Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | EDUARDA LOBO | ||
Descritores: | CRIME DE APROPRIAÇÃO ILEGÍTIMA EM CASO DE ACESSÃO OU DE COISA ACHADA CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP20231025174/21.7TELSB.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Comete o crime do artigo 209.º, nº 1, do Código Penal o agente que, tendo a coisa na sua esfera de domínio, por nela ter entrado por circunstância natural ou humana independente da sua vontade, recusa a sua entrega quando para tal é interpelado ou se comporta relativamente à coisa como se dela fosse proprietário; a apropriação ilegítima não se verifica quando a coisa entra na esfera de domínio do agente, tanto mais que essa entrada ocorre por circunstância alheia à sua vontade, não sendo por isso a apropriação contemporânea da constituição da posse; a apropriação ocorre em momento posterior, quando o agente recusa a restituição da coisa ou passa a comportar-se, relativamente a ela, como se fosse seu dono. II - O pagamento da indemnização, na medida em que representa um esforço ou implica até um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas também como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se, assim, como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade. III - A obrigação deve responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são conceitos básicos do Estado de Direito. IV - Mas tal não significa que a condição tenha que se restringir ao que for confortável ao agente, isto é, àquilo que ele puder cumprir sem sacrifício, sob pena de não se poder impor como condição de suspensão da execução da pena o pagamento de indemnização ao lesado quando o agente não disponha, no momento, do montante em causa. V – O n.º 1 do artigo 51.º do Código Penal consagra o princípio da razoabilidade, que significa que a imposição de deveres deve atender às forças do destinatário, o agente do crime, para não frustrar, logo à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, mas cuidando de não cair no extremo de fixar uma condição atendendo apenas às possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição. VI - Qualquer pena, para ser eficaz, deve ser sentida pelo agente e, no caso de pena suspensa na sua execução, muitas vezes a única coisa que o agente sente é, precisamente, a condição fixada. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 174/21.7TELSB.P1 1ª secção Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto I - RELATÓRIO Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 2, Comarca do Porto, com o nº 174/21.7TELSB, foi submetida a julgamento a arguida AA, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 24.02.2023, que condenou a arguida pela prática de um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada p. e p. no artº 209º nº 1 do Cód. Penal, na pena de seis meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de dois anos e seis meses, sujeita ao pagamento, nesse prazo, de metade da indemnização devida ao demandante, a pagar em mensalidades de €666,00. Foi ainda a arguida condenada a pagar ao demandante Instituto da Segurança Social, IP. a quantia de 39.942,37, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido cível e até efetivo e integral pagamento. Inconformada com a sentença condenatória, veio a arguida interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões: 1. Não se demonstra preenchido o elemento objetivo do crime de apropriação ilegítima, designadamente a apropriação ilegítima. 2. A considera-se existir apropriação ilegítima, é necessário abordar a questão da necessidade da pena, devido às necessidades de prevenção especial e geral e às circunstâncias do caso concreto. 3. A considerar-se haver necessidade da pena, deveria o tribunal a quo condenar em pena de multa, atendendo ao arrependimento da recorrente, à proatividade, à tentativa de resolução extrajudicial, à total colaboração, à prestação de declarações em sede de processo penal, à confissão, à total cooperação para descoberta da verdade, à total transparência, ao percurso de vida da recorrente e estado atual da mesma. 4. A considerar-se a condenação da recorrente em pena de prisão, com base nos pressupostos supra, o período de tempo da pena de prisão e respetiva suspensão da pena de prisão na sua execução, não se demonstra adequado, proporcional ou necessário. 5. O montante das prestações mensais é totalmente desmedido e não se coaduna com o salário da recorrente e respetivas despesas, correndo o risco de entrar em situação falimentar. 6. A fundamentação do tribunal a quo baseia-se em presunções sem qualquer justificativa. 7. A recorrente demonstrou-se totalmente colaborante na descoberta da verdade. 8. A recorrente encontra-se socialmente integrada, tendo trabalho e família. 9. A recorrente tem um percurso de vida exemplar, tal como constatado pelo tribunal recorrido. 10. A recorrente reconhece totalmente o seu erro e demonstra-se profundamente arrependida. * Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente. * Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso. * Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta. * Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. * II - FUNDAMENTAÇÃO* A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: [transcrição] 1. No dia 12 de fevereiro de 2021, os Serviços Financeiros do Instituto da Segurança Social, IP, instalados no Centro Distrital do Porto, sito na Rua ..., na cidade do Porto, efetuaram uma transferência bancária para a conta domiciliada no Banco 1..., com o n.º ...04, titulada por AA. 2. Por lapso da funcionária afeta aos aludidos serviços, foi digitada manualmente e transferida por engano a quantia de 788.080,00€ (setecentos e oitenta e oito mil e oitenta euros), quando na realidade o montante que se pretendia efetivamente transferir para a aludida conta era o de 788,80€ (setecentos e oitenta e oito euros e oitenta cêntimos). 3. O valor de 788,80€ que era devido à arguida AA correspondia ao reembolso, a título de valores que lhe haviam sido deduzidos por conta da Nota de Reposição n.º ...45, emitida em fevereiro de 2004, e relativa a prestações de doença e desemprego (e que entretanto vieram a ser declarados prescritos); 4. Não lhe sendo devida a quantia global de 788.080,00€, que indevidamente foi transferida para a conta bancária da mesma. 5. Aquando da mencionada transferência a crédito efetuada pela Segurança Social, a aludida conta bancária titulada pela arguida apresentava um saldo positivo de 7.194,80€. 6. A arguida AA tinha perfeita consciência de que tal quantia transferida não lhe era devida, tanto que, por mensagem de correio eletrónico, enviada em 17-02-2021 para o endereço de correio eletrónico do Instituto da Segurança Social, IP, via Segurança Social Direta (SSD), deu conta do seu espanto, dizendo: “… não me responsabilizo por tal transferência e pela quantia, seja a que título for, não me responsabilizando, igualmente, por qualquer custo bancário ou outro que daí advenha”. 7. Sucede que, mesmo reconhecendo o lapso por parte da Segurança Social e constatando que todo aquele montante não lhe pertencia, a arguida apoderou-se do mesmo, continuando a movimentar a sua conta e efetuando, entre outros de pequeno montante, movimentos a débito, no montante global de, pelo menos, 44.600,00€. 8. Concretizando, nos dias 22 e 25 de março de 2021, a arguida AA procedeu a duas transferências a débito, da sua conta n.º ...04, no valor de 10.000,00€ e 27.300,00€, respetivamente, para a conta n.º ...18, também do Banco 1..., de que a mesma era titular. 9. A aludida conta destino nº ...18 viria a ser encerrada, a solicitação da arguida, datada de 04-05-2021, apresentando nessa data um saldo de 0,00€. 10. No mesmo dia 25-03-2021, a arguida efetuou outra transferência, a débito, no valor de 7.300,00€, para uma conta com o n.º NO...82, do Banco 2..., sedeada em ... - Noruega, de que é titular o seu marido BB. 11. Após essa data, a arguida AA continuou a efetuar transferências de pequeno montante, sendo que em 16-04-2021 foi judicialmente determinada a suspensão de movimentos a débito na aludida conta bancária. 12. Em 16-04-2021, a conta bancária do Banco 1..., com o n.º ...04, titulada pela arguida, apresentava um saldo positivo no valor de 748.137,63€, que veio, entretanto, a ser apreendido. 3. Por motivos não concretamente apurados, a mensagem enviada à Segurança Social em 17-02-2021, pela arguida AA, apenas em 06-04-2021 foi reencaminhada para o endereço de correio eletrónico do Centro Distrital da Segurança Social do Porto; 14. Vindo a ser recebida, em 07-04-2021, na caixa de correio eletrónico institucional afeta ao Núcleo de Prestações - Unidade de Conta e Prestações, do Departamento de Gestão e Controlo Financeiro, pela sua Diretora - Dra. CC, tendo ainda sido recebida na sua própria caixa de correio; 15. Tendo a mesma, nessa data, contactado a arguida AA telefonicamente, solicitando-lhe a imediata restituição da quantia em causa. 16. No dia seguinte, a aludida Diretora CC enviou um email à arguida AA, para o endereço de correio eletrónico AA...@gmail.com, explicando que, devido à incorreta inserção manual do valor a reembolsar, foi indevidamente efetuado o pagamento da quantia de 788.080,00€, quando na realidade o valor efetivamente devido era de apenas 788,80€ e correspondente ao reembolso de valores deduzidos por conta da invocação da prescrição da Nota de Reposição n.º ...45; 17. E solicitou à arguida que desse autorização ao Banco para proceder à devolução do respetivo valor a favor do Instituto de Segurança Social, IP, através de débito na sua conta bancária. 18. No dia 08-04-2021, o Instituto de Segurança Social, IP - Departamento de Gestão e Controlo Financeiro, Unidade de Controlo Previsional e Financeiro, remeteu ao Banco 1... esclarecimento sobre o lapso na transferência da quantia de 788.080,00€ efetuado para a conta da arguida, solicitando o reembolso/devolução da quantia indevidamente paga. 19. Sucede que, no dia 14-04-2021, por email, o Banco informou da recusa da arguida em autorizar a pretendida devolução. 20. Em reunião ocorrida em 16-04-2021, entre a arguida e funcionários do Instituto da Segurança Social, a arguida confirmou que já não tinha na sua posse a totalidade da quantia indevidamente transferida para a sua conta bancária, propondo-se requerer por escrito a sua restituição em prestações; 21. O que veio a fazer, por email enviado em 26-04-212, subscrito pelo seu Advogado, informando o seguinte: “…pretende proceder à devolução do valor que lhe foi transferido ao abrigo do art.º 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 133/88, de 20 de Abril e nos seguintes termos: a. EUR 638 080,00 devolver imediatamente; b. EUR 150 000 em 150 (cento e cinquenta) prestações mensais, iguais e sucessivas”. 22. Tal proposta não foi aceite pelo Instituto da Segurança Social, IP - por não se tratar de pagamento de dívida em prestações mas sim da devolução de quantia que não pertencia à arguida -, tendo esta entidade remetido em 06-05-2021, por carta registada com aviso de recepção, interpelação formal à arguida AA, a fim de, no prazo de 10 dias, ordenar à sua instituição bancária que procedesse à restituição da quantia de 788.080,00€. 23. Não obstante, a arguida AA não procedeu à devolução do montante indevidamente transferido, por erro, pelo Instituto da Segurança Social, IP para a sua conta bancária, nem autorizou a entidade bancária a fazê-lo, apropriando-se do mesmo sem autorização e contra a vontade do ISS, IP, e utilizando-o em seu proveito. 24. A arguida AA quis agir do modo supra descrito, com o propósito, concretizado, de apropriar-se das aludidas quantias, que entraram na sua posse por mero erro, e que sabia não lhe pertencerem, fazendo-as suas, bem sabendo que atuava contra a vontade do respetivo proprietário. 25. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era penalmente proibida e punida. (do pedido de indemnização civil) 26. No dia 12 de Abril de 2021, por e-mail enviado àquela Directora, a demandada veio solicitar o agendamento de uma reunião, com vista a “resolver definitivamente a situação que se encontra pendente”. 27. Findo o prazo concedido pela S.S. para a demandada proceder à devolução do valor em causa, na íntegra, a demandada nada mais informou ou comunicou aos serviços do demandante, tendo-se remetido, em absoluto, ao silêncio. 28. Não obstante, os serviços do demandado receberam o referido aviso de recepção, assinado por AA e datado de “7-5-21”. 29. Em resultado da conduta supra descrita, e até à data do pedido de indemnização civil, o demandante ficou privado do montante global de €39.942,37. 30. Sendo certo que o saldo entretanto apreendido, no montante de €748.137,63, veio a ser-lhe restituído em 12-01-2022. 31. A arguida não tem antecedentes criminais. 32. O processo de desenvolvimento psicossocial de AA ocorreu no seio de um contexto familiar estável e sem registo de particulares constrangimentos de natureza económica, sendo a arguida a segunda de um conjunto de quatro irmãos. Ambos os progenitores exerciam atividade laboral, o pai como diretor comercial de uma empresa do setor têxtil e a mãe como secretária. Esta, posteriormente e coincidindo com o nascimento dos filhos, optou por assumir as funções de doméstica. 33. Embora não relate a integração em qualquer atividade estruturada ao longo da adolescência, sempre trabalhou paralelamente ao seu percurso escolar, como empregada de mesa num bar situado na ..., na .... 34. A arguida concluiu o bacharelato em Gestão de Empresas Turísticas aos 23 anos, optando por dar início ao seu percurso laboral, que decorreu, essencialmente, dentro do setor de turismo. Em 2003 ingressou na indústria farmacêutica, como delegada de informação médica, atividade que conserva atualmente. 35. Casou em 2003 e existe uma descendente desta união, terminada um ano depois. Descreve um relacionamento muito instável, mercê, num primeiro momento, da imaturidade do cônjuge e, posteriormente, da manutenção de um estilo de vida não compatível com as suas responsabilidades familiares. 36. Em 2021 contraiu novo matrimónio, após três anos de relacionamento, tendo conhecido o atual cônjuge na Noruega. Este conserva residência neste país, onde trabalha na área do entretenimento para crianças - empresa que organiza festas de aniversário, com equipamentos insufláveis - e que sofreu um impacto negativo significativo ao longo do período pandémico. 37. À data dos factos, tal como presentemente, a arguida residia com a filha (18 anos, estudante universitária) em apartamento próprio, de tipologia 3, com adequadas condições de habitabilidade e se situa no centro urbano de Matosinhos, em zona que não apresenta problemáticas sociais de relevo. A dinâmica familiar surge pautada pelo investimento de AA na relação parental, mantendo, segundo indica, um relacionamento afetivo privilegiado com a descendente. 38. Descreve o relacionamento conjugal como gratificante, apesar da distância entre ambos. O cônjuge desloca-se a Portugal cerca de seis vezes por ano. 39. AA exerce funções, enquanto delegada de informação médica, na empresa A..., SL, desde novembro de 2021, após um período de 18 meses em que se manteve em situação de desemprego. Aufere um vencimento líquido aproximado de €1.118,00, ao que acrescerão cerca de €250 de comparticipação dos avós paternos e pai da descendente. Avalia o contexto económico como particularmente restritivo atentas as despesas que assume, designadamente amortização do crédito à habitação (€474), água (€30), eletricidade (€70), NOS (€50), prestação de condomínio (€45) e prestação da universidade da descendente (€250), ao que acrescem gastos alimentares e de natureza pessoal. Não dispõe de qualquer suporte do cônjuge a este nível, uma vez que este se debate com questões de sustentabilidade financeira da sua própria empresa. 40. A arguida centra o seu quotidiano no desempenho laboral, mantendo, segundo refere, relações de convívio próximo com os pais e irmãos e dispondo de uma rede de sociabilidade que descreve como sólida. 41. Confrontada com o seu estatuto processual, teve necessidade de recorrer a apoio médico especializado, com recurso a psicofármacos para controlo da ansiedade. * A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: [transcrição]Para o apuramento da matéria de facto supra dada como provada, o Tribunal fundou a sua convicção na conjugação dos elementos juntos aos autos com as declarações prestadas em audiência pela arguida e bem assim pelas testemunhas inquiridas. Relevaram, desde logo, ao nível documental, a comunicação de fls. 2-C a 4; os extratos bancários de fls. 8 a 11; os documentos de fls. 13 a 26, de onde se destacam os emails enviados pela arguida para a S.S., datado de 17.02.2021, a fls. 24, e o email de CC para a arguida, datado de 08.04.2021, a fls. 21, e ainda o email da arguida para CC, a solicitar uma reunião, datado de 12.04.2021, a fls. 25; a correspondência trocada entre a arguida e o banco de fls. 93 a 104, 122 e 123; a correspondência trocada entre a arguida e o ISS, IP de fls. 105 a 121; a documentação bancária de fls. 127 a 133, 151 a 167; os documentos da Segurança Social de fls. 141 a 147; os documentos de fls. 214 a 230; a informação de fls. 249, 335 e 336; a certidão de assento de nascimento de fls. 397 e 398; os documentos de fls. 22 a 30 dos autos apensos (apenso A). Mais relevaram os docs juntos com o pedido de indemnização civil, a fls. 436, 437, 438, 439, 440-441, 442, 443-444. Mais relevaram os documentos juntos com a contestação a fls.459-480. A arguida prestou declarações assumindo a prática dos factos que lhe são imputados, mas descrevendo a sua versão dos mesmos, da qual se destacaram as prontas diligências por si efectuadas, junto do ISS e junto do Banco, no sentido de apurar o motivo e proveniência daquele dinheiro e esclarecer a situação, ao que, segundo afirmou, não teve resposta atempada, acabando por, a determinada altura, se convencer que lhe pertencia e fazer uso dele como se fosse seu. Atestou ainda ter, entretanto, estado numa reunião no ISS, tendo-se proposto a pagar o já gasto em prestações, o que foi recusado. Imputou responsabilidades ao ISS e terminou afirmando não ter condições nem estar na disposição, agora, de devolver o que quer que seja. A testemunha CC, Directora do Núcleo de Prestações do Departamento de Gestão e Controlo Financeiro, confirmou a factualidade supra dada como provada, esclarecendo que só teve conhecimento do email enviado pela arguida (fls. 438vº) algum tempo depois, não sabendo, contudo, justificar tal dilação. Explicou que depois de se inteirar do sucedido constatou ter-se tratado de um erro de digitação da colaboradora e ter, de imediato, contactado a arguida para a informar do sucedido, após o que lhe enviou um email, prestando a informação por escrito (fls. 438). O ISS solicitou, então, o cancelamento ao Banco, tendo sido, entretanto, informado da não autorização da beneficiária para a reposição (dos de fls. 440 v.º). Atestou ainda a existência de uma reunião, por solicitação da arguida, na qual estavam presentes outras pessoas para além da arguida e da testemunha, tendo depois a aquela feito uma proposta de restituição em prestações, que veio a ser recusada, por entenderem ser inaplicável à situação em concreto, devendo a restituição ser efectuada na íntegra, notificando-a nesse sentido. A arguida, porém, não procedeu à restituição e não os voltou a contactar. Entretanto recuperaram parte do valor em causa, por ação judicial, e não por ato voluntário daquela. Relativamente ao facto de ter tido conhecimento da situação por alerta da arguida, respondeu que efetivamente assim foi, mas que mais tarde ou mais cedo o erro teria sido detectado por auditorias periódicas que efetuam. No que respeita ao que consta da conta corrente da Segurança Social Direta, esclareceu que qualquer movimento ali efectuado mantém-se lá registado, não desaparecendo da mesma. A testemunha DD, bancária, referiu que a arguida era cliente do Banco e foi abordada telefonicamente pela mãe daquela, já lá conhecida, que alertou que a filha tinha recebido um valor elevado, por engano, da S.S., pedindo para a testemunha ver o que se passava. A testemunha contactou, então, a S.S. para saber como fazer a devolução àquela entidade. Enviou, então, um email, para a arguida autorizar a devolução do pagamento indevido, por lapso da entidade, o que fez perante a informação da mãe de que aquele valor era indevido. A testemunha BB, empresário, marido da arguida, confirmou a versão daquela, atestando que após receber aquela quantia na sua conta enviou um email para a S.S. e falou com o Banco, mas não a esclareceram. Entretanto começaram a pagar dívidas que tinham e só mais tarde lhes bloquearam as contas. Entretanto houve uma reunião e foi feita uma proposta de pagamento que a S.S. não aceitou. A arguida prestou as suas declarações de forma indignada com o facto de ter sido ela quem prontamente diligenciou no sentido de esclarecer a situação, nada lhe tendo sido dito, só mais tarde lhe tendo sido exigida a devolução do valor em causa, tendo-lhe sido bloqueadas as contas e ser envolvida num processo judicial. Não obstante, apesar de ter consciência de que o dinheiro não lhe pertencia, o que, desde logo, se extrai das condutas por si inicialmente encetadas e pela proposta de pagamento fracionado posteriormente por si feita, disse ter, entretanto, ficado com a convicção de que o dinheiro era seu e ter começado a utilizá-lo, o que contraria as suas condutas anteriores e contraria as regras de experiência comum, sendo certo que, a determinada altura, o erro foi esclarecido e os valores em causa foram-lhe exigidos pela S.S., nada tendo feito para proceder à devolução do que gastou (sendo que o restante já tinha sido apreendido), e ainda afirmou não pretender devolvê-lo, o que fez de forma ponderada e firme, afirmação que não se compreende face à factualidade apurada e pela própria, aliás, não posta em causa. As testemunhas inquiridas prestaram depoimentos isentos, serenos, coerentes e esclarecedores, confirmando, cada uma, dentro do conhecimento direto que mostrou ter, a factualidade em causa nestes autos, tendo merecido credibilidade. A inexistência de antecedentes criminais resultou do CRC de fls. 487. O percurso de vida e condições socioeconómicas da arguida resultaram do relatório social de fls.489-490 e ainda das declarações da própria. * III - O DIREITO * O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2]. Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que a recorrente delimita o respetivo objeto à apreciação das seguintes questões: - enquadramento jurídico-penal dos factos provados; - necessidade da pena; - da aplicação da pena de prisão e da sua substituição; - da condição fixada para a suspensão da execução da pena de prisão. * a) Do enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada:Alega a recorrente que não se mostra preenchido o elemento objetivo do crime pelo qual foi condenada, por não ter ocorrido apropriação ilegítima. Dispõe o artº 209º do Cód. Penal que: «1. Quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2. Na mesma pena incorre quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que haja encontrado. 3. [...]» Contrariamente ao que sucede no crime de abuso de confiança previsto no artº 205º do Código Penal, que pressupõe um ato de entrega/recebimento e, consequentemente a relação de fidúcia entre o agente e o proprietário da coisa objeto do crime, no crime de "apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada", esta entre na posse ou detenção do agente "por qualquer maneira independente da sua vontade", não existindo qualquer ato de entrega, mas antes uma circunstância, natural ou humana, por via da qual a coisa ou o animal entram na posse ou detenção do agente, podendo essa circunstância ocorrer por erro ou engano. A propósito da (des)necessidade de "apropriação física da coisa objeto do crime" refere José António Barreiros[3] que «a ocupação de uma coisa implica um ato voluntário de quem a efetivar, e é certo que o nº 1 do artº 209º é claro ao prever que a comissão do crime em apreço implica que a posse ou detenção do agente ocorra "de qualquer maneira independente da sua vontade". E, de facto, só é relevante a voluntariedade do agente do crime no caso de se tratar de coisa encontrada, situação tipificada no nº 2. [...] Seja como for, em relação ao regime previsto no nº 1, o que é certo é que a coisa haverá de encontrar-se na disponibilidade material do agente do crime por modo legítimo. Ainda que isso ocorra a título de "erro", esse erro não haverá de ter sido pré-ordenado pelo agente - induzir em erro para obter a entrega - ou por ele próprio aproveitado em termos de preparar a apropriação - na forma de saber que lhe entregam por erro e nisso consentir para fazer sua a coisa entregue.» Ou seja, enquanto o nº 2 do artº 209º exige o ato físico/material de apropriação, por se tratar de coisa encontrada pelo agente, na situação do nº 1 do preceito a coisa entra na posse do agente por ação natural ou humana, mas a que o agente é alheio. Perguntar-se-á, então, quando é que ocorre a apropriação prevista no nº 1 - "quem se apropriar ilegitimamente ...", na medida em que, perante a coisa (que entrou na sua posse por circunstância alheia à sua vontade), o agente terá de praticar atos que evidenciem a apropriação ilegítima. A respeito da necessidade de tutela penal dessas condutas, refere Figueiredo Dias que “pode duvidar-se que os critérios estritos daquela necessidade se encontrem presentes em casos nos quais a coisa chegou à esfera (fáctica) de posse ou detenção do agente por meios em princípio independentes da sua vontade e, de todo o modo, sem qualquer proatividade da sua parte. Por isso, diz o mesmo autor, “a incriminação só pode ser suportada se baseada num autêntico e autónomo ato de apropriação” e, por outro lado, “não deverão ser considerados em princípio como atos concludentes de apropriação, no sentido do preenchimento do tipo, aqueles que se traduzem em meras omissões e, por esta via, em pôr a cargo do agente quaisquer deveres de atuar.”[4] Como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.88 (proferido no processo nº 39 476 e publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 376, pág. 409) "o elemento subjetivo do tipo descrito no artº 423º do antigo Código Penal consiste na omissão voluntária de entrega do objeto achado, em virtude da específica intenção de apropriação do mesmo". Assim, comete o crime do artº 209º nº 1 do Código Penal o agente que, tendo a coisa na sua esfera de domínio, por nela ter entrado por circunstância natural ou humana independente da sua vontade, recusa a sua entrega quando para tal é interpelado ou se comporta relativamente à coisa como se dela fosse proprietário. A apropriação ilegítima não se verifica quando a coisa entra na esfera de domínio do agente, tanto mais que essa entrada ocorre por circunstância alheia à sua vontade, não sendo por isso a apropriação contemporânea da constituição da posse. A apropriação ocorre em momento posterior, quando o agente recusa a restituição da coisa ou passa a comportar-se, relativamente a ela, como se fosse seu dono. No caso em apreço, resulta da matéria de facto provada que, por erro dos Serviços Financeiros do Instituto da Segurança Social foi creditada na conta bancária da arguida a quantia de €788.080,00, que a arguida sabia não lhe ser devida. Não obstante, continuou a movimentar a sua conta, efetuando movimentos a débito no montante global de, pelo menos, €44.600,00[5]. Quando a Segurança Social contactou a arguida, solicitando-lhe que autorizasse o banco a proceder à devolução daquele valor, a arguida recusou-se a autorizar a pretendida devolução, utilizando tais quantias em seu proveito. Conclui-se, assim, que a quantia de € 788.080,00 entrou na esfera patrimonial da arguida por facto alheio à sua vontade e sem qualquer proatividade da sua parte. Contudo, a apropriação ilegítima (elemento objetivo do tipo) verifica-se quando a arguida utiliza em seu proveito parte da quantia creditada por erro na sua conta bancária e, ainda quando, tendo sido interpelada pela Segurança Social, se recusa a restituir o valor que sabia não lhe pertencer. Improcede, assim, este fundamento do recurso. * B) Da necessidade da pena: Alega a recorrente que está totalmente inserida na sociedade, tem uma boa estrutura familiar, é trabalhadora, não tem antecedentes criminais e sempre pretendeu devolver o dinheiro. Alega ainda que a condenação no pagamento da indemnização civil satisfaz todos os danos patrimoniais sofridos pela Segurança Social, restaurando totalmente a situação. Pelas motivações de recurso, até nos poderíamos interrogar se estamos efetivamente no âmbito de um processo penal instaurado pela prática de um facto ilícito típico de natureza criminal. É que a recorrente parece esquecer que, independentemente dos interesses patrimoniais indiretamente protegidos, a intervenção do sistema penal encontra a sua justificação nas finalidades relativas de prevenção geral e especial, o que confere fundamento e sentido às suas reações específicas. A prevenção geral assume, aliás, o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida. Por outro lado, as necessidades de prevenção especial visam dotar o condenado de um conjunto de qualidades pessoais que lhe permitam sentir a pena e ser por ela influenciado, na perspectiva da prevenção especial positiva ou de socialização. Se a recorrente pretende com a presente alegação, defender que deveria ter beneficiado do regime de dispensa de pena, diremos apenas que esse regime (aplicável a crimes puníveis com pena de prisão não superior a 6 meses ou só com multa não superior a 120 dias, o que não é o caso) pressupõe, além do mais, que o dano tenha sido reparado. Ora, como foi expressamente realçado na sentença recorrida, a arguida "nada fez para proceder à devolução do que gastou (sendo que o restante já tinha sido apreendido), e ainda afirmou não pretender devolvê-lo, o que fez de forma ponderada e firme, afirmação que não se compreende face à factualidade apurada". Acresce que, estando em causa um crime de natureza semi-pública, a arguida teria certamente evitado a instauração dos presentes autos e a consequente sanção criminal que lhe é inerente, se tivesse oportunamente restituído integralmente ao Instituto da Segurança Social, IP. as quantias de que indevidamente se apropriou. * C) Da aplicação da pena de prisão e da sua substituição: Alega a recorrente que a pena de prisão aplicada é inadequada, desproporcional e desnecessária, tanto mais que alertou as entidades competentes e tentou resolver tudo sem recurso aos tribunais, demonstrando vezes sem conta o seu arrependimento. Contrariamente ao alegado pela recorrente, a matéria de facto provada não alude a qualquer demonstração de arrependimento da sua parte. Ora, não tendo sido devidamente impugnada, a matéria de facto tem de considerar-se definitivamente assente, não podendo este Tribunal considerar a invocada manifestação de arrependimento. Por outro lado, impõe-se realçar que, como vem sendo decidido de modo uniforme pelos tribunais superiores “a intervenção do tribunal de recurso pode incidir na questão do limite ou da moldura da culpa assim como na atuação dos fins das penas no quadro da prevenção; mas já não na determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto se tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”[6]. No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico. Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar. A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”[7]. Vejamos se, no caso em apreço, se justifica a alteração da medida da pena aplicada à arguida: A proteção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida. A determinação da medida concreta da pena depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial. No caso em análise, as exigências de prevenção geral são elevadas e prementes, atento o alarme social que provoca a utilização indevida do erário público, principalmente quando se noticia diariamente a situação quase falimentar da Segurança Social. Acresce que o montante elevadíssimo das quantias apropriadas pela arguida é consistente com a necessidade de atribuição de uma pena de prisão, ainda que o nosso sistema de reações criminais tenha uma clara preferência por penas não detentivas (artº 70º do Cód. Penal), com vista ao fortalecimento das bases de coesão comunitária. As razões de prevenção especial ou individual são também prementes considerando o elevado grau de ilicitude dos factos, a dimensão do dolo direto, a ausência de interiorização da censurabilidade da conduta, a ausência de arrependimento e a arrogância demonstrada em julgamento alegando não pretender restituir as quantias apropriadas. Mas sem esquecer, por outro lado, que a arguida não tem antecedentes criminais, encontra-se inserida social, familiar e profissionalmente e, numa fase inicial, encetou diligências com vista à regularização da situação junto da Segurança Social. A finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades. Nos limites da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização há-de ser encontrado o modelo adequado e a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa como seu limite inultrapassável. Tendo em atenção tais considerações e a matéria de facto provada, entende-se que a imposição de uma pena de multa seria manifestamente insuficiente e inadequada às finalidades preventivas que se visam prosseguir. Conclui-se, assim, que as necessidades de prevenção geral e especial impõem a aplicação da pena detentiva prevista na lei, pelo que não se justifica a intervenção corretiva deste Tribunal. No que respeita à pretendida redução do período de suspensão de execução da pena, apenas se dirá que só no decurso dos dois anos e seis meses da suspensão se pode criar a expectativa de que a arguida terá possibilidades de cumprir a condição que lhe foi imposta. Com efeito, quanto menor o período de suspensão, maior seria o esforço que a arguida teria de fazer para cumprir com aquela condição. * D) Da condição imposta para a suspensão de execução da pena: Alega a recorrente que o montante das prestações mensais é totalmente desmedido e não se coaduna com as suas condições económicas. A este respeito estabelece o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do CP que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente, pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea». O dever enunciado tem, em primeira linha, uma finalidade reparadora (reparar o mal do crime) mas, por via dela, fortalece a finalidade da pena enquanto visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Com efeito, limitando-se a suspensão da execução da pena de prisão ao pronunciamento da culpa e da pena, deve encontrar-se, por razões de justiça e equidade, outra maneira de fazer sentir à comunidade e ao condenado, os efeitos da condenação[8]. Do que se trata, em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição[9]. O pagamento da indemnização, na medida em que representa um esforço ou implica até um sacrifício para a arguida, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas também como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se, assim, como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade[10]. A obrigação deve responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são conceitos básicos do Estado de Direito. Conexionando esta obrigação com a cláusula de exigibilidade e o princípio da proporcionalidade, estabelece o artigo 51.º, n.º 2, do CP que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir». E, por isso, a alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º, prevê que o tribunal fixe o dever de pagar a indemnização devida, no todo ou na parte que considerar possível (e até aos limites que se lhe tornarem possíveis [Na redacção prevista no Projecto de Revisão - artigo 49.º, n.º 1, alínea a)]. Com efeito, a necessidade de prever o pagamento parcial responde aos casos em que o arguido não pode pagar na totalidade. Na Comissão de Revisão do Código Penal, Figueiredo Dias referiu que no Código Alemão se recolhe a ideia de que o arguido deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder e de acordo com as suas forças[11], ideia que foi acolhida no nosso Código. A suspensão é compatível com um pagamento parcial se o tribunal concluir que só este é concretamente exigível. Podem suscitar-se dúvidas no que toca à correlacionação entre este dever e o pedido de indemnização civil, seja ele deduzido no processo penal, seja no processo civil. Parece ser, em geral, de sufragar a ideia de que aquele dever terá de limitar-se, em toda a medida possível (quer no seu “se”, quer no seu “como”, quer no seu “quanto”), aos pressupostos do pedido, podendo ficar aquém dele – sem por isso pôr em causa a validade jurídica da indemnização que venha a ser fixada – mas não ultrapassá-lo. Do que se trata neste dever de indemnizar é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição e não de reeditar a tese do carácter penal da indemnização civil proveniente de um crime que o artigo 129.º do CP quis postergar[12]. A doutrina alemã, mormente Roxin, começa a defender, de jure condendo, que a reparação do mal do crime deveria ser considerada em termos dogmáticos como consequência da prática do crime, a par (ou a seguir) das penas e das medidas de segurança. O que teria a vantagem, alega-se, de tal reparação ter natureza penal e, por isso, pública. Esgrimem-se argumentos de natureza pragmática e político-criminal que se prendem com os interesses do lesado que, por esta via, veria satisfeita a reparação dos danos causados pela prática do crime de forma mais fácil e mais célere. Não foi esta a opção do legislador português, que entendeu subordinar a indemnização aos pressupostos da responsabilidade civil (art.º 129º do C. Penal). No entanto, “a política criminal tem vindo a chamar a atenção para a necessidade e justiça de o direito penal ter em conta os legítimos interesses das vítimas, nomeadamente no aspecto da reparação dos danos ou prejuízos provocados pelo crime. Mas esta preocupação político-criminal com os interesses da vítima e das pessoas dela economicamente dependentes não tem, de modo algum, de levar a uma como que privatização do direito penal, nem sequer precisa da conversão da reparação das «perdas e danos» de sanção civil em sanção penal”[13]. A jurisprudência tem sido sensível aos legítimos interesses da vítima, tal como a política criminal. Daí que se defenda que “a suspensão da execução da pena só não pode ser condicionada ao pagamento da indemnização quando se demonstre que o arguido, mesmo com todos os sacrifícios exigíveis, é incapaz de cumprir essa obrigação”[14]. O STJ vai ainda mais longe quando afirma: “A quantia cujo pagamento a favor do lesado é imposta ao arguido como condição de suspensão da execução da pena não constitui uma verdadeira indemnização, mas apenas uma compensação destinada ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição e a dar finalidade suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias. Assim, pode ser fixada ainda que não tenha sido formulado pedido de indemnização”[15]. Como é óbvio, o juízo de razoabilidade da condição só pode fazer-se perante o caso concreto. No caso em apreço, a condição fixada – que se cifrou, em metade da totalidade do valor da indemnização devida ao lesado –, não se revela impossível, nem sequer irrazoável (note-se que já anteriormente foram encetadas negociações, ainda que infrutíferas, no sentido da restituição da respetiva quantia em prestações mensais de € 1000,00 - cfr. ponto 21 da matéria de facto provada -, o que permite antever que não estamos face a algo de impossível concretização ou com contornos irrazoáveis). Conforme referem as atas da Comissão de Revisão do Código Penal, foi acolhida neste diploma a ideia de que o agente do crime deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder e de acordo com as suas forças. Mas isto não significa que a condição tenha que se restringir ao que for confortável ao agente, isto é, àquilo que ele puder cumprir sem sacrifício, sob pena de não se poder impor como condição de suspensão da execução da pena o pagamento de indemnização ao lesado quando o agente não disponha, no momento, do montante em causa. Assim, e citando o decidido pelo S.T.J., no acórdão de 13 de Dezembro de 2006, proferido no processo 06P3116, in www.dgsi.pt, diremos que o n.º 1 do art.º 51.º do Código Penal, consagra o princípio da razoabilidade, que significa que a imposição de deveres deve atender às forças do destinatário, o agente do crime, para não frustrar, logo à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, mas cuidando de não cair no extremo de fixar uma condição atendendo apenas às possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição. Uma pena, qualquer pena, para ser eficaz, deve ser sentida pelo agente e, no caso de pena suspensa, muitas vezes a única coisa que o agente sente é, precisamente, a condição fixada. De qualquer modo, os «deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período da suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento» (art. 51º nº 3 do CP) e a revogação da suspensão (com o correspondente «cumprimento da pena de prisão fixada na sentença» - art. 56º nº 2), só poderá ocorrer se o condenado vier a infringir, com culpa «grosseira», os «deveres impostos» (art. 56º nº 1 al. a). Improcede, assim, mais este fundamento do recurso. * IV - DECISÃO * Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando consequentemente a douta sentença recorrida. Custas pela arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC - artº 8º nº 9 do RCP com referência à tabela III anexa. * Porto, 25 de outubro de 2023 (elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários) Eduarda LoboPaula Guerreiro Lígia Trovão ___________ [1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] In Crimes contra o património, 1996, pág. 137. [4] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 150. [5] Sendo certo que, antes daquela transferência da Seg. Social, a conta da arguida apresentava um saldo positivo de € 7.194,80. [6] Cfr., entre outros, Ac. desta Relação do Porto de 11.07.2007, Proc. nº 0742984, Des. Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt. [7] Cfr. Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197. [8] Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., p. 1160, embora assinalando o fortalecimento da função retributiva da pena. [9] V. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 353. [10] Cfr, neste sentido, o Ac. do STJ de 13/10/1999, proc. n.º 665/99, sumariado por Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, 1.º Volume, Editora Rei dos Livros, 2002, p. 681. [11] V. em Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, pág. 48. [12] Cfr. Figueiredo Dias, ob e loc. citados. [13] Cfr. Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais”, p. 142 [14] Ac da RC de 8/6/1995, CJ, Ano XX, tomo III, p. 71 [15] Ac de 11/6/1997, CJ, Acs do STJ, Ano V, tomo II, pg. 226. |