Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1316/20.5PRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO
TENTATIVA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
PREVENÇÃO GERAL
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
Nº do Documento: RP202212141316/20.5PRPRT.P1
Data do Acordão: 12/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Tal como deverá suceder com outros crimes igualmente graves, só em casos muito excecionais é que a punição do crime de homicídio, mesmo que meramente tentado, deverá admitir a suspensão da execução da pena de prisão, já que tal ilícito atenta contra a vida humana, o mais importante de todos os bens jurídicos, e, por isso, deverá ser punido de forma exemplar para proteger um tal bem de forma eficaz.
II - Para além disso, é de primacial importância dar um sinal de confiança à própria comunidade, pois que, se aplicada a suspensão por via de regra neste tipo de situações, atenta a sua inquestionável gravidade, a irá encarar como um sinal de impunidade que, obviamente, não aceita.
III – A tal não obsta o facto de se tratar de arguida sem antecedentes criminais, que denotou arrependimento e sentido crítico da sua conduta e está socialmente inserida, sendo menor de 21 anos de idade, razões pelas quais beneficiou do respetivo regime aplicável aos jovens imputáveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1316/20.5PRPRT.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:

No presente processo, por acórdão datado de 03/05/2022 (refª. 436197191), e no que ora importa salientar, decidiu-se:

· absolver AA da prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e) (motivo fútil), al. i) (meio insidioso) do Código Penal e de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas Anexas I-A, I-B e I-C;

· condenar AA pela prática, em autoria material, um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 22.º, 23.º, 73.º, na pena parcelar, especialmente atenuada por força do Decreto – Lei nº 401/82, de 23.09, de 4 anos de prisão;

· condenar AA pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência às Tabelas Anexas I-A, I-B e I-C, na pena parcelar, especialmente atenuada por força do Decreto – Lei nº 401/82, de 23.09, de 1 ano de prisão;

· em cúmulo jurídico de penas, condenar AA na pena única de 4 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 4 anos e 4 meses, mediante o acompanhamento de regime de prova, a executar com o apoio e vigilância dos serviços de reinserção social, por forma a fomentar/supervisionar/consolidar um projecto de vida da arguida válido e integrado, a que acresce como imposição a procura activa de emprego, a frequência de cursos profissionais, caso a arguida não esteja a trabalhar ou estando tal não se revele incompatível, bem como, complementarmente, a obrigação de a arguida não ter em seu poder objectos capazes de facilitar a prática de crimes quando se ausenta da residência, como navalhas, canivetes, porta-chaves com aptidões a serem pontiagudos e/ou cortantes, etc – arts. 50º, 52.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. f), ex vi art. 54.º, n.º 3, todos do CP.

Mais se decidiu:

· julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E. e, em consequência condenar a demandada AA ao pagamento do montante de €6.390,46, a que acrescem os devidos juros de mora, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, à taxa legal, sem prejuízo de eventuais alterações da referida taxa, até efectivo e integral pagamento;

· julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido por BB e em consequência, condenar a demandada, AA ao pagamento da quantia de onze mil euros a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos e ao pagamento da quantia global de duzentos e cinco euros a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, sendo que sobre os montantes fixados, são devidos juros de mora, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, à taxa legal, sem prejuízo de eventuais alterações da referida taxa, até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com a sobredita decisão, o Ministério Público veio interpor recurso da mesma nos termos que constam dos autos e aqui tidos como renovados (refª. 32485122), tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição):

1. A arguida foi condenada pela prática de crime de homicídio simples na forma tentada e de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena única de 4 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de tempo, com aplicação de regime de prova.

2 – Beneficiou, assim, de um juízo de prognose social favorável.

3 – Contudo, previamente à questão da formulação de um juízo de prognose favorável, cumpre determinar se, em concreto, a suspensão da execução da pena realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

4 - Só se, perante as circunstâncias do caso, se concluir pela verificação deste requisito material exigido pelo art. 50º, nº 1, do CP, é que o julgador deve passar à resolução da questão da formulação, ou não, de um juízo de prognose positivo.

5 - O art. 40º, nº 1, do CP, sob a epígrafe Finalidades das penas e das medidas de segurança, estabelece que a “Aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

6 - Assim a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena, visando, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

7 - Do que resulta que a suspensão da execução da pena de prisão não pode fazer perigar o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, encontrando o seu limite natural na satisfação das exigências mínimas de prevenção geral, sendo que estas podem impor a execução da pena de prisão aplicada.

8 – In casu a motivação da arguida, a extrema violência da sua atuação, as lesões físicas e psíquicas produzidas na vítima, constituem circunstâncias que impedem a opção pela suspensão da execução da pena de prisão aplicada, pois tal suspensão seria forçosamente valorada socialmente como um caso de impunidade, como um claudicar da lei e das instâncias formais de controlo, provocando uma quebra de confiança no ordenamento jurídico.

9 – Donde o tribunal a quo não deveria ter chegado ao ponto de apreciar a validade da formulação de um juízo de prognose favorável ou desfavorável, pois as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico impediam, desde logo, a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena.

10 – Ao optar pela suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida violou a decisão recorrida o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 50º, nº 1, do CP.

O recurso foi regularmente admitido (refª. 437853363).

Não há respostas.

Neste tribunal o Ex.mo PGA emitiu o parecer inserto nos autos, aqui tido como renovado (refª. 16103073), através do qual preconizou que a pretensão recursiva merecia provimento.

No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, a arguida veio responder nos moldes que constam dos autos e aqui considerados como especificados (refª. 348761), tendo concluído no sentido de que a decisão recorrida não merece censura, devendo ser mantida nos seus termos.

A assistente também veio responder ao parecer nos termos insertos nos autos e aqui tidos como repetidos (refª. 348849), para sustentar que o recurso deverá ser julgado procedente, alterando-se o acórdão nos termos requeridos, determinando-se, em consequência, o cumprimento efetivo da pena de prisão aplicada à arguida.

Após exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, nada obstando a tal.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) a decisão recorrida:

No que aqui importa reter, o acórdão recorrido é do teor seguinte (Transcrição):

Instruída e discutida a causa resultaram apurados os seguintes factos, com relevo e interesse para a decisão da causa:

1. No dia 2 de Novembro de 2020, a arguida AA contactou telefonicamente a ofendida BB e combinou um encontro com a mesma, na zona da ..., local que bem conhecia por, então, residir nas imediações, para conversarem acerca do seu namorado, já que desconfiava que a ofendida tinha saído com aquele, o que lhe provocava ciúmes.

2. A ofendida também conhecia o local do encontro e anuiu a comparecer.

3. Cerca das 20h30, a ofendida BB deslocou-se à Rua ..., no Porto, no parque ..., onde já se encontrava a arguida AA, que estava acompanhada por duas amigas comuns à ofendida, a saber, a CC e a DD, e ainda uma amiga da arguida de nome EE.

4. A arguida e a ofendida afastaram-se escassos metros das três amigas e entabularam conversa, na qual a arguida acusava a ofendida de manter um relacionamento com o seu namorado, o que esta última negou.

5. Tal deu lugar a uma discussão entre a arguida e a ofendida.

6. No âmbito da discussão gerada, a arguida tentou agarrar a ofendida pelo ombro, mantendo a mão direita fechada, ao que a ofendida reagiu com vista a afastar aquela, desferindo-lhe um soco na cara. Acto contínuo a arguida fazendo uso de uma faca articulada/navalha, com lâmina metálica retráctil, com gume bem afiado, com cabo com motivos de cor castanha e preta, cujo comprimento total é de 15,5cm e o da lâmina é de 7,0cm, de que previamente se havia munido (como era seu hábito) e que ocultou da ofendida até àquele momento, golpeou BB, na zona abdominal, no lado esquerdo, fazendo com que esta caísse ao chão.

7. De imediato, a arguida posicionou-se por cima da ofendida, que colocou os braços ao nível da face para se proteger, e desferiu-lhe, pelo menos, mais dois golpes com aquela faca, atingindo-a na zona esquerda torácica e braço esquerdo.

8. A arguida só parou de golpear a ofendida com o referido instrumento, quando a CC e a DD, a agarraram e impediram de prosseguir com as agressões.

9. Após, a arguida ausentou-se do local, e a ofendida foi socorrida pela CC e pela DD, que providenciaram pelo seu transporte ao Centro Hospitalar ..., no Porto, onde ficou internada desde o dia 2 de Novembro de 2020 até ao dia 11 de Novembro de 2020, tendo tido alta a 12.11.2021.

10. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, a ofendida BB, deu entrada no dia 02.11.2020, pelas 20h42, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ... (prioridade vermelha), por ferimentos com arma branca, com pneumotórax esquerdo e laceração do parênquima hepático, tendo o custo dos cuidados de saúde prestados àquela, importado €6.390,46, não tendo este valor sido pago.

11. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, a ofendida BB, sofreu dores, feridas perfurantes no tórax e abdómen; Glasgow 15; boa perfusão periférica; feridas cortantes no quadrante supero externo abdominal (cerca de 3 cm com exposição tecido adiposo), feridas superficiais na face externa do terço médio do membro superior esquerdo (MSE) e no quadrante supero externo da mama esquerda; Pneumotórax à esquerda, com ferimento penetrante do tórax, tendo a 03.11.2020 colocado dreno torácico sob anestesia local que retirou a 06.11.2020; por queixas de dor torácica de novo depois do dreno ter sido retirado, repetiu RX torácico que revelou recruscedência do pneumotórax mas de pequeno volume; Laceração do parênquima hepático no lobo esquerdo segmento III (traumatismo do fígado, com ferimento penetrante da cavidade abdominal) + mínima quantidade de líquido na escavação pélvica; durante o internamento boa evolução clínica e analítica (sem queda de Hb significativa); durante o internamento para além do já descrito, a ofendida fez antibioterapia profiláctica com piperacilina e tazobactam, profilaxia da gastropatia erosiva com IBP, analgesia e fluidoterapia ev., anti-emético e oxigenoterapia suplementar, restantes cuidados de suporte peri-operatórios; teve alta a 12/11/2020, sem queixas álgicas sob analgesia oral, com indicação de cuidados do penso no centro de saúde em dias alternados, remoção do material de sutura a partir do 12º dias pós-operatório no centro de saúde, toma de analgésicos (paracetamol 1g e ibuprofeno 400mg) e de pantoprazol enquanto tomar ibuprofeno, dieta ligeira durante duas semanas, evitar realização de esforços físicos durante os primeiros 30 dias pós-alta, evitar a exposição solar das cicatrizes nos primeiros 12 meses após a cirurgia.

12. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, a ofendida, a 14.10.2021, apresentava as seguintes queixas: Fenómenos dolorosos - sensação de desconforto que surge apenas quando faz pressão na área lesionada em região abdominal; quando se encontra em decúbito "não consegue respirar fundo".

13. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, resultaram para a ofendida: no tórax - duas cicatrizes, uma no terço lateral externo de quadrante supero externo de mama (1,5cm) e em face lateral de terço médio de HTE – dreno; no abdómen - cicatriz linear com vestígios cicatriciais de pontos de sutura localizada na parede abdominal anterior (3cm) sobre cruzamento de linha imaginária horizontal localizada 11 cm acima da cicatriz umbilical e linha vertical em posição medial clavicular – refere dor ao toque sobre esta cicatriz; no membro superior esquerdo - cicatriz em face lateral de terço médio de braço com reacção queloide (2cm por 0,5cm).

14. As lesões e ferimentos supra descritos demandaram para a ofendida, de forma directa e necessária, 30 (trinta) dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral por 10 (dez) dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 30 (trinta) dias.

15. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, resultaram para a ofendida as sequelas/cicatrizes já descritas, as quais não se consideram desfigurantes.

16. As lesões atrás referidas resultaram de traumatismo de natureza perfuro-contundente.
17. Tendo em conta o tipo (cortoperfurante), localização (tórax e abdómen) e a extensão das lesões sofridas (atingimento de fígado e pneumotórax à esquerda), tendo em conta os dados clínicos, a ofendida não esteve em situação de perigo clínico em concreto para a vida, no entanto, caso a ofendida não tivesse sido prontamente socorrida como foi, as lesões sofridas tinham a idoneidade para produzir a morte.

18. A arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, tendo-se munido previamente do instrumento corto-perfurante supra descrito, cuja posse ocultou à ofendida até ao momento em que o utilizou, visando atingir a ofendida, como atingiu, no tórax e abdómem, áreas anatómicas onde se alojam órgãos vitais do corpo (o que não desconhecia), causando-lhe as lesões e ferimentos supra descritos, com o intuito de lhe tirar a vida, o que quis, só não o tendo conseguido por razões alheias/estranhas à sua vontade, atento o pronto socorro que a ofendida recebeu de terceiros. Mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.

19. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida supra descrita, a ofendida viu ficar danificadas/imprestáveis para uso umas sapatinhas Vans de cor preta, no valor de cerca de 85 euros, um casaco da marca Bershka, no valor de cerca de 40 euros, umas calças, no valor de cerca de 10 euros, uma camisola da marca Nike, no valor de cerca de 50 euros e gastou em medicação cerca de 20 euros, sofrendo assim um prejuízo global no valor de 205 euros.

20. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida supra descrita, a ofendida ficou psicologicamente perturbada, sentiu medo, sofreu ataques de pânico e ansiedade (o que lhe provocava falta de ar e choro), não conseguida comer com facas, nem visualizá-las.

21. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida supra descrita, a ofendida, durante a recuperação sentiu, por vezes, dificuldades em respirar, sentiu dificuldades de locomoção e dor; necessitou de ser auxiliada por terceira pessoa para fazer a sua higiene pessoal e para se levantar.

22. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida supra descrita, a ofendida, por várias vezes, sentiu dificuldades em dormir e teve pesadelos com facas e que a matavam.

23. Em consequência directa e necessária da conduta da arguida supra descrita, a ofendida, sentiu-se angustiada, humilhada e com medo. O receio e insegurança sentidos pela ofendida levaram a que a mesma passasse a sair à rua apenas acompanhada e tivesse ido residir para Castelo de Paiva, onde tem família (avós).

24. Na data dos factos a ofendida BB tinha 18 anos de idade, pelo que era e é uma jovem mulher.

25. Na execução dos mandados de busca à residência da arguida sita no Bairro ..., ..., casa ..., ... Porto, foram encontrados e apreendidos: - Num pequeno cofre metálico, 23 (vinte e três) pedaços de cocaína (éster metílico), com o peso líquido de 3,14 gramas; 12 (doze) embalagens, vulgo “lágrimas” contendo heroína com o peso líquido de 1,55 gramas; um pedaço de papel rasgado com vários registos de nomes associados a quantias monetárias e €415,00 (quatrocentos e quinze euros) em notas do BCE; - Numa bolsa, de cor preta, com a inscrição “Nike Air Max” que se encontrava pendurada atrás da porta e que foi apreendida, foram encontrados 7 (sete) sacos minigrip, contendo no interior canábis (folhas/sumidades) com o peso líquido de 6,79 gramas; 2 (dois) pacotes, vulgo “lágrimas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1,638 gramas; 9 (nove) pedaços, de diversos tamanhos, de canábis (resina) com o peso líquido de 4,33 gramas e um pedaço de saco plástico enrolado; -Numa bolsa de cor preta que se encontrava pendurada num suporte de cabides (charriot), foi encontrado uma navalha de abertura manual, com lâmina de um só gume, com o comprimento de 8cm, com o cabo plástico, de cor preta, contendo a inscrição numa das laterais do cabo “OUTDOOR EDGE”; - Numa carteira/bolsa de cor vermelha que se encontrava pendurada no mesmo suporte de cabides (charriot), foi encontrada uma navalha de abertura manual, com lâmina de um só gume, com comprimento de 7cm, com cabo castanho e preto e melhor descrita em 6); - Numa caixa pousada junto à comoda, foi encontrada uma navalha de abertura manual, com lâmina de um só gume, com 6,5cm de comprimento, com cabo metálico com aplicações de borracha, que possui um segundo braço articulado onde se insere uma lâmina do tipo “x-acto”, com a inscrição nas laterais do cabo “DEXTER”.

26. As substâncias estupefacientes apreendidas (doseadas) no quarto da arguida, na referida habitação, bem como o pedaço de papel rasgado com vários registos de nomes associados a quantias monetárias e €415,00 (quatrocentos e quinze euros) em notas do BCE, não eram pertença da arguida, estando apenas à sua guarda, no referido local, único cómodo da habitação cuja porta fechava.

27. A arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, sabia que não podia adquirir, deter/guardar, ceder, transportar, proporcionar a outrem ou vender as referidas substâncias estupefacientes, cujas características e natureza bem conhecia, e mesmo assim acedeu a guardá-las; mais sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.

28. Na data dos factos a arguida tinha 20 anos de idade, revelando, nessa fase da sua vida, alguma imaturidade, nomeadamente emocional.

29. A arguida confessou de forma muito relevante os factos supra descritos e integradores de responsabilidade criminal.

30. A arguida pediu pessoalmente e de forma pública desculpas à ofendida, nomeadamente, em sede de audiência de julgamento.

31. A arguida demonstrou vergonha e arrependimento.

32. Nada consta no certificado de registo criminal da arguida.

33. À data dos factos constantes da acusação, AA integrava o núcleo familiar da progenitora, composto por esta, à data com 53 anos de idade, pela irmã, com 17 anos, estudante, e pelo irmão, com 25 anos, desempregado. O namorado da progenitora da arguida pernoitava pontualmente naquela habitação.

34. O núcleo familiar residia em habitação social gerida pela empresa municipal de habitação, um apartamento de tipologia T3 com condições básicas de habitabilidade, cuja zona residencial é associada a problemáticas de exclusão social, bem como a condutas e atitudes pró-criminais.

35. A situação económica do agregado familiar foi avaliada pela arguida como adaptada às circunstâncias, ainda que com alguns constrangimentos de ordem financeira, sendo os rendimentos resultantes da actividade da arguida, numa empresa de limpeza, onde auferia o salário mínimo, e da sua progenitora como cozinheira, num total de cerca de 1300,00€ mensais.

36. Recentemente, a mãe da arguida e respectivo núcleo familiar alteraram a sua residência para casa do namorado daquela, optando, a arguida, devido a divergências com o namorado da mãe, em partilhar a residência propriedade da tia do namorado, com uma coabitante, de 43 anos, e filha adolescente desta.

37. O actual agregado de AA subsiste com o subsídio de desemprego da sua coabitante, no valor de 500,00€ mensais, a pensão de sobrevivência da mesma, de 180,00€ mensais, a prestação familiar da filha da coabitante e pensão de sobrevivência desta, no valor de 40,00€ + 80,00€ mensais, totalizando os rendimentos do agregado um valor aproximado de 800.00€ mensais. Quanto às despesas fixas, foram mencionadas as relativas a renda casa, de 11,00€ mensais, acrescida dos gastos com electricidade, água e telecomunicações, de cerca de 150,00€, para além das despesas inerentes à alimentação e aquisição de outros bens.

38. O processo de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu no agregado familiar de origem, num ambiente familiar de interajuda até ao divórcio dos progenitores que ocorreu quando a arguida tinha 16 anos de idade. Desde então, a arguida não voltou a ter contacto com o pai, ficando o exercício das responsabilidades parentais exclusivamente a cargo da mãe.

39. AA apresenta um percurso escolar caracterizado por várias retenções, nomeadamente no 5º, 6º e 7º ano, levando a que a arguida viesse a optar por formação de dupla certificação, que lhe proporcionou a equivalência ao 9º ano de escolaridade e, simultaneamente, certificação de formação profissional na área de empregada de mesa/bar, quando contava 18 anos de idade.

40. Posteriormente, AA integrou o mercado laboral, como repositora no “X...”, onde trabalhou por turnos e folgas rotativas, integrando depois uma empresa de limpeza, onde auferia o salário mínimo.

41. Nos seus tempos livres, a arguida dedicava-se ao convívio com amigos e com o namorado (FF), com quem mantém relação há cerca de quatro anos.

42. A arguida iniciou, em 29-04-2021, a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, no âmbito dos presentes autos.

43. A arguida evidencia uma conduta adaptada às exigências inerentes ao seu estatuto coactivo, interagindo de forma adequada e ajustada com os técnicos da equipa de vigilância electrónica.

44. A arguida reconhece, em abstracto, o bem jurídico lesado, demonstrando capacidade de descentração e apreensão com as eventuais consequências penais que poderão advir do presente processo, na medida em que receia a possibilidade de vir a sofre uma condenação privativa da liberdade.

45. AA manifesta uma dinâmica de orientação pró-famíliar e profissional, perspectivando a manutenção de um estilo de vida ajustado às normas ético-jurídicas vigentes.

46. A arguida referiu ser sua prioridade futura, o aumento de qualificações e reintegrar-se a nível laboral, para garantir a sua autonomização num futuro próximo. A arguida dispõe de enquadramento habitacional e residencial, contando com o apoio de familiares e do actual núcleo familiar que a acolheu.

47. A arguida passou a viver em casa cedida por um familiar do namorado, que partilha com coabitantes, desde o início da execução da presente medida de coacção de obrigação de permanência da habitação em habitação, com uma dinâmica de interajuda e suporte, na medida em que a arguida usufruiu do apoio quotidiano material e emocional prestado pelos coabitantes.

Factos não provados.

Após saneamento de argumentações, considerações adjectivas e juízos de valor tecidos, conclusões e/ou direito, não se provaram quaisquer outros factos dos alegados nos autos ou em audiência, nem outros, além dos provados, não escritos, contrários aos provados, incompatíveis com os provados, com virtualidade “jus” penal e civilmente relevantes e com interesse, atento o objecto do processo, para a decisão final, nomeadamente:

a) O estupefaciente referido em 25) era da arguida que o destinava na totalidade à venda/cedência a terceiros, mediante contrapartida, obtendo avultadas vantagens económicas.

b) O dinheiro apreendido era proveniente da actividade de venda das substâncias supra-referidas, levadas a cabo pela arguida anteriormente à referida busca.

Motivação.

O decidido fundamenta-se na análise crítica e comparativa da globalidade da prova produzida em audiência, em conjugação com as regras da experiência comum, a saber:
Desde logo importa referir que a arguida, assim como fez, em sede de primeiro interrogatório judicial, também em sede de audiência de julgamento, relatou, no essencial, os factos descritos em 1) a 8) da factualidade provada, sendo que agora, explicou qual o instrumento que usou para esfaquear a ofendida (o que acaba por ser corroborado por a demais prova produzida).
Disse que tinha o hábito de andar sempre com uma navalha ou um canivete na carteira, tendo admitido que só parou de esfaquear a ofendida por as amigas com quem estava a terem agarrado.
Referiu que o estupefaciente, dinheiro e apontamentos encontrados no seu quarto (única divisão da casa cuja porta fechava) não eram seus, acabando por admitir que, por lhe terem pedido, acedeu a ali guardá-los, declaração que foi aceite, sendo de sublinhar que a letra no papel com dizeres e referido em 25) não se mostra coincidente com a letra da arguida possível de analisar ao longo do processo.
Não é consumidora de estupefacientes.
A arguida não só confessou de forma muito relevante os factos integradores de responsabilidade criminal, como pediu pessoal e publicamente desculpas à ofendida.
Mais demonstrou vergonha pelos actos cometidos e arrependimento.

BB, ofendida nestes autos, referiu como a arguida e ela marcaram encontro para conversarem. No âmbito de tal conversa disse à arguida que nada tinha com o seu namorado, tendo-se gerado uma discussão entre as duas. A arguida tentou agarrar o seu ombro, mantendo a mão direita fechada, ao que reagiu com vista a afastar aquela, desferindo-lhe um soco na cara. Acto contínuo sente algo a esfaqueá-la, caiu no chão, ficando por baixo e a arguida por cima, tentou proteger a cara e o peito com os braços, voltou a ser esfaqueada e foi aí que levou uma facada no braço.
A CC veio em seu socorro, tendo agarrado a arguida (caso contrário a arguida ia continuar a esfaqueá-la) e a DD ligou para o 112, mas acabou por ser um vizinho que a levou ao hospital.
Sentiu que ia morrer, não conseguia respirar, tinha muitas dores, tinha pesadelos, não conseguia dormir.
Teve ataques de pânico, nomeadamente com objectos cortantes, não podia ver facas. Sentiu medo e sofreu de estados de ansiedade, o que a levou a ir para casa dos avós em Castelo de Paiva.
Deixou de sair à noite e de andar sozinha na rua. Hoje ainda sente medo.
Depois de sair do hospital precisou de ser auxiliada por terceiros no banho e para se vestir, tinha muitas dores, cansava-se muito.

EE, então amiga da arguida (actualmente com 19 anos de idade), por ter estado presente no encontro entre a arguida e a ofendida, disse ter visto a ofendida a dar um soco na arguida e esta a ir para cima daquela.
Tudo foi muito rápido.
Viu a ofendida no chão.
Disse que tinha visto a faca utilizada pela arguida e que lhe perguntou se tinha dado a facada, para, depois, dizer já não ter bem a certeza.

CC, empregada de mesa, actualmente com 20 anos de idade, referiu que previamente ao encontro, estava com a arguida em casa da EE, sita na .... A arguida estava nervosa e disse-lhe que iam ao encontro da ofendida, pois queria bater-lhe.
Por ter estado presente no encontro entre a arguida e a ofendida, disse ter visto as duas embrulhadas, pelo que foi separar, altura em que reparou que a ofendida estava cheia de sangue.
Referiu quem acabou por transportar a ofendida ao hospital.
Disse ter pensado que a ofendida ia morrer, havia muito sangue e a ofendida parecia que estava a desfalecer.

DD, referiu, sem segurança, ter ido com a CC para casa da EE.
Mais disse que o grupo de amigas acompanhou a arguida ao dito encontro para evitar problemas, sendo certo que a arguida nunca precisou o que ia fazer.
Apenas sabiam que era um encontro por causa do namorado da arguida.
Ao contrário das demais testemunhas presentes, disse que do local onde se colocaram não era possível ver a arguida e a ofendida, por causa de uns arbustos que lhes impediam a visão.
Já só viu a ofendida mal, viu sangue e chamou o INEM.

Ora perante esta prova testemunhal, impõe-se dar maior valor às declarações da arguida e da ofendida (até coincidentes), já que as testemunhas presentes divergem no relato dos factos, nomeadamente, no que exactamente se passou antes do encontro, na altura do encontro onde se encontravam (cada uma apresenta a sua versão do local e da visibilidade que tinham para arguida e ofendida), o que não se pode deixar de estranhar, já que as três são unanimes em que estiveram juntas.

GG, serralheiro, 33 anos, disse que tinha acabado de jantar, quando foi à janela fumar um cigarro, ouviu gritos, pelo que foi ver o que se passava.
Acabou por levar, no seu carro, a ofendida para o hospital. A ofendida estava muito aflita, chorava e viu sangue.
O depoimento em causa revelou-se sério, isento e credível.

HH, inspector da Polícia Judiciária, confirmou o teor do auto de busca e apreensão 160 a 164. Mais referiu que a habitação tinha três quartos, no quarto da arguida apenas existia uma cama e não havia objectos pessoais de outra pessoa, sendo que a irmã da arguida estava noutro quarto. Presente estava também o namorado da arguida e o irmão desta.

II, advogada, irmã da ofendida, referiu que teve conhecimento do que havia acontecido no dia 3, pelas 7h00; não havia visitas hospitalares, pelo que durante o internamento daquela só falavam por chamada ou videochamada.
A ofendida tinha crises de pânico, quando foi para casa precisava de ajuda para tudo, inclusive para tomar banho, já que não fazia nada sozinha, caminhava um pouco dobrada, com ajuda, para se levantar do sofá também precisava de ajuda.
A ofendida tinha muito medo, pelo que se mudaram para Castelo de Paiva, para casa dos avós, o que também determinou o afastamento da ofendida e dos seus amigos.
A ofendida ficou muito afectada em termos emocionais.
A ofendida não podia ver facas, comiam de garfo e colher, as facas eram escondidas.
O pai era enfermeiro e tirou alguns pontos à ofendida, para o que foi necessário o uso de um bisturi, tendo aquela entrado em pânico.
A ofendida sentia falta de ar e ainda hoje sente, tinha pesadelos e dores.
A ofendida tem cicatrizes visíveis, pelo que expor mais o corpo é complicado.

JJ, pai da ofendida, enfermeiro, referiu que estava a trabalhar quando soube da notícia, sendo que foi a ofendida que lhe disse que tinha tido um acidente, que tinha levado facadas.
Quando chegou ao hospital o médico ainda não lhe conseguia dar um prognóstico.
A ofendida sentia medo, revolta, tinha medo de tudo o que fosse pontiagudo, foi preciso esconder as facas.
A ofendida passou a ter ataques de ansiedade e de pânico, sentindo falta de ar, chorava.
Tinha dificuldade em respirar e pesadelos.
Por causa do medo sentido pela ofendida, foram para Castelo de Paiva, para casa dos avós da ofendida, mas aí esta ainda se sentiu mais deprimida, pois os amigos ficaram todos no Porto.
Disse que a ofendida não lida bem com as cicatrizes com que ficou.

KK, cantoneira, 52 anos, que foi vizinha da arguida e a conhece desde os 12 anos de idade, referiu que esta, na data dos factos, vivia com a mãe, irmã e irmão, sendo que só a mãe e a arguida é que trabalhavam.
A arguida era muito carinhosa e não era conflituosa.
A mãe da arguida iniciou um relacionamento amoroso e saiu de casa, tendo a arguida ficado sozinha, mesmo durante a medida de coacção.

O depoimento das testemunhas supra-referidas, revelou-se sério e credível.

Mais se valorou:

Prints de fls. 12-13;
Fotos de fls. 34 a 40 – resultando que a roupa da ofendida ficou danificada/imprestável;
Auto de apreensão de fls. 42;
Registos clínicos de fls. 49 a 59, fls. 134 a 145, fls. 227 a 231, fls. 389 a 393, fls. 408,
Reportagem fotográfica de fls. 62 a 71 - resultando que a roupa da ofendida ficou danificada/ imprestável;
Relatório pericial do INML de fls. 100 a 103, fls. 375 a 378; fls. 462 a 464. Relatório pericial de fls. 191 – relativo ao sutiã que a ofendida usava; Relatório pericial de fls. 153 a 155;Auto de busca e apreensão de fls. 160 a 164;
Testes rápidos de fls. 171 a 175 e reportagem fotográfica de fls. 176 a 180; Auto de exame de fls. 184;
Exame pericial a telemóvel de fls. 272 a 293;
Relatório pericial ao estupefaciente apreendido de fls. 324;
Relatório pericial de fls. 351 a 356 (fls. 372-373 e fls. 433-434) – a corroborar o declarado pela arguida quanto ao objecto utilizado para esfaquear a ofendida;
Documentos de fls. 496vº a 498 (fls. 539 a 543);
Relatório social da arguida com a referência 31423295, bem como o seu certificado de registo criminal.

Assim, analisada a prova na sua globalidade, tendo presente as declarações confessórias da arguida, as declarações da ofendida, os depoimentos das testemunhas ouvidas e supra referidas (com a ressalva supra feita relativamente às testemunhas presenciais do encontro entre a arguida e a ofendida), a abundante prova documental e supra enumerada (que não foi colocada em causa), sempre em conjugação com as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, dúvidas não subsistiram quanto à veracidade dos factos levados à matéria de facto assente.
Cumpre ainda referir que os alegados gastos da ofendida “com a defesa dos seus legítimos interesses, bem como a perda de tempo e recursos financeiros no tratamento de toda a questão legal” e o pagamento da quantia de 102 euros pela sua constituição como assistente, não constituem um dano material indemnizável, já que não têm origem necessariamente na prática de qualquer facto ilícito, antes pelo contrário, têm a ver com a opção escolhida pela lesada/ofendida quanto à forma de exercer determinado direito e prendem-se, ainda, com a realização de diligencias probatórias e exigências previstas na lei quanto às formas como os ofendidos podem intervir processualmente - Ac. R.P. de 16.11.94, CJ, t.5, 252.
Com efeito, como refere o Ac. do TRP de 05.11.03 (in http://www.dgsi.pt/jtrp.), “Quando alguém pretende ser indemnizado, nomeadamente por ter ocorrido uma violação ilícita de um seu direito, pode seguir várias vias. Pode, simplesmente, contratar os serviços de um advogado, a quem encarrega de tratar de todos os trâmites necessários à satisfação dos seus direitos; pode contactar directamente autoridades judiciais, policiais, companhias de seguros, etc; pode, ou não, socorrer-se dos mecanismos de assistência jurídica e de apoio judiciário previstos na lei; ou, pode, simplesmente, contactar o devedor e obter directamente o pagamento da indemnização.
São distintos os custos decorrentes das diversas vias à disposição de quem quer ser indemnizado, sendo que o titular do direito à indemnização é totalmente livre na escolha da opção a tomar. (...)
Nenhuma dessas opções e despesas cai no âmbito da indemnização, pois não podem ser tomadas como dano resultante do acto do lesante (art. 483º do CC), sendo antes resultado da via livremente escolhida pelo demandante para o exercício dos seus direitos. Por exemplo, os honorários do advogado são resultado de um contrato estabelecido entre a parte e o causídico, ao qual o demandado é totalmente estranho, competindo àquela a sua satisfação. (...) ”
Destarte, nunca se verificaria o nexo de causalidade entre o facto e o dano, pelo que tal facto nunca poderia resultar como provado.
Por fim, cumpre salientar que nos socorremos da equidade e do normal valor de mercado relativamente à factualidade vertida em 19) e ainda que não foi produzida qualquer outra prova cabal quanto ao alegado dano estético, porquanto a única perícia realizada é clara quando consigna que as cicatrizes sofridas pela ofendida não se consideram desfigurantes.
Nenhuma outra prova foi produzida.

(…)

Quanto à suspensão ou não da execução da pena única fixada.

Prescreve o artigo 50 do CP, que:
“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”

Como se sabe, a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas.
Outro dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes.
Será, pois, nesta dupla perspectiva que deverá incidir um juízo de prognose favorável à suspensão da pena de prisão, sendo certo que para o efeito o seu ponto de partida será sempre o momento da decisão e não da prática do crime. (Ac. STJ de 2001/Mai./24, na CJ (S) II/201; cfr. Ac. do STJ de 09-01-2002, in http://www.stj.pt., Ac. da R. C. de 2000/Fev./09, in http://www.trc.pt.)
Vejamos.
Como se explana no AC. STJ de 08-09-2016, proc. 610/15.1PCLSB.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj: “O nosso sistema de reacções criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade — cf. art. 70.º do CP — devendo o tribunal dar primazia a estas quando se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição. O arguido já beneficiou da aplicação do regime aplicável aos jovens delinquentes, porém as exigências de prevenção especial que determinaram esta aplicação serão mais fortemente asseguradas se, respeitando as exigências de prevenção geral, possamos assegurar o contexto necessário para que esta integração se atualize.”
In casu, a arguida é uma delinquente primária, sempre se mostrou integrada social e laboralmente, manifesta uma dinâmica de orientação pró-famíliar e profissional, perspectivando a manutenção de um estilo de vida ajustado às normas ético-jurídicas vigentes. A arguida tem como projecto de vida o aumento de qualificações e a reintegração a nível laboral, para garantir a sua autonomização num futuro próximo; dispõe de enquadramento habitacional e residencial, contando com o apoio de familiares e do actual núcleo familiar que a acolheu, o qual apresenta uma dinâmica de interajuda e suporte. A arguida usufrui do apoio quotidiano material e emocional prestado pelos que consigo vivem.
Mais, a arguida mostrou-se arrependida e revelou juízo de auto-censura, pelo que se considera que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, pelo que é de aplicar a pena de substituição de suspensão da execução da pena única de prisão, de acordo com o disposto no art. 50.º, n.º 1, do CP, pelo período de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses, nos termos do art. 50.º, n.º 5, do CP.
Atenta a idade da arguida, a suspensão deve ser acompanhada de regime de prova nos termos do art. 53.º, n.º 3, do CP, não só por imperativo legal, como também por tal se mostrar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, visando facilitar a reintegração da arguida na sociedade, assentando numa ideia de assistência e vigilância, o que se nos afigura necessária e imprescindível no presente caso, face aos praticados crimes, à idade da arguida e à necessidade de supervisão/consolidação por parte daquela de um projecto de vida válido e integrado.
Nos termos dos arts. 50º, n.ºs 2 e 3 e 54.º, n.º 3, do CP, o tribunal pode impor deveres e regras de conduta referidos nos artigos 51.º e 52.º, do CP, pelo que, atento todo o circunstancialismo que envolveu a prática dos crimes e envolveu a jovem delinquente, o tribunal considera necessário impor desde já, ao abrigo do disposto no art. 52.º, n.º 1, al. b), do CP, ex vi art. 54.º, n.º 3, do CP, a procura activa de emprego, frequência de cursos profissionais, caso não esteja a trabalhar ou tal não se revele incompatível, bem como, complementarmente, a obrigação de não ter em seu poder objectos capazes de facilitar a prática de crimes quando se ausenta da residência, como navalhas, canivetes, porta-chaves com aptidões a serem pontiagudos e/ou cortantes, etc. (Cf. art. 52.º, n.º 2, al. f), do CP, ex vi art. 54.º, n.º 3, do CP).
*
b) apreciação do mérito:

Começaremos por recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, e apenas relativamente às sentenças/acórdãos, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[2], devendo sublinhar-se que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
*
Em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelo recorrente, importa saber se o tribunal recorrido não deveria ter chegado ao ponto de apreciar a validade da formulação de um juízo de prognose favorável ou desfavorável, pois as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico impediam, desde logo, a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena, que, por isso, deverá passar a efectiva.

Vejamos, pois.

O Ministério Público, ora recorrente, começou por alegar que na decisão em crise tecem-se considerações no que se reporta à opção pela suspensão da execução da pena de prisão, que transcreve, anotando depois que não está em causa saber se relativamente à arguida é possível efetuar o referido juízo de prognose favorável ou positivo, pois que a lei exige um outro requisito material, e basilar, para que possa optar--se pela suspensão da execução da pena, o de que é necessário concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que significa que a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena, visando, na feliz expressão de Jakobs, a “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada”, a tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, pelo que não pode colocar-se em causa “o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada”.
Assim sendo, adianta, partindo da premissa que a finalidade primordial visada pela pena é a tutela de bens jurídico-penais no caso concreto, uma finalidade que, deste modo, por inteiro, se cobre com a prevenção geral positiva ou prevenção de integração, temos que a aplicação de uma pena de substituição encontra o seu limite natural na satisfação das exigências mínimas de prevenção, de tudo isto derivando, em síntese, que, apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável, à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, ou seja, estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, só por estas se limita, mas por elas se limita sempre, o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.
Neste contexto, mais alega que, o motivo do crime, a violência da atuação da arguida, as lesões físicas e psíquicas provocadas na vítima permitem concluir que são extremas as necessidades de prevenção geral positiva que o caso convoca, pelo que entendia ser de todo incompreensível, do ponto de vista comunitário, que à arguida seja imposta pena que não seja efectivamente privativa da liberdade, pois que nada mitiga a sua responsabilidade criminal, sendo que nada, na conduta da ofendida, justifica a inesperada violência extrema de que esta foi alvo, não há qualquer explicação racional que permita minimamente compreender por que razão a arguida lhe tentou tirar a vida, e daí que sustente que, alguém que revela tamanho desprezo pelo bem vida humana, que actua por um motivo que, na realidade, não o é, que actua com tamanha violência sobre a vítima, não pode beneficiar do instituto da suspensão, sob pena de se estar a violar a consciência axiológica jurídica geral, já que a valoração social de tal decisão, a opção pela suspensão, é a de que se está perante um caso de impunidade, concluindo por tudo isso que são necessidades de reprovação e prevenção do crime que obstam à suspensão da execução da pena, e daí que o tribunal recorrido não deveria ter sequer chegado ao ponto de apreciar a validade da formulação de um juízo de prognose favorável ou desfavorável em relação à arguida, pois as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico impediam, desde logo, a suspensão da execução da pena.
Sustenta, pois, que a arguida não deve beneficiar da suspensão da execução da pena em que foi condenada, dado que não se encontram integralmente preenchidos os requisitos materiais que permitem a aplicação de tal pena de substituição, já que a mera censura do facto e a simples ameaça de prisão revelam-se inadequadas às necessidades preventivas do caso, podendo a suspensão ser socialmente valorada como refletindo um menosprezo pelos valores vida e/ou integridade física, agredindo o sentimento de reprovação social do crime, pelo que deve ser negada a sua aplicação.

Não há respostas.

No parecer que exarou, o Ex.mo PGA veio anotar que, atento o teor da sua motivação e conclusões, que, pela sua pertinência e fundamentação jurídica acompanhava e dava por reproduzidas, era de parecer que o recurso deve ser julgado procedente, pois que delas constam profusas e consistentes referências e fundamentos, de facto e de direito, legais, doutrinais e jurisprudenciais, que suportam a pretendia efetividade da pena única de prisão em que a arguida foi condenada, sublinhando depois que, é certo que a questão da opção entre a efetividade e a suspensão das penas de prisão por crimes de homicídio na forma tentada é controversa, havendo mesmo quem sustente a tese de que o ordenamento jurídico-penal português não admite a sua suspensão, controvérsia que, de resto, desembocou num recurso extraordinário para fixação de jurisprudência que se encontra pendente de decisão no STJ e no qual o MP já emitiu parecer sobre o sentido da jurisprudência a fixar, ou seja, o da admissibilidade da sua aplicação, parecer que colhe o seu aplauso e adesão, como parece colher a do Procurador da República subscritor do recurso, que, não repudiando essa admissibilidade, sustenta fundadamente que, no caso concreto em apreço, o juízo de prognose favorável à arguida, no sentido de que, sob o prisma da prevenção especial ou ressocializador, a simples ameaça da pena se mostra suficiente para a afastar do cometimento de novos crimes, nem sequer devia ter tido lugar por não se verificar o outro e prévio requisito material consubstanciado pela absoluta necessidade de repor a confiança da comunidade no valor da norma jurídica que prevê e pune o homicídio, finalidade primordial de qualquer pena e que, por conseguinte, neste caso, prevalece e prejudica aquela outra finalidade, sendo certo que a efectividade da pena única de prisão pretendida pelo recorrente não é afastada pela aplicação do regime penal especial para jovens imputáveis, conforme especifica, pois que, pese embora a sua essencial preocupação ressocializadora, educativa, não exclui a prevenção geral como relevante e decisiva finalidade das penas, mesmo em caso de jovens por ele abrangidos, antes recomendando, precisamente para a acautelar, a efetividade das penas de prisão fixadas em medida superior a dois anos, como aqui ocorreu, o que em muito abona e fortalece a pretensão recursiva do MP, que, como dito, merece provimento.

Respondendo ao parecer, a arguida veio destacar que as exigências de prevenção geral e especial não podem ser descuradas e, no caso não o foram, a pena encontrada é de molde a garantir que a comunidade tenha confiança no valor da norma, como é de molde a garantir a ressocialização desta jovem adulta, o parecer peca por não enquadrar a situação delituosa nas suas condições de tempo, modo e lugar, e neste último temos o local onde ocorrem os factos delituosos e que coincide com a área de residência da arguida, que não da ofendida, que não tem ligação ao bairro, a comunidade, não obstante o choque, percebeu que a arguida ficou privada da sua liberdade – OPH sob VE -, enquanto a ofendida, desconhecida no meio, não mais voltou ali a ser vista, e, por outro lado, as circunstâncias, situam-nos num episódio identificado, correspondente a um episódio único na vida da arguida e ofendida, o relacionamento afectivo mal gerido até àquele momento acabou por não dar mais reflexos ou consequências na vida de uma ou outra, pois, na verdade, o condenável comportamento da arguida foi sancionado, castigado, o que a mesma não só assimilou, como levou de lição para a vida, pois nem se refugiou na desculpa ou justificação do injustificável, como pediu perdão, que a ofendida não aceitou, e reconheceu publicamente o seu erro, confessando os seus actos, mais adiantando as sua condições pessoais, que trabalhava à data, e que já trabalha de novo, merece o voto de confiança que lhe foi dado com a medida da pena que foi encontrada com recurso ao regime especial para jovens, pelo que entendia que a decisão recorrida não merce censura, devendo ser mantida nos seus termos.

Finalmente, na resposta ao mesmo parecer, a assistente anotou que concordava com o mesmo, devendo, por isso, o recurso ser julgado procedente, devendo a arguida ser condenada em pena efectiva, aliás, posição esta já tomada em sede de alegações, pois que efetivamente, e independentemente da arguida estar a trabalhar ou não, isso é totalmente irrelevante, uma vez que na altura da data dos factos também referiu a mesma estar a trabalhar, e tendo em conta a forma e os motivos que a levaram a praticar o crime, tendo-lhe a mesma desferido vários golpes, atingindo zonas vitais, e só tendo parado porque foi impedida por CC e DD, que a agarraram e impediram de continuar os seus intentos, tal como é referido, quer no acórdão, quer no recurso, e que transcreve, adiantando seguidamente que, tal como se refere, para além do mais, no recurso, cujos fundamentos tinha por integralmente reproduzidos, “O motivo do crime, a violência da atuação da arguida, as lesões físicas e psíquicas provocadas na vítima permitem concluir que são, no caso em análise, extremas as necessidades de prevenção geral positiva que o caso convoca”, pelo que apenas a aplicação de uma pena de prisão efetiva será de molde a “repor a confiança da comunidade no valor da norma jurídica que prevê e pune o homicídio, finalidade primordial de qualquer pena”, termos em que sustentava que o recurso deverá ser julgado procedente, alterando-se o acórdão nos termos requeridos, determinando-se, em consequência, o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada à arguida.

Apreciando.

Começando pelo texto legal, como se impõe, impõe-se relembrar que estipula o artigo 50º, nº 1, do Código Penal, que “O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Cremos pacífico que no instituto da suspensão da execução da pena está em causa, como pressuposto material, o prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, a efetuar no momento da decisão, e como finalidade político-criminal, o objetivo de que o mesmo se afaste, no futuro, do cometimento de novos crimes[3]. Ou seja, e tal como decorre do citado normativo, aqui está em causa a existência de um juízo de prognose favorável capaz de levar à conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da pena serão bastantes para alcançar as almejadas finalidades punitivas, de forma adequada e suficiente.
Daqui decorre, na esteira do afirmado no Acórdão do STJ, datado de 23/04/08, praticamente alicerçado em citações de identificada obra da autoria do Prof. Figueiredo Dias[4], que a “conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza», mas, tão-só, a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se a disposto a correr um certo risco – digamos fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Porém, ali se acrescenta, “havendo razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não cometer crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada”, adiantando-se que “É preciso não descaracterizar o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição», a funcionar aqui “sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico” e “como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização”. E daí que a pena de substituição, mesmo que “aconselhada à luz de exigências de socialização”, não seja de aplicar se “a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
É claro que, conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, um tal juízo de prognose há de ter assento nos fixados factos, única forma de alcançar os demais vetores traçados no assinalado preceito, a saber, a personalidade do arguido, as suas condições de vida e a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.
De tudo isto cientes, conhecida que é a argumentação recursiva, corroborada no parecer e pela assistente, e a que lhe opõe a arguida, em ambos os casos na respectiva resposta ao parecer, impõe-se revisitar também este aspecto do decidido, no âmbito do qual, e adentro der adequado enquadramento legal e interpretativo e apoiado em variada jurisprudência, salientou-se, e aqui vai citado, que a arguida é delinquente primária, mostrou-se sempre integrada social e laboralmente, manifesta uma dinâmica de orientação pró-famíliar e profissional, perspectivando a manutenção de um estilo de vida ajustado às normas ético-jurídicas vigentes, tem como projecto de vida o aumento de qualificações e a reintegração a nível laboral, para garantir a sua autonomização num futuro próximo, dispõe de enquadramento habitacional e residencial, contando com o apoio de familiares e do actual núcleo familiar que a acolheu, o qual apresenta uma dinâmica de interajuda e suporte e usufrui do apoio quotidiano material e emocional prestado pelos que consigo vivem.
Mais se ponderou que a arguida mostrou-se arrependida e revelou juízo de auto-censura, pelo que se considerava que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, pelo que era de aplicar a pena de substituição de suspensão da execução da pena única de prisão, por igual período, mas, a tenta a idade da arguida, entendeu-se que a suspensão deve ser acompanhada de regime de prova, não só por imperativo legal, como também por tal se mostrar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, visando facilitar a sua reintegração na sociedade, assentando numa ideia de assistência e vigilância, o que se afigurava necessário e imprescindível face aos praticados crimes, à idade daquela e à necessidade de supervisão/consolidação por parte da mesma de um projecto de vida válido e integrado, contexto em que, e atento todo o circunstancialismo que envolveu a prática dos crimes e envolveu a jovem delinquente, o tribunal considerou necessário impor a procura activa de emprego, frequência de cursos profissionais, caso não esteja a trabalhar ou tal não se revele incompatível, bem como, complementarmente, a obrigação de não ter em seu poder objectos capazes de facilitar a prática de crimes quando se ausenta da residência, como navalhas, canivetes, porta-chaves com aptidões a serem pontiagudos e/ou cortantes, além doutros.
Concorda-se integralmente com esta análise, mas já não com o encontrado desfecho.
Na verdade, seguimos a jurisprudência que sustenta que só em casos muito excepcionais é que a punição do crime de homicídio, mesmo que meramente tentado, deverá admitir a suspensão da execução da pena de prisão, já que tal ilícito atenta contra a vida humana, o mais importante de todos os bens jurídicos, e, por isso, deverá ser punido de forma exemplar para proteger um tal bem de forma eficaz, além de que é de primacial importância dar um sinal de confiança à própria comunidade que, se aplicada por via de regra neste tipo de situações, atenta a sua inquestionável gravidade, a irá encarar como um sinal de impunidade que, obviamente, não aceita.
Neste sentido, a título meramente exemplificativo, vide o acórdão do STJ datado de 23/02/2012[5], no seio do qual se anotava que “Do ponto de vista das exigências de prevenção geral, procurando estas estabilizar, através da reacção criminal, as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, deve dizer-se que o sentimento social relativamente a este tipo de crimes é de grande rejeição, pelo que se exige uma certa intensidade na resposta daquela reacção (dita contrafáctica, no seguimento do penalista alemão Jacobs).
Para que se entenda, tratava-se de um crime de homicídio simples, na sua forma tentada, praticado por arguido primário, que revelava consciência crítica dos factos e mostrava-se arrependido, não tendo o tribunal enveredado pela suspensão da execução da pena de três anos de prisão aplicada por entender que “… a suspensão da execução da pena não satisfaria, no caso, as exigências de prevenção geral – a primacial finalidade da aplicação das penas -, ainda que tal substituição seja fundamentalmente norteada por considerações de prevenção especial. Assim, não ocorre o pressuposto material da substituição da pena, contemplado na 2.ª parte do n.º 1 daquele art. 50.º
Com efeito, a gravidade do crime, apesar das suas consequências não terem sido muito pesadas, mas tendo criado perigo para a vida do ofendido e o arguido ter visado a sua morte, e o modo como foi executado, com pluralidade de golpes de uma machada em zonas letais, desaconselham de todo a substituição da pena de prisão, que ofenderia o referido sentimento comunitário. A tolerância da comunidade social, neste caso, esgota--se com a pouca duração da pena de prisão”.
Aqui chegados, e analisando os exactos contornos que os factos revestiram, as suas reais consequências e as circunstâncias em que foram praticados, como se destacava no aresto acabado de citar, e tal como anotava o recorrente, aqui citado, o motivo do crime, o de homicídio tentado, naturalmente, a violência da sua actuação, as lesões físicas e psíquicas provocadas na vítima permitem concluir que são extremas as necessidades de prevenção geral positiva que o caso convoca, pelo que seria de todo incompreensível, do ponto de vista comunitário, que à arguida fosse imposta pena que não seja efetivamente privativa da liberdade, pois que nada mitiga a sua responsabilidade criminal, sendo que nada, na conduta da ofendida, justifica a inesperada violência extrema de que esta foi alvo, não há qualquer explicação racional que permita minimamente compreender por que razão a arguida lhe tentou tirar a vida, e daí que sustente que, alguém que revela tamanho desprezo pelo bem vida humana, que actua por um motivo que, na realidade, não o é, que actua com tamanha violência sobre a vítima, não pode beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
De tudo isto decorre linearmente que existem aqui específicas preocupações em sede de prevenção geral decorrentes da exigível estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, as quais, independentemente da maior valia das resultantes positivamente em sede de prevenção especial de ressocialização e que acima ficaram descritas[6], consabidamente hão-de funcionar como um travão incontornável à almejada suspensão, o que vale por dizer, na versão do primeiro acórdão supra citado, o datado de 23/04/08, e ora parafraseado, que a pena de substituição, leia-se, a suspensão, mesmo que aconselhada à luz de exigências de socialização, não seja de aplicar se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica[7].
E aqui permitimo-nos remeter para o supra aludido parecer, quando ali se explica, com recurso ao próprio diploma especial em questão, que “o regime penal especial para jovens imputáveis, pese embora a sua essencial preocupação ressocializadora, educativa, não exclui a prevenção geral como relevante e decisiva finalidade das penas, mesmo em caso de jovens por ele abrangidos, antes recomendando, precisamente para a acautelar, a efetividade das penas de prisão fixadas em medida superior a 2 (dois) anos, como aqui ocorreu, o que em muito abona e fortalece a pretensão recursiva do MP, que, como dito, merece provimento”.
Neste global contexto, deverá revogar-se o acórdão recorrido no tocante à decretada suspensão da execução da pena única de quatro anos e quatro meses de prisão que vinha aplicada à recorrente, a qual, por isso, passará a efectiva, sem prejuízo, obviamente, da disciplina contida no nº 1 do artigo 80º do Código Penal, não sendo possível determinar o seu cumprimento em regime de permanência na habitação previsto no artigo 43º do Código Penal, aqui perfeitamente equacionável[8], uma vez que a mesma iniciou em 29/04/2021 a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (vide ponto 42 dos factos provados), situação que se mantém, mas à data da prolação do presente acórdão ainda lhe restarão cumprir dois anos, oito meses e quinze dias de prisão, logo, não se verifica o requisito ínsito na alínea b) do nº 1 do supra mencionado preceito.
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Sem tributação quanto ao Ministério Público, atenta a legal isenção estatuída, ao que sempre acresceria o êxito recursivo (cfr. artigo 522º, nº 1 Código de Processo Penal).

Face ao seu decaimento total no recurso, a arguida deverá suportar as inerentes custas, entendendo-se adequado, atento o trabalho processual desenvolvido e a sua complexidade, fixar em quatro UC a taxa de justiça devida, nos termos dos artigos 513º, nºs 1 a 3 e 514º, ambos do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes nesta Relação acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, em consequência do que, e naquilo que aqui vinha questionado, decidem revogar o acórdão recorrido no tocante à decretada suspensão da execução da pena única de quatro anos e quatro meses de prisão que vinha aplicada à recorrente, a qual, por isso, passará a efectiva.

Sem tributação quanto ao recorrente.

Custas pela recorrida, fixando-se em quatro UC a taxa de justiça devida.

Notifique.
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Porto, 14/12/2022.[9]
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95.
[3] Neste sentido, vide Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Equitas, Editorial de Notícias, 1993, págs. 342 a 344.
[4] Vide o citado Acórdão relatado pelo Conselheiro Soreto de Barros in http://dgsi.pt, anotando-se que tal aresto cita o Prof. Figueiredo Dias, in «As Consequências Jurídicas do Crime».
[5] Acórdão relatado pelo Ex.mo Conselheiro Rodrigues da Costa, a consultar in http://dgsi.pt.
[6] As quais, embora francamente positivas, não deixam de nos alertar para uma personalidade da arguida bastante preocupante, pois que, tal como resulta do ponto 6 dos factos provados, era hábito de a mesma andar munida com a faca, cujas específicas características falam por si em sede de perigosidade objectiva, além de que outros instrumentos semelhantes foram apreendidos na sua residência, conforme decorre do ponto 25 dos factos provados, ao que acresce ainda o facto de a mesma ter actuado com notória premeditação, pois que convocou a ofendida para comparecer no seu bairro e ia munida com a faca, cujas características falam por si, que depois utilizou.
[7] O ora relator já proferiu decisão similar no âmbito do processo nº 834/18.0, em 05/02/2020, não publicitado, igualmente subscrito pela aqui 1ª Adjunta, em que estava também em causa uma tentativa de homicídio, além doutro, com uso de arma branca, e com contornos similares em termos de prevenção especial, mas em que era igualmente patente a denotada personalidade do arguido e a violência da sua actuação.
[8] Já que estaria apenas em causa saber se dessa forma se realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena, o que nos afasta de outro tipo de preocupações em sede de prevenção que pudessem comprometer as de prevenção geral supra assinaladas e aqui determinates para o decidido.
[9] Texto composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).