Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10/25.5PJMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CARTA DE CONDUÇÃO UCRANIANA
CARTA CADUCADA
PROVA DOS FACTOS EM PROCESSO PENAL
VALOR DA CONFISSÃO
MEIOS DE PROVA NÃO TAXATIVOS
Nº do Documento: RP2025102910/25.5PJMTS.P1
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NÃO PROVIDOS OS RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O standard de prova em processo penal encontra-se ao largo dos condicionamentos do regime probatório do processo civil, onde aí valem as exigências documentais para a prova da forma de determinados contratos, ou a exclusão de prova testemunhal para certos factos plenamente provado por documento, ou com força probatória especial, assim como a gama alargada de ónus de prova previstos no direito civil e lei de processo.
II - No processo penal os meios de prova não taxativos, são apreciados segundo a livre convicção do juiz apenas condicionada pelas proibições de prova, pelo disposto nos arts.163º e 169º do CPP, quanto aos documentos e perícias que se encontrem juntos nos autos.
III - A existência de carta de condução assim como a sua caducidade pode ser provada por confissão do arguido.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 10/25.5PJMTS.P1

Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No processo sumário que correu termos no Tribunal judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, realizado julgamento foi proferida sentença julgando:
Face ao exposto, por considerar a acusação procedente, por provada, o Tribunal decide:
- Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro de 1998, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), por factos praticados em 06-06-2025;
- Condenar a arguida nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, reduzida a metade por força da confissão (art.º 344º do C. P.Penal e art.ºs 8º e 10º do RCP).
*
Não se conformando com a decisão o MP veio interpor recurso, concluindo da seguinte forma:
1) O presente recurso versa sobre a sentença proferida pelo Tribunal a quo que condenou a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros).
2) O Tribunal a quo deu erradamente como provado os seguintes fatos (Cfr. transcrição dos factos dados como provados na audiência de discussão e julgamento em processo sumário do dia 16/06/2025 (00:00:39 a 00:00:51)):
«Já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos.
Não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa».
3) Apenas tendo em conta as respostas da arguida.
4) Não pode o Ministério Público conformar-se com tal, uma vez que não foi junto aos autos qualquer documento comprovativo da existência dessa carta de condução ucraniana, não tendo sequer aquela sido exibida em audiência de julgamento e as respostas da arguida a este respeito se revelaram muito contraditória e por isso desmerecedoras de credibilidade.
5) Assim, a prova daqueles factos deveria ter sido feita com base em prova documental e não por meras declarações da arguida.
6) Há que não olvidar que a arguida (com exceção das perguntas quanto à sua identificação) não se encontra sujeita à obrigatoriedade de responder com verdade e, por isso mesmo, não tem o dever de colaborar com a justiça, sendo certo que se faltar com a verdade nas suas declarações, não impende sobre aquela nenhuma responsabilidade penal (Cfr. 342.º e 343.º do Código de Processo Penal).
7) Motivo pelo qual, os factos supra transcritos deveriam ter sido dados como não provado.
8) Quanto à medida da pena, não pode, também, o Ministério Público concordar com a mesma.
9) Mesmo não possuindo antecedentes criminais, não existem razões para aplicação, in casu, de uma pena abaixo do limiar médio.
10) A arguida atuou sob a forma mais gravosa do dolo: o dolo direto (Cfr. n.º 1 do art. 14.º do Código Penal) e é proprietária da viatura com que praticou o crime, o que nos inculca
11) Apesar da arguida ter confessado dos factos, esta circunstância não tem especial relevo nem pode ser sobrevalorizada diante da prova documental e testemunhal ínsita no auto de notícia (situação de flagrante delito).
12) Além disso, a inscrição na escola de condução não é nenhuma garantia de obtenção da
carta de condução por parte da arguida, mas apenas uma intenção em fazê-lo, e, como tal, não lhe pode ser atribuído um relevo excessivo.
13) Pelo que as necessidades de prevenção especial, in casu, são pelo menos medianas.
14) Relativamente às necessidades de prevenção geral, há que ter em conta que o crime de condução sem habilitação legal, embora se insira na pequena criminalidade, extravasa o âmbito das bagatelas jurídicas e, por isso, não pode ser tratado como tal, desde logo perante os elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária, também com origem em situações como a tratada nestes autos (condução sem habilitação legal)
15) Como tal, este tipo de criminalidade deve ser exemplarmente punida, de forma a garantir a reafirmação das expetativas comunitárias na validade das normas penais rodoviárias.
16) Ao contrário do que transpareceu o Tribunal a quo na fundamentação da sentença de que ora se recorre, mesmo que a arguida tivesse, de facto, provado a existência de carta de
condução ucraniana (o que, repete-se, não o fez), há que ter em conta que a mesma já se encontrava caduca e que por isso não existe qualquer garantia de que a arguida se encontrasse a conduzir em segurança (daí a sua conduta ser criminalmente punida), não representando tal situação menor gravidade do que aqueles condutores que conduzem sem
nunca terem tido carta de condução.
17) Assim, entende o Ministério Público que, tendo em conta a moldura penal abstrata do crime de condução sem habilitação legal (pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias) e as necessidades de prevenção geral e especial, a pena aplicada à arguida nunca deverá ser inferior a 120 (cento e vinte) dias de multa, correspondendo a meio da pena, a fim de lhe ser atribuída dignidade penal e constituir um sacrifício suficiente para a arguida, sob pena de não se conseguir o efeito pretendido com a aplicação da pena, antes se incentivando aquela a repetir a sua conduta, o que constitui violação do art. 71.º n.º 1 do Código Penal.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser proferido douto Acórdão que revogue a sentença proferida pelo Tribunal a quo e, por conseguinte, ser aquela substituída por outra, em que:
a) Dê como não provado os seguintes factos:
a.1) A arguida já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos; e
a.2) Aquela não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa.
b) Condene a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de 600,00€ (seiscentos euros).
E assim decretando, farão V. Ex.as, como sempre, a melhor e a mais sã JUSTIÇA
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A arguida não respondeu a este recurso.
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Não se conformando com a decisão, também a arguida AA veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes conclusões:
I. O presente recurso vem interposto da Sentença proferida em 16 de Junho de 2025 que condenou a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro de 1998, na pena de 50
(cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o valor total de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);
II. O artigo 374.º do Código Penal estabelece quais são os requisitos da sentença;
III. A sentença proferida não obedece nem contém minimamente os requisitos impostos pela referida disposição legal;
IV. Padece a sentença de que se recorre do vício de nulidade, o qual expressamente se invoca e arguiu, para todos os devidos e legais efeitos;
V. O Tribunal a quo nunca poderia ter condenado a arguida pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, sem que tivesse prévia e oficiosamente requerido junto do
IMT informação sobre a situação da carta de condução da arguida;
VI. Uma vez que a mesma é titular de carta de condução ucraniana;
VII. Tratando-se a arguida de uma cidadã ucraniana titular de carta de condução emitida pelo seu país de origem, a questão jurídica inicial reside no saber se a Ucrânia assinou qualquer das Convenções estradais internacionais, seja a Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949) ou a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna,
8 November 1968);
VIII. Sabendo-se que Portugal é subscritor de tais Convenções (e, por isso assumiu as obrigações internacionais delas decorrentes) sendo igualmente a Ucrânia signatária das mesmas, terá que aplicar-se o seu artigo 41.º, n.º 2 (Títulos de condução);
IX. A simples circunstância de Portugal e Ucrânia serem subscritores de tais Convenções vincula – no caso concreto – o Estado português a aceitar o título de condução ucraniano em moldes idênticos aos títulos portugueses;
X. O essencial está na distinção a fazer, desde logo entre títulos válidos e títulos não válidos;
XI. Depois, apurar se a invalidade do título de condução se fica a dever a uma causa de caducidade ou se, ao invés, a uma causa de cancelamento ou a uma revogação, o que é matéria que no caso sub judice não se coloca. Só releva no país de emissão do título;
XII. O Tribunal a quo não apurou se o título de condução ucraniano de que a arguida é titular está ou não caducado, e em caso positivo, há quanto tempo;
XIII. Pois se se verificar a caducidade, é de um título emitido por Estado subscritor de uma das Convenções;
XIV. O n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada não distingue que titulares referidos no artigo 125.º, n.º 1 do CE devem e quais não devem ser punidos por contra-ordenação e quais devem ser punidos criminalmente!!
XV. E onde a lei não distingue o intérprete não pode fazer opções que sejam mais do seu agrado. Não pode na medida em que essa interpretação constitua uma clara interpretação contra legem;
XVI. Mas se o legislador prevê sanção mais gravosa para quem tem um título válido e apenas não o troca no prazo legal e menos gravosa para quem conduz com título caducado, a única asserção possível do intérprete é que essa foi uma clara opção do legislador, aliás semelhante a outras!
XVII. Assim, e porque foi incorrectamente dado como provado que a arguida “Já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos” – e deverá passar a constar como facto não provado, o que se requer - quando não é feita qualquer menção ao número da carta, quais as viaturas abrangidas por tal habilitação de conduzir, qual a data de emissão, qual a data de validade, etc;
XVIII. Sem que tenha sido realizada qualquer diligência junto do IMT, não se encontra provado que a arguida tenha cometido o crime pelo qual vinha acusada, ou eventualmente,
que tenha praticado apenas uma contra-ordenação;
XIX. Deveria o Tribunal a quo ter decidido como factos não provados que, à data dos factos descritos a arguida não era titular de habilitação legal para o exercício da condução;
XX. A conduta da arguida não preenche os elementos típicos do crime de que vinha acusada – condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 e 2 do Decreto- Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro de 1998 devendo ser a mesma absolvida.
TERMOS EM QUE SE REQUER A VENERANDAS V. EXAS. SE DIGNE REVOGAR A SENTENÇA RECORRIDA E EM SUA SUBSTITUIÇÃO, SER PROFERIDA DECISÃO NOS TERMOS ALEGADOS, ABSOLVENDO A ARGUIDA DO CRIME PELO QUAL FOI CONDENADA CONFORME É DE INTEIRA JUSTIÇA.
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O Digno Procurador apresentou contra-motivação sustentando em síntese o seguinte Começando pelo primeiro argumento:
Efetivamente o Tribunal a quo deu incorretamente como não provados os seguintes fatos:
«Já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos.
Não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa» (Cfr.transcrição dos factos dados como provados na audiência de discussão e julgamento em processo sumário do dia 16/06/2025 (00:00:39 a 00:00:51)).
Quanto a estes factos o Tribunal a quo, e ao contrário do que sucedeu com a inscrição da arguida em escola de condução, fundamentou a sua motivação apenas nas declarações da arguida («No que diz respeito à sua carta de condução o Tribunal, no que diz respeito à sua inscrição, valora o documento que foi apresentado pela arguida neste processo e que foi junto aos autos. No que diz respeito à carta de condução que tinha na Ucrânia, o tribunal valora uma vez mais as declarações prestadas pela mesma em audiência de julgamento» (Cfr. transcrição da motivação da sentença do dia 16/05/2025 (00:01:59 a 00:02:20)).
Ora, efetivamente não se pode concordar com a posição do Tribunal a quo ao dar como provado um facto desta natureza só com base nas declarações da arguida, sem que aquela tenha junto aos autos qualquer documento comprovativo do que é alegado pela arguida, tal como sucedeu com a inscrição daquela numa escola de condução e sem ter realizado qualquer diligência junto do IMT para confirmar a veracidade de tal alegação.
Além disso, as declarações da arguida mostraram-se muito contraditórias quanto a este aspeto, sendo notório o seu esforço em tentar diminuir a gravidade dos seus fatos (até porque já era a segunda vez que era encontrada a conduzir sem carta – inquérito 463/24.9PTPRT, onde lhe foi aplicada a suspensão provisória do processo, receando certamente a mesma a consequência de tais atos), razão pela qual não lhe deveria ter sido atribuída credibilidade.
Se por um lado, a arguida afirma que é titular de carta de condução ucraniana, por outro
foi alterando a razão pela qual não procedeu à sua renovação/troca (o que é injustificável já que segundo declarações da própria já habita em Portugal há 15 anos): ora por causa da guerra, ora por causa da sua condição de saúde ou até mesmo do seu divórcio.
Portanto, se o Tribunal quo considerasse tal fato (a arguida ter sido titular de carta de condução ucraniana há 15 anos atrás) para justificar a aplicação de uma pequena mais reduzida como a que aplicou (com a qual não concordamos pelas razões expladas no recurso por nós interposto e ainda pela circunstância de arguida ter sido interveniente em acidente de viação), deveria ter munido os autos da documentação que comprovasse tal fato.
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Relativamente à segunda argumentação acima sumariada e suscitada no recurso:
contrariamente ao que é defendido pela arguida/recorrente, o art. 130.º do Código da Estrada não é aplicável à situação concreta porquanto resulta claramente da leitura do preceito que o espírito do legislador era restringir a sua aplicação a títulos de condução portugueses ou reconhecidos pelo Estado Português, o que não foi o caso.
De fato, a arguida nunca providenciou pelo reconhecimento da sua carta de condução junto das autoridades português, que segundo a versão da arguida se encontrava caduca há 15 anos, coincidente com o período de tempo que se encontra em Portugal (reconhecimento a ser realizado ao abrigo da subscrição da Convenção de Viena de 8 de novembro de 1968 por parte da República Portuguesa e do país de onde a arguida é nacional – Ucrânia; e não já não a Road Traffic de 1949 assinada apenas pelo estado Português), motivo pela qual, e conforme resulta da matéria dada como provada, a mesma se encontra inscrita em escola de condução para a obtenção de carta de condução desde junho de 2025.
Pelo exposto, a conduta da arguida dada como provada integra inquestionavelmente o crime pelo qual a mesma foi condenada.
Nesta conformidade, a decisão recorrida deverá ser parcialmente alterada por Vossas Excelências, dando como não provado (por irrelevante e não se encontrar documentalmente comprovado) que:
a.1) A arguida já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos; e
a.2) Aquela não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa.
a fim de ser efetuada a acostumada justiça.
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, sustentou:
O Ministério Público, inconformado com a sentença proferida, interpôs recurso da mesma impugnando parte da matéria de facto assim como a medida concreta da pena.
Quanto à matéria de facto entende que não se devia ter dado como provado que a arguida já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos e que não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa porquanto estes factos resultam apenas das declarações da arguida, não havendo qualquer outra prova que os corrobore.
Não podemos olvidar que a arguida confessou integral e espontaneamente todos factos que lhe foram imputados pelo que não há razão para o tribunal duvidar dos demais factos que a mesma acrescentou.
O artigo 127º do Código de Processo Penal dispõe que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Daqui decorre, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2004 (Processo n.º 03P3213), que “O princípio estabelecido no artigo 127° do CPP significa que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal valorar os meios de prova de acordo com a experiência comum e com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção.”
Como refere Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, páginas 204 e ss.), “a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis [v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova], e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.”
Nesta matéria, como a jurisprudência não se cansa de afirmar, assume particular importância o princípio da imediação, isto é, “a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.”- cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9 de Março de 2004 (processo n.º 1503/03-1).
Ainda nas palavras do referido acórdão, referindo-se aos princípios da oralidade e imediação afirma que “só estes princípios permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso (cfr. F. Dias, ob. cit. 232 e ss.)”.
Ou seja, o tribunal, ao abrigo do citado preceito legal apreciou a confissão da arguida tendo entendido, face ao princípio da oralidade e da imediação, que os demais factos pela mesma referida não suscitavam qualquer dúvida.
Daí que se entenda que a sentença recorrida não enferma de qualquer vício no que à fixação da matéria de facto respeita.
No que concerne à medida concreta da pena, a mesma afigura-se demasiado baixa, conforme refere o Ministério Público no seu recurso atendendo, sobretudo, às exigências de prevenção especial e de prevenção geral que, no caso, se fazem sentir.
Assim, subscreve-se, nesta parte, a posição vertida nas motivações de recurso.
Por conseguinte, o recurso do Ministério Público merece provimento mas apenas na parte relativa à medida concreta da pena.
Porto, 29-9-2025
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, não obstante as respostas dos arguidos, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II.
Objeto do recurso e sua apreciação.
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
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Deste modo integram o objeto do recurso do MP:
- pretende não se dê como provado que
“«Já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos.
Não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa».
- mais pretende o agravamento da medida da pena de multa e da sanção acessória.

Integram o objeto do recurso da arguida:
- pretende não se dê como provado que
“«Já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos».
- Mais pretende a absolvição do crime.
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Do enquadramento dos factos.
Da sentença consta o seguinte:
Factos Provados:
“(…)
- A arguida mostrou arrependimento sincero.
- Já teve carta de condução ucraniana, a qua se encontra caduca há mais de 15 anos.
- Não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa
- Encontra-se inscrita em escola de condução, para obtenção de carta de condução, desde junho de 2025.
- A viatura identificada é propriedade da mesma.
- A arguida encontra-se de baixa médica por doença, beneficiando do subsídio de desemprego na quantia mensal de 250€.
- Vive num quarto arrendado pelo qual paga a quantia mensal de 300€.
- Recebe apoio alimentar e de bens de primeira necessidade de uma associação, e bem assim ajuda económica de pessoas suas conhecidas e amigas.
- A arguida não tem antecedentes criminais.
(…)
Determinação da medida concreta.
(…) as necessidades de prevenção geral não são particularmente elevadas, principalmente se tomarmos em consideração que a perigosidade neste tipo de crime em concreto não é particularmente elevada. Estamos a falar de alguém que já teve carta de condução (…) não é dos crimes que tem mais relevo e causa mais alarme social. Para além disso, no caso, a arguida não tem antecedentes criminais, é uma pessoa integrada na sociedade portuguesa sob o ponto de vista social e aparentemente familiar, e também sob o ponto de vista do benefício da segurança social, terá sido uma pessoa perfeitamente integrada sob o ponto de vista profissional. Para além disso confessou os factos, mostrou arrependimento, colaborou com o Tribunal. A perigosidade é diminuída pela circunstância de já ter tido carta de condução, e ainda assim inscreveu-se em escola de condução recentemente, na tentativa de obter carta de condução pela via legal em território nacional, e por tudo isto o Tribunal decide aplicar à arguida uma pena de multa que não pode deixar de refletir o que há de negativo neste processo, o facto de ser proprietária de um veículo automóvel e não tem licença de habilitação para o conduzir em território nacional. E pese embora as circunstâncias que estiveram na base da sua propriedade, o Tribunal não pode deixar de considerar esse facto, porque é tentador para alguém que tem um veículo nas suas mãos, voltar a conduzi-lo, mesmo não tendo a licença necessária para o efeito. E por isso (…) o Tribunal decide aplicar a pena muito próximo do limiar mínimo, de 50 dias de multa (…)”.
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Cumpre apreciar.
Os recorrentes centram o objeto do recurso na circunstância de o Tribunal “A Quo” não poder atender aos factos confessados pela arguida, concretamente quanto à circunstância da mesma não ter carta, por ser titular de carta ucraniana caducada há cerca de 15 anos.
Antes de mais, deve asseverar-se que ambos os recorrentes perdem de vista dois aspetos essenciais.
Quanto ao primeiro ponto, o standard de prova em processo penal e o respetivo paradigma é enformado pelo princípio de meios de prova não taxativos, podendo estes ser apreciados segundo a livre convicção do julgador, salvo algumas exceções: entre as quais se contam as proibições de prova; assim como dos arts.169 do CPP, na prova dos factos materiais constantes de documento autêntico junto nos autos; e no valor da prova pericial junta nos autos, conforme o disposto no art.163º do CPP, o qual se presume subtraído à livre apreciação do julgador, embora este possa divergir do parecer, com o especial dever de fundamentar.
De resto, toda a produção de prova em processo penal, como se referiu, depende, grosso modo, do art.127º do CPP, segundo o qual e diferentemente do processo civil, no processo penal não existem os requisitos ad substantiam na prova da forma dos contratos, cujas exigências determinam que essa forma negocial só se possa provar pelo documento legalmente exigido, como sucede com o contrato de seguro, como negócio formal nos termos do artº426º do C. Comercial, sem o que é nulo o contrato; o que de igual forma sucede nos contratos de compra e venda de imóveis, entre outros negócios formais; também, para certos factos, exige-se prova tarifada com determinado valor probatório, designadamente o que decorre dos documentos autênticos, onde para certos factos não é admissível a prova testemunhal cfr.art.393º do Cód.Civil. Também, na discussão do processo civil, valem a miríade de ónus de prova previstos na lei civil, que no processo penal inexistem, aqui não operando esses ónus e as respetivas consequências jurídicas (deve ainda asseverar-se que no processo civil, nas formalidades ad probationem, a inobservância da forma legalmente imposta, dificulta a prova, não sendo afetada a validade do acto, que, porém, só poderá ser provado ou por um meio mais solene, com força probatória superior à do documento exigido, ou por confissão, de acordo com o disposto no n.º 2 do acima mencionado art.º 364.º do C.C..).
No processo penal, diferentemente, a livre apreciação do juiz julgará os meios de prova não taxativos, os quais podem ser relativamente atípicos, com os limites que decorrem das proibições de prova. Acresce que a livre convicção do julgador somente poderá validar um juízo probatório se assentar numa aferição com elevada probabilidade, em consonância com a vigilância e as ressonâncias da dúvida em obediência ao in dubio pro reo. Tudo isto para significar que, diversamente do que sucede com a discussão em processo civil, no ambiente do processo penal pode bem provar-se a realização de uma compra e venda de um imóvel, sem que nos autos conste a respetiva certidão da escritura pública, o que mutatis mutandis se pode transpor ao caso dos autos, perante a prova através da confissão, da existência da carta emitida pelas autoridades Ucranianas, por um lado, e a sua caducidade há mais de 15 anos, por outro.
Neste sentido o Ac. STJ de 20-11-1996, Proc. nº47287, segundo o qual: «ao invés do que acontece em processo civil, em que certos actos jurídicos somente podem ser provados em tribunal por específicos tipos de prova, em processo penal, dado o objectivo de procura da verdade material, fundamento da sua existência, é admitida a utilização de vários meios de prova para que o tribunal formule a sua convicção no aspecto factual, sem que esteja condicionada pela produção de determinados meios probatórios».
No mesmo sentido ver TRL de 30-03-2009, CJ, 2009, T2, pág.149: “Em processo penal, a prova documental nunca é obrigatória, não existindo impedimento a que se prove por meio de prova testemunhal que a arguida é responsável pela exploração do estabelecimento e da máquina de jogo neste instalada.

Como segundo aspeto, e não menos importante, que escapou aos recorrentes, no regime jurídico da confissão livre, integral e sem reservas, designadamente o disposto no art.344º nº2 alínea a) do CPP, essa confissão (que os recorrentes não colocaram em crise) implica “a renúncia à produção de prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados.”, sendo que, in casu, não operaram as exceções previstas nas alíneas b) e c) do nº3 do citado artigo 344º do CPP.
Portanto, existindo confissão livre, integral e sem reservas, o Tribunal procedeu corretamente, daí retirando as consequências legais, dando como provados os factos:
“- Já teve carta de condução ucraniana, a qual se encontra caduca há mais de 15 anos.
- Não efetuou a troca da carta de condução por carta de condução portuguesa.”
Estes factos, diferentemente do que sustentam os recorrentes não careciam de outra produção de prova. Muito menos o MP tem razão quando pretende prova documental para a existência de uma carta (já caduca), sendo que não se alcança qual o sentido de providenciar por essa prova, sobretudo, se a carta é já caduca.
De igual forma, carece de razão a arguida recorrente quando sustenta que “O Tribunal a quo não apurou se o título de condução ucraniano de que a arguida é titular está ou não caducado, e em caso positivo, há quanto tempo;”. É igualmente incongruente, que a recorrente, pretenda que um título não válido na ordem jurídica ucraniana, definitivamente caducado (por o ser há mais de 10 anos), possa o mesmo valer na ordem jurídica portuguesa, ao abrigo de uma convenção internacional. Sobre as dificuldades interpretativas dos arts.130º nº7 e 125º do Cód.Estrada suscitadas pela recorrente, antes de mais, cabe referir que no nº7 do art.130 do CE a punição com coima apenas respeita à caducidade prevista no nº1 desse preceito, o que não se apura que seja o caso dos autos, o que afasta a punição como mera ordenação social. Por outro lado, e mais importante, o nº3 alínea d) do referido artigo 130º estipula que “O título de condução caducado não pode ser renovado quando: d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.”.
Acresce que se é verdade que são títulos habilitantes para conduzir em Portugal os previstos na alínea d) do nº1 do art.125º do Cód.Estrada, concretamente “Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;”, contudo, o disposto no nº5 do referido preceito também prevê que “Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.” (relevo nosso), disposição que deve ser articulada com o referido art.130º nº3 alínea d) do Cód.Estrada. Portanto, nada resulta que permita supor a validade da carta ucraniana da arguida (caducada há mais de 15 anos e, por isso, insuscetível de ser renovada), na ordem jurídica portuguesa, devendo por isso ser punido pelo crime de condução ilegal, neste sentido ver o artigo intitulado “Título habilitante de condução estrangeiro com o prazo de validade caducado: crime ou contraordenação? Uma análise prática jurisprudencial a partir do caso de Robertson Carlos.” da autoria da Mmª Juíza Drª Ana Crespo quando refere “o título de condução caducado é revalidável por 10 anos, sendo a revalidação impossível caso o titular nada faça em tal período temporal e não obtenha assim a revalidação (artigo 130.º, n.º 3, alínea d)). Desta forma, na prática, perante um título de condução caducado há que distinguir duas situações: a) se o arguido conduz com título que está caducado, mas ainda é revalidável (isto é, ainda não decorreram 10 anos sobre a data da sua caducidade), estamos perante o ilícito contraordenacional previsto no artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada; b) já se o arguido conduz com título que está caducado e que já não é revalidável (ou seja, já decorreram mais de 10 anos sobre a data da sua caducidade), estamos perante crime de condução sem habilitação legal, nos termos do artigo 3.º, n.º 1 e eventualmente n.º 2 do Decreto Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, ex vi o artigo 130.º, n.º5 do Código da Estrada.” (in Revista Julgar Online, novembro de 2023|1).
Devendo ambos os recursos improceder quanto a estas conclusões.
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No que concerne ao agravamento da medida da pena pretendido pelo MP, cabe referir que a pena concreta foi corretamente dimensionada pelo Tribunal “A Quo”, onde se valorou, a confissão da arguida muito relevante para o apuramento dos factos; o faco de ser primária, mostrou arrependimento sincero, de modesta condição económica, encontrar-se inscrita em escola de condução, tudo constituindo um condicionalismo denunciador de moderadas exigências de prevenção especial, justificando uma medida concreta da pena de multa inferior ao meio da moldura da pena, afigurando-se que o Tribunal “A Quo” julgou com equilíbrio e sensatez.
Assim improcedem todas as conclusões de ambos os recursos.

DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento a ambos os recursos e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos, manter a decisão do Tribunal “A Quo”.

Custas do recurso a cargo da recorrente arguida, fixando a taxa de justiça no mínimo cfr.art.513º, n.º 1 do Código Processo Penal).

Notifique.

Porto, 29 de outubro de 2025.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Amélia Carolina Teixeira
Lígia Trovão