Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
370/22.0JAAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: ABUSO SEXUAL
AVALIAÇÃO DA CREDIBILIDADE DO DEPOIMENTO
Nº do Documento: RP20241120370/22.0JAAVR.P1
Data do Acordão: 11/20/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Fatores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, mas sobretudo a sua completude e verossimilhança, constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade do depoimento de quem foi abusado sexualmente. Donde resulta que o tribunal a quo não podia ter ficado com dúvidas sobre a prática dos factos imputados na acusação, não pelas razões que invocou, mostrando-se os pressupostos em que alicerçou a sua convicção violadores das regras da experiência comum pelo que se impõe uma outra convicção o que, à face do disposto no art. 412º nº 3 b) do CPP justifica modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso nos termos ora exarados.
II - Abuso sexual agravado de uma jovem de 17 anos, justifica pena de prisão ainda que suspensa na sua execução.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 370/22.0JAAVR.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Criminal de Aveiro – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum coletivo n.º 370/22.0JAAAVR, a correr termos no Juízo Central Criminal de Aveiro, Juiz 2, foi decidido:

«a) DECLARAR este tribunal internacionalmente incompetente para o julgamento dos factos descritos na acusação, alegadamente praticados na Costa Rica – parágrafos 3 a 10 da acusação

b) ABSOLVER o arguido AA, da prática de 31 crimes de abuso sexual de menor dependente, na forma agravada, p.p. pelos artigos 172º, nº 1 alínea b) e 177º, nº 1 alínea b) ambos do Código Penal.

c) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado por BB e, em consequência ABSOLVER o demandado AA, do pagamento àquela da quantia de €22.000 (vinte e dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a notificação até efectivo e integral pagamento


*

Sem custas criminais.

Custas cíveis pela demandante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficie.


*

Após trânsito, face à decisão de incompetência, extraia certidão do processado e remeta ao MP, para os fins tidos por convenientes».

*

Inconformado, o M.P. interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que condene o arguido, concluindo (transcrição):

«1º O presente recurso é interposto do acórdão proferido nos autos à margem referenciados em 20/03/2024 (refª 132231640), na parte em que ali se decidiu absolver o arguido AA da prática, como autor material, de 31 (trinta e um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos art.º s 172º, n.º 1, al. b), e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, que lhe vinham imputados como praticados em território nacional;

2º Na acusação deduzida nos autos, vinham igualmente imputados ao arguido os factos ali descritos sob os parágrafos #3 a #10 – factos ocorridos na Costa Rica e integradores de 20 (vinte) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos art.º s 172º, n.º 1, al. b), e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal – os quais, pelas razões expostas como questão prévia no acórdão recorrido, não foram objecto de conhecimento pelo Tribunal a quo, com o que se concorda;

3º Não pode o Ministério Público conformar-se com tal decisão, precisamente porque se entende terem sido incorrectamente julgados como não provados os pontos de facto que permitiriam imputar ao arguido os aludidos crimes e a final fundamentar a sua condenação pelos mesmos – pelo que se interpõe o presente recurso, com fundamento nas seguintes questões, cuja resolução assim se pede a Vossas Excelências:

A. Do incorrecto julgamento da matéria de facto;

B. Da qualificação jurídica dos factos;

C. Da medida das penas parcelares e única a aplicar ao arguido;

4º Consideram-se ter sido incorrectamente julgados os pontos B. a K. da matéria de facto dada como não provada;

5º Em audiência de julgamento foi produzida prova que, neste âmbito, impõe decisão diversa da decisão recorridas – elementos de prova esse que são os acima elencados e apontados e transcritos no ponto A., nas suas alíneas a) e b), da motivação deste recurso, e para os quais aqui se remete, dando-os por reproduzidos – os quais não foram devidamente considerados e valorados pelo Tribunal a quo;

6º Mais concretamente, no que se reporta aos actos praticados pelo arguido e de que foi vítima a BB, bem como à sua localização espacial e temporal, trata-se dos seguintes elementos de prova, indicados e transcritos no ponto A. a). da motivação do presente recurso:

- as passagens ali indicadas e transcritas das declarações para memória futura em 04/11/2022 prestadas pela ofendida BB, declarações essas que foram gravadas e constam da plataforma Citius (ficheiro 20221104144307_4171544_2870428);

- as passagens ali indicadas e transcritas das declarações prestadas em audiência de julgamento em 21/02/2024 pela ofendida BB, declarações essas que foram gravadas e constam da plataforma Citius (ficheiro 2024221104914_4275629_2870423);

- o relatório de perícia médico-legal de psicologia junto a fls. 143 e ss. dos autos – relativo ao exame pericial de psicologia a que foi submetida a ofendida BB em 09/08/2022;

- as passagens ali indicadas dos esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pela Dra. CC, perita que procedeu ao exame pericial em causa e subscreveu tal relatório, em depoimento prestado em 22/11/2023, encontrando-se as suas declarações registadas na plataforma Citius (ficheiro 20231122151122_4275629_2870423);

7º Tais elementos de prova, analisados conjugadamente e à luz das regras da experiência e da lógica, como exposto na motivação deste recurso, levam a considerar que os relatos produzidos pela ofendida BB, no seu essencial, no que respeita à ocorrência dos actos de abuso sexual imputados, se apresentam como credíveis e sustentam, no seu essencial, a prova dos factos que vinham imputados ao arguido;

8º Sendo no acórdão recorrido apontadas incongruências aos relatos feitos pela ofendida, face aos factores de credibilização que são apontados naquele relatório pericial de psicologia, não são de molde a que o Tribunal a quo possa descartar a credibilidade e validação de tais relatos no seu todo;

9º O depoimento da testemunha DD – que no acórdão recorrido se refere conferir sustentação à versão apresentada pelo arguido, no sentido de negar a prática dos factos, e assim fundamentar a dúvida do Tribunal a quo acerca da ocorrência dos mesmos – não passa nesse aspecto do veicular de uma mera opinião, não sustentada e, aliás, contrária aos factos objectivos sobre os quais a testemunha depôs, como se alcança das passagens do respectivo depoimento acima indicadas e transcritas (depoimento em audiência de julgamento em 13/12/2023, registado na plataforma Citius (ficheiro 20231213100554_4275629_2870423 – sessão da manhã);

10º Não é assim tal depoimento objectivamente sustentado e, portanto, inadequado e insuficiente a fundamentar a situação de dúvida exposta pelo Tribunal a quo;

11º No que se refere aos factos atinentes à relação familiar e de confiança existente entre arguido e ofendida e ao estado subjectivo em que o arguido agiu, trata-se dos seguintes elementos de prova, indicados e transcritos no ponto A. b). da motivação do presente recurso:

- as passagens ali indicadas e transcritas das declarações da ofendida BB, prestadas em declarações para memória futura em 04/11/2022, constantes da plataforma Citius (ficheiro 20221104144307_4171544_2870428);

- as passagens ali indicadas e transcritas do depoimento da testemunha DD em audiência de julgamento de 13/12/2023 – registado na plataforma Citius: ficheiro 20231213100554_4275629_2870423, relativo à sessão da manhã, na plataforma Citius: ficheiro 202312131439_4275629_2870423, relativo à sessão da tarde;

12º Relativamente ao estado subjectivo em que o arguido agiu (conhecimento das circunstâncias das suas acções, consequências dos seus actos e vontade de os praticar), como é natural, mormente porque o arguido negou a prática dos factos, não existe prova directa da correspondente factualidade;

13º Pressupondo, porém, a prova dos factos propugnada neste recurso relativos às suas condutas objectivas, inexistindo nos autos qualquer elemento de prova que sequer leve a suspeitar que o arguido não está dotado das capacidades mentais e cognitivas adequadas a perceber as circunstâncias em que age e a determinar-se em conformidade com o conhecimento que tem das mesmas, deve o estado subjectivo em que o arguido actuou ser apreciado e decidido à luz das regras da experiência e da lógica para o mesmo tipo de situação – ditando tais regras que se uma pessoa, na posse das suas capacidades cognitivas e de decisão, age de determinada forma, dentro de certas circunstâncias e com resultados por si domináveis, é porque quer agir dessa forma, nessas circunstâncias e pelo menos admite o resultado como consequência provável da sua conduta;

14º Deveria igualmente o Tribunal a quo ter considerado o elemento de prova documental indicado na acusação e que consiste no assento de nascimento e seu averbamento constantes de fls. 17 a 19 dos autos. do qual decorre que o arguido e a mãe da ofendida, DD, casaram um com o outro em 02/09/2020 – facto este não descrito na acusação – elencando tal facto entre os factos provados, com a necessária prévia comunicação da alteração não substancial de factos, nos termos e para os efeitos do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal;

15º Assim sendo, entende-se que o Tribunal a quo, com base na prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente os elementos de prova acima elencados, e analisados tais elementos conjugadamente, à luz das regras da experiência de da normalidade para idêntico tipo de situação, e visto o que ficou dado como provado, além do mais, nos pontos 2. a 3. e 5. (na parte relativa às condições pessoais e sociais), deveria ter dado como provados pelo menos os seguintes factos:

- O arguido e a mãe da ofendida BB casaram um com o outro em 02/09/2020;

- Em Junho de 2021, a BB começou a namorar com um rapaz e o arguido, mostrando-se ciumento, numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela;

- O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando;

- Acto contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”;

- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis erecto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB;

- Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.

16º Tais factos integram a prática pelo arguido de pelo menos 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, na forma agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal;

17º Deve, pois, o arguido ser condenado pela prática de tais crimes e, atendendo aos critérios de escolha e determinação da medida das penas parcelares e única decorrentes dos artigos 40º, 71º, nºs 1 e 2, e 77º, nº 1, do Código Penal, serem-lhe aplicadas as seguintes penas:

- a pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal;

- a pena única de 7 (sete) anos de prisão.


***

Deve, portanto, ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:

A. Deve o acórdão recorrido ser alterado na decisão relativa à matéria de facto, por forma a ficar a constar entre os factos dados como provados pelo menos os seguintes que se devem ter por provados:

- O arguido e a mãe da ofendida BB casaram um com o outro em 02/09/2020;

- Em Junho de 2021, a BB começou a namorar com um rapaz e o arguido, mostrando-se ciumento, numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela;

- O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando;

- Acto contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”;

- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis erecto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB;

- Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.

B. Deve ser alterado o acórdão recorrido no sentido de condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, na forma agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal;

Sendo-lhe aplicadas as seguintes penas:

- a pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal;

- em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, a pena única de 7 (sete) anos de prisão.

V. Exas., porém, decidirão como for de JUSTIÇA.»


*

AA, arguido no processo respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo:

“I - As conclusões das alegações de recurso do Recorrente têm necessariamente de improceder, já que a douta decisão em crise, à qual se adere integralmente, é correcta e faz justiça.

II - Não merece, pois, nenhuma censura ou reparo a decisão recorrida, a qual fez uma exacta e correcta aplicação da lei, não violando qualquer disposição legal.

Termos em que e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a douta decisão recorrida.

Em consequência, improcede, “in totum” as conclusões de recurso formuladas pelo MP, ora apelante.

V.a(s) Ex.a(s), porém, e como sempre farão, JUSTIÇA!.”


*

Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde pugnou pela procedência do recurso e substituição da decisão recorrida.

*

Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o arguido apresentou resposta concluindo:

«CONCLUSÕES

I – O Tribunal a quo decidiu bem, em consciência,

II – Em estrito respeito e consonância com os princípios basilares do processo penal e da experiência.

III – Da leitura da decisão recorrida, não se vislumbra incorrecto julgamento da matéria de facto nem resulta qualquer erro ou vício de raciocínio no que concerne à livre convicção e apreciação da prova.

IV – O tribunal recorrido apreciou a prova segundo as regras de experiência comum e em obediência a critérios de razoabilidade, lógica e experiência, sendo que aquele está em melhores condições para apurar a verdade e a credibilidade dos depoimentos e das declarações prestadas pelas testemunhas.

V – Com efeito, não resultou matéria que pudesse conduzir a outra interpretação das declarações proferidas ou erro de julgamento, i.e., não há qualquer elemento de prova que imponha uma decisão diversa.

VI – A escolha assente na decisão recorrida, tem claramente suporte coerente na prova produzida, objectiva e criticamente analisada, conforme as regras da experiência comum.

VII – Em suma, face a todo o supra exposto em relação ao Recurso interposto pelo MP, resta-nos concluir que a motivação apresentada, não justifica a formulação de juízo valorativo diferente do assumido pelo Tribunal a quo, devendo Vós Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, manter nos exactos termos, a decisão proferida.

A douta decisão recorrida não merece qualquer censura, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantida tal decisão, nos seus precisos termos.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a douta decisão recorrida.

Exercerão Vossas Excelências a acostumada JUSTIÇA!»


*

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

*

II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

A. Do incorreto julgamento da matéria de facto;

B. Da qualificação jurídica dos factos;

C. Da medida das penas parcelares e única a aplicar ao arguido.


*

Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente à decisão e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação constantes do acórdão recorrido (transcrição):

«2- Fundamentação

2.1.- De relevante para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

Da acusação

1. Em data não concretamente apurada do ano de 2017 o arguido iniciou uma relação de namoro com DD, residindo ambos, à data, na Venezuela.

2. Uma vez que os pais da DD se opunham a tal relacionamento, em 1 de Dezembro de 2019 o casal decidiu passar a residir na Costa Rica, o que fizeram, juntamente com BB (nascida em ../../2004) e EE, filhas da DD.

3. Em Outubro de 2020, a DD e as filhas vieram residir para Portugal, fixando residência numa habitação pertencente aos pais da mesma, sita na Rua ..., ..., na ....

4. Tendo o arguido permanecido na Costa Rica, em Janeiro de 2021 o mesmo veio também para Portugal, voltando a residir com aquelas.


*

Das condições pessoais e certificado de registo criminal do arguido

5. Do relatório social junto consta:

«1 – CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS

O arguido (39 anos, natural da Venezuela, praticante de armazém) reside na morada indicada nos autos, juntamente com a esposa (DD, 39 anos, funcionária de cooperativa) e com a filha mais nova desta (EE, 10 anos, estudante). À data dos factos descritos no presente processo, a filha mais velha da esposa (BB, 19 anos, alegada vítima no processo) integrava o agregado familiar, encontrando-se o núcleo familiar emigrado na Costa Rica, desde dezembro de 2019. Dadas as dificuldades associadas ao processo de legalização, a esposa veio residir para Portugal, em outubro de 2020, juntamente com as filhas, passando a habitar um imóvel de propriedade dos pais daquela, sito na .... Passados cerca de quatro meses, o arguido reintegrou o agregado familiar. Em abril de 2022, data do início do presente processo, o casal alterou a residência para a atual morada, passando aí a residir, juntamente com a filha mais nova de DD.

Ao nível do enquadramento habitacional, o arguido mantém residência em moradia arrendada, com infraestruturas e boas condições de habitabilidade, e uma área de ocupação útil que, na perspetiva dos dois elementos do casal, assegura conforto e distribuição adequada de espaços comuns e individuais. O imóvel está inserido em zona habitacional da periferia, sem problemáticas sociais ou criminais.

O contexto e dinâmica relacional intrafamiliar é descrito, pelo arguido e pela esposa, como adequado e tranquilo, centrado na vivência de rotinas diárias de trabalho e acompanhamento das atividades escolares, havendo capacidade de articulação e de gestão de horários. A relação conjugal é, em todas as suas dimensões, vivenciada de forma positiva e gratificante, sendo descrita, pelos elementos do casal, como fonte de estabilidade e segurança. À data dos factos descritos nos autos, o casal debatia-se com alguma resistência, por parte dos pais de DD, face à relação afetiva que, entretanto, aqueles haviam estabelecido, facto que o arguido reconhece ter constituído um foco de ansiedade e pressão para o casal.

O arguido tem duas filhas (FF, 17 anos; GG, 11 anos), fruto de relação anterior, com quem mantém contacto, ainda que num registo de irregularidade, por motivo de incompatibilidade com a progenitora. Sobre esta relação, o arguido evidencia dificuldade na verbalização e na gestão emocional, descrevendo-a como experiência que o marcou de forma negativa, e que gradualmente tem vindo, na sua perspetiva, a superar.

De uma forma geral, e sem alteração sofrida no intervalo temporal decorrido entre a alegada prática dos factos e o momento atual, é associada ao arguido uma imagem social de adequação e de respeito para com as normas sociais e jurídicas vigentes. De acordo com a sua perceção, este processo não é conhecido no seu meio de residência, pelo que não sente, até ao momento, qualquer alteração na qualidade da interação que mantém com elementos da comunidade.

O arguido tem 9.º ano de escolaridade, e um registo de precocidade na integração em meio laboral. Sem registo de irregularidade ou períodos longos de desemprego, o arguido apresenta uma trajetória profissional em áreas diversas, referindo satisfação e motivação para o trabalho. Desde dezembro de 2021, exerce funções de praticante de armazém, em regime de contrato de trabalho.

Ao nível económico, o rendimento mensal fixo do agregado familiar, proveniente da atividade profissional dos dois elementos do casal, permite fazer face ao volume de despesas mensais fixas, não sendo referidas dificuldades ou limitações neste domínio.

Sem frequência de atividades de lazer ou recreativas, o arguido ocupa o seu tempo livre em contexto familiar. Mantém convívio pontual com elementos da comunidade próxima, num formato e periodicidade que caracteriza como adequado e pautado por cordialidade, sendo capaz de reconhecer características pró-sociais no seu grupo de amigos e conhecidos. Mantendo nesta análise a referência a data dos factos descritos no processo, não são observadas alterações neste domínio, quando consideradas as circunstâncias atuais.

2. REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO

O arguido demonstra capacidade de reflexão e descentração, denotando atitude crítica e censura moral quando confrontado com factos idênticos àqueles de que se encontra acusado, e perante os quais reconhece a importância e a necessidade de intervenção do Sistema de Justiça. De uma forma global, é observado um discurso congruente com um percurso vivencial norteado por valores e princípios socialmente adequados.

Do ponto de vista das repercussões da atual situação jurídico-penal, são destacados pelo arguido os sentimentos de tristeza, frustração e desgaste emocional, assim como a preocupação quanto ao impacto negativo que daí possa resultar, designadamente ao nível do contexto e dinâmica familiar.

3. CONCLUSÃO

Os dados recolhidos apontam para um processo de desenvolvimento em contexto familiar normativo, com veiculação de valores pró-sociais e presença/reconhecimento de figuras de referência. Ainda que sejam observados focos de vulnerabilidade e instabilidade ao nível da relação afetiva anterior, o atual enquadramento familiar é vivenciado como retaguarda de apoio, sendo a relação conjugal entendida, pelo arguido, como a principal fonte de segurança afetiva e de motivação para a prossecução de objetivos de vida. O arguido apresenta uma situação laboral que denota estabilidade e capacidade de manutenção de rotinas diárias.

Face ao exposto, na eventualidade de virem a ser provados os factos de que se encontra acusado, somos de opinião, caso a pena aplicada o permita, que o arguido reúne condições para a aplicação de uma medida penal probatória de execução na comunidade, com sujeição a plano de intervenção por estes serviços da DGRSP, especificamente direcionado para a problemática criminal em causa, beneficiando com a frequência do Programa da DGRSP - Programa para Agressores de Violência Sexual – Crimes Contra Crianças e Adolescentes – PAVS-CA.».

6. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.


***

2.2. Matéria de facto não provada

Nenhum outro facto constante da acusação, pedido civil e contestação, e com relevância para a causa resultou provado, nomeadamente que:

A. O descrito em 3. ocorreu face à situação de permanência ilegal na Costa Rica.

B. Em Junho de 2021, a BB começou a namorar com um rapaz e o arguido, mostrando-se ciumento, numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela.

C. O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando.

D. Acto contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”.

E. Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2011, em Agosto de 2001, em dia não concretamente apurado, estando DD a trabalhar e a EE na escola, o arguido foi ter com aquela à sala e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto.

F. Estando sozinha com o arguido, e face à atitude violenta que o mesmo já tinha tido consigo, a BB ficou com receio, pelo que acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis erecto na vagina daquela.

G. A partir dessa altura e até 16 de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve por trinta vezes relações sexuais de cópula completa com a BB, aproveitando as alturas em que DD estava a trabalhar.

H. Em tais relações sexuais, que ocorriam sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB.

I. Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha apenas 16 e posteriormente 17 anos de idade e que, como tal, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.

J. O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade e ascendência económica, ameaçando aquela e os restantes membros da família, para conseguir os seus intentos.

K. Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.


*

Do pedido de indemnização civil

L. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm

M. Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando quase diariamente sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva.

N. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, muita perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação do crescimento da sua sexualidade.


***

Ao nível da fixação da matéria de facto, o tribunal não se pronunciou sobre as afirmações contidas na acusação que constituem alocuções conclusivas ou de direito, e que não são susceptíveis de resposta em termos de provado ou não provado ou por não terem qualquer relevância para a decisão da presente causa (sendo certo que a lei apenas exige que devam constar da sentença os factos com relevo para a decisão da causa e só estes, devendo proceder-se se necessário ao aparo do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha das referidas peças processuais de que aquela não é nem pode ser mera serventuária – cfr: a este propósito Ac. do STJ de 2 de Junho de 2005, proc. 05P1441, in www. dgsi.pt). Nos termos do artigo 124º do CPP para a decisão de facto apenas relevam «os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência de crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» - únicos levados à fundamentação de facto na decisão a proferir.

*

2.3- Fundamentação da matéria de facto

O tribunal fundou a sua convicção na totalidade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, ponderando as declarações do arguido, a prova pericial e documental junta, declarações para memória futura da ofendida BB e declarações por si prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como depoimento das demais testemunhas inquiridas, tudo analisado também com base nas regras de experiência comum.

Com efeito, em nosso entender, no que concerne à fundamentação da matéria de facto nos presentes autos, importa antes de mais salientar o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. Dispõe este imperativo legal, sob a epígrafe «Livre apreciação da prova», que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente».

Na verdade, este foi um dos julgamentos em que se fez sentir, de forma evidente, a necessidade de adopção de um especial senso crítico na depuração dos contributos processuais (maxime, testemunhais) prestados. Por isso, o aludido artigo 127º do Código de Processo Penal revelou-se de uma especial acuidade e oportunidade na apreciação da prova produzida (e, também, não produzida), por forma a, de modo realista e convincente, sustentar a decisão de facto tomada nos presentes autos.

Deste modo, o arguido prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, fazendo-o de modo calmo, escorreito e, como tal credível, com alguns laivos de emoção em momentos adequados. Assim, descreveu como e quando teve conhecimento da acusação que a BB lhe fazia, esclarecendo que foi apanhado de supressa pela mesma, tendo saído de casa no mesmo dia. O arguido descreveu o início e o desenvolvimento da sua relação com a mãe da ofendida, e com as suas filhas, descrevendo a relação como de grande proximidade e de modo espontâneo referindo-se a BB e sua irmã como sendo suas filhas.

Com relevância para os autos, descreveu a ida para a Costa Rica, a sua actividade naquele país e o facto de a DD e as meninas terem ido ter com ele, mas, face às dificuldades de conseguirem a autorização e residência (face aos sucessivos adiamentos dos agendamentos junto das autoridades causados pelo COVID) e, em consequência, impossibilidade de a mesma trabalhar, terem optado por elas virem para Portugal - não nos pronunciaremos quanto ao relatado pelo arguido quanto às vivências familiares na Costa Rica, face à decisão supra proferida no que aos factos alegadamente ali ocorridos concerne.

Com relevância esclarece que a esposa e filhas vieram para Portugal por dificuldades económicas, já que, como tinha nacionalidade portuguesa e podia ficar em casa de seus pais (sem pagar renda) a DD poderia trabalhar em Portugal e conseguirem melhor nível de vida. Deste modo, confirmou que elas vieram em outubro de 2020 e ele veio em janeiro de 2021, tendo posteriormente vindo os seus sogros, cunhada e filho desta, residindo todos na mesma casa.

O arguido, de modo claro e credível, também face à demais prova produzida, descreveu o relacionamento que tinha com a BB, e as suas preocupações com os namoros da mesma, em especial com o namorado que soube que aquela tinha, cerca de uma semana antes de ser apresentada a queixa, que seria mais velho (com 40 e tal anos) razão pela qual não aceitou tal relacionamento.

Com relevância para os autos o arguido descreveu as suas actividades profissionais, horários e rotinas familiares, afiançando que, em virtude dos mesmos, não era habitual estar com a BB, nem com a EE, sozinho em casa.

Denotando emoção, compreensível face ao factos em causa nos presentes autos, o arguido refere que antes do namoro com o homem mais velho o seu relacionamento com a BB era, de acordo com as suas palavras: “espectacular, era minha filha”, sendo que ela o tratava por pai.

De modo peremptório, ao longo de todas as suas declarações e audiência de discussão e julgamento, o arguido nega veementemente a pratica dos factos que lhe estão imputados na acusação.

Prosseguindo com a única testemunha de acusação indicada, e ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento, HH, sogra do arguido e avó materna da ofendida, prestou um depoimento confuso, pouco claro e pouco credível, como infra se tentará explicitar. Na verdade, esta testemunha esclareceu que foi a própria quem apresentou a denuncia, na sequência de conversa que teve com a BB após ter recebido uma mensagem do pai daquela em que este lhe pediu que ouvisse a menina que ela tinha algo de importante para dizer. Foi nesse contexto que a BB lhe contou o ocorrido, esclarecendo que lhe disse que o arguido a teria violado na Costa Rica. Esta testemunha afiançou que, pelo que percebeu, em Portugal nunca teriam ocorrido quaisquer relações sexuais entre o arguido e a sua neta, tendo posteriormente reforçado que, desde o inicio da conversa com a ofendida, nunca percebeu que tivessem havido contactos sexuais em Portugal.

Refira-se que esta testemunha confirmou que foi apresentada queixa e nada disse a sua filha ou ao arguido, descrevendo quem estava presente quando o seu marido confrontou aquele com esta situação e dizendo que, a DD (sua filha) ficou em choque, a BB muito aflita e o arguido negou logo, tendo saído de casa no mesmo dia.

Denotando alguma animosidade para com a sua filha, esta testemunha referiu que a mesma foi logo atrás do marido e deixou a filha (ofendida BB), não tendo conversado com a mesma, situação que foi contrariada pela DD e pela própria BB.

Com relevância para os autos esta testemunha confirmou que pressionou a neta a desistir da queixa, alegando problemas de saúde do avô, mas que a mesma a foi reativar quando perfez os 18 anos. Mais realce-se que esta testemunha confirmou o facto de a BB tratar o arguido com pai, e de não ter notado nada de diferente nesta quando voltou a viver com eles em Portugal de quando viviam com a filha e netas na Venezuela (referindo “era a mesma menina”).

Acresce que esta testemunha descreveu as rotinas familiares e horários dos diferentes elementos do agregado familiar (quem levava e trazia do trabalho e da escola, horários de saída para o trabalho, hábitos de higiene da mãe da ofendida e facto de tomarem as refeições juntos), referindo que, não sendo impossível, não se recorda de a BB ter estado/ficado sozinha em casa com o arguido.

Denotando pouco conhecimento da vida da sua neta, pelo menos à data, esta testemunha refere que não sabia que ela namorava, embora refira que tinha havido comentários que o arguido e esposa não queriam que ela namorasse com homens mais velhos. De modo pouco compreensível afirma que, mesmo depois de a sua filha sair de casa e lá deixar a BB, nunca falou com esta sobre o facto de o seu namorado ser mais velho ou a reação da mãe e padrasto a tal facto.

Ora o depoimento desta testemunha, até aqui já pouco claro e denotador de animosidade para com a filha e genro, que lhe retirou credibilidade, tornou-se ainda menos relevante para o tribunal após a hora de almoço (que interrompeu o depoimento). Na verdade, retomado o depoimento esta testemunha veio afiançar, em absoluta oposição ao que, até então tinha dito, insistente e peremptoriamente, que já em Portugal e na sua casa, devem ter havido contactos de natureza sexual entre o arguido e a sua neta.

No que se refere ao pedido de indemnização civil HH refere que a sua neta teve alterações de comportamento essencialmente por causa da reação da mãe e por não ver a irmã, vendo-a com tristeza, aborrecimento, exaltação sem razão, descontrola-se mais, por vezes sentindo-a perturbada, por não ver a mãe e o desprezo que a mãe lhe dá.

Denotador também da pouca credibilidade, porque pouco objectivo, deste depoimento, o facto de esta testemunha afirmar que a neta vive e sempre viveu com ela e o marido, desde a ocorrência dos factos, e que não pernoita sequer em casa do namorado (o que, uma vez mais, foi contrariado pela própria BB).

Prosseguindo com a demais prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, temos II, namorado da BB que se mostrou pouco conhecedor dos factos em discussão nos presentes autos, com excepção daquilo que lhe foi relatado pela ofendida, sendo que, à data, não convivia com a família nem conhecia os hábitos e horários familiares. Deste modo, refere que namorava com a ofendida há cerca de um mês quando se deu a discussão familiar, sendo que, até aí, a BB não lhe tinha relatado nada (pelo que só soube depois de ela ter contado à família toda). Esta testemunha refere que a BB nunca gostou de sexo anal e que, por vezes acordava exaltada quando adormecia, não sendo do seu conhecimento que a mesma tenha apoio psicológico ou tome algum tipo de medicação.

Bastante relevante nos autos foi o depoimento de JJ, cunhada do arguido (esposa da DD) e tia da ofendida (comum à defesa), por ser prestado com objectividade, isenção e denotando esforço e empenho no sentido de relatar a verdade, sem tentativa de tomar partido, a favor ou contra, qualquer um dos intervenientes dos autos.

Assim, desde logo assumiu que, a dada altura do processo, ajudou a convencer a BB a desistir da queixa por causa da saúde do seu pai (avô da BB). De forma clara e pormenorizada, relata o dia em que “explodiu a bomba em casa” e soube do que a BB acusava o arguido, quem ali se encontrava, como decorreu a conversa e a evolução do relato da BB naquele momento em concreto. Assim, alem do mais, refere que BB começou por dizer que tinha perdido a virgindade com o arguido, mas quando a própria (JJ) lhe disse que lhe havia contado que tinha perdido a virgindade com um namorado aqui em Portugal, a BB passou a dizer que com o arguido tinha mantido relações de sexo anal.

Para além de tudo o mais relatado pela testemunha, importa salientar o por ela descrito relativamente às rotinas e horários familiares, descrevendo igualmente a casa em que todos residiram, desde Agosto de 2021, bem como o facto de ser a própria quem mais ficava com as crianças no período de ferias escolares. De forma emocionada, própria de quem tem uma forte ligação quer com arguido quer com a ofendida (e denotando carinho que se teve por genuíno por ambos), esta testemunha descreve que via a relação deles em casa, reforçando que a ofendida brincava com o arguido, naquilo que via como uma relação absolutamente normal de “pai/filha”, nunca tendo visto nada de mal nem diferente, afirmando mesmo que o arguido “era um pai para ela, o pai que ela não tinha”.

Por outro lado, confirma que a BB está “caída”, sentindo que ninguém a apoia, mostrando tristeza quando as pessoas que a rodeiam denotam duvida do por ela relatado. Denotando a dualidade que sente, esta testemunha afirmou que por um lado não vê o arguido capaz de fazer isto, mas também não sabe se a BB inventava isto (embora desde pequenina sempre fizesse muita coisa para chamar a atenção). De forma clara confirma que a BB confirmou sempre a mesma versão do ocorrido, e não falava de ciúmes do arguido, mas sim ciúmes da mãe porque quando estavam as 3 sozinhas ela era o centro de tudo e depois, quando veio o arguido, a mãe passou a ser mais esposa do que mãe.

De acordo com o que se passava no dia a dia sempre achou que era a principal confidente da BB (e ela demonstrava-o), nunca tendo notado qualquer comportamento ou olhar menos próprio do arguido para com aquela ou tal lhe sido relatado pela ofendida.

Do depoimento desta testemunha, pese embora a carga emotiva revelada pelo mesmo, a qual se explica nos moldes supra explanados, foi claro que, pelas características da casa, horários e rotinas familiares, lhe parece pouco credível que os factos ocorressem como relatado pela ofendida.

No que concerne a KK, sogro do arguido e avô materno da ofendida, prestou um depoimento denotador de animosidade para com o arguido, o que pode ser contextualizado, para alem do mais, pelos factos aqui em discussão. De qualquer forma, descreveu as idas/vindas dos diferentes elementos do agregado familiar da Venezuela para a Costa Rica e dali para Portugal (no caso do arguido, sua filha e netas), e da Venezuela para Portugal (no que concerne a si próprio com a sua esposa, filha JJ e neto), confirmando que, desde agosto de 2021, todos residiram na mesma casa, descrevendo a mesma.

Uma vez mais, e no mesmo sentido das demais testemunhas que habitavam na casa (bem como arguido e ofendida), KK descreveu os horários de todos e as rotinas familiares, denotando, neste particular, alguma objectividade ao referir que o arguido e a ofendida poderiam estar sozinhos, no máximo, entre 5 a 15 minutos, até porque posteriormente se percebeu que a testemunha estava grande parte do tempo em casa (embora num local mais ou menos distante do mais utlizado pelo arguido, suas filhas e seus netos, incluindo a ofendida). De modo um pouco confuso (não logrando esclarecer o tribunal do por si descrito ou contexto que pretendia transmitir com o afirmado), refere que nunca viu, nem pressentiu nada que o fizesse suspeitar desta situação, mas não ficou surpreendido porque via o arguido como mulherengo (“Pica flor”), razão pela qual “não poria as mãos no fogo por ele”. Por outro lado, refere que, na Venezuela e quando o arguido era seu empregado, gostava dele como filho, mas não aceitou bem o relacionamento dele com a sua filha.

Para alem do mais, esta testemunha descreve o comportamento da BB e refere que as alterações principais que no mesmo vê ocorreram após a queixa que efetuaram.

Denotando também a confusão e dualidade que notoriamente sente relativamente aos factos aqui em discussão e possibilidade de os mesmos terem ocorrido nos moldes constantes da acusação, esta testemunha terminou o seu depoimento dizendo que não está zangado com o arguido, está sim mais distante, e referindo que “não acredita que fez, mas também que não fez”.

Prosseguindo agora com LL, pai da ofendida BB, prestou um depoimento pouco relevante para os autos, uma vez que foi notório que não conhecia o dia a dia de sua filha ou do arguido e restante agregado familiar, com os mesmos não convivendo, ou sequer contactando, com regularidade.

De qualquer modo, importa referir que esta testemunha terá sido a primeira pessoa a saber do sucedido, em data que não soube precisar, mas referindo que a filha lhe contou que os abusos ocorreriam na casa de Portugal, pelo que percebeu, no quarto em que dormia a menina e nos corredores, durante o dia (que era quando a mãe trabalhava) e quase diariamente – o que é contrario ao descrito pela própria ofendida. Acresce que afirma que lhe foram relatadas apenas situações de relações sexual vaginal, no quarto e no corredor na casa em Portugal. Em momento posterior do depoimento refere que afinal as situações terão ocorrido também na Costa Rica, sempre com sexo vaginal, onde tudo teria começado e seria mais frequente (descrição distinta da relatada pela própria ofendida). Com relevância para os autos esta testemunha refere que não vê a filha desde que foi para os EUA, há cerca de sete anos, mas com a mesma vai mantendo contato telefónico, com excepção do tempo em que a filha esteve na Costa Rica.

O mesmo se diga quanto a MM, irmã de parte de pai da BB, que denotou ter pela mesma carinho que se teve por genuíno, mas demonstrou ser pouco conhecedora da vida da ofendida, horários e rotinas familiares. Assim, além do mais, refere que a ofendida lhe contou, por mensagem de whatsapp, que tinha sido abusada pelo padrasto, de forma “generalista”, sem saber se foi em Portugal ou noutro o país, tendo apenas referido que o padrasto a tinha violado. Mais referiu que a BB lhe contou que o padrasto a tinha manipulado psicologicamente para não contar à mãe, afirmando posteriormente que a irmã dizia que era violada em Portugal e que começou na Costa Rica. Refira-se ainda que esta testemunha realçou o facto de achar que o maior desgosto que a BB tem é o facto de a mãe não acreditar em si e não sentir o apoio da família.

Prosseguindo agora com as testemunhas de defesa ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento, e iniciando, pela sua relevância para os autos, pela esposa do arguido e mãe da ofendida, DD que prestou um depoimento emotivo, o que se explica pela proximidade que tem com todos os envolvidos nos autos, mas não deixando que tal facto retirasse credibilidade ao seu depoimento, uma vez que denotou conhecimento directo de factos relevantes (nomeadamente hábitos, rotinas e horários familiares) bem como objectividade e esforço por relatar fielmente as suas observações e vivências familiares.

Deste modo, para além do mais, descreveu o início da relação com o arguido, e do mesmo com a sua família de origem, bem com a ida para a Costa Rica e as vivências familiares ali ocorridas (não nos pronunciaremos quanto ao relatado pela mesma nas vivências familiares na Costa Rica, face à decisão supra proferida no que aos factos alegadamente ali ocorridos concerne).

De forma clara, objectiva e com credibilidade (também porque de acordo com as regras de experiência comum e o descrito pelos demais intervenientes) explicou a sua vinda para Portugal com as duas filhas, tendo-se, mais tarde, juntado o arguido. Com clareza e de acordo com o descrito pelas demais testemunhas, esclareceu a vinda dos pais, da irmã e do sobrinho da Venezuela, bem como facto de passarem a residir todos juntos. Além do mais, descreve a casa, e em especial, o local onde ficavam os quartos de todos os residentes. Mais, descreveu os horários de trabalho dos elementos do agregado, as rotinas e os hábitos familiares, bem com o facto de o arguido sempre ter assumido o papel de “pai” das suas filhas, partilhando as decisões referentes às mesmas (mesmo autorização para sair ou não sair), sendo sempre tudo decidido em conjunto, entre os dois enquanto casal.

Demonstrativo da ligação emocional que liga esta testemunha a ofendida dos autos é o facto de aquela ter chorado quando questionada sobre a saúde mental de sua filha, referindo de imediato “É a minha menina…”. Denotando alguma culpa relativamente ao modo como a educou, esta testemunha refere que sempre mimou muito a filha, fazendo-lhe todas as vontades (caso não desse o que pedia algum elemento da família fá-lo-ia) e sempre a protegeu em demasia (não dando a liberdade que ela queria), vendo-a como sua filha, mas também como a sua melhor amiga. De modo emotivo mas credível, descreveu o crescimento da BB, os seus comportamentos, dificuldades e vitorias.

Alem do mais, esta testemunha descreveu com percebeu da relação que a sua filha teria com o actual namorado, que tem mais de 40 anos, bem como o facto de ela e o arguido não terem aceite este bem relacionamento.

Quanto aos factos em discussão nos presentes autos esta testemunha relatou o modo com soube do que a BB acusava o seu padrasto, bem como o facto de a mesma falar sempre em violação e sexo vaginal para depois falar de sexo anal (quando a tia a confrontou com o facto de lhe ter dito que tinha perdido a virgindade com um rapaz) e dizer repetidamente que só queria que o arguido saísse de casa (o que foi também confirmado pelas demais testemunhas presentes na discussão em causa). Mais referiu que o arguido sempre negou ter praticado os factos que lhe são imputados, e que tentou falar com a filha sobre os mesmos. De modo impressivo, pelas inflecções de voz e postura corporal, denotadoras de reavivar de memorias e esforço por transmitir as informações fidedignas e reais, descreveu a conversa que teve com a filha, bem como as razões pelas quais aquela não a conseguiu convencer da veracidade do que relatava - nomeadamente pelo comportamento da própria ofendida para com toda a família e para com o arguido, a descrição das posições sexuais que a filha descreveu e, principalmente, as características que a ofendida deu do pénis do arguido que, de acordo com a testemunha, sua esposa, não correspondem com a realidade. A tudo isto, de acordo com esta testemunha, acresce o facto de não entender como haveria possibilidade de o arguido praticar os factos que lhe são imputados, no numero de vezes e locais indicados, face às rotinas e horários familiares, não existindo oportunidade para que os factos ocorressem como relatados na acusação.

Para além do mais, esta testemunha descreveu uma aplicação que a filha tinha no telemóvel, esclarecendo que foi a própria quem lha indicou para a descarregar, referindo que, sendo verdade que pode ali inserir informações sobre, p. ex., quando manteve relações sexuais, também é verdade que pode colocar essas informações a qualquer momento (para trás ou para a frente), não sendo fidedignas as informações aí inseridas.

Aqui chegados, porque relevante para os autos nomeadamente a nível de credibilidade conferida a esta testemunha, importa salientar que a mesma, com espontaneidade, naturalidade, mas também com assertividade e demonstrando um humor e emoção que se teve por adequado e normal para a situação em apreço, frisou que nunca abandonou a sua filha, deixou o arguido sair de casa e foi conversar com a mesma para tentar perceber o que poderia ter acontecido, mas sempre foi observadora e nunca percebeu nada, esteve sempre presente no relacionamento familiar entre todos, não havia oportunidade nem o relatado pela filha bate certo com as vivencias familiares e com as características do arguido.

Também demonstrativo do carinho que esta testemunha tem pela sua filha, não apresentando qualquer tentativa de retorsão ou diminuição da ofendida, conferindo-lhe, também por aí, credibilidade, é o facto de a mesma referir que a filha é muito parecida com ela, fisicamente e pode “com tudo menos com a morte”, como ambas dizem, altura em que sorriu e foi notório o carinho e ternura que tem pela ofendida, sem qualquer laivo de vingança ou frieza.

No que respeita às testemunhas de defesa NN, OO e PP, de modo claro, isento, objectivo e como tal, credível, descreveram o arguido no quadro profissional e social, logrando convencer o tribunal da boa inserção social e laboral do mesmo, descrevendo-o como responsável, respeitador e respeitado, trabalhador e amigo, demonstrando preocupação com a família, e descreveram os horários do arguido. No entanto, no que concerne aos factos em discussão nos presentes autos, mostraram-se desconhecedores do ambiente e rotinas familiares, não logrando auxiliar o tribunal.

Finalmente, no que concerne às testemunhas de defesa, QQ, tia da DD, prestou um depoimento muito emocional, denotando uma clara afeição pelo arguido e uma clara animosidade para com a ofendida, que retirou credibilidade ao seu depoimento. De qualquer modo, mostrou-se desconhecedora do ambiente e rotinas familiares diárias da família, não logrando auxiliar o tribunal nesse particular. Assim, este depoimento foi relevante apenas naquilo que foi confirmado pela restante prova produzida, nomeadamente no que se refere ao facto de achar que o arguido e a BB tinham uma óptima relação, confirmando que esta o chamava de “papi”, e que o arguido se encontra muito bem inserido socialmente, vendo-o como uma pessoa com um coração grande, respeitador e respeitado também por todos os vizinhos.

No caso dos autos assume, obviamente nos autos, primordial importância as declarações da ofendida BB, prestadas quer em sede de declarações para memória futura (as quais foram devidamente reproduzidas em sede de audiência de discussão e julgamento, acompanhas de registo de imagem), quer em sede de esclarecimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, a requerimento da mesma. Com efeito, e atenta a natureza do crime em causa nos presentes autos «A prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral, só tem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. 2- Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador» (Sumário do Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 22 de Abril de 2009, relator ESTEVES MARQUES, in www.dgsi.pt).

Na verdade, no caso dos autos, o depoimento da ofendida assumiu, como é natural, especial relevância.

Assim, e antes de mais, importa referir que não nos pronunciaremos quanto ao relatado pela ofendida no que concerne às vivências familiares na Costa Rica, e factos alegadamente ali ocorridos, face à decisão supra proferida no que a tais factos concerne.

Ora a ofendida prestou um depoimento bastante claro e objectivo, mantendo, na generalidade, a mesma versão dos factos, denotando pouca emotividade e grande assertividade.

Deste modo, a ofendida, relatou o relacionamento do arguido com a sua mãe e a vivência na Venezuela. De modo pouco claro e descontextualizado, relatou uma situação de extorsão vivida pela sua família materna na Venezuela que atribuiu ao arguido, denotando, desde logo a sua animosidade para com o mesmo (e sem que tal fosse referido por qualquer outra pessoa ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento).

Para além do mais, descreveu a sua vinda, juntamente com a mãe e irmã para Portugal, denotando emoção compreensível e natural ao referir que nessa altura a mãe se tornou, mais do que tudo, sua melhor amiga. Importa referir que a BB demonstrou emoção legitima e credível em determinados pontos chave do seu depoimento, sempre associadas à figura materna ou à sua irmã, e nunca ao arguido (ainda que em sentido negativo), apresentando, nesse particular um depoimento sempre sem emoções associadas.

Além do mais, e com grande relevância para os autos, a ofendida referiu de modo espontâneo que o arguido veio para Portugal em janeiro e que durante algum tempo nada aconteceu até que aquele soube que tinha namorado, relatando, na generalidade o descrito em B-D dos factos dados como não provados, o que teria ocorrido em junho de 2021 (realce-se uma vez mais que, de acordo com o relatado em sede de declarações para memória futura, até esta data, em território nacional, nada se tinha passado entre ofendida e arguido, aliás, no mesmo sentido da acusação).

A partir daí terão iniciado as relações sexuais anais, em Portugal, sem que a ofendida consiga descrever ou contextualizar minimamente a primeira relação sexual que aqui mantiveram. Neste particular refira-se que, se se compreende que a ofendida não consiga descrever a primeira relação sexual que manteve com o arguido - o que se sabe ser relativamente usual suceder nas vitimas, até pelo trauma que muitas vezes significa para as mesmas - já se estranha que a ofendida não consiga descrever a altura, ou descrever minimamente o contexto, em que as relações foram retomadas - o que, segundo a sua descrição, teria acontecido em Portugal-, ainda para mais quando repete sempre a situação descrita em B-D dos factos dados como não provados, sem que aos mesmos associe qualquer contacto de cariz sexual.

Além do mais, a ofendida, em sede de declarações para memória futura, refere que as relações aconteciam no quarto do casal (da sua mãe e arguido) quando a sua irmã estava a dormir no quarto que consigo partilhava, de manhã e sempre com relações anais até ter perdido a virgindade com o seu namorado, o que sucedeu em Agosto de 2021. A partir daí, passaram a manter relações de sexo vaginal, uma a duas vezes por semana, sempre no quarto do casal e, de manhã (enquanto o arguido trabalhou na padaria) ou à noite (depois de deixar a padaria) até fevereiro de 2022 (altura em que parou, de acordo com a sua percepção, por o arguido poder estar cansado da rotina e terem ambos deixado de se procurar). Importa referir que a ofendida demonstra objectividade ao afirmar que foi a própria quem disse ao arguido que preferia relações vaginais às anais que mantinham até aí, mas afirma que não se recorda da primeira noite em que mantiveram relações desse tipo.

Refira-se que a ofendida confirmou que os avós, tia e primo vieram alargar o agregado familiar em Agosto de 2021, passando todos a viver na mesma casa.

Para alem do mais, a ofendida descreveu o ocorrido no dia em que o arguido foi confrontado com os factos de que o acusa, bem como o facto de ele ter, nesse mesmo dia, saído de casa e, posteriormente ter mantido uma conversa com a sua mãe, por iniciativa desta sobre o comportamento do arguido na intimidade (confirmando, pelo menos parte da conversa que manteve com a mesma, nomeadamente no que concerne às características do pénis do arguido e admitindo que a mãe dizia que a descrição que fazia não correspondia à realidade).

De forma algo confusa, até face ao descrito pelas testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento, a ofendida refere que, no início, a avó acreditava nela e tia manteve-se neutra, mas depois a avó deixou de acreditar, ao passo que o avô não queria falar nada (porque considerava o arguido como filho). Sem qualquer manifestação de humor ou emoção, refere que a tia é fácil de manipular, e acha que foi manipulada pelo arguido e mãe.

Prosseguindo com o relato da ofendida importa realçar a credibilidade do mesmo no que concerne ao facto de, a dado momento do processo, ter negado a prática dos factos pelo arguido, a pedido e sob influência da sua avó e tia (o que foi pelas mesmas confirmado nos moldes supra explanados).

Ainda em sede de declarações para memoria futura, a ofendida refere que, inicialmente, via o arguido com um pai, mas depois apresenta uma narrativa confusa, dizendo que se tentou suicidar ainda na Venezuela, com 14 anos, por causa dele, embora quando descreve o ocorrido não se perceba a relação do arguido com o assim afirmado (sendo igualmente de realçar que foi unanimemente descrito como perfeitamente normal e salutar a aparência de relacionamento entre arguido e ofendida até à revelação dos factos aqui em discussão).

Aqui chegados, importa referir os esclarecimentos prestados pela ofendida em sede de audiência de discussão e julgamento. Ora, nesta sede, e sem que nada o fizesse prever face ao constante da acusação, depoimentos das testemunhas já ouvidas e declarações para memoria futura da própria ofendida, a BB veio referir que as relações sexuais com o arguido em território nacional se iniciaram em meados de fevereiro (com relações anais até agosto) e não em junho com anteriormente sempre descrito.

Após descrições mais ou menos exaustivas das alturas em que ocorriam as relações sexuais, a ofendida acabou por afiançar que as mesmas, desde fevereiro e até perder a virgindade (agosto de 2021) ocorriam duas a três vezes por semana, embora cerca de uma vez por mês o arguido se chateasse e não mantivessem relações por uma a duas semanas; entre a data em que perdeu a virgindade e a primeira relação sexual vaginal com o arguido decorreram cerca de duas semanas sem que mantivessem contactos sexuais; a primeira relação sexual vaginal com o arguido ocorreu em momento em que os avós e tia já estavam a partilhar casa com o seu agregado familiar mais restrito e terá ocorrido em finais de agosto e a primeira semana de setembro; a partir daí mantinha com o arguido relações de sexo vaginal, uma a duas vezes por semana até o arguido ter começado a trabalhar de dia sendo que, neste período, habitualmente passavam uma semana por mês sem manterem contactos de natureza sexual; a partir do momento em que o arguido começa a trabalhar de dia, começam a manter relações sexuais, no máximo, uma vez por semana, referindo agora que tal ocorreu até meados de março, mantendo-se a semana mensal em que não ocorriam contacto de natureza sexual.

Importa, aqui, referir que foi a própria BB que, a dada altura, percebeu que não estava a descrever o ocorrido como tinha feito anteriormente, no que se refere, pelo menos, à frequência das relações sexuais mantidas com o arguido e afirma que “já estou a confundir tudo”.

Nova incongruência surge no depoimento da ofendida no que concerne ao uso do preservativo, tendo a mesma afirmado, em sede de audiência de discussão e julgamento que o arguido usava sempre preservativo, de modo distinto ao que havia afirmado em sede de declarações para memória futura. Quando questionada quanto a essa diferença nas suas declarações caba por referir que afinal pelo menos uma ou duas vezes, o arguido não terá usado preservativo.

Para além do mais a ofendida refere que as relações ocorriam sempre num período que variava entre os 5 e os 10 minutos, quer as relações de sexo anal quer as de sexo vaginal, sem uso de qualquer lubrificante (e assim foi desde a primeira relação de sexo anal), o que causa alguma estranheza ao tribunal tanto mais quanto nenhuma das pessoas que com os mesmos convivia se apercebia do que quer que fosse.

Acresce ainda que, para alem do mais, a ofendida refere que, em Portugal, as relações foram sempre mantidas no quarto do casal, com excepção de uma situação em que mantiveram relações na sala da parte de cima (no mesmo piso em que se encontrava a irmã e a mãe no quarto e a tia e o primo no outro quarto).

Ora, questionada sobre se não apanharam “sustos” de serem apanhados a manter relações sexuais, já que, de acordo com o descrito, mantinham relações sexuais com varias pessoas na mesma casa, e mesmo no mesmo piso, a horas em que os outros não estariam sequer a dormir, a ofendida refere que iam sendo apanhados duas vezes (nunca antes tendo falado nestas situações): uma durante as aulas on line (período que nem se encontrava em discussão os presentes autos, como supra referido), no quarto do casal, pela irmã, quando estavam a manter sexo anal, mas conseguiram disfarçar; e outra, da única vez que mantiveram relações, já de sexo vaginal, na sala (não o tendo referido antes mesmo quando se referiu à única vez em que não mantiveram relações no quarto). Refira-se que a ofendida afirmou que, quando estavam no quarto, o arguido fechava a porta à chave, e quando questionada sobre, se assim era, como iam sendo apanhados pela irmã, após uma breve demora, refere que, se calhar, nesse dia, não fechou.

Ora, aqui chegados, e no que se refere às declarações da ofendida, importa salientar o constante do relatório de perícia medico legal de psicologia junto aos autos a fls. 143-153, efectuado na pessoa de BB e do qual constam, além do mais, as seguintes respostas aos quesitos, então apresentados:

«Resposta aos quesitos formulados:

- qual o grau de funcionamento intelectual da ofendida, designadamente, se apresenta dificuldades a nível cognitivo e em que termos?

A avaliação do grau de funcionamento intelectual permitiu apurar um funcionamento intelectual dentro dos parâmetros considerados normais, pelo que não há comprometimento a este nível.

- de que forma esse grau de funcionamento intelectual interfere na sua capacidade para avaliar e compreender situações sociais e interiorizar regras e conceitos e se determinar de acordo com essa avaliação?

Da avaliação da eficiência intelectual efetuada não se prevê comprometimento na avaliação e compreensão das situações sociais, interiorização de regras e conceitos e autodeterminação.

- quais as características específicas da sua personalidade, designadamente, ao nível de ansiedade, introversão ou extroversão, capacidade de mentira e/ou efabulação, satisfação pessoal, reação a comportamentos sociais moralmente desadequados?

BB apresenta uma elevação relativamente à sintomatologia ansiosa, eventualmente reativa à situação atual. Tendencialmente é uma jovem extrovertida com propensão para experienciar um leque variado de emoções, quer positivas quer negativas. Há uma propensão para aceitar ideias e valores menos convencionais, o que poderá levar a comportamentos social ou culturalmente questionáveis. Aliado a este fator não apresenta necessidade de aprovação social. Da avaliação efetuada não são encontrados indícios que indiquem tendência para comportamentos de mentira ou manipulação.

(…)

- se é credível o seu relato sobre tais acontecimentos?

No que diz respeito aos factos relatados, não existem discrepâncias entre os relatos constantes nos autos e na avaliação pericial. De forma a responder a este quesito procedemos a uma análise qualitativa em relação aos conteúdos produzidos por BB, tendo em conta os critérios que a literatura cientifica refere como indicadores de maior credibilidade. Assim, verificou-se a existência de coerência nas descrições, cuja verbalização foi espontânea (as questões são colocadas de forma aberta, não diretiva e não sugestiva). BB consegue contextualizar as alegadas situações de abuso, referindo a idade em que estas tiveram inicio, as circunstâncias em que aconteceram e os locais. Menciona detalhes específicos quando relata episódios e também detalhes supérfluos (que são pouco comuns em situação de falsas declarações). Descreve interações e verbalizações entre ela e o alegado agressor, assim como menciona o seu estado mental.

Por último é importante referir à ambivalência de sentimentos face ao agressor, situação que é frequente em situações de abuso intrafamiliar.

Face ao exposto, somos da opinião que o relato produzido por BB contempla um conjunto de critérios que a literatura relaciona com um aumento da credibilidade.

(…)» - sublinhados nossos.

Acresce ainda, que a ilustre perita prestou esclarecimentos em sede de audiência de discussão e julgamento. Assim, nesta sede, a Dr.ª CC esclareceu que a ofendida apresenta um quadro de ansiedade que poderá estar relacionado, em teoria, com situações de abuso, mas também com as consequências que teve por ter contado e as consequentes alterações familiares, não podendo dar a certeza da origem quadro ansioso. No que se refere a alterações comportamentais, sinaliza dificuldade em se relacionar com os pares, desconfiança e afastamento da família; dificuldades no relacionamento actual com o namorado – acha que mais relacionadas com a queixa que fez e das consequências familiares daí advenientes. Com clareza e objectividade, esclareceu que embora a BB apresente valores de fantasia elevados, a análise conjunta de todos os valores leva às conclusões do relatório no sentido da credibilidade do por si relatado.

Além do mais refere que a avaliação da BB foi feita no período de uma tarde completa, que foi o tido por necessário e suficiente para seguir o protocolo do caso concreto.

Assim, no que concerne à versão da ofendida BB temos um relato com incongruências, mas relativamente ao qual temos um relatório pericial e esclarecimentos de perita que lhe conferem índices de credibilidade.

O tribunal atentou ainda à totalidade da prova documental junta, a qual foi devidamente analisada e ponderada, nomeadamente:

- assentos de nascimento de fls. 14-15 (referente a BB); fls. 16 (referente a EE) e fls. 17-19 (referente a DD)

- comunicação de noticia de crime de fls. 31

- auto de notícia de fls. 56-57

- documento de fls. 85-88 (pedido de BB de reabertura do inquérito)

- relatório social junto aos autos sob ref. 15353755 (21.11.2023) – facto 5 dos supra dados como provados.

- certificado de registo criminal junto sob ref. 30119495 (16.11.2023) – facto 6 dos supra dados como provados

De tudo o exposto resulta que temos duas versões dos factos. Por um lado, a versão da ofendida que foi a trazia à acusação, com a credibilidade que lhe foi conferida pela perícia descrita. Por outro lado, a versão do arguido, que nega peremptoriamente a prática dos factos e é secundado pela mãe da ofendida, que com ambos vivia e partilhava o dia a dia.

Antes de mais refira-se que a perícia que confere credibilidade à ofendida não a retira ao arguido ou às demais testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento. Mais, a perícia em causa foi efectuada nos moldes supra descritos sem o conhecimento do contexto familiar e espacial das alegadas ocorrências.

Em sede de declarações para memoria futura e declarações em sede de audiência de discussão e julgamento a BB apresentou uma postura de frieza e distanciamento na descrição, amotiva na sua grande parte, e com varias incongruências, que não permitiu concluir pela total certeza do por si relatado. Alem disso apresentou perturbação notória, quando confrontada com as suas incongruências, de difícil explicação – na verdade, importa aqui referir que, em sede de audiência de discussão e julgamento, a BB demonstrou vontade de prestar declarações na presença do arguido, o que foi admitido, mas quando confrontada com as incongruências do seu depoimento relativamente ao momento em que se iniciaram as situações de contacto sexual com o arguido, já em Portugal, foi notória a atrapalhação e pediu que o arguido se afastasse da sala, o que foi, de imediato, satisfeito; ora, nesse momento, a BB mostrou-se atrapalhada e pediu que o arguido saísse, sem que para tal lograsse dar explicação plausível já que apenas lhe foi questionado o porquê de estar a dar uma versão dos factos que, até então, nunca tinha dado a tribunal, incongruência que poderia ter sido, facilmente ultrapassada.

Com efeito, face à globalidade da prova produzida entendemos que o contexto espacial em que os factos alegadamente ocorreram são dificilmente compagináveis com a concretização dos actos relatados. Acresce que, a relação familiar e de convivência com o demais agregado, marcado por proximidade e partilha, tão pouco seria facilmente compaginável com a ocorrência dos factos como relatados pela ofendida.

Tudo o exposto não significa que o tribunal ficou seguro que o arguido não praticou qualquer dos factos que lhe eram imputados. Sucede que não era ao arguido que incumbia provar a sua inocência, mas sim à acusação que os factos ocorreram como descritos na mesma.

Assim, entendemos que as declarações para memória futura da ofendida e as declarações pela mesma prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugadas com a demais prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos não foi suficiente para lograr convencer o tribunal do por aquela descrito, para além da dúvida razoável e insanável.

Assim, no que se reporta à matéria de facto dada como não provada, atendendo ao já exposto, importa realçar o princípio in dúbio pró reo que impera no nosso sistema jurídico penal português.

Na verdade, «O princípio “in dubio pro reo” pretende responder ao problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais» (Cristina Líbano Monteiro, in Perigosidade de Inimputáveis e “in dubio pro reo”, Studia Iuridica 24, Coimbra Editora, 1997, pág. 9).

Em matéria de prova no âmbito do processo penal, vigora sempre o princípio, constitucionalmente consagrado, da presunção de inocência do arguido. Estabelece o artigo 32º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa que «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Este preceito, englobando uma garantia, é de aplicação directa, nos termos do disposto no artigo 18º da nossa lei fundamental.

Já na Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada a 10 de Dezembro de 1948, se estabelecera no artigo 11º, n.º 1, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas».

No sistema penal português, de estrutura acusatória, a presunção de inocência é o ponto de partida do julgamento, constituindo a primeira, e mais relevante, garantia do arguido. Esta presunção apenas é contrariada quando a acusação logra fazer prova dos factos imputados ao arguido, de forma a não deixar dúvidas no espírito do legislador, relativamente à veracidade daquelas.

Nesta medida, o primeiro dos corolários deste princípio é transmitido pelo brocado latino in dubio pro reo, ou seja, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, ou ainda, dito de outra forma, a dúvida sobre a realidade de um facto deve ser decidida a favor do arguido. O conteúdo do princípio da presunção de inocência consiste, pois, essencialmente na proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido.

No entanto, cumpre referir que os dois princípios não se confundem. Na verdade, acompanhamos Alexandra Vilela (in Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, pág. 79) ao referir que «o que os distingue essencialmente é que se o princípio da presunção de inocência actua necessariamente em qualquer caso, o in dubio apenas actuará em caso de dúvida, como último recurso».

Estes princípios orientadores do processo penal ao nível da prova, além de constituírem uma garantia subjectiva, traduzem também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Com efeito, a dúvida sobre a responsabilidade do arguido é, afinal, a razão de ser de um processo penal, sendo certo que é a própria lei que ficciona aquela dúvida, ao consagrar a presunção de inocência. Assim, quando o tribunal se degladia com dúvidas no tocante à versão da acusação, isto é, permanecendo duvidoso, face à prova produzida em audiência, que o arguido tenha praticado os factos de que vinha acusado, e sendo tal dúvida insuperável, impõe-se a absolvição daquele. Nestes casos, a condenação do arguido significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.

Nas palavras de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, volume I, pág. 213) «à luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido (…)».

Não se ignora que, para aplicação do princípio in dubio pro reo, é preciso que no espírito do julgador, ao pretender fixar a matéria de facto, se instale uma dúvida séria, honesta e com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação da versão dos factos prejudiciais ao arguido.

É certo também que o facto de haver prova divergente não significa necessariamente que esteja fundada aquela dúvida.

Assim, a dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável e objectivável. Assim, a dúvida insanável pressupõe que houve todo o empenho e diligência do tribunal no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza. Por outro lado, a razoabilidade implica que se trate de uma dúvida séria, argumentada e racional. Por fim, a dúvida deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.

Intimamente associado a esta questão está o princípio da livre apreciação da prova, previsto expressamente no artigo 127º do Código de Processo Penal, nos termos do qual, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Da redacção desta norma, necessariamente interpretada nos termos da constituição, infere-se que o legislador pretendeu impedir, que o julgador decida segundo o seu critério no que respeita aos factos duvidosos desfavoráveis ao arguido. Ou seja, para dar como provado determinado facto, o julgador deve estar convicto dele. Na dúvida, é-lhe imposto que opte pela solução que, em concreto, for mais favorável ao arguido.

Deste modo, para a operação intelectual (formação da convicção), contribuem regras impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente impondo-se, por tal, a mediação e a oralidade e a da dúvida inultrapassável, conduzindo ao princípio in dubio pro reo.

De salientar, na sequência do que se deixou dito, que os princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo estão associados ao princípio nullum crime sine culpa, pois que o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convicto sobre a existência dos pressupostos de facto, pronuncia uma sentença de condenação. Constituem, assim, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta enquanto suporte axiológico-normativo da pena (artigo 40º, n.º 2 do Código Penal.

Com efeito, numa sociedade em que o valor primeiro é a pessoa humana, seria inaceitável que a condenação penal não tivesse por fundamento a certeza da culpa do condenado.

Para concluir, citamos o Ac STJ de 12 de Outubro de 2000 (in www.dgsi.pt) que resume muito claramente o raciocínio explanado referindo que «”In dubio pro reo” é um princípio básico do direito processual penal probatório: existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. Logo, a punição só pode ter lugar quando o julgador, face às provas produzidas, adquire a convicção da certeza da imputação feita ao acusado (se esta convicção de certeza não corresponder à realidade, então, haverá erro judiciário mas já não há violação daquele princípio)».

De tudo o exposto, e como supra referido, resulta que a prova produzida conduziu à fixação dos factos nos moldes supra determinados, como não provados, com base na dúvida insanável, razoável e objectivável.»

Decidindo.

Tendo presente as alegações de recurso no seu confronto com a decisão a quo está sobretudo em causa a credibilidade ou não conferida ao depoimento da ofendida.

Antes de mais importa transcrever nesta decisão parte de acórdão proferido nesta instância pela Exmª Srª Drª. Lígia Trovão, 1ª adjunta nestes autos, no processo nº 2885/17.2JAPRT.P1 e que se subscreve por inteiro, a propósito das competências desta instância em sede de apreciação de recurso:

“O recorrente para impugnar a matéria de facto em sede de erro de julgamento tem de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar qual o concreto documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens da gravação desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação([2])) e, no caso de ser requerida a audiência (não sucede no caso presente), as provas que devem ser renovadas, nos termos do art. 412º nºs 1, 3 alíneas a) a c) e 4 do CPP devendo, em simultâneo, esclarecer o porquê da discordância, como e qual a razão por que é os meios probatórios por si especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância, fazendo uso de um raciocínio lógico e de exame crítico com o mesmo grau de exigência que se impõe ao tribunal na fundamentação das suas decisões([3]) e enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas, pois são essas que devem ser prima facie apreciadas pelo Tribunal de recurso (que não deixará, no entanto, de tomar em consideração, para além desses específicos trechos, também outros produzidos em audiência, nos termos do nº 6 do art. 412º do CPP, conforme resulta do disposto no art. 412º nº 4 do CPP, “sob pena do recorrente escolher a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material”([4])).

Ou seja, depois de indicar os concretos pontos de facto sobre os quais incide a discordância, impõe-se ao recorrente nos termos do citado art. 412º nº 3 b) do CPP, que indique concretamente em que documentos e/ou trechos/passagens das declarações e/ou dos depoimentos das testemunhas, ouvidos em audiência de julgamento, baseia a sua impugnação.

No caso destes autos, tendo sido documentados através de gravação áudio as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento (cfr. arts. 363º e 364º do CPP) e por reporte ao ónus de especificação da prova pessoal gravada imposto ao recorrente, haverá que ter presente o decidido pelo AUJ do STJ nº 3/2012 de 18/04/2012, relatado por Raúl Borges, publicado no D.R. nº 77, I Série, segundo o qual “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412º nº 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/ excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.

Sobre este concreto ónus de especificação (art. 412º nº 3 b) do CPP), escreveu-se a dado passo no recente Ac. da R.P. de 25/09/2024([5]) que “…não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Assim, para que a impugnação possa proceder, as provas que o recorrente invoque, e a apreciação que sobre as mesmas se faça recair, em confronto com as valoradas pelo tribunal a quo ou com a valoração que esse tribunal efectuou, devem não apenas revelar que os factos foram incorrectamente julgados, como antes devem determinar a convicção de que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações do arguido, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal“.

Convém no entanto assinalar que a apreciação a efetuar pelo Tribunal de recurso (alargada à prova produzida em audiência, se documentada), contém-se nos limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto nos termos do citado art. 412º nºs 3 e 4 do CPP, não visando a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, como se o primeiro julgamento realizado pelo Tribunal de 1ª Instância não tivesse existido, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente([6]).

Por sua vez o Tribunal de recurso, só poderá alterar a decisão sobre a matéria de facto, fora do contexto da livre convicção, se constatar que o Tribunal de 1ª instância errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas ou, nas palavras do Ac. da R.E. de 25/09/2012([7]), se verificar que “a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas “, ou ainda nas palavras do recente Ac. da R.L. de 06/02/2024([8]), “A forma de descortinar o erro de julgamento não passa pela mera alegação da discordância, antes tem que passar pela demonstração inequívoca – nos mesmos moldes de fundamentação que se exige ao julgador - de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório “. Deste modo, “I - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. II - Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção “([9]).

Concluindo, ao Tribunal da Relação só pode pedir-se que efetue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direcionados para a (sindicância da) sentença de facto, e sempre de acordo com a impugnação do recorrente([10]).

A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.

Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (arts. 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto([11]).

Os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso (cfr. arts. 428º e 431º do CPP) consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal([12]); dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram([13]); dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada([14]).
Por último, refira-se que a decisão de facto só deve ser alterada quando seja evidente que as provas a que se faz referência na fundamentação não conduzem à decisão impugnada (cfr. art. 431º b) do CPP).

(…)”

Ora, alega o M.P. recorrente que os pontos B. a K. da matéria de facto não provada foram incorretamente julgados, na medida em que não foi considerado como provado que:

“B. Em Junho de 2021, a BB começou a namorar com um rapaz e o arguido, mostrando-se ciumento, numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela.

C. O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando.

D. Acto contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”.

E. Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2011, em Agosto de 2001, em dia não concretamente apurado, estando DD a trabalhar e a EE na escola, o arguido foi ter com aquela à sala e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto.

F. Estando sozinha com o arguido, e face à atitude violenta que o mesmo já tinha tido consigo, a BB ficou com receio, pelo que acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis erecto na vagina daquela.

G. A partir dessa altura e até 16 de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve por trinta vezes relações sexuais de cópula completa com a BB, aproveitando as alturas em que DD estava a trabalhar.

H. Em tais relações sexuais, que ocorriam sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB.

I. Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha apenas 16 e posteriormente 17 anos de idade e que, como tal, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.

J. O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade e ascendência económica, ameaçando aquela e os restantes membros da família, para conseguir os seus intentos.

K. Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo”.

Este tribunal ouviu atentamente toda a prova produzida em sede de audiência e analisou a prova pericial e pôde constatar que o tribunal a quo foi criterioso, atento, tendo escalpelizado toda a prova, indagando e questionando e no final concluiu ter dúvidas, afirmando que tal não queria dizer que o arguido não tivesse praticado os factos ocorridos em Portugal, mas que permanecia uma dúvida insanável e em consequência absolveu.

Afirma o M.P que essa dúvida não existirá porque:

“a) No que se refere aos actos praticados pelo arguido e de que foi vítima a BB, bem como à sua localização espacial e temporal:

A ofendida BB prestou declarações para memória futura em 04/11/2022, declarações essas que foram gravadas e constam da plataforma Citius (ficheiro 20221104144307_4171544_2870428).

Foram tais declarações igualmente objecto de registo videográfico, constante dos suportes (CD/DVD) agrafados na contracapa do volume 1º dos autos.

Nessas declarações, depois de explicar como começou a viver no mesmo agregado familiar com o arguido, depois de o mesmo ter iniciado uma relação, primeiro de namoro, depois marital com a sua mãe – bem como os locais onde viveram em tal situação, inicialmente na Costa Rica e posteriormente em Portugal – descreveu os factos de que foi vítima por parte do arguido de forma no seu essencial consistente com os factos enunciados na acusação (nomeadamente, os descritos nos parágrafos #13 a #19 da acusação – os factos ocorridos em território nacional – e correspondentes aos pontos B. a H. da matéria de facto não provada).

Quanto ao início de tais actos, quando ainda residiam na Costa Rica – que aqui se refere independentemente da decidida questão da competência internacional, mas para enquadramento dos factos posteriormente ocorridos em território nacional – por referência à altura em que para ali foram viver (Dezembro de 2019), início da pandemia de COVID (Março de 2020) e altura em que ali deixaram de viver (Outubro de 2020), a BB vem a declarar nas seguintes passagens:

- ao minuto 15:45 em diante; ao minuto 17:33 em diante, ao minuto 18:55 em diante, ao minuto 24:05 em diante e ao minuto 28:45 em diante, que foi em Agosto que “começou este problema”, numa ocasião em que acabou a dormir sozinha com o arguido e o mesmo a apalpou na zona vaginal, nas nádegas e nas mamas, que posteriormente viriam a manter relações de sexo anal e que tal situação se repetiu por diversas vezes ainda na Costa Rica, voltando a ocorrer quando já residiam em Portugal.

Relativamente aos factos ocorridos em território nacional, são os mesmos relatados pela ofendida BB a partir do minuto 33:00 em diante.

Neste âmbito, cabe sinalizar que, não tendo sido dado como provado nenhum dos factos que vinham imputados ao arguido e integradores dos aludidos 31 crimes de abuso sexual de menor dependente, há que atentar na globalidade do depoimento prestado pela ofendida BB, o qual contém o relato integral dos mesmos.

Sem prejuízo e dando cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), e nº 4, do Código de Processo Penal, indicam-se as passagens das referidas declarações para memória futura que a seguir se especificam e transcrevem.

Assim:

- minuto 33:50 em diante:

Sra. JIC: Depois vieram embora da Costa Rica. Por que razão?

BB: Por papéis

Sra. JIC: Portanto porque não conseguiram tratar da vossa questão que estava atrasada, portanto tiveram que sair. E vieram para onde?

BB: Para casa do meu avô. Era na ...

Sra. JIC: Vieram aqui para ..., para a ...? É isso? Qual é a

morada, sabe dizer qual é a morada?

BB: É Rua ..., casa nº ...

Sra. JIC: Nessa altura vieram todos? Os quatro? É isso?

BB: Não. Só a minha mãe, a minha irmã e eu.

Sra. JIC: Vieram só vocês? Vieram aqui para Portugal e ficaram ali. Ninguém mais morava na casa? Os avós ainda estavam na Venezuela?

BB: Sim.

Sra. JIC: Ainda estavam? Portanto, isso aconteceu em que altura? Em Outubro de 2020?

BB: Sim. Trinta de Outubro, acho eu.

- minuto 38:20 em diante:

BB: Então em Janeiro chegou o AA de surpresa.

Sra. JIC: Em Janeiro de que ano?

BB: Dois mil e vinte e um

Sra. JIC: Portanto ele ficou, ele ficou na Costa Rica. É isso?

BB: Sim.

- minuto 39:44 em diante:

Sra. JIC: Ele veio viver convosco aqui para a ...?

BB: Sim, exactamente.

Sra. JIC: E o que é que aconteceu?

BB: Ao início nada de nada. E eu estava bem porque ele não queria nada comigo. Mas depois eu tive um namorado aqui em Portugal. E depois ele soube que eu tinha namorado e começou a me procurar.

Sra. JIC: A procurá-la? É isso?

BB: Sim, exactamente. Então esse período que eu tinha namorado, ele uma vez foi ao meu quarto e eu estava ali e ele disse para eu dar-lhe um abraço, eu não queria dar um abraço, eu tinha uma bata e ele tipo deu um abraço e com a mão apalpou o meu cú e eu afastei-o e disse que não, que não queria. E então ele começou tipo a dizer eu sei que tu queres, até eu quero, e começou-me a fazer força. Foi a maneira que eu tive de o correr do meu quarto.

Quando foi para ele vir no meu quarto fiz fechar a porta, ele colocou o pé e começou-me a fazer força também. Eu disse eu grito e chamo a minha mãe. E ele começou assim, começou a fazer força na mesma. E então ficou assim, ele foi embora trocar de roupa para ir para o trabalho, porque nessa altura ele trabalhava de noite.

- minuto 41:22 em diante:

Sra. JIC: E isso aconteceu mais ou menos em que altura? Ele voltou em Janeiro e isso terá, essa situação…

BB: Foi em Julho do ano passado

Sra. JIC: Julho ou Junho? Julho?

BB: Julho.

Sra. JIC: Mas aí ele saiu do quarto e portanto não aconteceu nada. A sua mãe estava em casa nessa, nessa situação?

BB: Sim. Só que na casa-de-banho. A minha mãe de vez em quando estava na cozinha que é nesta parte e os quartos são aqui. Então ele tipo subiu ao meu quarto.

Sra. JIC: Não se apercebeu também dessa situação a sua mãe? Não se apercebeu, não é?

- minuto 42:35 em diante:

BB: Depois eu acabei com o meu namorado e ele continuou. Mas depois aí não aconteceu a mesma coisa que aconteceu naquela noite.

Sra. JIC: Esse namorado que tinha era um namorado da escola? E terminou por que razão?

BB: Porque ele não era o meu amor, como o AA.

Sra. JIC: Esse namorado não a tratava bem? Não lhe dava valor?

BB: Não é que não me tratava bem. É simplesmente que eu gostava dele mas ele não gostava de mim. Só estava comigo porque eu era bonita. Por isso durou duas semanas.

- minuto 43:40 em diante:

Sra. JIC: E depois o seu padrasto apercebeu-se que tinha terminado ou a BB disse? Como é que foi isso?

BB: Eu disse à minha mãe, a minha mãe contou ao AA e o AA soube.

Sra. JIC: Que tinha terminado o relacionamento? E depois aconteceu alguma coisa?

BB: Depois ele começou a procurar-me outra vez e eu tipo deixava, porque eu queria que voltasse a acontecer o que aconteceu (imperceptível)

Sra. JIC: Mas deixava, o que é que a BB deixava? O que é que a BB recorda propriamente que isso são situações mais recentes? Quando é que ele a procurou? Em que situações? O que é que aconteceu?

BB: É assim, ele como trabalhava toda a noite, ficava todo o dia em casa. E nessa altura pois minha mãe trabalhava no A..., que é uma empresa de recolha de lixo.

Sra. JIC: Recolha de lixo, é isso? Trabalhava durante o dia a mãe?

BB: Sim.

Sra. JIC: E ele trabalhava à noite porque trabalhava na padaria, é isso?

BB: Sim.

Sra. JIC: Fazia o horário nocturno? Ou o horário dele era de que horas a que horas?

BB: Era das dez até sete, oito horas da manhã.

Sra. JIC: Portanto durante o período do dia estava em casa? E a mãe, o horário?

BB: Acho que era de oito, ou sete, até às cinco ou seis da tarde.

Sra. JIC: E nessa altura a BB estava a estudar, não era?

BB: Sim.

Sra. JIC: Estava a estudar? Também tinha escola. Qual é a escola?

BB: Escola Secundária ....

Sra. JIC: Então nessas situações que estava a dizer que ele a procurava, se consegue precisar mais que situações é que se recorda em que isso aconteceu e onde?

BB: Por vezes até era no quarto dele. Como ele estava sozinho no quarto, depois me procurava e a minha irmã não se apercebia de nada porque estava dormindo no quarto.

Sra. JIC: Mas isso acontecia de dia ou de noite?

BB: De dia.

Sra. JIC: De dia? Mas de dia a sua irmã não estava a dormir.

BB: Não. Era tipo de manhã porque ela ainda não estava acordada.

Ele chegava do trabalho e esperava que a minha mãe estivesse arranjada para depois a levar.

Sra. JIC: E o que é que a BB recorda de situações assim em concreto que nos possa aqui dizer, recordar dessas situações?

BB: Pois ele me ligava, por exemplo que queria um café, comida, sei lá e essas coisas e eu ía ao seu quarto, depois é que ele me agarrava, ele me abraçava.

Sra. JIC: Mas ele mandava mensagens para o telemóvel, é isso?

BB: Não. Ele ligava.

Sra. JIC: Ligava como?

BB: Ligava para o meu número.

Sra. JIC: Estavam na mesma casa e ele ligava para o telemóvel, é isso? Ligava a pedir um café, a pedir alguma coisa, é isso? E a BB ía ao quarto, é isso?

BB: A levar as coisas.

Sra. JIC: O que ele pedia?

BB: Sim.

Sra. JIC: Era nessas situações? O que é que acontecia?

BB: Pois ele me agarrava, me abraçava, era tipo (imperceptível)

aconteceu naquela noite. E depois era sempre relações sexuais anais.

Sra. JIC: Era sempre relações sexuais anais, é isso?

BB: Sim.

Sra. JIC: Foi sempre assim? Não era, não tinham …

BB: Não. Ao início sempre foi assim. Depois eu gostei de um rapaz e fiz relações com ele andei com ele, eu perdi a minha virgindade, e depois disso, como não gostava de relações anais, por causa que às vezes doía, outras não e isto e o outro, então eu disse para ele para começar a fazer relações tipo pela frente.

- do minuto 50:08 em diante:

Sra. JIC: Quando é que foi a primeira vez que teve relações sexuais com o namorado? Não é? Diz que isso aconteceu mais tarde. Quando é que isso aconteceu?

(…)

BB: Em meados de Agosto, acho eu.

(…)

Sra. JIC: Terá sido em Agosto de 2021? É isso? Portanto não foi com esse rapaz com quem esteve a namorar duas semanas? Foi depois disso?

BB: Sim.

- do minuto 51:00 em diante:

Sra. JIC: Então as relações passaram a ser vaginais a partir dessa altura?

BB: Sim.

Sra. JIC: Mais ou menos que altura?

BB: Agosto.

Sra. JIC: Agosto?

BB: Sim.

Sra. JIC: Mas isso acontecia sempre em casa, essa situação? E era sempre no quarto do AA?

BB: Sim.

Sra. JIC: Diz que sim. E sempre nessa situação? No período da manhã ou isso não era sempre assim? Como é?

BB: Depois que a minha mãe começou a trabalhar em … Como é que se chama? É uma empresa (imperceptível). Depois disso começou a ser de noite.

- do minuto 51:55 em diante:

Sra. JIC: Isso acontecia quantas vezes? Isso era com que periodicidade?

BB: Era o que conseguia. Era uma ou duas vezes na semana.

- do minuto 52:25 em diante:

Sra. JIC: Disse que isso aconteceu até quando?

BB: Até Fevereiro deste ano.

Sra. JIC: Porquê até Fevereiro? O que é que aconteceu em Fevereiro?

BB: Porque em Fevereiro, tipo eu comecei namorando e tipo … Eu acho que ele se estava cansado da rotina e então ele deixou de procurar-me, tipo ele deixou de procurar a mim e eu simplesmente (imperceptível) não queria nada com ele, não queria nada com ele

- do minuto 54:15 em diante:

Sra. JIC: Essas situações que disse que aconteciam uma ou duas vezes por semana, normalmente era quando a mãe não estava em casa?

BB: Sim.

Sra. JIC: Sei que poderá ser um pouco difícil estimar nesse período entre Agosto e Fevereiro quantas vezes é que isso, é que terão mantido esse tipo de relações sexuais?

BB: Como era uma ou duas vezes por semana eu acho que foi quinze, quinze.

- da hora 01:04:55 em diante:

BB: Naquele dia [refere-se ao que se passou após ter revelado os factos perante a mãe e restante família] depois de tipo ela [refere-se à mãe] ter beijado o AA na minha cara em frente da casa, eu me fechei no meu quarto e depois de uma hora a minha tia foi levar-me o jantar e foi a minha mãe a conversar comigo e ela me disse agora diz-me a verdade.

Tipo fiquei, fiquei assombrada, disse o que é que tu queres que eu conte?

(…)

BB: Eu disse a maneira como o AA fazia as coisas. Ela disse, ah mas essa não é a maneira como ele faz comigo e é incrível que ele tivesse (imperceptível).

Das declarações assim prestadas em sede de declarações para memória futura, pode retirar-se o seguinte, tal como refere o M.P. a quo:

Que depois de já terem ocorrido factos da mesma natureza quando residiam na Costa Rica, numa altura em que o arguido já se encontrava a residir em Portugal com a mãe da ofendida, com a ofendida e com a irmã desta, pelo menos a partir de Julho de 2021 voltou a procurar a ofendida para com a mesma manter relações sexuais;

Tal ocorreu na sequência de o arguido ter sabido que a ofendida tinha um namorado, tendo ocorrido uma primeira situação como a descrita nos parágrafos #13 a #15

da acusação – correspondentes aos pontos B. a D. dos factos não provados;

Depois de ter terminado esse namoro e o arguido disso ter tido conhecimento, o arguido continuou a procurar a ofendida e vieram a manter relações de sexo anal por diversas vezes – facto não descrito na acusação;

Nessa época, o arguido trabalhava de noite, passando o dia em casa, e a mãe da ofendida trabalhava de dia – sendo que várias situações ocorreram com a mãe em casa, mas estando esta a tomar banho ou na cozinha que fica num andar diferente do dos quartos, onde normalmente ocorriam os factos;

Passaram a ter relações de cópula depois de a ofendida ter ‘perdido a sua virgindade’, tipo de relações que a mesma situa ter ocorrido em Agosto de 2021, sendo que tal tipo de relacionamento perdurou pelo menos até Fevereiro de 2022 – relato coincidente com os factos descritos nos parágrafos #16 a #18 da acusação, pelo menos na parte em que aí se descreve que “Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2011 [tratando-se de lapso de escrita pois o ano é manifestamente 2021], em Agosto de 2021 [tratando-se de lapso de escrita pois o ano é manifestamente 2021], em dia não concretamente apurado (…) o arguido foi ter com aquela à sala e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto; Estando sozinha com o arguido (…) a BB (…) acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis erecto na vagina daquela; A partir dessa altura e até (…) Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve (…) relações sexuais de cópula completa com a BB”, mas dado na sua integralidade como não provados sob os pontos E. a G. da matéria de facto não provada;

Nesse período de tempo, tal tipo de relacionamento ocorreu uma ou duas vezes por semana, consoante o arguido conseguia face às rotinas da família – o que permite contabilizar, numa perspectiva mais benéfica para o arguido, que terão ocorrido pelo menos uma vez em Agosto, pelo menos quatro vezes nos meses de Setembro a Janeiro e pelo menos uma vez em Fevereiro, totalizando pelo menos 22 (vinte e duas) situações em que ocorreram relações de cópula.

A ofendida BB prestou igualmente declarações em audiência de julgamento em 21/02/2024.

As relativas às sessão da manhã constam da registadas na plataforma Citius, no ficheiro 2024221104914_4275629_2870423.

Também neste âmbito, cabe sinalizar que, não tendo sido dado como provado nenhum dos factos que vinham imputados ao arguido e integradores dos aludidos 31 crimes de abuso sexual de menor dependente, há que atentar na globalidade do depoimento prestado pela ofendida BB, o qual contém um relato relativo à quase totalidade dos mesmos – sendo que em audiência de julgamento foi determinada a sua audição para esclarecimentos.

Indicam-se as passagens das referidas declarações que a seguir se especificam e transcrevem.

- do minuto 21:33 em diante:

Depois de perguntada sobre onde, como e quando aconteciam os factos quando ainda residiam na Costa Rica

BB: Isto acontecia, às vezes, quando a minha mãe estava a tomar banho e a minha irmã estava a ver televisão, ele me levava para o lugar onde era a máquina de lavar a roupa. Às vezes acontecia que a minha mãe a minha irmã estava a ver televisão e ele ía à sala comigo [esclareceu anteriormente que a única televisão da casa estava no quarto do casal].

Quando a minha mãe estava a tomar banho ou então no seu quarto a ver televisão ele fazia essas coisas. E a minha irmã sempre estava com a sua mãe.

- do minuto 26:45 em diante:

A ofendida depõe sobre as rotinas diárias da família quando já todos (arguido, ofendida, mãe e irmã) viviam em Portugal

BB: Em Janeiro a minha irmã e eu estávamos (imperceptível).

Depois ele ficou sem trabalhar … Quando ele chegou a minha mãe e ele não trabalhavam, porque a minha mãe ainda não tinha arranjado trabalho. Depois, acho que foi em Fevereiro, a minha mãe arranjou um trabalho na A.... Ela trabalhava de manhã e de tarde. O horário normal de oito horas. Ele ficava todo o dia em casa. Depois veio a época da pandemia em que estávamos outra vez em aulas online. E pronto a minha irmã e eu …

Sra. Juiz Presidente: Espere aí. Quando é que ficaram em aulas online?

BB: Em Janeiro.

(…)

Sra. Juiz Presidente: De 2021.

BB: Sim.

BB: Até Abril.

(…)

BB: Ele começou a trabalhar, acho que foi em Fevereiro. Começou a trabalhar na padaria.

- do minuto 28:35 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Até quando? Na padaria. Na padaria.

Sra. Juiz Presidente: Já se falou aqui que teria sido até Outubro ou Novembro, mais ou menos. Parece-lhe razoável?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Pronto. Durante este período, como era o vosso dia-a-dia?

BB: Como era o meu dia-a-dia era eu acordava de manhã, a minha mãe …

Sra. Juiz Presidente: Desculpe, esteve em aulas online quanto tempo?

BB: Quando é que eu tive aulas online? Desde Janeiro, até Abril, até mais ou menos meados de Abril.

Sra. Juiz Presidente: Então como é que era então o dia-a-dia? Diga lá.

BB: Eu acordava ás oito da manhã, havia aula às oito e meia da manhã, pronto havia aulas síncronas e assíncronas, e então eu nas aulas assíncronas, tomava o pequeno almoço, ficava no telemóvel, às vezes ía para cima, porque a minha irmã ficava a dormir, a minha irmã não tinha (imperceptível) depois eu ía para cima com a minha irmã, ele estava no seu quarto, pronto, ele estava acordado, pronto, e depois …

Sra. Juiz Presidente: Durante as aulas online havia alguma coisa, houve alguma coisa?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Isso é novidade. Até agora sempre disse que foi só a partir de Agosto de 2021. Em Junho-Julho tinha havido um problema que foi quando ele a agarrou, empurrou-a para o quarto, a BB tentou fugir para o quarto, ele pôs o pé que não a deixou fechar a porta, recorda-se? Isso foi a primeira coisa desde que ele veio para Portugal. Lembra-se dessa situação que eu estou a descrever?

BB: Sim, sim.

Sra. Juiz Presidente: Pronto. Que teria sido até por causa de um namoro qualquer que até disse e porque é que ele não tentou antes. Disse porque ele só quando foi do namoro é que deve ter despertado ciúmes. Lembra-se de falar nisso?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Pronto.

BB: (imperceptível)

Sra. Juiz Presidente: O que tinha explicado é aquilo que eu lhe estou a dizer. O que tinha dito é que naqueles primeiros meses em Portugal não tinha havido nada. Só com esse namoro é que lhe devia ter despertado o ciúme. Até disse que ele estava com uma bata. Só depois a partir daí é que sem saber novamente explicar, de acordo com aquilo que eu percebi, era isso que eu lhe ía perguntar também, é que recomeçaram a ter relações anais e que depois em Agosto quando lhe disse que já tinha perdido a virgindade que a partir daí passaram a ter relações vaginais.

BB: Posso pedir para o arguido sair da sala?

Sra. Juiz Presidente: Pode. Mas qual é a diferença que aconteceu agora para querer … (risos) Sôtora, vamos tentar evitar está bem? Eu gostava de saber o que é que aconteceu neste momento para alterar a sua postura relativamente a isso.

BB: (imperceptível) ele estava todo o tempo em casa …

Sra. Juiz Presidente: BB, calma. Não precisa de falar com ele na sala se não quiser falar com ele na sala. Eu queria perceber, o que eu lhe estou a perguntar é a BB acabou de pedir para falar sem ele estar na sala. O que é que aconteceu agora, não é?, neste julgamento que está a acontecer para a BB querer mudar a sua postura relativamente a isso.

É alguma coisa que quer contar que ainda não contou? É isso?

BB: Eu não tinha contado? Eu pensei que já tinha contado.

[do minuto 35:15 em diante o arguido não está presente na sala]

- do minuto 36:05 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Desde a vinda do arguido para cá e até àquela história do namoro em Junho ou Julho que eu não percebi também se era Junho ou Julho, aquela história da porta, de tentar fugir para o quarto e ele impedir de fechar a porta do quarto … Foi em Junho ou em Julho?

BB: Foi em Junho.

Sra. Juiz Presidente: Junho? Mês seis? É isso?

BB: Mês seis. Sim.

Sra. Juiz Presidente: Desde a vinda dele para cá e até Junho, houve alguma coisa?

BB: Sim. Mas é que eu estou impressionada porque eu já tinha contado há um tempo do que tinha acontecido no momento, do que ele fazia, do que não fazia.

Sra. Juiz Presidente: Se contou terá sido na polícia, nas declarações para memória futura não falou desse período.

(‘à partes’)

Sra. Juiz Presidente: Pronto. Então afinal aconteceu antes, é isso também?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Então quando é que começou desde que ele veio?

BB: Quando é que ele veio começou em meados de Fevereiro. De novo.

Sra. Juiz Presidente: Recorda-se da primeira vez em que isto voltou a acontecer?

BB: Ele me chamou ao seu quarto e me disse que queria pedir um favor, e pronto, ele me agarrou e (imperceptível).

Sra. Juiz Presidente: Anais?

BB: Sim. Nesse período até Agosto em que perdi a minha virgindade foram anais.

Sra. Juiz Presidente: E foi contra a sua vontade? Foi forçada ou na altura ainda estava apaixonada por ele e deixou-se …

BB: Eu deixei.

Sra. Juiz Presidente: Então isto terá sido durante o tempo das aulas online, é isso que está a dizer? Ele já estava a trabalhar na padaria nesta altura?

BB: (imperceptível) trabalhava de noite e passava todo o dia em casa.

Sra. Juiz Presidente: Certo. Depois … E a sua irmã nessa altura estava onde?

BB: Nessa altura estava no seu quarto. Porque como eu disse a minha irmã não tinha aula (imperceptível) estava a dormir no seu quarto.

Sra. Juiz Presidente: A sua mãe estava a trabalhar nessa altura?

BB: Sim.

- do minuto 39:10 em diante:

BB explica os horários da família desde que recomeçaram as aulas presenciais,

- do minuto 41:40 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Neste período em que recomeçaram as aulas presenciais e até às férias, houve alguma situação?

BB: Houve.

Sra. Juiz Presidente: Em que circunstâncias e como?

BB: Pronto, como ele trabalhava de noite, eu às vezes estava no meu quarto, ele ficava tipo a arrumar-se, a tomar banho, e a minha mãe ficava na parte de baixo da casa porque estava a fazer o jantar, com a minha irmã.

Sra. Juiz Presidente: E era onde que acontecia?

BB: Como ele estava na parte de cima…

Sra. Juiz Presidente: Onde.

BB: Onde? Aqui em Portugal.

Sra. Juiz Presidente: Na casa-de-banho? Na lavandaria? No seu quarto?

BB: Era no seu quarto.

Sra. Juiz Presidente: Sempre no quarto dele?

BB: (…)

Sra. Juiz Presidente: Está a abanar com a cabeça mas isto é gravado, não temos vídeo. Mas está a dizer que sim, não é?

BB: Sim.

- do minuto 43:23 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Durante as férias, desde que chegaram a sua tia e os seus avós, costumavam estar em casa também, durante o dia, certo? Estavam sempre em casa?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Então em que circunstâncias é que isto acontecia?

BB: Acontecia tipo que a minha mãe nunca deixou de trabalhar e ía sempre trabalhar de manhã …

Sra. Juiz Presidente: Mas também a presença da mãe, pelo que eu percebi, sempre que faziam a mãe estava em casa, estava era noutro compartimento. Portanto a mãe, não era por a mãe estar a trabalhar que …

BB: Também, pronto … A minha tia no início passava tempo no quarto a ver televisão, que a minha tia gosta de ver televisão no quarto. O meu primo estava com a minha avó ou com a minha tia. E o meu avô, como a casa é muito grande, o meu avô ficava na parte de baixo, a cozinhar, a fazer qualquer coisa no quintal. E a minha irmã ou estava com os meus avós ou estava a dormir.

- do minuto 45:35 em diante:

Sra. Juiz Presidente: No tal dia, que contou que seria a primeira situação em Portugal, onde houve uma confusão que teria fugido dele, que ele não a deixou fechar a porta do quarto, recorda-se? Neste dia não houve qualquer tipo de relação, não houve beijos, não houve toques, não houve relação anal, não houve nada. Se anteriormente a este dia cá já andavam a manter relações anais, se depois deste dia continuaram a manter relações anais, se neste dia não aconteceu nada, porque é que falou neste dia e não falou nas relações anteriores?

BB: Porque esse dia foi o único que me estava a forçar a ter relações com ele. Pra mim foi uma surpresa porque ele estava no seu quarto e eu tentei fugir para o meu quarto e fechar a porta e ele não queria. Ele até encostava na minha perna a dizer que eu queria, queria ou não queria, e depois quando eu disse ‘se não me deixas então eu vou gritar’ ele me soltou e foi para o trabalho.

- do minuto 48:18 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Desde essa primeira situação até Agosto, até ter perdido a sua virgindade, mais ou menos quantas vezes é que mantiveram relações de sexo anal? Portanto entre Junho e … Na perda da virgindade os avós já cá estavam?

BB: Não. Isso foi em meados de Agosto e eles chegaram no fim de Agosto.

Sra. Juiz Presidente: Certo. Então? Sabe dizer mais ou menos? Quantas vezes por semana é que era? Ou não era?

BB: Durante a semana era duas, três vezes.

Sra. Juiz Presidente: Depois começou a ser vaginal? Disse-lhe que tinha perdido a virgindade?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: No mesmo dia, passado uma semana, passado quinze dias, passado um mês?

BB: Passado quinze dias mais ou menos.

Sra. Juiz Presidente: Passado mais ou menos quinze dias … E então, e ao longo destes quinze dias mantiveram relações?

BB: Não.

Sra. Juiz Presidente: Nada? Então não eram duas ou três vezes por semana.

BB: O AA entretanto (imperceptível)

Sra. Juiz Presidente: É isso que eu estou a perguntar também.

BB: (imperceptível)

Sra. Juiz Presidente: Vamos cá ver. Disse que eram duas a três vezes por semana o sexo anal.

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Certo. Pronto. Perdeu a virgindade e por aquilo que está a dizer continuou a fazer sexo anal até lhe contar, ou não?

BB: Não. Depois ele esteve muito tempo sem fazer porque estava chateado comigo e nem percebi porquê. Ele estava chateado comigo e nem fala, nem, olha para mim, tipo como fingia que eu não existisse.

Sra. Juiz Presidente: E isso aconteceu muitas vezes ao longo do, destes anos?

BB: Aconteceu muitas vezes.

Sra. Juiz Presidente: Então vamos lá ver. Então ao longo deste tempo que vocês foram mantendo relações de sexo anal, muitas vezes ele se chateou e fazia de conta que não …

que a BB não existia. Foi isso que disse?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: E isso acontecia durante quanto tempo?

BB: Às vezes quando ele se chateava ficava uma semana até quinze dias sem falar comigo.

Sra. Juiz Presidente: E nesse período não acontecia nada?

BB: Não.

- do minuto 51:50 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Entre Fevereiro, que foi quando recomeçou cá em Portugal, certo?, e a sua perda de virgindade em Agosto, mais ou menos quantas vezes é que ele se terá chateado consigo e feito de conta que não existia?

BB: Umas duas ou três vezes.

Sra. Juiz Presidente: Uma a duas semanas de cada vez?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Nunca tinha dito isto. Porquê?

BB: Porque só perguntam quando foi e não quando não foi!

Sra. Juiz Presidente: Quando não foi… Pronto. Nas outras semanas todas era sempre duas a três vezes por semana, é isso?

BB: Sim.

- do minuto 53:11 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Quando começam então a ter relações vaginais já cá estava o resto da família, é isso?

BB: É.

Sra. Juiz Presidente: Nessa altura ele ainda trabalha de noite?

BB: (imperceptível)

Sra. Juiz Presidente: Portanto as relações ocorrem ao longo do dia, quando a sua irmã está com os seus avós.

BB: ... com os avós. Nós estávamos de férias até Setembro. Depois era essa rotina de ele ir a buscar a minha mãe para casa e depois do trabalho (imperceptível) porque o meu primo não começou os estudos de uma vez, começou os estudos acho que foi em Novembro, por papéis.

Sra. Juiz Presidente: Então vamos lá ver. Durante o período de férias as relações ocorriam …

BB: De dia.

Sra. Juiz Presidente: De dia, certo?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: A tia estava com o primo no quarto normalmente, a irmã com os avós pela casa, normalmente mais para baixo, não era? Recomeçam as aulas. Quando é que ocorrem?

BB: De noite.

Sra. Juiz Presidente: De noite? Então ele não estava a trabalhar de noite?

BB: Sim. Mas ele trabalhava de noite tipo … eu chego a casa às seis, a minha mãe chegava a casa às sete quando ele ía buscar a ela. Ele não ía trabalhar logo de uma vez. Ele ainda ficava uma hora, uma hora e meia ou quase duas horas em casa ainda.

Sra. Juiz Presidente: Portanto, ao fim da tarde antes de ele ir trabalhar. É isso?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Portanto, quando diz de noite é porque já estava noite, é porque já estava escuro, é isso?

BB: Já estava escuro na verdade.

Sra. Juiz Presidente: Portanto depois de vir das aulas e antes de ele ir trabalhar. A mãe estava onde?

BB: Às vezes estava a fazer o jantar. Às vezes ela jantava e ele ficava tipo a arrumar-se e depois ele jantava. Tipo era indiferente porque às vezes jantávamos juntos, mas às vezes tipo a minha mãe fazia o jantar e ele ficava a arrumar-se, ou a minha mãe comia o jantar e ele ficava a arrumar-se e depois ele comia o jantar e outras era diferente. A nossa rotina não era sempre a mesma.

Sra. Juiz Presidente: Vocês mantinham relações sexuais quando a sua mãe estava onde?

BB: Ou ela estava a tomar banho ou então estava na parte de baixo da casa.

Sra. Juiz Presidente: E a sua tia e o primo?

BB: A minha tia e o meu primo de noite dormiam, o meu primo jantava comigo às vezes. Depois de ele começar as aulas, ele ficava na parte de baixo, tipo porque na parte de baixo havia internet, então ficava na parte de baixo com o telemóvel ou a ver televisão.

Sra. Juiz Presidente: O primo em baixo. A tia?

BB: Também.

Sra. Juiz Presidente: Não estava no quarto?

BB: Não. Eles ficavam no quarto era normalmente de manhã e princípio da tarde.

Sra. Juiz Presidente: E a irmã?

BB: A minha irmã também estava no quarto, pronto a minha irmã

Sra. Juiz Presidente: Estavam todos cá em baixo?

BB: Sim.

- do minuto 57:06 em diante:

Depois de ser perguntado quando é que o arguido começou a trabalhar de dia e a BB responder que foi a partir de Outubro

Sra. Juiz Presidente: A partir daí o que é que mudou?

BB: A partir daí foi pouco a pouco baixando.

Sra. Juiz Presidente: A partir daí?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Foi baixando o número de vezes?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Então vamos cá ver. Então vamos voltar um bocadinho atrás.

Já disse que as tais vezes que ele se chateava e não acontecia nada entre uma a duas semanas e entre Fevereiro e Agosto terá sido duas ou três vezes, acho eu, acho que foi isso que disse, pronto.

E desde que começaram as relações vaginais até ele começar a trabalhar de dia, quantas vezes mais ou menos é que ele se terá zangado?

BB: Pronto, pelo menos ... porque pronto depois que eu tive relações vaginais (imperceptível) era uma ou duas vezes por semana e também havia semanas que nem fazíamos.

Sra. Juiz Presidente: Por isso é que eu estou a dizer, entre Agosto e ele começar a trabalhar de dia já era só uma, duas vezes por semana?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Houve alguma altura em que ele se tenha zangado e que não tenha havido nada?

BB: Sim. (imperceptível) … até ao final de Março, antes de eu começar (imperceptível).

Sra. Juiz Presidente: Não, mas isso aí ele já estava a trabalhar de dia. Eu estou a perguntar naquele período entre Agosto e ele começar a trabalhar de dia, se houve alguma altura em que não tenha havido nada.

BB: Eu não me lembro.

Sra. Juiz Presidente: OK. Zangado não se lembra neste período. Disse às vezes nem fazíamos nada. Neste período? Então mais ou menos quantas semanas neste período, entre começarem a ter relações vaginais e ele começar a trabalhar de dia, mais ou menos quantas vezes é que terão estado uma semana sem manter relações sexuais?

BB: Era mais ou menos como uma semana num mês.

Sra. Juiz Presidente: Uma semana num mês?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: A partir do momento em que ele foi trabalhar de dia ainda menos vezes era. Foi isso que disse? Certo?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Então quantas vezes era mais ou menos?

BB: Desde que perdi a virgindade até que ele trabalhou de dia?

Sra. Juiz Presidente: Desde que perdeu a virgindade até começar a trabalhar de dia foi o que nós estivemos a falar até aqui. Certo? Foi o que disse era uma a duas vezes por semana e uma semana por mês não tinham nada. Pronto, mais ou menos, obviamente. A partir do momento em que ele começou a trabalhar de dia começaram ainda a ser mais difícil, não é?, começou a ser ainda menos vezes.

BB: Claro.

Sra. Juiz Presidente: Então pergunto-lhe quantas vezes.

BB: Durante o período que ele começou a trabalhar de dia até …

Sra. Juiz Presidente: Até acabar.

BB: Era um, não era muito menos. Era mais ou menos uma vez por semana, no máximo.

Sra. Juiz Presidente: No máximo uma vez por semana. Era isso?

BB: Era uma vez por semana.

Sra. Juiz Presidente: E mantinham na mesma a tal história de uma semana por mês se calhar nem haver nada?

BB: Nesse período não. Até ao final, até ao final de Março.

- do minuto 01:02:00 em diante:

Relativamente ao período após o arguido começar a trabalhar de dia, quando perguntada em que altura do dia mantinham relações sexuais

BB: Era de noite.

Sra. Juiz Presidente: Então e como é que era? Onde é que estavam as outras pessoas da família?

BB: O meu avô sempre estava na parte de baixo. A minha irmã, ela ficava a tomar banho, depois a minha mãe, mas a minha irmã estava a tomar banho ela (imperceptível) na casa de banho, pois estava a vestir a roupa, depois a brincar com os brinquedos, a minha irmã tomava banho, a minha tia e o meu primo no quarto, ali no seu quarto eles tinham a sua casa de banho, eles ficavam ali na casa de banho, a vestir-se e tudo isso, e às vezes ele e eu ficávamos sozinhos.

Sra. Juiz Presidente: Ou seja… E a sua mãe? Ainda não falou na sua mãe.

BB: Eu disse que ela estava a tomar banho.

Sra. Juiz Presidente: Então nesta altura vocês mantinham relações quando a sua mãe estava a tomar banho, a irmã no quarto dela e a sua tia e o seu primo também no quarto deles?

Que era tudo no mesmo andar?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Foi isso?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: A tia e o primo tinham por hábito fechar a porta do quarto? Era costume eles fecharem a porta do quarto?

BB: (imperceptível) que eles fechassem a porta do quarto.

Sra. Juiz Presidente: Era?

BB: Sim.

- do minuto 01:04:57 em diante:

Sra. Juiz Presidente: A primeira relação vaginal foi em que altura?

BB: Foi … depois que os meus avós…

Sra. Juiz Presidente: Já depois de os avós cá estarem?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Portanto será finais de Agosto. Ou meados?

BB: Entre finais de Agosto e a primeira semana de Setembro.

Sra. Juiz Presidente: A primeira relação vaginal?

BB: Sim.

Sra. Juiz Presidente: Foi a primeira relação que tiveram desde a sua perda de virgindade? Certo? Não houve relações anais aqui no meio?

BB: Certo.

- do minuto 01:07:00 em diante:

Sra. Juiz Presidente: Quando a sua avó fez a queixa, quando tempo antes é que tinha sido a última vez? Vamos fazer assim porque a BB pode não saber qual foi o dia em que a avó apresentou queixa: por referência ao dia em que tudo se descobriu, na discussão que tiveram, quanto tempo antes é que teriam tido a última relação sexual?

BB: Mais ou menos um mês.

Dos esclarecimentos prestados pela ofendida em audiência de julgamento pode retirar-se o seguinte:

Que depois de já terem ocorrido factos da mesma natureza quando residiam na Costa Rica, numa altura em que o arguido já se encontrava a residir em Portugal com a mãe da ofendida, com a ofendida e com a irmã desta, pelo menos a partir de Fevereiro de 2021 voltou a procurar a ofendida para com a mesma manter relações sexuais;

Confrontada com a circunstância de não ter referido isso nas declarações para memória futura, referiu primeiramente que pensava já o ter relatado e mais adiante esclareceu que apenas referiu os factos a partir do episódio em que o arguido tentou forçar a entrada no quarto, porquanto essa foi a única vez em que o arguido tentou força-la a ter relações sexuais e para si foi uma surpresa;

A ofendida descreve a casa de morada de família em Portugal, percebendo-se que tem dois pisos, ficando os quartos no piso de cima, quintal e que os avós residem num anexo e não na casa principal – bem como reitera as anteriormente descritas rotinas dos membros da família, por forma a perceber-se que, como é natural, em casa não estão todos no mesmo sítio, ao mesmo tempo a fazer as mesmas coisas;

A ofendida reitera que passaram a ter relações de cópula depois de ter ‘perdido a sua virgindade’, tipo de relações que a mesma então situa terem ocorrido a partir de uma altura em que os avós já residiam em Portugal e que estima terem tido início em final de Agosto ou mesmo na primeira semana de Setembro;

A ofendida esclareceu que nesse período de tempo havia ocasiões, que duravam de uma semana a quinze dias em que o arguido, por estar aborrecido consigo, não a procurava e que, desde que passaram a ter relações de cópula, havia pelo menos uma semana por mês em que nada se passava;

Confrontada com a circunstância de antes não ter referido que havia períodos em que nada acontecia, esclareceu que não o referiu porque anteriormente só lhe perguntaram o que aconteceu e não o que não aconteceu;

Assim, em relação com os factos descritos na acusação, o que foi esclarecido pela ofendida – pressupondo que as relações de cópula se iniciaram pelo menos na primeira semana de Setembro, que duraram até meados de Fevereiro e que havia pelo menos uma semana por mês em que nada se passava – permite contabilizar, numa perspetiva mais benéfica para o arguido, que terão ocorrido pelo menos três vezes nos meses de Setembro a Janeiro e pelo menos uma vez em Fevereiro, totalizando pelo menos 16 (dezasseis) situações em que ocorreram relações de cópula.

Como se refere no acórdão recorrido, estando em causa crimes de natureza sexual, em regra só têm conhecimento direto dos factos o autor do mesmo e a sua vítima.

Daí a relevância que assume, perante versões contraditórias de um e de outro, o depoimento da vítima, que deve ser credível e estar em sintonia com as regras da experiência comum.

Daí decorre igualmente a relevância de outros elementos probatórios que permitem conferir credibilidade a tal depoimento.

Neste âmbito, cabe destacar o relatório de perícia médico-legal de psicologia junto a fls. 143 e ss. dos autos – relativo ao exame pericial de psicologia a que foi submetida a ofendida BB em 09/08/2022.

No mesmo, em resposta aos quesitos formulados, consta, além do mais, o seguinte que se destaca:

“(…)

- quais as características específicas da sua personalidade, designadamente, ao nível de ansiedade, introversão ou extroversão, capacidade de mentira e/ou efabulação, satisfação pessoal, reação a comportamentos sociais moralmente desadequados?

BB apresenta uma elevação relativamente à sintomatologia ansiosa, eventualmente reativa à situação atual. Tendencialmente é uma jovem extrovertida com propensão para experienciar um leque variado de emoções, quer positivas quer negativas.

Há uma propensão para aceitar ideias e valores menos convencionais, o que poderá levar a comportamentos social ou culturalmente questionáveis. Aliado a este fator não apresenta necessidade de aprovação social. Da avaliação efetuada não são encontrados indícios que indiquem tendência para comportamentos de mentira ou manipulação.

- qual a relação que mantém com o arguido?

BB refere sentimentos de ambiguidade relativamente a AA, durante o período dos alegados abusos (…)

À data da entrevista, apresenta sentimentos negativos extremados relativamente ao arguido, eventualmente relacionados com as consequências que a denúncia teve no afastamento com a sua mãe e na influência que acredita que AA teve na oposição que a família faz ao seu namorado (…)

- qual a sua reacção e vivência perante os actos de natureza sexual indiciariamente praticados pelo arguido?

BB demonstra ambiguidade relativamente à avaliação dos alegados atos cometidos, chegando a verbalizar ‘eu sentia-me entre o confortável e o inconfortável’. De facto, verbaliza que em certas ocasiões avaliou como algo que era errado e se sentiu confusa e compelida a dizer a verdade, não o fazendo por nutrir sentimentos amorosos pelo arguido

e por receio das consequências (…)

- se é credível o seu relato sobre tais acontecimentos?

No que diz respeito aos factos relatados, não existem discrepâncias entre os relatos constantes nos autos e na avaliação pericial. De forma a responder a este quesito procedemos a uma análise qualitativa em relação aos conteúdos produzidos por BB, tendo em conta os critérios que a literatura cientifica refere como indicadores de maior credibilidade. Assim, verificou-se a existência de coerência nas descrições, cuja verbalização foi espontânea (as questões são colocadas de forma aberta, não diretiva e não sugestiva).

BB consegue contextualizar as alegadas situações de abuso, referindo a idade em que estas tiveram inicio, as circunstâncias em que aconteceram e os locais. Menciona detalhes específicos quando relata episódios e também detalhes supérfluos (que são pouco comuns em situação de falsas declarações). Descreve interações e verbalizações entre ela e o alegado agressor, assim como menciona o seu estado mental.

Por último é importante referir à ambivalência de sentimentos face ao agressor, situação que é frequente em situações de abuso intrafamiliar.

Face ao exposto, somos da opinião que o relato produzido por BB contempla um conjunto de critérios que a literatura relaciona com um aumento da credibilidade”.

Como se alcança de tal relatório, entre os fatores de credibilização do relato da ofendida contempla-se não apenas a consistência dos sucessivos relatos (aspeto formal dos relatos), mas vários outros fatores de cariz intrínseco e relativos à qualidade de tais relatos, como sejam a espontaneidade das descrições, a contextualização dos eventos (por referência a marcos temporais como a idade, as circunstâncias e os locais), a referência a detalhes (uns específicos das situações, outros supérfluos) e as referências aos sentimentos vivenciados e ao seu estado mental quando dos eventos – detalhes que, como ali se refere, são pouco comuns em situações de falsas declarações.

Em relação com tal relatório pericial, cabe igualmente atentar nos esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pela Dra. CC, perita que procedeu ao exame pericial em causa e subscreveu tal relatório.

Foi a mesma ouvida na sessão de 22/11/2023, encontrando-se as suas declarações registadas na plataforma Citius (ficheiro 20231122151122_4275629_2870423).

Refere-se no acórdão condenatório, a págs. 30/31 do mesmo, que a Sra. Perita esclareceu que “embora a BB apresente valores de fantasia elevados, a análise conjunta de todos os valores leva às conclusões do relatório no sentido da credibilidade do por si relatado”.

Tal afirmação do acórdão recorrido descontextualiza, relacionando-os, dois aspetos distintos dos parâmetros analisados e dos esclarecimentos prestados e inculca a ideia de que a Sra. Perita teria associado os valores de fantasia elevados com a qualidade do relato produzido pela ofendida – a poder dar a entender que o relato da ofendida poderia ser fantasioso – o que não corresponde ao ocorrido em audiência de julgamento.

Como se pode ver no aludido relatório pericial, as únicas referências ali contidas relativa a “Fantasia” constam da tabela de fls. 149 verso, que é relativa aos resultados instrumento de avaliação global da personalidade denominado NEO-PI-R e a fls. 150, subsequente explicação desses resultados. Como ali pode ler-se, tal referência a “Fantasia” é um dos fatores avaliados num dos domínios da personalidade, o da «abertura à experiência», que conforme ali se explica avalia fatores motivacionais e estruturais para a mudança. Nesse fator ‘fantasia’ a BB apresentou um valor interpretado como superior e acima da média, e não propriamente como ‘valores de fantasia elevados’ como referido no acórdão sob recurso. Explica-se que “este resultado indica o perfil de uma pessoa aberta à experiência, por conseguinte curiosa em relação ao seu mundo interior e exterior, sendo as suas vivências muito ricas. (…) Tendencialmente é curiosa, criativa, original, imaginativa e tem uma grande diversidade de interesses”.

Portanto, nada que se relacione com a qualidade dos relatos produzidos acerca dos factos.

Mais, nas suas declarações a Sra. Perita, especificamente indagada sobre tal parâmetro, esclareceu o seguinte:

- ao minuto 12:55 em diante:

Dra. CC: Este parâmetro ‘fantasia’ avalia a necessidade que todos nós temos de fugir à realidade e aos problemas que temos no dia-a-dia. Há aqui um valor médio e no instrumento de avaliação a BB tem aqui uma ligeira, um ligeiro aumento deste valor. Este valor da fantasia por si só não é de forma nenhuma, não está ligado a manipulação ou mentira. É apenas um jeito psicológico que todos nós temos de fugir aos problemas que temos. Agora há aqui outros items que …

Sra. Juiz Presidente: Portanto não é fantasia aquilo que nós dizemos, por exemplo quando uma criança está a mentir, que está a efabular, está a inventar, está a fantasiar? Não é essa fantasia de que aqui se trata? Correcto?

Dra. CC: Não. Não é efabulação”.

Conforme se alcança do referido relatório pericial e dos esclarecimentos prestados, o referido parâmetro de ‘fantasia’ em nada está relacionado com a qualidade dos relatos produzidos.

Estes elementos de prova conjugados levam a considerar que os relatos produzidos pela ofendida BB, no seu essencial, no que respeita à ocorrência dos atos de abuso sexual imputados, se apresentam como credíveis.

O acórdão recorrido aponta-lhes várias “incongruências”.

Porém, não deixa de ser referido no próprio acórdão, a págs. 24, que “a ofendida prestou um depoimento bastante claro e objectivo, mantendo, na generalidade, a mesma versão dos factos, denotando pouca emotividade e grande assertividade”.

Ora, ouvidos os relatos da ofendida, resulta que a mesma mostrou por diversas vezes emotividade e angústia ao descrever os eventos, pelo que não se subscreve a menção por parte do tribunal a quo de por pouca emotividade.

Refere ainda a decisão a quo quando aí se afirma que a ofendida “De modo pouco claro e descontextualizado, relatou uma situação de extorsão vivida pela sua família materna na Venezuela que atribuiu ao arguido, denotando, desde logo a sua animosidade para com o mesmo (e sem que tal fosse referido por qualquer outra pessoa ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento)”.

O relato de tal situação encontra-se ao minuto 07:03 em diante das já referidas declarações para memória futura e não surge como descontextualizado. Aquela refere a suposta ligação do arguido à máfia venezuelana e uma situação de alegada extorsão depois de perguntada pela Sra. JIC porque é que os seus avós não gostavam do arguido, sendo convidada insistentemente a especificar essa situação de suposta extorsão.

Por sua vez nenhuma das testemunhas ouvidas conseguiu apontar um motivo suficientemente sólido para que a ofendida tivesse imputado factos desta natureza ao arguido e que justificasse a sua falsidade, apontando as mesmas, sobretudo, para o facto de ele exercer funções parentais sobre a mesma e chamá-la a atenção.

Pelo contrário a razão invocada pela ofendida prende-se com o tomar consciência do errado da situação e da preocupação de que o mesmo venha a acontecer com a sua irmã mais nova.

Ouvidos os relatos feitos pela ofendida, seja na diligência de declarações para memória futura, seja em audiência de julgamento, nomeadamente nas passagens acima apontadas, verifica-se que a mesma, no seu essencial, mantém a mesma descrição dos factos no que respeita à ocorrência dos atos de abuso sexual.

Nesses relatos, a ofendida é capaz de contextualizar temporalmente, nomeadamente por referência a eventos pessoais e familiares, os atos em causa, apresenta detalhes para algumas situações, como a roupa que trajava e onde se encontrava, bem como as palavras trocadas com o arguido – referências e detalhes esses que mantém em ambos os depoimentos, não obstante a distância temporal desde os factos e entre esses dois relatos.

As incongruências que o acórdão recorrido aponta aos relatos sobre os atos abusivos, com exceção do relato relativo à ocasião em que o arguido retomou os seus atos abusivos quando já em Portugal, não se podem afirmar categoricamente como tal.

Trata-se de divergências que se têm por normais quando se repete várias vezes o relato de atos que ocorrem de forma reiterada e ao longo de um período considerável de tempo – além de que, quer as perguntas que iam sendo feitas à ofendida, quer por via disso as respostas que dava, se reportam ao que era habitual e mais frequente acontecer, a estimativas e a médias do número de vezes em que os atos ocorreram.

Sendo que, relativamente à referida discrepância acerca da ocasião em que foram reiniciados tais atos, a ofendida, conforme acima transcrito, acaba por explicar que se referiu à situação ocorrida em Junho porque esse dia foi o único dia em que o arguido estava a tentar forçá-la a ter relações sexuais com ele e por isso ficou mais gravado na memória.

Não podendo esquecer-se, como admitido, pela ofendida que os encontros sexuais tinham colaboração da mesma, no sentido de que quando procurada não exercia oposição, admitindo, até, que o via como homem nesses momentos e não como padrasto.

Igualmente, a ‘atrapalhação’ da BB quando confrontada com essa discrepância e o seu pedido para que o relato prosseguisse sem a presença do arguido na sala são compreensíveis. Se nos colocarmos na perspetiva da mesma, forçoso será compreender que – estando perante a pessoa que a mesma vê como sendo o seu agressor e então ser confrontada com uma incongruência, sendo-lhe ainda pedido que explicasse por que é que queria que o arguido saísse da sala – no subsequente relato feito se denotasse algum comprometimento.

De todo o modo, neste âmbito, cabe ter em consideração que os depoimentos podem ter partes em que são credíveis e partes em que não o sejam, devendo o Tribunal em tais casos ponderar e decidir em que medida e relativamente a que aspetos são merecedores de tal juízo de credibilidade, e não pura e simplesmente descartá-los em bloco.

No caso do depoimento da ofendida BB em audiência de julgamento, o que pode suscitar dúvida é a parte do mesmo em que, inovadoramente por reporte às declarações para memória futura, vem a relatar que os atos de abuso ocorridos em Portugal se iniciaram em Fevereiro de 2021.

Não pode é o Tribunal a quo, perante tal dúvida suscitada por tal parte do relato, considerar que fica posta em causa a credibilidade da totalidade dos depoimentos (as declarações para memória futura e as declarações prestadas em julgamento), nomeadamente na parte em que se referem aos demais atos de abuso ocorridos a partir de Julho/Agosto de 2021.

Ainda neste âmbito, cabe atentar, como se refere no relatório pericial de psicologia a fls. 153 dos autos, que “em teoria, a sensação de impunidade dos agressores pode levar a um empolamento das situações para que haja uma maior probabilidade de justiça, no entanto os acontecimentos relatados na perícia foram coincidentes com os relatos anteriores feitos por BB”.

Ora, como é explicitado na fundamentação da matéria de facto constante do acórdão recorrido, a ofendida BB viu-se confrontada com a postura de várias das testemunhas que pertencem ao seu núcleo familiar próximo, no sentido de não acreditarem nas suas queixas e mesmo de tentarem levá-la a ‘desistir’ do presente procedimento – nomeadamente, a sua avó HH (cf. págs. 14/15 do acórdão), a sua tia JJ (cf. págs. 16/18 do acórdão) e a sua própria mãe DD (cf. págs. 21/22 do acórdão).

No acórdão recorrido, na fundamentação da decisão acerca da matéria de facto, deixa-se expresso a págs. 31, que, por oposição à versão apresentada pela ofendida, a versão do arguido, que nega perentoriamente a prática dos factos, é secundada pela mãe da ofendida, que com ambos vivia e partilhava o dia a dia – ali se explicitando que o depoimento desta é o fundamento essencial da dúvida afirmada pelo Tribunal a quo.

Ora, a mãe da ofendida é a testemunha DD, esposa do arguido e mãe da ofendida, que, conforme ali é igualmente referido a págs. 20, denotou conhecimento direto de factos relevantes, como os hábitos, rotinas e horários familiares, mas não dos factos que vêm imputados ao arguido.

Como se refere mais adiante, a págs. 22, esta testemunha não entende como haveria possibilidade de o arguido praticar os factos que lhe são imputados, no número de vezes e locais indicados, face às rotinas e horários familiares, não existindo oportunidade para que os factos ocorressem como relatados na acusação.

Ou seja, a testemunha veiculou uma opinião acerca da possibilidade de os factos terem ou não ocorrido.

Porém, do respetivo depoimento em sede de audiência de julgamento, resulta que a mesma funda tal opinião em aspetos factuais que não podem levar a tal conclusão, aspetos esses relativos àqueles mesmos fatores (hábitos, rotinas e horários familiares).

E do que a testemunha a tal propósito relatou resulta confirmado o que a ofendida relatou quanto aos mesmos aspetos, os quais permitem concluir que havia vários momentos do dia-a-dia em que a ofendida poderia ficar sozinha com o arguido em casa ou em alguma divisão da casa, como pela ofendida relatado.

A testemunha DD prestou depoimento em audiência de julgamento em 13/12/2023, estando o mesmo registado na plataforma Citius (ficheiro 20231213100554_4275629_2870423 – sessão da manhã).

Das suas declarações, que deverão ser analisadas na sua globalidade, destacam-se as seguintes passagens:

- ao minuto 13:38 em diante:

Depois de indagada sobre as divisões da casa onde moravam na Costa Rica, refere que era um apartamento composto por dois quartos, cozinha, lavandaria, sala e casa de banho, com paredes de esferovite, e que do quarto, mesmo deitada, via a cozinha e parte da sala.

- ao minuto 16:34 em diante:

Depois de indagada sobre a altura, ainda na Costa Rica, em que tomava banho, afirmou que tomava banho e depois preparava o jantar, para que quando o marido chegasse a casa tudo estivesse pronto; sobre as divisões da casa, havia um quarto para as filhas e outro para o casal, sendo neste que estava a única televisão da casa.

- ao minuto 25:45 em diante:

Descreve como era a casa onde residiam em Portugal, de forma a perceber-se que os quartos de dormir são próximos, no mesmo piso, sendo que o dos seus pais (avós da BB) são situados noutra parte da casa, separada por um pátio interior.

- ao minuto 27:20 em diante:

Refere que em Portugal começou a trabalhar em Fevereiro de 2021, na A..., tendo um horário diurno, das 8 horas às 17 horas, sendo que o arguido só começou a trabalhar em Fevereiro ou Março de 2021 e chegava do trabalho às 7 horas da manhã, levando-a ao trabalho e voltando para casa.

- da hora 01:45:30 até 01:50:35 em diante:

Depois de perguntada, afirma que ao longo destes anos era impossível que em algum momento que fosse o arguido tivesse estado sozinho com a ofendida em algum lugar da casa, dizendo que no quarto sempre entravam e saíam todos juntos, que as idas às compras também; afirma que o seu marido e ela andam sempre juntos e têm muito boa comunicação;

que estava sempre mais alguém da casa presente com a sua filha.

- da hora 01:53:15 em diante:

Acaba por referir que, já cá em Portugal, a testemunha e o arguido tomavam banho em momentos diferentes, mas depois de ambos estarem em casa.

- da hora 01:55:00 em diante:

Refere que o arguido trabalhou inicialmente como padeiro, no horário noturno, até Novembro de 2021, tendo um horário das 22 horas até às 7 horas; confirma que então ele permanecia em casa durante o dia; que começou a trabalhar noutro local (B...) em Novembro de 2021, mantendo um horário das 8 horas às 17 horas; que passou a trabalhar no C... em Dezembro de 2021, com horário das 8 horas às 17 horas; que a testemunha manteve sempre o mesmo horário; que nesse ano de 2021 nunca gozaram muitos dias de férias seguidos, tendo ela gozado férias em períodos separados de 5 dias a uma semana e que

o arguido nunca gozou férias enquanto padeiro, sendo que no trabalho seguinte gozava dois

dias de férias por mês.

De tais passagens do depoimento da testemunha DD resulta, pois, que a afirmação perentória da impossibilidade de a ofendida estar em casa ou em alguma divisão da casa sozinha com o arguido não encontra suporte nos dados objetivos por ela transmitidos acerca dos horários e rotinas da família – além de ser desconforme às regras da experiência para tal tipo de situação.

Como se vê da descrição feita sobre os horários de trabalho, períodos de férias e hábitos da família, ao longo do tempo em causa nos autos períodos houve em que o arguido permanecia em casa estando a testemunha a trabalhar, tiveram dias de férias em datas não coincidentes, a testemunha tomava banho estando o arguido e a filha em casa, mas fora da sua presença – tal como relatado pela ofendida. No período do Covid a ofendida permaneceu em casa em aulas on line e o arguido só trabalhava de noite.

Por outro lado, conforme é das regras da experiência comum, mesmo numa família numerosa, numa habitação composta por mais de um piso, com várias divisões e quintal e o caso com anexos da parte de trás, onde viveriam os avós maternos e se cozinhava separada da casa da frente por um pátio onde caberiam cerca de 8 carros, pelo menos, há sempre momentos em que os elementos do agregado não se encontram todos ao mesmo tempo em casa, nem sequer na mesma divisão/espaço – havendo múltiplas ocasiões em que duas pessoas possam estar num desses espaços sem que os demais se apercebam do que fazem ou aí se passa. Mormente quando inexiste motivo para que as demais pessoas estejam particularmente vigilantes das interações entre aqueles.

Face ao exposto, conclui-se que as apontadas incongruências dos relatos produzidos pela ofendida BB não são de molde a retirar credibilidade à parte de tais depoimentos que estão em relação com os factos que na acusação vinham imputados ao arguido sob os parágrafos #13 a #19 da acusação e correspondentes aos pontos B. a H. da matéria de facto não provada.

No que toca á invocada assertividade da ofendida relativamente ao seu discurso, não pode ignorar-se que estamos perante uma jovem já adulta que relata o trauma que alega ter passado e com competência de comunicabilidade como se pôde constar da sua audição, pelo que não se vê que tal possa toldar a sua credibilidade

Mais se conclui que a dúvida do Tribunal a quo suscitada pelo depoimento da testemunha DD, mãe da ofendida e mulher do arguido, é desprovida da fundamento objetivo, pois tal testemunha veicula uma mera opinião sobre a impossibilidade de ocorrência dos factos que se encontra em contradição com os factos que a própria relatou e relativos aos horários, hábitos e rotinas diárias do agregado familiar.

Acresce ainda que esta testemunha nunca acreditou na versão da filha e nunca fez um esforço sério para tal, o que também, diz a literatura a este respeito, resulta muitas vezes acontecer.

Assim sendo, entende-se que o Tribunal a quo, com base na prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a acima transcrita (declarações da ofendida BB, seja em declarações para memória futura, seja em audiência de julgamento, relatório de perícia psicológica e esclarecimentos prestados pela Sra. Perita em audiência de julgamento), decidiu contra a s regras da experiência comum e não devia ter duvidado e deveria ter dado como provados pelo menos os seguintes factos:

- Em Junho de 2021, o arguido numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela;

- O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando;

- Ato contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”;

- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada, mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis ereto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB.


*

b) No que se refere aos factos atinentes à relação familiar e de confiança existente entre arguido e ofendida e ao estado subjetivo em que o arguido agiu.

Cabe em primeiro lugar notar, constar dos autos prova, aliás indicada na acusação, de que o arguido e a mãe da ofendida, DD, casaram um com o outro em 02/09/2020 – cf. assento de nascimento e seu averbamento constantes de fls. 17 a 19 dos autos.

Como se trata de documento autêntico e cuja situação matrimonial foi até confirmada pelo arguido e DD e insuscetível de ser colocada em questão, prescinde-se do cumprimento do art. 358º, n º 1 do CPP e fica a constar do elenco dos factos provados, sendo certo que mesmo a não constar não deixaria de se ter em conta o papel que o arguido desempenhava no seio da família enquanto padrasto, companheiro no exercício fáctico das responsabilidades parentais.

Como acima referido e na sequência do que se expendeu no anterior ponto(errado julgamento dos pontos B. a H. da matéria de facto não provada), consideram-se também erradamente julgados como não provados os pontos I. a K. da matéria de facto não provada – correspondentes aos factos descritos nos parágrafos #20 a #22 da acusação deduzida nos autos.

São tais factos do seguinte teor:

“I. Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha apenas 16 e posteriormente 17 anos de idade e que, como tal, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.

J. O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha discernimento para o desvalor dos atos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade e ascendência económica, ameaçando aquela e os restantes membros da família, para conseguir os seus intentos.

K. Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo”.

Relativamente ao estado subjetivo em que o arguido agiu (conhecimento das circunstâncias das suas ações, consequências dos seus atos e vontade de os praticar), como é natural, mormente porque o arguido negou a prática dos factos, não existe prova direta da correspondente factualidade.

Pressupondo a prova dos factos propugnada no ponto antecedente (A. a) – relativos aos atos de abuso sexual), estamos perante uma situação em que o arguido tem as condutas objetivas que se entende deverem ser dadas como provadas.

Inexiste nos autos qualquer elemento de prova que sequer leve a suspeitar que o arguido não está dotado das capacidades mentais e cognitivas adequadas a perceber as circunstâncias em que age e a determinar-se em conformidade com o conhecimento que tem das mesmas.

Como refere o Tribunal a quo no acórdão recorrido, na fundamentação da matéria de facto e a propósito das declarações prestadas pelo arguido, o mesmo depôs de modo escorreito, sendo capaz de expor a sua posição sobre os factos e descrever, além do mais, as relações familiares, a sua situação pessoal, o seu percurso de vida e as rotinas do dia-a-dia.

No ponto 5. da matéria de facto dada como provada consta, entre o mais, que o arguido é pessoa com integração familiar e laboral, tem o 9º ano de escolaridade, apresenta uma trajetória profissional em várias áreas, apresenta capacidade de reflexão e identifica factos da mesma natureza dos imputados como censuráveis e a carecer de intervenção do sistema de justiça.

Ora, dizem-nos as regras da lógica e da experiência que se uma pessoa, na posse das suas capacidades cognitivas e de decisão, age de determinada forma, dentro de certas circunstâncias e com resultados por si domináveis, é porque quer agir dessa forma, nessas circunstâncias e pelo menos admite o resultado como consequência provável da sua conduta.

Assim sendo, seja partindo das premissas dadas como assentes pelo Tribunal a quo, seja partindo dos factos tanto quanto á factualidade objetiva, como quanto ao estado subjetivo e às capacidades do arguido, acima expostos – nomeadamente, dando como provado que o mesmo teve as condutas de abuso sexual acima referidas – forçoso será concluir:

- que o arguido agiu com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, que sabia que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade, que sabia que a ofendida carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, bem como que sabia que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da ofendida na esfera sexual;

- que o arguido sabia que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos atos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- que em todas as situações acima descritas, o arguido agiu de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.

Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93 - In B.M.J. 324/620 - “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência” razão pela qual a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados, bem como e essencialmente das declarações prestadas pela ofendida e dos depoimentos prestados pelas testemunhas suprarreferidas, quanto ao contexto em que os mesmos ocorreram.

Tem-se por base o que a ofendida BB, além do mais nas declarações para memória futura prestadas em 04/11/2022, constantes da plataforma Citius (ficheiro 20221104144307_4171544_2870428), referiu-se à relação familiar com o arguido, entre o mais, nos seguintes passos:

- ao minuto 03:50 em diante:

Refere que o arguido casou com a sua mãe em 2020, depois de uma relação de namoro desde 2018 e de terem ido viver todos juntos para a Costa Rica em Dezembro de 2019;

Tal está em conformidade com o já referido assento de nascimento junto a fls. 17 a 19, do qual resulta averbado tal casamento ocorrido em 02/09/2020;

- ao minuto 11:30 em diante:

Esclarece que o arguido foi para a Costa Rica em Agosto de 2019 e a ofendida, a sua mãe e a irmã juntaram-se-lhe em Dezembro do mesmo ano, indo residir todos juntos para um apartamento, ali permanecendo cerca de 9 meses;

- minuto 33:50 em diante:

Explica como vieram da Costa Rica para Portugal, indo residir para uma casa de propriedade do avô na ..., em Outubro de 2020, sendo que nessa altura vieram apenas a ofendida, a sua mãe e a sua irmã.

- minuto 38:20 em diante:

Esclarece que o arguido se lhes juntou em Janeiro de 2020.

- minuto 39:44 em diante

Esclarece que o arguido, em Portugal, ficou a morar na mesma casa que a ofendida, a sua mãe e a sua irmã.

Nessas declarações, a ofendida igualmente descreve a forma como via o arguido, quer a posição deste no agregado familiar, quer na sua relação em particular consigo:

- minuto 28:45 em diante:

Depois de indagada o que sentia, nomeadamente em relação ao arguido, BB refere: “Ao início foi como me afastei, não queria nada dele, mas depois ele começou a procurar. E depois de algum tempo eu acho que comecei a gostar.

Depois de um tempo que isso começou eu fiquei coiso convencida e comecei a gostar. E houve uma época em que eu via o AA tanto como homem como como pai”;

Também o depoimento da testemunha DD em audiência de julgamento de 13/12/2023, se reporta a esta matéria;

Na sessão da manhã (registado na plataforma Citius: ficheiro 20231213100554_4275629_2870423), indagada sobre a relação do arguido com as suas filhas, referiu que ele sempre a ajudava muito com as meninas, sendo todas as decisões relativas às mesmas combinadas entre os dois – ao minuto 31:28 (da sessão da manhã) em diante;

Na sessão da tarde (registado na plataforma Citius: ficheiro 202312131439_4275629_2870423), esclareceu mais aspetos de tal relação – nomeadamente, ao minuto 27:31 em diante (da sessão da tarde), depondo sobre a relação do arguido com a ofendida BB referiu que era uma relação semelhante à de pai e filha; que tinham uma boa relação; que faziam várias atividades juntos, em família.

Analisados tais elementos conjugadamente, à luz das regras da experiência e da normalidade para idêntico tipo de situação, e visto o que ficou dado como provado nos pontos 2. a 3. e 5. (na parte relativa às condições pessoais e sociais) dos factos dados como provado, forçoso será concluir que, de facto, o arguido assumia naquele agregado familiar e assim também em relação à ofendida BB, a posição de figura paterna e que por via disso a ofendida nele depositava a sua confiança, bem como que enquanto figura paterna o mesmo era em relação às filhas menores da DD uma figura de autoridade.

Assim sendo, entende-se que o Tribunal a quo, com base na prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a acima transcrita (declarações da ofendida BB e declarações prestadas pela testemunha DD) deveria ter dado como provados pelo menos os seguintes factos:

- Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.

Por fim e porque decorre do supra exposto deve igualmente dar-se como provado que, e relativamente ao pedido de indemnização civil:

L. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm.

M. Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva.

N. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação no exercício da sua sexualidade.

Como se refere no acórdão desta Relação de 28.02.24, proc. n º 3090/21.9T9VNG.P1, “(…), o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida..

Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [4]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.

O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.

A este propósito refere Germano Marques da Silva [6] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.

Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf., no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).

Contudo, e como observa o Conselheiro António Gama [7], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância. Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [8], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”.[9]

Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

(…)

De todo o modo, diremos que a medida do valor da prova prestada por depoimento, como é o caso das declarações dos arguidos e das informações prestadas por testemunhas, mede-se em credibilidade, fator que será composto pelos seguintes subfactores: seriedade (boa motivação da testemunha para depor); isenção (falta de interesse na causa – pode estar ligada à anterior); razão de Ciência – fonte de conhecimento dos factos e coerência Lógica.

Contudo, é no âmbito da coerência lógica que podem e devem ser ponderados aspetos como o rigor (total coerência interna) e a forma objetiva (ausência de divagações, ou depoimento sobre factos irrelevantes).

Se a lógica pura e simples, não der a resposta completa (por exemplo, um facto pode ser possível, mas de difícil verificação), aí entra a livre apreciação do juiz, a sua livre convicção, segundo regras de experiência.

Refira-se, ainda, que o depoimento prestado pelo arguido em processo penal deve ser também valorado à luz dos fatores de credibilidade com que se julga a prova testemunhal, embora tendo em conta as especificidades decorrentes do seu estatuto.

O arguido é, como se sabe, a “testemunha” principal do processo, pois que ele mais que outra pessoa está em posição para relatar – ou não – os factos de que vem acusado. Porém o arguido tem um estatuto processual especial no nosso direito, não sendo obrigado a prestar declarações nem sequer a falar verdade.

E, é com base nestes pressupostos que iremos avaliar as versões em oposição nos autos.

Ora, o Arguido prestou declarações e negou em absoluto a prática dos factos que lhe são imputados, dando conta da sua surpresa perante tal imputação.

Situação que se afigura normal segundo as regras da experiência em 99% dos casos nunca o prevaricador assume o abuso sexual, sobretudo quando estão em causa crianças e jovens pertencentes ao seu agregado familiar.

Relativamente Relatório de avaliação da credibilidade do testemunho da ofendida junto aos autos, sempre se dirá que o mesmo é perentório ao afirmar a descrição coerente e consistente da situação de eventual abuso; sentimentos associados ao evento; sensação de alívio em relação ao passo de revelação, mas com sentimentos de tristeza pela consciencialização face às consequências da revelação na dinâmica familiar; capacidade crítica e de juízo face à situação.

Assim, especificamente em relação ao discurso da examinanda e, de acordo com a literatura científica (Análise de Conteúdo Baseada em Critérios (CBCA) que permite analisar se os relatos cumprem critérios que são reconhecidos pela investigação psicológica e cuja presença indica uma probabilidade alta de corresponder a um facto real – Alexandra Anciães, 2006) considerou que os relatos apresentados pela ofendida, em postura natural, com um discurso coerente e consistente, reúnem critérios de credibilidade, não revelando indicadores de mentira e/ou simulação. Os seus relatos apresentam uma estrutura lógica (as declarações prestadas são no seu conjunto coerentes, lógicas, plausíveis, admissíveis, com carácter realista e as diversas partes ‘encaixam’).

Outro fator que aponta para a credibilidade é o facto de a ofendida admitir falhas de memória quanto à data exata, por exemplo, ou pormenores mais específicos do momento e as explicações apresentadas por si para algumas das incongruências mostram-se plausíveis.

Nas falsas declarações procura-se dar uma boa imagem e por isso, por norma, não se assume facilmente falhas de memória, nem se coloca em causa afirmações já feitas ou se corrige qualquer situação. Ora, a ofendida fez exatamente o contrário, admitindo inclusive que a certa altura passou a gostar dos encontros sexuais e corrigindo aspetos do seu discurso, relembrando outros à medida que ia sendo questionada.

Dispõe ainda o art. 131.º do C.P.P. que, sendo um menor de 18 anos a testemunhar, pode haver perícia sobre a sua personalidade, e isto para quê? Para auferir se o menor tem características de personalidade de quem presta o depoimento, isto é, se sabe falar e esclarecer as coisas devidamente, se tem a memória e a atenção apuradas e a capacidade de contradizer o investigador, e se é capaz de efetuar a “distinção entre a fantasia e a realidade, e a distinção entre a verdade e a mentira”. Isto porque, um dos problemas encontrados no depoimento dos menores é justamente esse, distinguir a verdade da mentira ou a fantasia da realidade.

O tribunal não pode olvidar que embora o relatório de avaliação não esteja imune às exigências da livre apreciação da prova, emite um juízo técnico científico, presumindo-se que a especialista que o fez esteja mais habilitada a extrair as conclusões científicas e técnicas corretas. Ora o tribunal a quo não discordou do relatório de avaliação junto aos autos, mas enfatizou erradamente certos aspetos da mesmo como acima se descreveu.

Decorre ainda das regras da lógica e da experiência que naturalmente em face de uma acusação grave como é esta que imputa estes factos ao Arguido, este se tenha aprestado a negar, em bloco, os factos que lhe são imputados.

Na grande maioria dos crimes cometidos no seio da própria família é sintomática a dimensão de poder/ascendência, bem como as consequências que isso comporta para as vitimas, sendo uma evidência a continuidade e a frequência no tempo deste tipo de comportamentos, pelo que o depoimento da vitima é fundamental.

Como atrás referimos as declarações da vitima apresentam-se consistentes e coerentes e estão corroborados cientificamente e pela sua postura processual, não querendo desistir apesar de pressionada para tal pela própria família alargada. Desenvolveu uma postura de consciencialização do errado da situação e da necessidade de proteger a irmã mais nova. Arranjou coragem de denunciar recorrendo ao seu pai que se encontrava no estrangeiro. Constatou os receios que já tinha de que não quisessem acreditar nela e de que se pudessem virar contra ela. Forneceu sinais à progenitora entregando-lhe roupa com sémen.

Receou a divisão da família e receios de abandono, tal como constatou veio a acontecer.

É importante não olvidar que a memória mais do que um processo de replicação é um processo reconstrutivo, ou seja, a evocação dos factos é uma reconstrução a partir de informação que se guarda do ocorrido e que se vão preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos vividos pela depoente, bem como com a reativação e reorganização de diversas informações, ou seja, a memória armazena interpretações da realidade não sendo um registo da realidade em si. É o registo de uma experiência pessoal da realidade. E no caso de eventos como o dos autos, com significado pessoal, a memória é muito melhor.

Contudo a sua evocação é influenciada por múltiplos fatores, tais como circunstâncias pessoais, idade, estado psíquico no momento, conhecimento prévio, expetativas, esquema de catalogação da experiência vivida, tempo decorrido, informação pós-evento, o modo como se pergunta, pelo que se converge na ideia que um testemunho, ainda que verdadeiro, não está isento de erros.

Ora o depoimento da vitima destes autos não permite concluir que estivesse a mentir, ou que a sua memória estivesse distorcida.

Por sua vez o tempo de exposição ao evento a que foi sujeita a vitima destes autos teve reflexos na sua memória, permitindo-lhe estar mais atenta ao mesmo, o que lhe permitiu relatar e recordar informação circunstanciada, mas não tem necessariamente que ser sempre consistente, dado o decurso do tempo, pois nem todos os detalhes do acontecimento se recordam por igual, vg. recordam-se melhor os primeiros e os últimos eventos do que os intermédios.

Depois a emoção, e este caso é emocional, promove a acuidade da memória, como foi o caso, mas não garante a sua exatidão, podendo ocorrer erros de memória, mas que não afetam a credibilidade do depoimento. Segundo o estudo “hipótese de Easterbrook” as pessoas que vivem este género de acontecimentos, além de terem uma memória mais exata para os pontos centrais do acontecimento, tendem a recordar menos os detalhes periféricos do evento. Haverá que não esquecer a natureza repetida do evento, que pode levar a uma descrição genérica do modo como ocorria a ofensa. No caso concreto é sintomático que a ofendida conseguiu descrever pormenores e inclusive das conversas tidas pelo agressor para que não denunciasse invocando o risco da destruição da família. Uma vitima como o caso da ofendida que se recorda de muitos detalhes e contextualiza-os, com memórias claras e duradouras, deve ser reputada como credível.

Mais quando um evento é contado muitas vezes, como foi o caso destes autos, pode emergir nova informação que não foi previamente relatada e até pode ser omitida outra previamente relatada. A explicação reside em que cada tentativa de recuperação extrai uma amostra de informação finita dentro da representação mnésica de um evento de modo que as inconsistências no relato de unidades de informação resultam,(i) do facto de se aceder a diferentes aspetos da representação mnésica bem como (ii) de variarem as pistas que melhoram a recuperação de unidades particulares de informação, pelo a existência de reminiscência é comum e, frequentemente, exata, vide “Prova testemunhal” de Luís Filipe Pires de Sousa, Almedina, ed, 2017, pág. 36. Eis a razão pela qual o tribunal a quo não deveria ter também dado enfase aos novos factos relatados pela ofendida para concluir pelo abalo na sua credibilidade. Aliás, ela justifica-o dizendo, ter pensado que já os havia referido, exatamente porque são a repetição de tudo aquilo que já havia replicado.

E importa referir que no caso dos abusos sexuais, maioria das vitimas não os denuncia imediatamente e cerca de um terço só o faz quando atinge a maioridade ou perto dela, como foi o caso dos autos.

A falta de denúncia mais precoce deve-se sobretudo à idade, esquecimento, culpa, embaraço, medo de represália, pacto de silêncio.

Ora, no caso concreto verifica-se um pouco de tudo mormente, idade, culpa, medo de represálias e pacto de silêncio. A ofendida invoca conversas com o agressor para não denuncia, invoca o medo de ficar sem casa e sem suporte familiar, já para não falar na sua idade.

Não o contou expressamente à mãe, nem a qualquer familiar a não ser ao pai que se encontrava longe e este serviu de intermediário pedindo à avó materna que a indagasse e só neste momento é que faz o relato. Isto revela uma enorme credibilidade do seu depoimento. Não se pode esquecer que quando existe um relacionamento entre uma jovem ou criança com o agressor, neste caso o seu padrasto, aquelas são mais relutantes em revelar os abusos e a provável inexistência de apoio parental também produz um efeito prejudicial no relato da agressão. Estão presentes todos os condimentos para repelir qualquer dúvida sobre o que aconteceu a esta ofendida.

A ofendida revelou um discurso consistente, detalhado (é impossível para um mentiroso adornar as suas declarações com falsos detalhes), com informação relevante e contextualizada, com convicção e até assumiu responsabilidade pelo seu comportamento, ao afirmar que estava apaixonada pelo agressor.

Os eventos por ela descritos têm uma base temporal e espacial, sendo que a ações descritas no seu testemunho relacionam-se com outras atividades habituais ou diárias da testemunha o que também aponta para a sua credibilidade.

O aparecimento de complicações inesperadas durante o evento, como por exemplo o aproximar da irmã, o admitir que a porta do quarto poderia não estar fechada à chave e que a levou a levantar-se e o agressor a fingir que estava a dormir como era habitual, credibiliza a declaração da ofendida. Quem inventa uma história é menos capaz de inserir no relato características relevantes como complicações, interrupções imprevistas ou uma dificuldade na finalização espontânea do evento antes do seu fim previsível.

Contar com pormenor que quando o arguido não usava preservativo, o que não era a regra, o mesmo ejaculava fora e corria para o quarto de banho, foi um pormenor espontâneo e mais um detalhe que reafirma a credibilidade do depoimento da ofendida.

Quando a mesma diz que depois de ter perdido a virgindade com um outro jovem preferiu e disse ao arguido para a penetrar vaginalmente em vez do coito anal porque lhe era mais inconfortável por lhe causar dor, revela, mais uma vez, a credibilidade do seu depoimento.

Em suma, e porque as coisas têm que ter lógica e ser coerentes, conformes com as regras da experiência e os critérios da normalidade, não se crê que a matéria probatória tal como percorrida e expressa em sede de decisão a quo, permita tutelar a demonstração ou sequer a dúvida. Em suma, impõe-se o afastamento da dúvida tal como o tribunal a quo a plasmou para absolver o arguido e a alteração da matéria fáctica.

Esta alteração da matéria fáctica não constitui algum problema sob o ponto de vista processual. Como é assinalado no acórdão do TRC de 17/5/2017 (consultável em www.dgsi.pt), o Tribunal pode formar a sua convicção apenas num único depoimento, mesmo que se trate do ofendido/assistente - importante é que este o preste de forma séria e credível e o Tribunal de forma clara e concisa explicite as razões do seu convencimento.

De resto, como é justamente salientado no acórdão do TRC, de 4/3/2020 [20], “há que atender ao facto de a prova da verificação dos factos nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, ser particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador.”

Com efeito, normalmente sucede nestes casos que o único elemento de prova existente resume-se às declarações dos menores ofendidos, podendo coexistir alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.

Donde resulta que o tribunal a quo não podia ter dúvidas sobre a prática dos factos imputados na acusação, não pelas razões que invocou como suprarreferimos, mostrando-se violador das regras da experiência comum.

Como é salientado por Inês Sarmento Rodrigues, na dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa para obtenção do grau de Mestre em psicologia, intitulada “ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR: ORIENTAÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO DA CRIANÇA NO SISTEMA JUDICIAL” [21], “A competência ou capacidade da criança para testemunhar é uma das dimensões avaliadas e postas em causa no seu depoimento. Não raras vezes, o sistema jurídico assume que as crianças possuem poucas competências enquanto testemunhas em situações crime, mas a investigação tem demonstrado que estas podem recordar e contar as suas experiências com precisão, desde idade precoce, revelando elevadas capacidades testemunhais e comunicacionais (Soeiro, 2003; Ribeiro, 2009). Variáveis como a mentira, a fantasia, a memória, a linguagem, a vulnerabilidade, a sugestionabilidade e a credibilidade são, igualmente, muitas vezes apontadas pelos investigadores como fatores que desvirtuam a autenticidade do testemunho da criança. No entanto, vários autores sugerem (e.g., Lamb, Strenberg, Orbach, Hershkowitz e Esplin, 1999; Soeiro, 2003) que variáveis como a sugestionabilidade podem ser contornadas pela correta atuação dos profissionais envolvidos, tendo surgido, neste âmbito, vários protocolos visando testar as competências da criança e despistar relatos falsos. A este respeito, vários estudos demonstram também que as crianças, tendencialmente, não mentem sobre a ocorrência de situações de abuso, não fantasiam acerca de situações abusivas, nem fabricam esse tipo de acontecimentos (e.g. Ribeiro, 2009). Ainda assim esta é uma dimensão que gera incertezas no sistema judicial e, por vezes, na família da criança. (…)”.

É de notar que a doutrina que atribui às crianças tendência para mentir ou para memórias falsas está já ultrapassada pela investigação científica. Com efeito, e como nos dá conta Maria Clara Sottomayor [22], esta demonstra que as crianças não têm tendência a mentir e que revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, assim como uma capacidade de discernimento superior à que lhes é frequentemente atribuída, percebendo a diferença entre a verdade e a mentira, geralmente, a partir dos 4 anos.

Ora, um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade.

Fatores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, mas sobretudo a sua completude e verossimilhança, constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração.

Em conclusão a prova indicada pelo recorrente impõe uma outra convicção o que, à face do disposto no art. 412º nº 3 b) do CPP justifica modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso nos termos supra exarados.


*

Enquadramento jurídico.

Do crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável.

Socorremo-nos, por estar correto do que discorreu o tribunal a quo.

O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, na forma agravada, p.p. pelo artigo 172º, nº 1 alínea b) e 177º, nº 1 alínea b) do Código Penal.

Prevê o referido preceito legal que «1 - Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos nºs 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos: (…) b) Abusando de uma posição de manifesta confiança, de autoridade ou de influência sobre o menor; (…) é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.».

Por seu turno, prevê o artigo 171º, nº 1 do Código Penal que «Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos».

O bem jurídico protegido por este tipo de crime consiste na liberdade de autodeterminação sexual de jovem menor entre os 14 e 18 anos de idade e o aproveitamento da confiança de quem está próximo e consigo interage diariamente como figura paternal.

Vale por dizer que se pretende proteger o desenvolvimento sexual, preservando-as do envolvimento prematuro em atividades sexuais e protegendo-as da quebra de confiança entre vitima e agressor, expondo-a a avanços sexuais por parte de quem o jovem confia, na medida em que a posição do agressor cria e intensifica essa confiança ao ponto de condicionar a liberdade de autodeterminação sexual da vitima. É a situação de particular vulnerabilidade gerada por essa posição do agressor, de pessoa confiável aos olhos da vitima, e o abuso que dela faz, o aproveitamento que retira desses laços intensos de confiança para concretizar intentos sexuais, que justifica a proteção – cfr. Crimes Sexuais, Livraria Almedina, Coimbra, 4ª, ed. 2023, pág. 227 e segs.

A conduta típica ante a possibilidade de o comportamento criminoso poder afetar o livre desenvolvimento da personalidade do menor aponta-se para um crime de perigo abstrato. Nessa medida, o crime fica consumado ainda que tenha inexistido um perigo concreto para o referido desenvolvimento.

O tipo objetivo de ilícito pode ser materializado através da prática (ainda que consensual) das seguintes condutas: i) ato sexual de relevo e (no caso do nº2 do preceito) ii) com cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.

No que concerne a ato sexual de relevo, é pacificamente entendido na doutrina como na jurisprudência, que constitui todo o ato cujo modo ou efeito tenha conotação sexual sob o ponto de vista da vítima.

Importa saber se a conduta apurada do arguido constitui ato sexual de relevo a que se reporta aquele nº 1 do artigo 171º do Código Penal.

O Código Penal não nos dá uma densificação do conceito de ato sexual de relevo, nem nos fornece uma extensa casuística exemplificativa.

A este propósito, referem SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, in Código Penal, Tomo II, Rei dos Livros, 2000, pág. 368, que «não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano (…) Estão nesta situação, por exemplo, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., para satisfação dos apetites sexuais do agente».

No mesmo sentido, FIGUEIREDO DIAS (in Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, 1999, Coimbra Editora, pág. 449) refere que é de excluir do ato sexual de relevo não apenas os actos «insignificantes ou bagatelares», mas também aqueles que não representem «entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima» (v.g. «actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima»).

Embora não seja pacífica a caracterização do conceito, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por diversas ocasiões, ponderado que o ato sexual de relevo é um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das conceções reinantes e da própria evolução dos costumes (vide, entre muitos outros, os Acórdãos de 31 de Outubro de 1995, proc. nº 48119, e de 12de Julho de 2005, acessíveis em www.dgsi.pt), parece-nos claro que os atos praticados pelo arguido o integram inequivocamente, até porque, sendo o sujeito passivo uma menina, a conduta do arguido, claramente de cariz sexual, é de molde a prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.

Porque muito elucidativo e esclarecedor, fazemos uso dos ensinamentos de RUI DO CARMO (in O abuso Sexual de Menores – Uma conversa sobre justiça entre o direito e a psicologia, Almedina, 2002, pág. 35), ao referir que «Do conceito de acto sexual de relevo está, assim excluída qualquer conotação moralista, desde logo porque é hoje claro que estes crimes protegem bens jurídicos pessoais e não uma qualquer concepção de moralidade sexual.

É, pois, um acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que contende, com importância, com a liberdade ou a autodeterminação sexual de quem o sofre ou pratica. Se nalguns casos a sua caracterização se torna clara (…), noutros exige uma cuidada ponderação da situação concreta. Mas estaria condenada ao fracasso qualquer tentativa de fazer uma listagem das condutas que integram a noção de acto sexual de relevo (…).

Na análise de cada conduta ter-se-á de tomar em consideração o carácter objectivo do acto, a sua adequação social, o seu reflexo sobre a vítima – no fundo, verificar se foi ou não, na situação concreta, violado o bem jurídico protegido pela norma. Será indiferente a idade da vítima e o seu grau de desenvolvimento físico e psicológico? Serão indiferentes o ambiente social e os valores culturais do meio em que o menor esta inserido e em que os factos aconteceram? Serão indiferentes as concretas circunstâncias do caso? Qual o relevo a dar, nesta ponderação, à referência aos valores sociais e modos de comportamento estatisticamente dominantes?

No fundo, precisamos de saber mais sobre o abuso sexual do que aquilo que diz a lei penal, para que sejamos capazes de a aplicar correctamente. Até para que, na análise de cada situação concreta, se percorra o correcto caminho, que consiste em partir dos factos para a sua caracterização jurídica, e se evite a tentação de interpretar os factos já à luz do rótulo (da expressão “interdita”) de abuso sexual»

Neste âmbito, pondera SÉNIO ALVES (Crimes Sexuais, pág. 8), o seguinte: «O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? (…) Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidos (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo). São aquilo que vulgarmente se designa como preliminares da cópula e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual, pelo que o acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (…) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas».

Por outro lado, como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Setembro de 2007, igualmente acessível em www.dgsi.pt, «a lei presume que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (…). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei».

Igualmente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de Outubro de 2009 (in www.dgsi.pt), ao esclarecer que «I-Acto sexual de relevo é toda a acção que tenha uma conotação sexual e seja suficientemente ofensiva ou condicionante da liberdade e da autonomia sexual que cada um tem pleno direito a preservar e a desenvolver. II.- No crime de abuso sexual de criança protege-se essencialmente a sexualidade durante a infância e o começo da adolescência, mediante a preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento. III.- Comete um crime de abuso sexual de criança aquele que, sabendo que a menor tem menos de 14 anos de idade, apalpa-lhe umas vezes os seios desta e, nas mesmas ocasiões ou noutras, pressiona a sua zona púbica (vagina), ainda que o faça por cima das cuecas».

Ora, no caso concreto, o arguido teve relações vaginais completas com a ofendida, à data dos eventos maior de 17 anos de idade pelo que dúvidas não há que praticou ato sexual de relevo, tendo presente o que dispõe o nº 2 do mesmo artigo 171º (aplicável à situação dos autos face ao disposto no artigo 172º, nº 1) ao prever que «2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos».

Não restam dúvidas que nos crimes tipificados no capítulo V do nosso Código Penal não se encontra qualquer referência a qualquer conceito de índole moral. Usando os ensinamentos de JOSÉ MOURAZ LOPES (in Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual no Código Penal, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 16-17) «O direito penal, tem de manter distâncias em relação aos programas de ética sexual, qualquer que seja a sua orientação. (…) Importa não esquecer que é a liberdade sexual de um individuo que está em causa e que é tutelada e não a liberdade sexual de uma comunidade». Neste contexto, a lei deve ser interpretada em sentido absolutamente objetivo e, quando possível, de acordo com os critérios médicos aplicáveis.

Por fim, no caso dos autos o arguido vem acusado pelo crime na sua modalidade agravada, nos termos do disposto no artigo 177º, nº 1 alínea b), de acordo com o qual «1- As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: (…) b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, (…) e o crime for praticado com aproveitamento desta relação».

«A abordagem da questão tem de começar por apurar o que deve entender-se por “relação familiar” para este efeito.

É patente que, com a referida alteração, teve-se em vista alargar o âmbito da alínea a) do mesmo n.º 1 do artigo 177.º, passando a ser abrangidos pela alínea b) outros parentes de grau mais afastado do que os parentes em segundo grau a que alude aquela alínea a).

(…)

A razão de ser (a teleologia) da disposição normativa agravante é a mesma, quer na hipótese da alínea a), quer na previsão da alínea b): a existência de uma proximidade relacional entre o agente e a vítima que acentua a carga de ilicitude da conduta punível (assim, Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal – Parte Geral e Especial, com Notas e Comentários”, 2.ª edição, p. 782).

Nas situações de violência sexual infantil intra familiar, a conduta do agente é particularmente desvaliosa porque, quando era suposto que à criança fosse proporcionado um ambiente protector e afectivo (e ela confia que no ambiente familiar está segura e vai receber amor e carinho), ele trai essa confiança, violentando-a com o abuso sexual que comete sobre ela.

A essa violência, que deixa marcas indeléveis na criança, acresce a tentativa de ocultação, fenómeno que pode ser ostensivo ou manifestar-se de forma mais ou menos velada, mas que se traduz sempre em pressões, chantagens e pode chegar mesmo à ameaça física e/ou psicológica, incutindo-lhe medo e fazendo-a sentir-se culpada pelas possíveis consequências da sua denúncia.

Os possíveis agentes activos dessas situações de violência sexual intra familiar não se confinam aos parentes e afins (até ao 2.º grau) a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal. Situações em que o agressor é um tio e ofendido(a) um(a) sobrinho(a) são recorrentes e o legislador não podia deixar de ter em conta essa realidade» - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.05.2016, relator NETO MOURA, processo 2334/14.8JAPRT.P1, in www.dgsi.pt.

No que diz respeito ao tipo subjetivo de ilícito, há que ter em consideração que se trata de um crime doloso. Como tal, passível de ser punido sob qualquer das formas daquele: direto, necessário ou eventual, atento o disposto no artigo 14.º do Código Penal.

O Arguido conhecia os factos dados por provados factos e agiu da forma porque o fez, usando a confiança e sua proximidade enquanto padrasto, sabendo que cometia factos punidos criminalmente.

Não ocorrem, enfim, no caso concreto quaisquer circunstâncias que justifiquem ter o arguido agido pela forma como o fez, nem que excluam a sua culpa.

Ele atuou com consciência de que a sua conduta não lhe era permitida por lei, devendo o seu procedimento ser objeto de juízo de censura penal por ter agido como agiu.

Como tal, cometeu pelo menos 15 crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravados, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14º, 26º, 1ª parte, 171º, n.º 2, 172º, n º 1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, na medida em que a factualidade também permite subsumir a conduta do Arguido a esta última previsão normativa, porquanto compreendida no âmbito da relação familiar e de coabitação estabelecida com a vítima, a qual proporcionou a sua ocorrência.

Na verdade, tal com sustentado no venerando Acórdão proferido no Proc. 55/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt, ao apreciar situação similar “(…) Hoje o legislador apenas refere em termos latos “relação familiar” sem a especificar. Esta alteração visou alargar o âmbito da agravação prevista na norma e daí a utilização do conceito relação familiar, quando entre o agente e a vítima exista uma proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, nela se incluindo a relação tio/sobrinho decorrente de afinidade, mesmo sendo em terceiro grau por afinidade na colateral (…) o que o legislador exige é que exista uma relação de proximidade entre o agente e a vítima e que o mesmo se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da acção. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação de proximidade”.

O mesmo raciocínio se aplica para a relação padrasto/enteado, com os presentes autos.

Por outro lado, entende-se que o Arguido, estando apurado o circunstancialismo temporal dos atos por si cometidos, incorrerá na prática de tantos crimes quanto os atos praticados. Como tal, afasta-se a punição ao nível da configuração dos apontados crimes como “exauridos”, ou de “trato sucessivo”, cfr. Ac. STJ, proc. 19/15.7JAPDL.S1 de 06.04.16. in www.dgsi.pt.

Ora, sem necessidade de maiores delongas face aos factos dados com provados e não provados concerne, claro se torna que os mesmos integram o quadro legal descrito, configurando a prática de crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados face à situação familiar (padrasto/enteada) e de coabitação entre arguido e ofendida, p.p. pelo artigo 172º, nº 1 alínea b) e 177º, nº 1 alínea b) do Código Penal.

Penas concretas.

A moldura penal para cada um dos 16 abusos sexuais, tendo presente o disposto no art. 30º, n º 1 e 3 do Código Penal, dado que estamos perante bens eminentemente pessoais é de 01 ano e 04 meses a 10 anos e 08 meses de prisão.

Nos termos do artigo 40º, do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”

Pelo que, a reação criminal ao facto ilícito nunca poderá ultrapassar a medida da culpa, e terá como objetivo a proteção de valores, a pacificação social e primacialmente a reintegração do agente na sociedade.

Donde resulta que o fundamento da pena se encontra estribado na culpa. Esta tem como função limitar a medida da pena, a qual é temperada por exigências de reintegração do agente na sociedade.

A culpa “enquanto pressuposto da pena, definirá o seu limite máximo, o pano de fundo, a moldura dentro, e só dentro, da qual as exigências da prevenção, como fins da pena, lhe fixarão a medida” - in DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português - as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993.

Na verdade, decorre dos princípios básicos do sistema jurídico-penal “de que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida” – in DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português - as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993.

Nos termos do art. 70º, do CP., “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Sendo que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele...”

A definição da pena a aplicar deve ser feita em várias fases.

Primeiro, deve-se achar a moldura penal abstrata. Para tanto, parte-se do tipo de crime que o Arguido cometeu e verifica-se se a moldura penal encontrada é modificada, ou substituída por outra, em virtude da ocorrência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes.

De seguida, deve o julgador, uma vez encontrada aquela moldura penal abstrata, achar dentro dessa moldura a pena que cabe ao caso concreto.

Quando haja ao dispor mais do que uma espécie de penas, por exemplo pena alternativa ou de substituição, deve o juiz escolher a pena a aplicar.


*

No presente caso, a moldura do crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, agravado, p. e p. pelos artigos 171º, nº 2, 172º, n º 1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, consiste em pena de prisão de 01 ano e 4 meses a 10 anos e 08 meses.

*

Atendendo às circunstâncias aduzidas no artigo 71º, nº2, daquele Código, atender-se-á à modalidade do dolo, a qual revestiu a forma mais intensa em todos os crimes em apreço.

De outra via, leva-se em consideração a tipologia dos atos desenvolvidos sobre a Vítima, e o lapso temporal em que os mesmos ocorreram.

Ao nível de desvalor de resultado o mesmo é elevado, ante as consequências psicológicas inculcadas na jovem.

A culpa do Arguido é acentuada visto reunir condições para adequar a sua conduta de acordo com o direito em todos os ilícitos cometidos.

Inexistiu qualquer ato de reparação ou arrependimento efetivo.

A seu favor o facto de não ter antecedentes criminais e estar bem inserido social e profissionalmente.

As exigências de prevenção geral são de acentuar sobremaneira, porquanto as mais das vezes as vítimas não se sujeitam ao procedimento criminal, quer por vergonha, quer por receio ou medo. O alarme social que este tipo de condutas desperta e a intolerância geral da sociedade para com os mesmos é enorme.

As exigências de prevenção especial não são grandes por inexistência de antecedentes criminais conhecidos.

Também não se pode esquecer que a vitima tinha 17 anos de idade e que também acedeu aos desejos libidinosos do arguido.

Assim, concatenando todos estes factores e atendendo à moldura penal acima sufragada, decide-se aplicar ao Arguido:

Por cada um dos 15 crimes de abuso sexual de menores agravados, p. e p. pelos artigos 172º, n º 1, al. b),171º, nº 2, e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, a pena de três (03) anos de prisão.


*

Das regras da punição do concurso.

Nos termos do Código Penal, nomeadamente do

Artigo 77.º

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.

No caso vertente, para além do que já deixámos escrito quanto às penas parcelares, importa atender que a atuação do Arguido derivou na prática de crimes que visam proteger o mesmo bem jurídico e cometidos sobre mesma vítima.

Por outra via, o Arguido não tem antecedentes criminais e encontrava-se socialmente inserido, sendo bem considerado pelos seus amigos.

A nível de relatório social, para além do mais, consta:

«1 – CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS

O arguido (39 anos, natural da Venezuela, praticante de armazém) reside na morada indicada nos autos, juntamente com a esposa (DD, 39 anos, funcionária de cooperativa) e com a filha mais nova desta (EE, 10 anos, estudante). À data dos factos descritos no presente processo, a filha mais velha da esposa (BB, 19 anos, alegada vítima no processo) integrava o agregado familiar, encontrando-se o núcleo familiar emigrado na Costa Rica, desde dezembro de 2019.

Dadas as dificuldades associadas ao processo de legalização, a esposa veio residir para Portugal, em outubro de 2020, juntamente com as filhas, passando a habitar um imóvel de propriedade dos pais daquela, sito na .... Passados cerca de quatro meses, o arguido reintegrou o agregado familiar. Em abril de 2022, data do início do presente processo, o casal alterou a residência para a atual morada, passando aí a residir, juntamente com a filha mais nova de DD.

Ao nível do enquadramento habitacional, o arguido mantém residência em moradia arrendada, com infraestruturas e boas condições de habitabilidade, e uma área de ocupação útil que, na perspetiva dos dois elementos do casal, assegura conforto e distribuição adequada de espaços comuns e individuais. O imóvel está inserido em zona habitacional da periferia, sem problemáticas sociais ou criminais.

O contexto e dinâmica relacional intrafamiliar é descrito, pelo arguido e pela esposa, como adequado e tranquilo, centrado na vivência de rotinas diárias de trabalho e acompanhamento das atividades escolares, havendo capacidade de articulação e de gestão de horários. A relação conjugal é, em todas as suas dimensões, vivenciada de forma positiva e gratificante, sendo descrita, pelos elementos do casal, como fonte de estabilidade e segurança. À data dos factos descritos nos autos, o casal debatia-se com alguma resistência, por parte dos pais de DD, face à relação afetiva que, entretanto, aqueles haviam estabelecido, facto que o arguido reconhece ter constituído um foco de ansiedade e pressão para o casal.

O arguido tem duas filhas (FF, 17 anos; GG, 11 anos), fruto de relação anterior, com quem mantém contacto, ainda que num registo de irregularidade, por motivo de incompatibilidade com a progenitora. Sobre esta relação, o arguido evidencia dificuldade na verbalização e na gestão emocional, descrevendo-a como experiência que o marcou de forma negativa, e que gradualmente tem vindo, na sua perspetiva, a superar.

De uma forma geral, e sem alteração sofrida no intervalo temporal decorrido entre a alegada prática dos factos e o momento atual, é associada ao arguido uma imagem social de adequação e de respeito para com as normas sociais e jurídicas vigentes. De acordo com a sua perceção, este processo não é conhecido no seu meio de residência, pelo que não sente, até ao momento, qualquer alteração na qualidade da interação que mantém com elementos da comunidade.

O arguido tem 9.º ano de escolaridade, e um registo de precocidade na integração em meio laboral. Sem registo de irregularidade ou períodos longos de desemprego, o arguido apresenta uma trajetória profissional em áreas diversas, referindo satisfação e motivação para o trabalho. Desde dezembro de 2021, exerce funções de praticante de armazém, em regime de contrato de trabalho.

Ao nível económico, o rendimento mensal fixo do agregado familiar, proveniente da atividade profissional dos dois elementos do casal, permite fazer face ao volume de despesas mensais fixas, não sendo referidas dificuldades ou limitações neste domínio.

Sem frequência de atividades de lazer ou recreativas, o arguido ocupa o seu tempo livre em contexto familiar. Mantém convívio pontual com elementos da comunidade próxima, num formato e periodicidade que caracteriza como adequado e pautado por cordialidade, sendo capaz de reconhecer características pró-sociais no seu grupo de amigos e conhecidos. Mantendo nesta análise a referência a data dos factos descritos no processo, não são observadas alterações neste domínio, quando consideradas as circunstâncias atuais.

2. REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO

O arguido demonstra capacidade de reflexão e descentração, denotando atitude crítica e censura moral quando confrontado com factos idênticos àqueles de que se encontra acusado, e perante os quais reconhece a importância e a necessidade de intervenção do Sistema de Justiça. De uma forma global, é observado um discurso congruente com um percurso vivencial norteado por valores e princípios socialmente adequados.

Do ponto de vista das repercussões da atual situação jurídico-penal, são destacados pelo arguido os sentimentos de tristeza, frustração e desgaste emocional, assim como a preocupação quanto ao impacto negativo que daí possa resultar, designadamente ao nível do contexto e dinâmica familiar.

3. CONCLUSÃO

Os dados recolhidos apontam para um processo de desenvolvimento em contexto familiar normativo, com veiculação de valores pró-sociais e presença/reconhecimento de figuras de referência. Ainda que sejam observados focos de vulnerabilidade e instabilidade ao nível da relação afetiva anterior, o atual enquadramento familiar é vivenciado como retaguarda de apoio, sendo a relação conjugal entendida, pelo arguido, como a principal fonte de segurança afetiva e de motivação para a prossecução de objetivos de vida. O arguido apresenta uma situação laboral que denota estabilidade e capacidade de manutenção de rotinas diárias.

Face ao exposto, na eventualidade de virem a ser provados os factos de que se encontra acusado, somos de opinião, caso a pena aplicada o permita, que o arguido reúne condições para a aplicação de uma medida penal probatória de execução na comunidade, com sujeição a plano de intervenção por estes serviços da DGRSP, especificamente direcionado para a problemática criminal em causa, beneficiando com a frequência do Programa da DGRSP - Programa para Agressores de Violência Sexual – Crimes Contra Crianças e Adolescentes – PAVS-CA.».

6. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.”

Ante o exposto, compaginando os vetores acima enunciados quanto às penas parcelares, sublinhando a natureza dos atos desenvolvidos, praticamente da mesma índole, o facto de terem ocorrido no mesmo local, a sua prolação no tempo, a personalidade do Arguido, o impacto sofrido no meio familiar e uma moldura penal abstrata compreendida entre 03 anos e 25 anos de prisão, ante o limite imposto pelo artigo 77º, nº2, do Código Penal (o cúmulo material atingiria 45 anos), decide-se aplicar-lhe uma pena única de 05 (cinco) anos de prisão.


*

Suspensão

Nos termos do artº 50º CP “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, podendo subordinar a suspensão ao cumprimento de deveres e observância de regras de conduta.

No caso em análise o arguido mantém uma vida social e de trabalho normal, estando bem inserido, evidenciando-se apenas a questão dos abusos sexuais relativamente a jovem vitima, a qual já não reside com o agente do crime.

O arguido AA não tem antecedentes criminais e está bem inserido social e profissionalmente.

Nessa medida afigura-se-nos ser possível emitir um juízo de prognose favorável ao arguido, posto que fiquem salvaguardados tais aspetos e se promova a consciencialização do mesmo com vista a evitar esses comportamentos problemáticos, para o que será de conceder ajuda ao arguido. Neste sentido cf. o ac. STJ de 18/12/2008, www.dgsi.pt, expressando uma jurisprudência constante, “… não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.”

Afigura-se-nos por outro lado que só esta pena de substituição tem essa capacidade preventiva e reintegradora, pelo que a pena de prisão será substituída por pena suspensa por igual período com a obrigação de ressarcir a vitima, em duas tranches, do mal que lhe fez.

Visa-se com tal também consciencializar o arguido do comportamento inadmissível que teve, como os traumas que criou em face do aproveitamento que fez da sua relação de confiança com a jovem com quem então vivia, de modo a evitar o cometimento de novos crimes em idêntica situação e motivação e a gerar a capacidade de vencer a vontade de os praticar, evitando as situações propícias, tanto mais que, sabemos, reside com irmã menor da vitima.

Entende-se ser por estas razões de suspender a execução da pena pelo prazo de duração da pena.

Penas acessórias.

Dispõe o Código Penal o seguinte:

Artigo 69.º-B

Proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual

1 - Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre dois a 20 anos, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima não seja menor.

2 - É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.

3 - É condenado na proibição de exercer funções ou atividades públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, nos estabelecimentos previstos no n.º 1 do artigo 166.º, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto no artigo 166.º

Artigo 69.º-C

Proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais

1 - Pode ser condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre dois e 20 anos, atenta a concreta gravidade do fato e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima não seja menor.

2 - É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.

3 - É condenado na inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, praticado contra descendente do agente, do seu cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges.

4 - Aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente às relações já constituídas.

A realidade de facto que a norma interdita reside na proximidade e aquisição de autoridade sobre menores que necessariamente resultam da obtenção pelo condenado das posições subjetivas decorrentes dos institutos jurídicos proibidos. A norma responde, pois, a necessidades preventivas, de índole geral e especial, suscitadas pelas infrações e realiza uma função de proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade associada a estatuto de menoridade e de dependência (artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa).

Como bem refere o ac. N º 688/2024 do Trib. Const. “No que tange a primeira das referidas penas acessórias, incluem-se no âmbito da interdição todos os cargos e atividades que, dotados de um mínimo de estabilidade (ou seja, excluindo atos esporádicos ou circunstanciais), importem contactos com pessoas de idade inferior a 18 anos (“profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores”) (v. Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 35/2016; B. L. FRIAS, Regime Jurídico dos Crimes Sexuais contra Menores no Âmbito Familiar, 2021, Univ. Coimbra, pp. 37-38; J. M. LOPES e T. C. MILHEIRO, Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, 2ª ed., 2019, Almedina, p. 263).(…)

Quanto à segunda, a proibição abrangerá a adoção [artigos 1973.º e ss, do Código Civil (CC)], a representação de menores em regime de suprimento da incapacidade em razão da idade [artigos 122.º e 124.º do Código Civil (CC)], o acolhimento familiar [artigo 46.º da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP], o apadrinhamento civil (Lei n.º 103/2009, de 11 de Setembro) e todas as medidas provisórias relativas a crianças ou jovens em situação de perigo que confiram ao condenado uma posição de responsabilidade e inerente supremacia sobre as mesmas (“entrega, guarda ou confiança” – artigos 35.º, n.º 1, alíneas b), c), e) e f), 38.º-A, 40.º, 43.º, 46.º e 50.º, todos da LPCJP) (cfr. artigo 69.º-C, n.º 2, do CP).(…)

As normas em causa foram introduzidas na ordem jurídica pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, que transpôs a Diretiva 2011/93/EU (do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011). Com o objetivo declarado de prevenir a prática de crimes sexuais contra crianças e jovens no espaço da União, este instrumento de Direito europeu vinculou os Estados membros a implementarem quadros legais que assegurassem que a condenação por infrações desta natureza (artigos 3.º a 7.º do diploma) importasse a inibição dos agentes de desenvolverem atividades que importassem contactos regulares com crianças ou jovens, ao menos de cariz profissional, tendo em vista prevenir o perigo inerente de vitimização de pessoas em situação de vulnerabilidade (artigo 10.º da Diretiva 2011/93/EU).

São tributárias da necessidade de proteção da integridade pessoal de indivíduos em fase de desenvolvimento e de aquisição de maturidade, observada de forma muito particular no âmbito do impacto que atos sexualizados com adultos podem representar no seu desenvolvimento psico-social, isto durante uma fase em que não dispõem ainda de instrumentos intelectuais e emocionais que lhes permitam gerir adequadamente essa vertente da sua vida íntima (M. JOÃO ANTUNES, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Dir. J. FIGUEIREDO DIAS, Tomo I, p. 554 J. R. VIVEIROS, op. cit., pp. 74-75; sobre o crime de importunação sexual, v. P. CAEIRO e J. M. FIGUEIREDO, Ainda dizem que as leis não andam: reflexões sobre o crime de importunação sexual em Portugal e Macau, RPCC, 26.º, n.ºs 1 a 4, 2016). Arvora-se aqui em bem jurídico protegido e referente legitimador de ingerência em direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) a liberdade de desenvolvimento da personalidade na dimensão sexual em especial contexto de vulnerabilidade decorrente de estatuto de menoridade, interesse normativo que obtém suporte constitucional na defesa da personalidade (artigos 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa) e no programa de proteção da infância recenseado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

(…)A fixação de um hiato temporal que interdite o agente do delito de se envolver em circunstâncias de contexto que propiciem novas ações de lesão sobre o mesmo bem jurídico, pelo acesso a menores e à possibilidade de fazer evoluir contactos em ambientes mais ou menos reservados, possui um evidente caráter restaurativo da expectativa comunitária na integridade daquele interesse normativo. Por outro lado, a medida revela-se também preventiva do fator criminógeno que a atividade funcional revela no contexto, assim constituindo um reforço do processo de ressocialização. À prática de crimes sexuais contra menores estão, frequentemente, associadas parafilias ou distúrbios de personalidade (N. K. THARSHINI, F. IBRAHIM, The Link Between Paraphilic Disorder and SexualCrime, in International jornal of academic research in business and social sciences, vol. 13, n.º 12, 2023, 1415-1422), razão por que a dissociação do agente de ambientes que possam constituir catalisadores de comportamentos impulsivos desta ordem, não apenas se entenderá restitutiva do depósito de confiança no Direito para realizar a tutela do valor jurídico em causa, participará na reunião de condições para a reconstrução do processo intelectual do agente, designadamente da forma como observa comandos de proibição e se disciplina em função deles.

Aquele ac. acaba por determinar: Nestes termos e com estes fundamentos, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º, todos do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto);

b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) no segmento normativo em que determina a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória com limite mínimo de cinco anos para a proibição, em caso de punição pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ou de importunação, p. p. pelo artigo 170.º, todos do Código Penal (na redação conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto);


*

Ora, n o caso dos autos estamos perante um crime do art.172, nº 1, al. B) agravado pelo art. 177, n º 1 al. b) do C.P, com penas manifestamente superiores às citadas pelo ac. do Tribunal Constitucional, pelo que não tem aplicação ao presente caso.

De todo o modo, as sobreditas penas acessórias não são de efeito automático e estão sujeitas a um juízo de valoração e ponderação de aplicação no caso concreto. A respeito vide Acórdão n.º 688/2024 do Tribunal Constitucional, proc. N º 900/2023.

Assim, na esteira de tal juízo de raciocínio, de acordo com a factualidade assente, e considerando os vetores que enunciámos quanto às penas aplicadas, entende-se aplicar, a proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por igual período de tempo.


*

Da indemnização.

Nos termos do artigo 129º do Código Penal “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

O art. 483º, nº1, Cód. Civil dispõe que “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito são: o facto (facto humano controlável ou dominável pela vontade); a ilicitude do facto ((nas modalidades de violação de direitos subjetivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios, no caso consistem geralmente na violação dos direitos de personalidade (25.º, n.º 1, da C. da Rep. e 70.º do C. Civil)); o nexo de imputação do facto ao agente (que coenvolve a imputabilidade e a culpa); o dano; e o nexo causal entre o facto e o dano (cfr. VARELA, João Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 7ª ed., pág. 515 e segs.).

No que respeita à ilicitude do facto a mesma também se pode aferir da violação de normas penais.

No que respeita ao nexo de imputação do facto ao agente e, mais especificadamente, a imputabilidade (vista como a capacidade natural da pessoa para prever os efeitos e medir o (des)valor dos seus actos e para se determinar de harmonia com o juízo que faça acerca destes), deve considerar-se demonstrada por presunção natural, pois o arguido agiu com plena capacidade de entender e querer.

Agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.

A culpa do agente afere-se pela conduta que um bom pai de família adotaria no caso concreto (cfr, art. 487º, nº2, Cód. Civil – a culpa é apreciada em abstrato, por referência a um padrão ideal de homem – (bonnus paterfamilias), surgindo a culpa como um afastamento da conduta do agente em relação à conduta que teria sido adotada por um tipo abstrato e objetivo de homem razoável, normalmente prudente e diligente.

O dano manifesta-se no somatório de todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos do lesado.

Contudo, é preciso não esquecer que na perspetiva da responsabilidade civil, considera-se dano ou prejuízo, toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, “o prejuízo ou dano consiste em sofrer um sacrifício, tenha ou não conteúdo económico. A pessoa é afectada num bem, que deixa de poder gozar de todo ou de que se passa a ter um gozo mais reduzido ou precário” - cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., p.570.

A obrigação de indemnizar tem como ultima ratio a remoção do dano causado ao lesado.

No que concerne aos danos não patrimoniais, que são os prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, estes apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.

Com efeito, o dano não patrimonial não assume uma feição reparatória, mas antes compensatória ou sancionatória, na medida em que não se está perante uma indemnização em dinheiro de valor equivalente aos danos, mas antes uma compensação.

Assim, com a atribuição de uma soma pecuniária, visa-se proporcionar ao lesado um montante que lhe proporcione satisfações que de algum modo o faça esquecer a dor ou o desgosto.

Sancionatória, na medida em que com a atribuição desse montante se pune a conduta do lesante através dos meios próprios civilistas.

O art. 496º, nº1, Cód. Civil, considera indemnizáveis os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.

A gravidade do dano mede-se por um padrão objetivo, embora atendendo às circunstâncias do caso concreto.

Para a fixação do montante indemnizatório destes danos a lei remete para juízos de equidade (cfr. art. 496º, nº3, do Cód. Civil), tendo em atenção os fatores referidos no art. 494º do Cód. Civil (grau de culpa do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias).

A equidade como “a expressão da justiça num dado caso concreto”, “quando se faz apelo a critérios de equidade pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa, a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal” - cfr. ALMEIDA, Dário Martins de, in Manual de Acidentes de Viação, Almedina, 2ª ed., p. 103 .

Entre os danos não patrimoniais merecedores da tutela do direito, numa perspetiva clássica, inclui-se necessariamente o dano corporal em sentido restrito, caracterizado como o prejuízo de natureza não patrimonial que recai na esfera do próprio corpo, dano à integridade física e psíquica.

O art. 564º, nº2, Cód. Civil estabelece ainda que “na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros desde que sejam previsíveis (...)”.

O nexo causal entre o facto e o dano no caso da responsabilidade por facto ilícito existe sempre que a conduta se não possa considerar de todo em todo indiferente para a verificação do dano. Ou seja, quando entre o facto e o evento danoso interfere uma relação de causalidade adequada, de forma a considerar-se que o dano é consequência normal e necessária daquele facto.

No caso vertente, demonstrou-se, para além do mais, que, como consequência direta e necessária da atuação do arguido, BB sofreu ao nível psicológico, “sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm.

Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva.

Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação no exercício da sua sexualidade.”

Assim, a menor sofreu uma miríade de atos de jaez sexual na sua pessoa, por parte do Arguido, passível de atentar contra sua liberdade e autodeterminação sexual, o que equivale a dizer que merece ser ressarcida desses comportamentos.

Nessa esteira, considerando as condições económicas do responsável civil; as circunstâncias em que foram causados os comportamentos; a gravidade das consequências sofridas e um juízo de equidade, reputa-se adequado fixar a compensação pelos danos sofridos em € 20.000,00 (vinte mil Euros), mostrando-se prejudicada a atribuição oficiosa de uma indemnização, ante a procedência parcial do pedido de indemnização civil formulado nos autos.

Os juros serão devidos a contar da data desta decisão, porquanto o montante foi fixado à luz dos critérios contemporâneos à presente decisão.


*

Das custas.

A responsabilidade pela taxa criminal devida pelo Arguido merece respaldo no disposto no artigo 513º do CPP, em conjugação com o disposto no artigo 8º do RCP e sua Tabela III.

Nessa medida, atenta a complexidade dos autos e a atividade desenvolvida pelo Tribunal fixa-se a taxa de justiça devida pelo Arguido em quaro unidades de conta.

Custas cíveis a cargo de Demandante e Demandado, na proporção do decaimento, sem prejuízo de eventual do benefício de apoio judiciário concedido – arts. 523º do CPC e 527º do CPC.


*

Decisão:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público nos autos e, em consequência decidem:


1. alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos e em conformidade com o supra decidido;
2. consequentemente, revoga–se a decisão de absolvição do arguido, e substitui–se a mesma pela presente decisão e, EM CONSEQUÊNCIA, DECIDE-SE:

a. Condenar o Arguido AA pela prática de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 172º, nº1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, na pena, por cada um deles, de 03 (três) anos de prisão;

b. CONDENAR O ARGUIDO AA NA PENA ÚNICA DE 05 (cinco) ANOS DE PRISÃO.

c. Suspender a pena de prisão de cinco anos pelo período de cinco anos.

d. Condicionar a suspensão da pena de prisão, art. 51º, n º 1, al. a) do Código Penal ao pagamento do montante indemnizatório fixado em duas tranches, sendo a primeira até ao término da primeira metade do período da suspensão e a segunda no final daquele período.

3. Condenar o Arguido nas penas acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo mesmo período de tempo, nos termos dos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal.

4. ABSOLVE-SE O ARGUIDO DOS DEMAIS CRIMES IRROGADOS.

5. Condena-se, ainda, o Arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça no valor de 04 (quatro) Ucs.

O M.P. está isento de tributação (art. 522.º do CPPenal).

6. Condena-se o Arguido a pagar a BB a indemnização de vinte mil Euros (20.000,00€), acrescida de juros de mora desde da data desta decisão, até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se o Demandado do Demais peticionado.

7. Custas cíveis a cargo de Demandante e Demandado, na proporção do decaimento, sem prejuízo de eventual do benefício de apoio judiciário concedido – arts. 523º do CPC e 527º do CPC.

Oportunamente junto da primeira instância:

8. Face à matéria de facto provada, a qual se dá por reproduzida, e bem assim ao enquadramento jurídico que dela foi feito, determina-se, nos termos do disposto nos artigos 1º, nºs 1 e 2, e 8º, nº2, da Lei 5/2008, de 12/Fev., a recolha ao Arguido, após trânsito em julgado da presente decisão, do perfil de ADN para fins de investigação criminal. Antes da recolha deverá ser cumprido o direito à informação, de acordo com o previsto no artigo 9º, als. a) e e) da referida Lei. O perfil obtido deverá ser incluído na base de dados de perfis de ADN, nos termos do disposto no artigo 18º, nº3, do dito Diploma.

9. Comunique ao INML.

10. Ordenar a remessa de Boletins ao registo criminal - art. 374º, nº3, al. d), do CPP.

Notifique e oportunamente registe-se.

Sumário da responsabilidade do relator.

………………………………

………………………………

………………………………


Porto, 20 de novembro de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Lígia Trovão
Madalena Caldeira [Voto vencido.
“Voto a decisão por entender que a encruzilhada dubitativa sobre a autoria dos factos instalada no espírito do julgador coletivo, que levou à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, está devidamente fundamentada e objetivada, não sendo ilógica, arbitrária ou irrazoável.
Importa sublinhar que a impugnação ampla da matéria de facto apresentada pelo recorrente limita-se a contestar a convicção do tribunal recorrido, que não pode ser substituída pela do tribunal da relação, exceto se for baseada em provas ilegais, contrariar a força probatória plena de certos meios de prova ou violar de forma manifesta as regras da lógica, da experiência comum ou do conhecimento científico, o que não se verifica neste caso.
A dúvida insanável foi sustentada no conjunto da prova apresentada, destacando-se a baixa plausibilidade dos contactos sexuais nos termos descritos pela ofendida, tendo em conta as características da casa, o número de pessoas que nela residiam e as rotinas familiares. O enquadramento espacial e temporal apresentado pela ofendida – alegando abusos anais e vaginais em apenas 5 a 10 minutos no quarto de casal do arguido e da mãe da ofendida, enquanto estavam na casa outras seis pessoas, por vezes com a mãe da ofendida a tomar banho na casa de banho do mesmo corredor – foi considerado, embora possível, pouco verosímil. Adicionalmente, nenhum dos familiares percebeu ou suspeitou de algo, apesar de o relacionamento, segundo a ofendida, ter decorrido, numa versão, entre junho/julho de 2021 e fevereiro/março de 2022 e, noutra, entre fevereiro de 2021 e fevereiro/março de 2022. Esta avaliação foi ainda reforçada por outras discrepâncias apresentadas pela ofendida sobre outros aspetos relevantes nas duas ocasiões em que foi inquirida (declarações que ouvimos), como a questão do uso ou não de preservativo, o número aproximado de vezes em que ocorreram as relações sexuais, os locais em que ocorriam os abusos em Portugal, entre outros.
Em suma, embora a prova apontada pelo recorrente possa admitir uma leitura diferente, esta não se impõe de forma obrigatória, conforme se exige no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.”]
_______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cfr. Ac. da R.P. de 24/01/2024, no proc. nº 957/23.3PRPRT.P1, relatado por Paulo Costa, não publicado.
[3] Cfr. Acs. da R.P. de 13/09/2023 no proc. nº 1138/21.6T9AVR.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas, não publicado e da R.C. de 12/07/2023 no proc. nº 982/20.6PBFIG.C1, relatado por Luís Teixeira, acedido in www.dgsi.pt
[4] Cfr. Ac. do STJ de 01/07/2010, publicado na C.J., Ano XVIII, Tomo II, pág. 219.
[5] Cfr. proc. nº 135/22.9PCMTS.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas, ainda não publicado.
[6] Cfr. Ac. da R.C. de 09/09/2009 no proc. nº 112/08.2GDCBR.C1, relatado por Jorge Raposo, acedido in www.dgsi.pt
[7] Cfr. proc. nº 77/07.8GFSTB.E1, relatado por Gilberto Cunha, acedido in www.dgsi.pt
[8] Cfr. proc. nº 1381/22.0PBBRR.L1-5, relatado por Manuel José Ramos da Fonseca, acedido in www.dgsi.pt
[9] Cfr. Ac. da R.C. de 04/05/2016, no proc. nº 721/13.8TACLD.C1, relatado por Fernando Chaves, acedido in www.dgsi.pt
[10] Cfr. Ac. da R.E. de 07/12/2012, no proc. nº 197/10.1TAMRA.E1, relatado por Ana Barata Brito, acedido in www.dgsi.pt
[11] Ac. da R.E. de 11/09/2024, no proc. nº 1601/21.9PBCBR.C1, relatado por João Abrunhosa, acedido in www.dgsi.pt
[12] Cfr. Ac. da R.P. de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. nº 23/14.2PCOR.L1-9, acedido in www.dgsi.pt
[13] Cfr. Ac. da R.C. de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. nº 444/14.0JACBR.C1, acedido in www.dgsi.pt
[14] Cfr. Ac. da R.L. de 14/07/2022, relatado por João Abrunhosa, no proc. nº 103/22.0PWLSB.L1, não publicado na www.dgsi.pt