectivamente determinado e empenhado em trilhar um caminho normativamente correcto.

XVIII. É evidente o percurso francamente positivo do Recorrente no período da sua reclusão, a que inevitavelmente se terá de associar o interiorizar da justeza da sua condenação e o arrependimento e remorsos sentidos, deverá anotar-se ainda que os aspetos que se prendem com a maior ou menor interiorização e/ou autocrítica, já se vêm revelando ainda antes da condenação e reclusão do Recorrente, como aliás acaba o tribunal a quo por reconhecer;

XIX. Será caso disso o facto do Recorrente já ter uma proposta de trabalho em Faro, cfr. 18 da matéria dada como provada), e de afirmar sem qualquer pudor que irá residir para Faro, e que “não vou voltar para onde andava”.

XX. Neste preciso ponto, cumpre anotar o percurso francamente positivo do condenado no período da sua reclusão (se bem que anteriormente o Acordão condenatório já referia, por exemplo, o facto manutenção de hábitos de trabalho depois da prática do crime e antes da reclusão) e o apoio de que beneficia no exterior e no seio da sua família, tratando-se de aspectos que o tribunal aflorou de uma forma um tanto discreta e apenas para anotar que os mesmos não se sobrepunham aos que considerava adversos, como seja o facto do Recorrente ter praticado um crime quando beneficiava de enquadramento familiar favorável à motivação para a abstenção da prática de crimes;

XXI. O Recorrente revela-se assíduo e empenhado na execução das tarefas laborais que lhe foram atribuídas;

XXII. Beneficiou, com êxito, de três licenças de saída jurisdicional (à data da prolação da decisão já tinha gozado mais uma licença do que as duas referidas na sentença);

XXIII. Absteve-se de consumo de álcool e estupefacientes, conforme revelam os exames toxicológicos;

XXIV. Consentiu na sujeição a avaliação clínica e, se necessário, tratamento da toxicodependência;

XXV. Revela consciência crítica da gravidade do crime por que foi condenado;

XXVI. Beneficia de apoio familiar e tem promessa efectiva de emprego;

XXVII. Pretende residir em Faro, distanciando-se mais de 500 Km do local onde a actividade criminosa teve lugar, dizendo que “não vou voltar para onde andava”.;

XXVIII. Estes factos levaram a que o Conselho Técnico tenha emitido, por maioria, parecer favorável à concessão de liberdade condicional;

XXIX. Pelo que se impõe reconhecer que se verifica, por isso, o requisito de concessão de liberdade condicional previsto no artigo 61.º, n.º 2, a), do Código Penal: sendo que é de esperar, fundadamente que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes;

XXX. O tribunal a quo ao decidir como decidiu violou o estatuído no artigo 61.º, n.º 2, a), do Código Penal, devendo pois a decisão agora em crise ser revogada e substituída por outra que lhe conceda a liberdade condicional uma vez que é possível prognosticar que o mesmo não voltará a delinquir;

XXXI. Por sua vez, é pressuposto substancial (ou material) da concessão de liberdade condicional, de acordo com o citado n.º 2, b), do artigo 61.º do Código Penal, e uma vez que foi atingida metade da pena de prisão que a libertação se revele compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

XXXII. Não se vislumbram no caso vertente especiais preocupações nessa matéria, a não ser as normais para casos deste tipo, as quais, porque apenas centradas na gravidade objetiva do crime cometido, tiveram já a sua avaliação em sede própria, isto é, aquando da análise da culpa e das penas inerentemente aplicadas, pelo que trata-se de aspetos que o Recorrente não descura e do que tem plena consciência, em que conforme foi consignado na sentença ora colocada em crise “(...) assume a prática do crime que motivou a condenação, reconhecendo a justeza desta e denotando arrependimento e remorso. (...)” mas que foram já devidamente refletidas na condenação e na concreta pena aplicada, não podendo preconizar-se  aqui uma dupla punição da conduta;

XXXIII. No presente caso, deverão ter-se presentes aquelas preocupações em sede de prevenção geral, mas apenas na perspetiva da personalidade revelada pelo condenado, e daí que a alínea a) do nº 2 do supra citado artigo 61º do Código Penal remeta apenas para as circunstâncias do caso e a personalidade do agente, pelo que a sua ponderação deverá ser aqui efetuada nessa estrita medida, que, neste particular, o da personalidade em si, o que o tribunal recorrido nem sequer aflorou;

XXXIV. Sublinhe-se que, esta alteração de comportamento do ora Recorrente se iniciou aquando da sua sujeição a primeiro interrogatório judicial, ouvindo e acolhendo no seu intimo as palavras da Digníssima JIC que não determinou a sua prisão efectiva, determinando, ao invés, apresentações periódicas junto do OPC da sua área de residência, aconselhando-o a abandonar o convívio com os seus pares, os consumos de canábis e de cocaína e a procurar um emprego distante dos locais que frequentava, o que o Recorrente fez, abandonando o café que explorava com um dos seus co-arguido e passando a trabalhar, em Setembro de 2018, como ajudante de motorista na empresa A..., S.A., “(...) denotando regularidade no exercício da actividade profissional, mantinha relação de proximidade com o filho (à guarda da mãe, residindo em Gondomar) e restringia a convivialidade à família, em especial ao filho (actualmente com sete anos de idade) e à namorada; antes da reclusão, mantinha-se abstinente de consumos de droga há vários meses e esteve em França, tendo regressado a Portugal quando informado do trânsito em julgado da condenação (ocorrido em 24.08.2020); o pai falecera em Abril de 2020.(...)” ;

XXXV. É evidente no percurso do aqui Recorrente que o alegado quadro de toxicodependência sofrido pelo Recorrente e que, segundo as palavras do mesmo, o levou a delinquir e à condenação de que foi alvo, está já em boa medida ultrapassado, o que retira alguma acuidade/atualidade à necessidade preservar a ideia da reafirmação da validade e vigência da norma penal violada, aspeto que o tribunal considerava aqui deveras importante, tanto mais que um dos desejos formulados pelo Recorrente aquando da sua audição foi rigorosamente o de ”não vou voltar para onde andava”, decidindo mudar o seu centro de vida do Porto para Faro, pretendendo afastar-se de tudo e de todos os que contribuíram para a prática criminosa;

XXXVI. Aliás, já no Acórdão que determinou a sua condenação, é referido o facto do Recorrente “se mater abstinente de consumo de drogas há vários meses”, o que acresce o facto do Recorrente em reclusão ter “(...) sido sujeito a exames toxicológicos, com resultados negativos.”

XXXVII. Assim, deve igualmente sublinhar-se que o comportamento anterior e posterior aos factos levados a julgamento foram já valorados na decisão condenatória que gerou a reclusão do ora Recorrente e que, por outro lado, a génese do sucedido (os consumos de produto estupefaciente) estará nesta altura ultrapassada, o que também contribuiu positivamente para o prognóstico que aqui importa reter.

XXXVIII. O tribunal a quo considera que a gravidade do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual o Recorrente foi condenado suscita acentuadas exigências de prevenção geral que não se compadecem com concessão da liberdade condicional, que considera não ser compatível com a defesa da ordem pública;

XXXIX. A este respeito sempre se dirá que não podemos considerar que a gravidade em abstrato de certo tipo de crimes (incluindo o de tráfico de estupefacientes), obsta, por si só, à concessão de liberdade condicional a meio da pena, não sendo isso o que decorre da Lei;

XL. No caso em apreço, não se nos afigura que o crime de tráfico de estupefacientes pelo qual o Recorrente foi condenado suscite particulares exigências de prevenção geral, para além daquelas que suscita qualquer crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro;

XLI. Negar neste caso a liberdade condicional com base nessas exigências de prevenção geral (que são comuns a qualquer crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro) significaria, em termos práticos, decidir como se a concessão de liberdade condicional a meio da pena relativamente a crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n,º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estivesse legalmente vedada. E não é isso que, manifestamente, decorre da lei.

XLII. Veja-se a este respeito o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, proferido em 27.11.2019, no Processo n.º 924/16.3TXPRT-G.P1, disponível em www.dgsi.pt em que consignou o seguinte: “A gravidade, em abstrato, do tipo de crime é relativa a condenação, não podendo ser, por si só e em nome das exigências de prevenção geral, obstáculo à concessão de liberdade condicional a meio da pena”.

XLIII. Desta forma, e considerando que a efetiva imagem global do Recorrente retratada a partir do acervo fáctico apurado é amplamente positiva e, por isso, permite suportar o estatuído juízo de prognose favorável, assim impondo o dever de determinar a libertação condicional do Recorrente, o tribunal a quo ao decidir como decidiu violou flagrantemente o estatuído no artigo 61.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que lhe conceda a liberdade condicional, como expressamente se requer e é da mais elementar Justiça!

Termos em que ora se requer a v. Exas. Venerandos juízes desembargadores do Tribunal da Relação do Porto se Dignem conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e em consequência, ser Revogada e substituída por outra que lhe conceda a Liberdade condicional.”.

3. Notificado da motivação do recurso, o Ministério Público junto do Tribunal a quo apresentou resposta, reiterando, no essencial, os factos fortemente indiciados, bem como a fundamentação jurídica do despacho recorrido e acrescentando, nomeadamente, as seguintes passagens:

“1 – AA cumpre a pena de prisão de 5 anos e 4 meses pela prática do crime de tráfico de estupefacientes aplicada no processo n.º 4/17.4GASTS;

2 - Atingiu o meio da pena em execução em 21/05/2023, os dois terços ocorrerão em 10/04/2024 e o termo ocorrerá em 21/01/2026;

3 - A decisão sobre a liberdade condicional foi apreciada ao meio do cumprimento da pena tendo sido denegada por não se encontrarem verificados os requisitos do art. 61, n.º 2, alíneas a), e b), do C.P.;

4 - Na decisão deu-se como assente que o recorrente tem feito um bom percurso prisional, tem apoio familiar no exterior e perspectivas laborais, circunstâncias que já se verificavam aquando da prática do crime, pelo que, a Mma. Juiz considerou ser necessária uma maior consolidação da sua avaliação crítica para que seja possível fazer o juízo de prognose favorável;

5 - Mas, ainda que esse juízo já pudesse ser feito, sempre subsistem as necessidades de prevenção geral que, nesta fase de cumprimento da pena se fazem sentir (cfr. alínea b) do n.º 2 do art. 61, do Código Penal)

6 - É que, nesta fase do cumprimento da pena e atento o tipo de crime em causa – tráfico de estupefacientes-, as exigências de prevenção geral são muito fortes, pelo que, não seria compreensível para a comunidade em geral que, nesta fase do cumprimento da pena, o recluso

fosse já libertado;

7 - Com efeito, não podemos esquecer as consequências a gravidade do crime de tráfico de estupefacientes, a sua proliferação e danosidade social, quer na saúde pública, quer nos correlativos crimes associados, gerando igualmente sentimentos de intranquilidade e insegurança na sociedade;

8 - Pelo que, não se verificando os requisitos legalmente exigidos (art. 61, n.º 2, alíneas a) e b), do C.P.), a decisão de não concessão da liberdade condicional deve ser mantida.

(…).”


4. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo nos termos legais - imediatamente, em separado e com efeito devolutivo -.
5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, devidamente fundamentado, concluindo que o recurso do arguido não merece provimento.
6. Não foi produzida qualquer resposta ao parecer.
7. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].


*

*

*

*

*


Questões a decidir:

Do thema decidendum do recurso:

Para definir o âmbito do recurso, a doutrina[1] e a jurisprudência[2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

A função do tribunal de recurso perante o objecto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.

Atento o teor do relatório produzido nesta decisão, importa decidir a questão substancial suscitada neste recurso, constituindo o seu thema decidendum:

- um erro de direito na interpretação do estatuído nos artigos 61º, nº 2, al. b) do Código Penal, merecendo o recluso o benefício da liberdade condicional.

Para decidir a matéria acima descrita, importará, primeiramente, recordar a fundamentação da decisão recorrida.


*

II – FUNDAMENTAÇÃO

A DECISÃO RECORRIDA:

“Respeita o presente processo a AA, nascido em ../../1984, identificado nos autos, operando a apreciação dos pressupostos da liberdade condicional por referência ao cumprimento de metade da pena.

Foram elaborados os relatórios a que se referem as als. a) e b) do n.º 1 do artigo 173º e o artigo 180º, n.º 3, do Código de Execução das Penas.

Reuniu o Conselho Técnico, que emitiu parecer favorável (por maioria) à concessão da liberdade condicional.

Não se verificam excepções que obstem à decisão, que cumpre proferir, para tanto sendo relevante a consideração dos factos de seguida enunciados, resultantes das certidões recebidas do processo da condenação, do certificado de registo criminal, dos relatórios elaborados pelos Serviços de Reinserção Social e Prisionais de Educação (com as fontes neles indicadas), dos esclarecimentos resultantes da reunião do Conselho Técnico e das declarações prestadas pelo condenado em sede de audição (todos estes elementos documentados no processo, sendo as mencionadas declarações em registo áudio).

1. AA cumpre a pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão em que foi condenado no processo 4/17.4GASTS, do Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 14, pela coautoria de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas (praticado desde Jul.2017, mediante aquisição e guarda de canabis e cocaína, que em parte consumiu e noutra parte entregou – também por intermédio de outras pessoas – a consumidores, recebendo destes em troca quantias monetárias, fazendo-o num estabelecimento de café que explorava, sito em ..., Valongo, sendo que no dia 28-03-2018 detinha, conjuntamente com outra pessoa e no interior do referido estabelecimento, erva e haxixe em quantidades suficientes para 244 doses médias individuais diárias e cocaína em quantidade suficiente para preparar 318 doses médias individuais diárias; e mesmo depois da apreensão de tais produtos na referida data, continuou a vender estupefacientes a terceiros até 30-06-2018 – cfr. decisão condenatória e liquidação, documentadas no PUR, a 29-09-2020 [879334]).

2. Está preso desde 23-09-2020 (data em que se apresentou voluntariamente em Estabelecimento Prisional) e atingiu o meio da pena em 21-05-2023; alcançará os dois terços em 10-04-2024 e o termo em 21-01-2026.

3. Para além da condenação em execução, AA foi condenado em Maio2022, pela prática em Nov.2018 de um crime de ofensa á integridade física simples, em pena de multa que foi paga em Set.2022.

4. AA cresceu, com três irmãos mais velhos, em contexto familiar harmonioso e orientado por padrão comportamental normativo, economicamente equilibrado graças aos rendimentos do trabalho do pai (Agente da Polícia de Segurança Pública) e da mãe (que foi empresária na área de marroquinaria e posteriormente doméstica); sem interesse pela Escola, deixou-a depois de concluir o 9º ano de escolaridade, após algumas retenções; começou então a trabalhar na empresa da mãe; aos 21 anos de idade começou a trabalhar para terceiros, como motorista e depois como ajudante de electricista, com períodos de desemprego; perante esta última situação, emigrou para a Suíça, onde trabalhou em hotelaria e iniciou relação de união de facto; regressou a Portugal na sequência de situação de desemprego na Suíça, com companheira e filho de ambos, então com dois meses de idade; oito meses depois do regresso, o casal separou-se; conjuntamente com outra pessoa (também condenada no processo à ordem do qual cumpre pena), passou a explorar o já referido estabelecimento de café; residia então com os pais (então já reformados), sendo que os irmãos mais velhos já se haviam autonomizado desse agregado; estabeleceu nova relação afectiva e a partir de Set.2018 trabalhou como ajudante de motorista, para empresa com sede em Valongo, denotando regularidade no exercício da atividade profissional; mantinha relação de proximidade com o filho (à guarda da mãe, residindo em Gondomar) e restringia a convivialidade à família, em especial ao filho (actualmente com cerca de sete anos de idade) e à namorada; antes da reclusão, mantinha-se abstinente de consumos de drogas há vários meses e esteve em França, tendo regressado a Portugal quando informado do trânsito em julgado da condenação (ocorrido em 24-08-2020); o pai falecera em Abr.2020.

5. No decurso da reclusão, tem mantido comportamento adequado às regras prisionais e nos relacionamentos inter-pessoais, não havendo notícia de incidentes disciplinares.

6. Mostrou sempre interesse em manter-se ocupado, quer a trabalhar, quer a estudar.

7. Em 2021, participou no programa “Desenvolvimento Moral e Ético”, revelando-se cumpridor.

8. Frequentou Escola visando concluir o 10º ano de escolaridade, mas, por dificuldade em superar a disciplina de Matemática, desistiu e passou a privilegiar a ocupação laboral.

9. Trabalha como faxina, desde Dez.2022 em ginásio de ala, com assiduidade, fazendo controlo de material e limpeza do espaço.

10. Começou a praticar desporto.

11. Para além do seu salário, recebe apoio – também – pecuniário do exterior, gerindo tais valores com contenção.

12. A mãe e um irmão residem agora em Faro, razão pela qual as suas visitas ao Estabelecimento Prisional ... são pontuais.

13. Até Ago.2023, usufruiu de duas licenças de saída jurisdicionais, que decorreram sem registo de anomalias.

14. Tem sido sujeito a exames toxicológicos, com resultados negativos.

15. AA assume a prática do crime que motivou a condenação, reconhecendo a justeza desta, denotando arrependimento e remorso.

16. Em meio livre, AA tenciona ir residir com os apoiantes mãe e um irmão, numa habitação arrendada por este, com adequadas condições de habitabilidade, sita na Av. ..., Frente, ... - Faro.

17. Trata-se de apartamento situado na malha urbana da cidade de Faro, onde AA não é conhecido (o agregado familiar residia no Porto).

18. Perspectiva trabalhar em hotelaria, em Faro (“não vou voltar para onde andava”), tendo durante a primeira licença de saída realizado diligências com esse objectivo (na sequência de contactos previamente estabelecidos pelos seus familiares).

Nos termos do artigo 61º do Código Penal:

1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.

2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:

a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.

Resulta do enunciado – devendo ser positivamente sublinhado – que AA vem construindo adequada percepção da censurabilidade da sua conduta criminosa que o conduziu à reclusão (cfr. 15) e vem denotando no decurso da reclusão esforço, conseguido, de manutenção de hábitos de trabalho (o que já se verificava depois da prática do crime e antes da reclusão – cfr. 4) e de auto-contenção (denotada no bom comportamento prisional, designadamente na ausência de registos disciplinares), bem como de abstinência do consumo de drogas (que, como resulta do sumariado em 1, esteve relacionado com a prática do crime).

Beneficia, ao que tudo indica, de sólidos suporte e motivação familiar e aptidão e experiência laboral em diversas áreas, factores que facilitarão o seu reingresso normativo a meio livre.

Todavia, não pode deixar de notar-se que, antes, já beneficiara de enquadramento familiar favorável à motivação para a abstenção da prática de crimes, o que não se revelou bastante para que não praticasse o que motivou a condenação em execução (prosseguindo tal conduta delituosa mesmo depois de intervenção policial – cfr. 1).

Espera-se que a evolução da personalidade de AA durante a reclusão, prosseguindo no caminho que vem trilhando, venha a consolidar a sua avaliação crítica do crime praticado e, consequentemente, solidamente sustentar a sua determinação contra a prática de novos crimes, bem como a expectativa de que, em meio livre, se comporte de modo consequente com essa determinação.

Porém, nesta fase da execução da pena, a defesa da ordem jurídica, mediante a reafirmação comunitária dos valores jurídicos violados com a conduta criminosa perpetrada por AA (prevenção geral, que constitui fundamento legitimador da reacção penal: artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 40º, n.º 1, primeira parte, do Código Penal) não é conciliável com sua libertação, consideradas as muito intensas exigências de prevenção geral que se suscitam relativamente a crimes de tráfico de estupefacientes (não só pelos incomensuráveis e de várias naturezas danos directos que provocam, mas também pela criminalidade que consabidamente potenciam).

Assim sucede no presente caso, porquanto, atenta a objectiva gravidade do crime praticado (cfr. o sumariado em 1), a libertação contrariaria seriamente as expectativas comunitárias na validade da proibição do tráfico de estupefacientes e no funcionamento do sistema penal (por a libertação poder ainda “(…) ser interpretada pela consciência comunitária como uma forma de desvalorização de bens jurídicos a que dá particular importância e como sinal de alguma indiferença perante o valor desses bens, uma mensagem contraditória com um propósito de tutela dos mesmos.” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-11-2019, proferido no processo 924/16.3TXPRT-G.P1, consultado em www.dgsi.pt; a propósito, podem também ler-se, i.a., os Acórdãos do mesmo Tribunal de 21-09-2011, proferido no processo 2603/10.6TXPRT-B.P1; de 28-09-2011, proferido no processo 2368/10.1TXPRT-H.P1; de 18-04-2018, proferido no processo 678/14.8TXPRT-K.P1, todos consultados em www.dgsi.pt).

Assim, ainda que se considerasse – e não considera – inequívoca a verificação do pressuposto previsto na citada al. a) do n.º 2 do artigo 61º, à eventual libertação condicional do condenado obstaria o estabelecido na também citada al. b) do mesmo n.º 2 do artigo 61º, pois a libertação, nesta fase da execução da pena, não seria compatível com a defesa da ordem jurídica.

Pelo exposto, por não se verificarem os pressupostos previstos nas als. a) e b) do n.º 2 do artigo 61º do Código Penal, determina-se que AA prossiga em reclusão o cumprimento da pena em que foi condenado no processo 4/17.4GASTS, do Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 14.

A renovação da apreciação dos pressupostos da liberdade condicional ocorrerá por referência ao cumprimento de dois terços da pena – 10-04-2024 (artigo 180º, n.º 1, do Código de Execução das Penas e artigo 61º, n.º 3, do Código Penal).”


III – FUNDAMENTAÇÃO EM MATÉRIA DE DIREITO

Introdução

O processo gracioso de concessão de liberdade condicional é uma das formas processuais expressamente previstas no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (art. 155º) que se inicia com uma fase de instrução em que se habilitam os autos com os relatórios e outros elementos pertinentes (art. 173º), a que se segue a reunião do conselho técnico, a audição do recluso e o parecer do Ministério Público (arts. 174º a 177º).

No termo desse processado é proferida a decisão final que pode ser de concessão da liberdade condicional ou de recusa (ou não concessão) dessa liberdade condicional (arts. 177º e seguintes).

Conforme estatuído no art. 235º nº 1 do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, “das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei”, optando-se, assim, claramente por uma admissibilidade restrita do recurso no domínio da execução das penas.

No processo de liberdade condicional está expressamente previsto recurso “limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional” (art. 179º).

Após a tramitação regular do processo, foi proferida decisão de não concessão da liberdade condicional, da qual foi interposto o recurso que, ora, se decide.

A - Da liberdade condicional:

A liberdade condicional, quando referida a 1/2[3] ou a 2/3 da pena (liberdade condicional facultativa) consiste num poder-dever do Tribunal, vinculado à verificação de todos os pressupostos formais e materiais estipulados na lei -, sendo estes últimos diferentes, consoante se esteja no final do primeiro ou do segundo de tais períodos de execução da pena de prisão -.

Através da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a natureza jurídica deste instituto foi concretizada, finalmente, em termos claros, enquanto incidente de execução da pena de prisão, uma vez que a sua aplicação depende sempre do consentimento do condenado e a sua duração não pode ultrapassar o tempo de pena que ainda falta cumprir o que se justifica político-criminalmente à luz da finalidade preventiva especial de reintegração do agente na sociedade e do princípio da necessidade de tutela de bens jurídicos nos termos do estatuído no art. 40º n.º 1 do Código Penal. [4]

A sua aplicação assenta em vários pressupostos, de natureza formal e material.

Os primeiros compreendem:

a) O consentimento do condenado (artigo 61°, nº 1, do Código Penal);

b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão (artigo 61°, nº 2, do Código Penal);

c) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61º, números 2, 3 e 4 e 63º, nº 2, ambos, ainda, do mesmo texto legal).
O Tribunal a quo reconheceu, na decisão recorrida, que os pressupostos de natureza formal se encontram reunidos.

Os pressupostos de natureza material da aplicação de tal instituto a 1/2 da pena – como é o caso - são:

a) Um fundamentado juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (artigo 61º, nº 2, als. a) e b), do mesmo texto legal), o qual assenta numa apreciação sobre a evolução da personalidade do condenado durante o tempo de execução da prisão (atinente à prevenção especial positiva ou de ressocialização);

b) Um juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (atinente à prevenção geral positiva), ou seja, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social.

Desta disposição resulta, claramente, que a concessão da liberdade condicional - quando se encontrarem cumprido metade da pena – depende da possibilidade de se formular um juízo de prognose favorável:

a) sobre o comportamento futuro do condenado uma vez restituído à liberdade – exigindo. um juízo sobre a satisfação das finalidades preventivas especiais da pena; e

b) sobre a satisfação das finalidades preventivas gerais;

Desde logo, importa realçar que a verificação da primeira das condições substanciais não depende, apenas, do comportamento do arguido em meio prisional[5]: neste sentido, a exposição de motivos da Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, que alterou o Código Penal: “Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.”

A lei exige critérios na aferição das exigências preventivas concretas ainda subsistentes em relação ao agente do crime, não sendo, sequer, suficiente uma qualquer evolução positiva do seu comportamento e da sua personalidade em meio prisional que viabilize a sua libertação condicional e, por outro lado, as exigências não poderão ser tais que, na prática, inviabilizem toda e qualquer liberdade condicional, mesmo naqueles casos em que as exigências preventivas já não se fazem sentir de forma evidente.

A mera existência de uma evolução positiva da personalidade do recluso durante a execução da pena e saídas jurisdicionais bem sucedidas poderão ser insuficientes para fundamentar a sua liberdade condicional no caso da avaliação dos crimes cometidos, da sua vida antes da reclusão e a falta de robustez da sua personalidade impuserem um juízo de prognose desfavorável. Neste âmbito, "o julgador deve considerar os elementos de que disponha e que se mostrem relevantes, dentro dos quais se impõe a apreciação das circunstâncias do crime, a vida anterior do agente e a evolução da personalidade, revelada à data da condenação, durante a execução da pena de prisão".[6]

B - Do caso concreto

Entende-se que a análise das circunstâncias do caso passa, naturalmente, pela valoração do crime cometido (in casu, foi condenado pela coautoria de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas (praticado desde Jul.2017, mediante aquisição e guarda de canabis e cocaína, que em parte consumiu e noutra parte entregou – também por intermédio de outras pessoas – a consumidores, recebendo destes em troca quantias monetárias, fazendo-o num estabelecimento de café que explorava, sito em ..., Valongo, sendo que no dia 28-03-2018 detinha, conjuntamente com outra pessoa e no interior do referido estabelecimento, erva e haxixe em quantidades suficientes para 244 doses médias individuais diárias e cocaína em quantidade suficiente para preparar 318 doses médias individuais diárias; e mesmo depois da apreensão de tais produtos na referida data, continuou a vender estupefacientes a terceiros até 30-06-2018 – cfr. decisão condenatória e liquidação (…).)

O elevado grau de ilicitude evidenciado no crime cometido pelo recluso já teve  a devida expressão na pena fixada pelo tribunal da condenação.

Porém, contrariamente ao defendido pelo recorrente, tal realidade não poderá deixar de ser valorada no âmbito da decisão recorrida, impondo uma ponderação séria e exigente no plano da prevenção geral.

Dito isto, observa-se em relação à personalidade do arguido um conjunto de factos favoráveis e, dir-se-ia, mesmo excepcionais, que permitem formular um juízo de prognose positivo a respeito do comportamento futuro do recluso, uma vez restituído à liberdade, com repercussão igualmente positiva na sociedade em caso de libertação do condenado:

a) o crime de tráfico de estupefacientes cuja pena se encontra em execução foi cometido, enquanto o arguido era consumidor de estupefacientes, há cerca de seis anos;

b) o recluso encontra-se preso pela primeira vez e não tem quaisquer antecedentes criminais por crime da mesma natureza;

c) o arguido cresceu num ambiente familiar harmonioso, sendo o seu pai agente da P.S.P., entretanto falecido em Abril de 2020;

d) após o crime, a partir de Setembro de 2018, o ora recluso foi trabalhar como ajudante de motorista;

e) quando foi informado do trânsito em julgado da decisão condenatória, o arguido regressou voluntariamente de França e entregou-se no estabelecimento prisional para cumprir a pena;

f) antes de ingressar no estabelecimento prisional, o arguido já tinha abandonado o consumo de estupefacientes;

g) no decurso do cumprimento da pena de prisão, o ora recluso tem sido sujeito a exames toxicológicos, com resultados sempre negativos e tem mantido comportamento adequado às regras prisionais e nos relacionamentos inter-pessoais, não havendo notícia de incidentes disciplinares;

h) enquanto recluso, manifestou sempre interesse em manter-se ocupado, quer a trabalhar, quer a estudar, tendo ainda começado a praticar desporto;

i) o recluso assume a prática do crime que motivou a sua condenação, reconhecendo a justeza desta e denota arrependimento e remorso.

j) em meio livre, tenciona ir residir com a sua mãe e um irmão, numa habitação arrendada por este, com adequadas condições de habitabilidade, sita em Faro, cidade onde não é conhecido;

k) perspetiva ir trabalhar no setor da hotelaria, em Faro; e

l) até Agosto de 2023 usufruiu de duas licenças de saída jurisdicionais, que decorreram sem registo de anomalias.

O caso em apreço revela assim especificidades que afastam a impossibilidade de concessão da liberdade condicional, antes a recomendando, sendo de salientar que i. o arguido deixou de consumir estupefacientes ainda antes de estar recluso – afastando o principal fator que, certamente, o motivou a cometer o crime -, ii. assumiu a prática do crime cuja pena se encontra a cumprir, iii. apresentou-se voluntariamente no estabelecimento prisional para o cumprimento da pena, iv. mantém um comportamento exemplar, dedicando-se primeiro ao estudo, depois ao trabalho e ao desporto, mantendo um modo de vida saudável e, v. tendo beneficiado de duas  licenças de saída jurisdicionais, as mesmas decorreram sem registo de anomalias.

Finalmente, o recluso tenciona ir residir e trabalhar em Faro, onde não é conhecido, diminuindo o risco de voltar a conviver com toxicodependentes..

Nestes termos, a personalidade do recluso não suscita preocupações atuais que sejam relevantes, antes merecendo o cidadão em causa uma oportunidade para demonstrar que, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de um modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

Importa voltar a recordar o critério legal: a norma exige, para a concessão da liberdade condicional ambicionada pelo recorrente, que seja «fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» (artigo 61°, nº 2, al. a), do Código Penal).

Também neste contexto vigora o princípio da intervenção mínima do direito penal, também designado pelo princípio da subsidiariedade do direito penal.

Impõe-se, assim, também, um juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (atinente à prevenção geral positiva), ou seja, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social

É de louvar o percurso positivo que o recluso tem demonstrado em meio prisional.

O juízo de prognose favorável ao recluso deverá ser relativo aos bens jurídicos tutelados pelo tipo legal de crime cometido - e não a qualquer outra circunstância -. Tendo o arguido cessado o seu consumo de estupefacientes e tencionando o recluso ir residir para longe da comunidade onde era conhecida a sua atividade ilícita, o perigo de voltar a traficar estupefacientes estará reduzido ao mínimo.

As finalidades de prevenção geral também estarão, assim, satisfeitas com a sua libertação. 

Pelo exposto, verificam-se, in casu, os pressupostos materiais para a concessão da liberdade condicional, pois a situação é verdadeiramente excecional, ao ponto de ter merecido o parecer favorável do Conselho Técnico, que também o reconheceu.


*

A realidade provada nos autos permite formular o desejável juízo de prognose favorável (assente nos comportamentos do recluso antes de o ser – deixando de consumir estupefacientes, trabalhar e regressar do estrangeiro para cumprir voluntariamente a pena em que foi condenado –, e durante a sua reclusão e as duas licenças de saída jurisdicionais) que, associadas ao seu desejo de ir residir para uma zona geográfica onde não é conhecido, viabiliza a liberdade condicional nos termos do disposto no artigo 61º, número 2, al. a), “ex vi” do número 3 do mesmo artigo, razão pela qual não poderá subsistir a decisão recorrida e deverá ser concedida a liberdade condicional ao condenado, até 21 de Janeiro de 2026, sujeita à observância das seguintes condições:

a) fixar residência na cidade de Faro (por ser lá que se encontra a sua mãe e um seu irmão, que o apoiam), a qual comunicará, de imediato, à DGRSP – assim como qualquer alteração da mesma que venha a realizar no decurso do período de liberdade condicional;

b) indicar número telefónico e endereço de correio eletrónico de contato;

c) não deter, nem consumir qualquer estupefaciente ilícito;

d) procurar atividade laboral remunerada, comunicando de imediato à DGRSP a identidade da sua entidade patronal; e

e) prestar sempre à DGRSP, com celeridade, as informações que lhe forem solicitadas, respeitantes à sua situação pessoal e profissional, preferencialmente por telefone ou correio eletrónico.

Conclui-se, assim, pela procedência da pretensão recursória, revogando a decisão recorrida e determinando a liberdade condicional do recluso.

C - Das custas processuais:

Sendo concedido provimento ao recurso, não há lugar ao pagamento de quaisquer custas.


IV - DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por maioria os juízes signatários da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

a) revogar a decisão recorrida;

b) conceder liberdade condicional ao recluso AA até ao termo da pena (até 21 de Janeiro de 2026), sujeita à observância das seguintes condições:

1ª Fixar residência na cidade de Faro, a qual comunicará, de imediato, à DGRSP – assim como qualquer alteração da mesma que venha a realizar no decurso do período de liberdade condicional;

2ª Indicar número telefónico e endereço de correio eletrónico de contato e estar sempre contactável;

3ª Não deter, nem consumir qualquer estupefaciente ilícito;

4ª Procurar atividade laboral remunerada, comunicando de imediato à DGRSP a identidade da sua entidade patronal; e

5ª Prestar sempre à DGRSP, com celeridade, as informações que lhe forem solicitadas, respeitantes à sua situação pessoal e profissional, preferencialmente por telefone ou correio eletrónico.


*

Sem custas.

*

Passem-se mandados de libertação imediata, sem prejuízo de poder interessar a detenção ou prisão do recluso à ordem de qualquer outro processo.

*

Comunique, com cópia, ao Tribunal de Execução das Penas do Porto, ao Estabelecimento Prisional Regional ... e à D.G.R.S.P..


Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 21 de Fevereiro de 2024.
O desembargador relator,
Jorge M. Langweg
A desembargadora 1ª adjunta,
Elsa Paixão
O desembargador 2º adjunto,
João Pedro Pereira Cardoso ( * ):
( * ) [Voto vencido: O arguido AA cumpre a pena de prisão de 5 anos e 4 meses pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Foi homologada a liquidação, segundo a qual atinge o meio da pena em execução em 21/05/2023, os dois terços ocorrerão em 10/04/2024 e o termo ocorrerá em 21/01/2026.
Em causa está a apreciação dos pressupostos da liberdade condicional por referência ao cumprimento de metade da pena.
O crime praticado pelo recluso reveste-se de acentuada gravidade (art. 61.º, nº 2, al. a), do Código Penal), ponderado o elevado desvalor objetivo dos factos, manifestado na forma de cometimento dos mesmos, revelador de uma personalidade apartada dos valores éticos sociais fundamentais [7].
Nesse circunspecto, a necessidade de reafirmação da validade e vigência das normas penais violadas com a prática deste crime é incompatível com a aplicação do regime da liberdade condicional nesta fase do cumprimento da pena de prisão (meio da pena), antes se exigindo um acrescido período de prisão efetiva para salvaguarda das exigências de prevenção geral – art. 61º, nº 2, al. b) do Código Penal.
A priorização das necessidades de prevenção geral, quando em conflito com as de ordem especial, sempre conduziria à negação da liberdade condicional.
A prevenção geral surge como limite, “não permitindo a concessão da liberdade condicional – mesmo que o prognóstico sobre a vida futura do condenado fosse favorável – se não estiverem realizadas as exigências de tutela do ordenamento jurídico, pois, caso contrário, estar-se-á a esquecer a tutela dos bens jurídicos, a banalizar a prática de crimes – de gravidade muito significativa – e até a negar as legítimas expectativas da comunidade, criando na mesma um justificado sentimento de insegurança e conduzindo ao descrédito da justiça e dos tribunais” [8].
Em suma, no meu entendimento, a decisão recorrida, ao não conceder a liberdade condicional, efetuou uma prudente interpretação do disposto no artigo 61º, n.º 2, al.s a) e b), do Código Penal, pelo que não deveria merecer qualquer reparo a conclusão que teve como não verificados os requisitos substanciais de aplicação daquela.]
__________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] O legislador salientou como matéria essencial da reforma penal de 2007 precisamente a possibilidade da aplicação do instituto da liberdade condicional a todos os casos, independentemente da natureza do crime cometido, em que esteja cumprido metade do tempo de prisão, tendo alterado a estatuição do artigo 61º do Código Penal, que limitava essa possibilidade, anteriormente, a penas de prisão não superior a 5 anos pela prática de crime contra as pessoas ou de crime de perigo comum.
[4] Maria João Antunes, As Consequências Jurídicas do Crime - Lições para os alunos da disciplina de Direito Penal III da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2007-2008, pág. 47.
[5] No juízo de prognose para efeito de liberdade condicional “decisivo deveria ser, na verdade, não o «bom» comportamento prisional «em si» ─ no sentido da obediência aos (e do conformismo com) os regulamentos prisionais ─ mas o comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re)socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade”, conforme Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, a págs. 538 e 539.
[6] Neste sentido, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa (3ª Secção), de 30 de Maio de 2012, relatado pela Desembargadora Dra. Maria da Graça dos Santos Silva no processo nº 3414/10.4TXLSB-I.L1 (inédito).
[7] Não se trata de submeter de novo o arguido a julgamento ou censura pelas condutas criminosas objeto das condenações em execução, antes se pondera a gravidade dos factos e a personalidade do condenado enquanto elementos indicadores das necessidades de prevenção especial. Daí que a ponderação dos elementos atinentes à condenação, que se insere na avaliação das circunstâncias do caso e da personalidade do arguido (cf. art. 61º, nº 2, al. a) do Código Penal), não viole o princípio ne bis in idem – art.29º, nº 5, C.R.P.
[8] Cfr. ac RP 14.07.2010 (processo n.º 2318/10.5TXPRT-C.P1) e RL 28/10/2009 (Proc. nº 3394/06.TXLSB-3), em www.dgsi.pt, “em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral. No caso de se encontrar cumprida apenas metade da pena, a prevenção geral impõe-se como limite, impedindo a concessão de liberdade condicional quando, não obstante o prognóstico favorável sobre o comportamento futuro do condenado, ainda não estiverem satisfeitas as exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico”, sob pena de se fazer tábua rasa da tutela dos bens jurídicos, se banalizar a prática de crimes (incluindo os de gravidade significativa) e, no fundo, se defraudarem as expectativas da comunidade, criando nos seus membros forte sentimento de insegurança, potenciando a perda de confiança dos cidadãos no próprio Estado como principal regulador da paz social”.