Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
684/20.3T8SJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OBRIGAÇÃO DE RECONSTITUIÇÃO NATURAL
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RP20240408684/20.3T8SJM.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tem vindo a ser pacificamente aceite que as causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC, respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”, pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito.
II - A nulidade por vício da contradição previsto na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, sanciona a contradição entre a decisão e seus fundamentos ou a ininteligibilidade/obscuridade da decisão.
III - Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar o exigido pelo artigo 640º nº 1 do CPC.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s), sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte – vide nº 2 al. a) do mesmo artigo 640º do CPC “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
O incumprimento do exigido pela al. a) do nº 2 do artigo 640º do CPC, impõe a rejeição da reapreciação da decisão de facto no que dependente estiver da prova gravada produzida.
IV - A obrigação da reconstituição natural em sede indemnizatória só é afastada nos termos do artigo 566º nº 1 do CC quando esta se torna um meio impróprio ou inadequado, nomeadamente por excessiva onerosidade para o devedor.
V - A impropriedade ou inadequação da reconstituição natural, nomeadamente por excessivamente onerosa, incumbe ao devedor provar, enquanto facto impeditivo do direito indemnizatório reclamado pelo autor à reconstituição natural.
VI - Na ponderação do interesse do lesado à reconstituição natural deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo em questão; a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo.
VII - Demonstrada não só a efetiva privação do uso como consequência do sinistro ocorrido, como demonstrada a perda das utilidades que o uso do veículo proporcionaria ao lesado, se não estivesse estado paralisado a aguardar reparação, reconhece-se àquele um direito indemnizatório – desde a data do acidente até à data em que a R. disponibilizar ao lesado o montante necessário à reparação.
VIII - Não apurado o valor exato dos danos, é a sua fixação efetuada com recurso aos critérios de equidade, de acordo com o previsto no artigo 566º nº 3 do CC.
IX - Na fixação e reapreciação de tal valor indemnizatório, releva ter presente o reiterado entendimento jurisprudencial de que a fixação de um quantum indemnizatório em que se recorre a juízos de equidade, porque assente na ponderação das circunstâncias apuradas e relevantes de cada caso concreto e não em razões estritamente normativas, apenas deverá ser alterado quando evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade, bem como e apenas alterado quando se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 684/20.3T8SJM.P1

3ª Secção Cível

Relatora –M. Fátima Andrade

Adjunto – Manuel Fernandes

Adjunta –Eugénia Cunha

Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca de Aveiro – Jz. de Competência Genérica de São João da Madeira

Apelantes/Apelados - “A... – Companhia de Seguros, S.A.” e AA

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório

AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “A... – Companhia de Seguros, S.A.”.

Pela procedência da ação peticionou o A. a condenação da R. a:

“pagar ao aqui Autor a importância global líquida de € 9.678,42, e ainda no pagamento da indemnização que por força dos factos alegados nos artigos 85.º e 86.º vier a ser fixada em decisão ulterior por via de incidente próprio.

Todas as quantias acrescidas dos juros moratórios contados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento”.

Para tanto e em suma alegou ter ocorrido um acidente de viação no dia 27/07/2020, no qual foram intervenientes um veículo ligeiro de passageiros de matrícula “TC”, de sua propriedade e por si conduzido, e o veículo pesado de transporte de matrícula “HN”, pertencente a “B..., S.A.” e conduzido por BB.

Acidente que, nos termos em que o descreveu, se ficou a dever única e exclusivamente ao condutor do “HN”, cuja proprietária havia transferido à data a responsabilidade civil emergente da circulação do mesmo para a aqui R..

De tal acidente tendo advindo para o A. danos vários que descreveu, cuja indemnização peticiona da aqui R., em parte a liquidar posteriormente, nos termos acima mencionados.


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Devidamente citada a R., contestou.

Tendo aceite a responsabilidade do condutor do veículo seguro, questionou apenas os danos alegados pelo autor.

Concluindo pela procedência parcial da ação, até ao limite de € 4.500,00, absolvendo-se a R. do restante pedido.


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Agendada e realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.

Sem censura.


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Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, decidindo-se a final:

“julga-se a ação parcialmente procedente por parcialmente provada, e consequentemente, condena-se a Ré no pagamento ao Autor da quantia:

a) de 7258,00€ (sete mil duzentos e cinquenta e oito euros), bem como, no pagamento dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efetivo

e integral pagamento,

b) de 1210,00€ (mil duzentos e dez euros), a título de indemnização pela privação do uso, desde a data do acidente até à propositura da ação, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

d) no pagamento da indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior por via de incidente de liquidação por privação da utilização do veículo automóvel desde

a data de 21 de novembro de 2020.

c)Absolve-se a Ré do demais peticionado.”


*

Do assim decidido apelou a R. e o A. subordinadamente.

Apelou a R., oferecendo alegações e formulando a final as seguintes Conclusões:

“A. Impõe-se a retificação de erro / lapso exarado na Sentença proferida, por fazer menção a depoimento de testemunha que erradamente identifica como CC, que não existe nestes autos, quando pretenderia referir-se à testemunha DD, cujo depoimento corresponde ao exarado na Motivação;

B. Impõe-se a alteração do julgamento da matéria de facto, devendo considerar-se como facto provado a matéria indicada no facto não provado 3, repondo a imprescindível sintonia e conformidade com a demais factualidade provada, em obediência à própria Motivação exarada na Sentença proferida, só assim se erradicando e regularizando as anomalias de contradição entre a factualidade julgada provada e não provada, e a necessária adequação material à própria Motivação exarada na Decisão;

C. A Sentença proferida erradica vício que importa a sua nulidade, tal a desconformidade e contradição entre a matéria de facto julgada provada e não provada, por confronto com a Motivação exarada, e a contrario, a decisão de mérito proferida, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. c), CPC;

D. A Decisão proferida viola de forma ostensiva e exuberante o disposto pelo artigo 41º, nºs 1, al. c), 2 e 3, do Decreto-Lei nº 291/2007, ao ignorar a consideração de perda total da viatura OE, em face dos factos provados;

E. A Decisão proferida viola igualmente de forma ostensiva e exuberante o disposto pelo artigo 42º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 291/2007, ao ignorar a consideração de perda total da viatura OE, em face dos factos provados, e o regime específico de viatura de substituição / ressarcimento de dano de privação uso para situações de perta total de viatura;

Termos em que, deve ser proferido douto Acórdão que, revogando a Sentença proferida, e em cumprimento do determinado pelos artigos 41º, nº 1, al. c), 2 e 3, e 42º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 291/2007, julgue a ação procedente apenas pelos valores de perda total da viatura sinistrada (€. 4.500,00) e pelo dano de privação de uso da viatura no período de 10 dias (desde a data de sinistro 27.07.2020 até à data a partir da qual o autor tem conhecimento da proposta de regularização de danos, quando a sua própria seguradora lhe transmitiu a consideração de perda total da viatura sinistrada), nos termos e com as consequências legais,

Só assim se fazendo a devida JUSTIÇA!”


*

Apelou o A. subordinadamente, oferecendo alegações e formulando a final as seguintes

Conclusões:

“1.ª - A única divergência relativamente á sentença recorrida prende-se com a fixação da indemnização pela privação do veículo, quanto ao seu montante diário.

2.ª - Ora, in casu, provou-se que o veículo do Autor era por si usado em todas as suas deslocações para tratar de assuntos pessoais, designadamente, para ir às compras, para ir à missa, para ir ao médico, para ir ao café, para visitar os seus amigos, deslocações de lazer e que na falta do veículo, o Autor teve que pedir veículos emprestados, não se deslocando à sua vontade, como normalmente fazia, por circular em veículos emprestados, e ficando a dever os inerentes favores.

3.º - Deste modo, ponderados todos estes factos, pensamos que tal dano deve ser quantificado, por equidade, em 20,00 euros diários, tal como veio peticionado, desde a data do acidente até 20 de novembro de 2020, o que corresponde a 2.420,00 € (dois mil quatrocentos e vinte euros).

4.º - Sem prejuízo, com bem se refere na sentença recorrida, de que a indemnização daí em diante, seja fixado ulteriormente em incidente próprio.

5.ª - Ao assim não decidir, a sentença recorrida violou, entre outras disposições legais, o disposto nos artigos 483.º, 562.º e 564.º, todos do Código Civil.

TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO SUBORDINADO MERECER PROVIMENTO, SENDO A PRESENTE DECISÃO REVOGADA E CONSEQUENTEMENTE SUBSTITUIDA POR OUTRA NOS MOLDES ACIMA APRESENTADOS, COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA!”


*

Não se mostram apresentadas contra-alegações.

*

Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.


***

II- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes, serem questões a apreciar:

1) Recurso da R. “A...”

- retificação de manifesto lapso de escrita [vide conclusão A)];

- nulidade da sentença por vício da contradição [vide conclusão C)];

- erro na matéria de facto [vide conclusão B)];

- erro na subsunção jurídica dos factos ao direito [vide conclusões D) e E)].

2) Recurso subordinado do A.

- erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.


***

III- Fundamentação

Foram julgados provados os seguintes factos:

“A) FACTOS PROVADOS

1.º No dia 27 de julho de 2020, pelas 14,30 horas, ocorreu um embate na Rua ..., em São João da Madeira.

2.ºForam intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de marca BMW, ..., de matrícula ..- ..-TC, propriedade do Autor e por si conduzido e o veículo pesado de transporte, de marca Renault, de matrícula ..-HN-.., propriedade de B..., S.A., conduzido por BB.

3.ºO local comporta duas faixas de rodagem, no mesmo sentido de trânsito.

4.ºAmbas as viaturas dirigiam-se para a rotunda que entronca com a Avenida ....

5.ºO veículo TC circulava na faixa da direita e o veículo HN circulava na faixa da esquerda.

6.ºQuando circulavam praticamente a par, o condutor do HN virou a viatura em que seguia, no sentido de aceder à via da direita, por onde circulava o veículo conduzido pelo aqui Autor.

7.º transpondo o eixo da via.

8.ºPor via da manobra de mudança de direção que o condutor do HN empreendeu, embateu com a parte da frente e do lado direita, na parte lateral esquerda do veículo TC.

9.º que na altura se encontrava a circular pela via da direita.

10.º A colisão ocorreu na via de circulação afeta ao sentido de marcha do veículo TC,

11.º no sentido de trânsito seguido por ambos os veículos.

12º a via apresenta-se em reta, com uma visibilidade superior a 50 metros.

13.ºO tempo estava bom e o piso encontrava-se seco.

14.º O veículo do Autor, após o acidente, foi rebocado para a C..., em Santa Maria da Feira, porque se encontrava impossibilitado de circular.

15.ºApresentando danos em toda a lateral esquerda, mormente nas portas, painéis laterais, retrovisor, resguardos, pneus, suspensões, longarinas, jantes, para-choque, amortecedores;

16.º A reparação em consequência dos danos causado pelo embate, orça a quantia total de euros 7.258,42 €.

17.ºTal Orçamento de Reparação, engloba trabalhos de mão de obra de chapeiro, bate chapas, mecânica, pintura.

18º O veiculo do Autor encontrava-se em bom estado de conservação

19.º foi sendo guardado diariamente em garagem privativa.

20.º Nunca tendo sofrido qualquer acidente.

21.ºDe mecânica, com as revisões e inspeções em ordem.

22.ºSempre havia dispensado à viatura rigorosa assistência, tanto a seu parque mecânico, como à sua carroçaria, em oficina especializada.

23.ºO Autor não se dispunha a vender o veículo.

24.º Consistindo o mesmo no seu único meio de transporte.

25.º Era usado pelo Autor em todas as suas deslocações para tratar de assuntos pessoais, designadamente, para ir às compras, para ir à missa, para ir ao médico, para ir ao café, para visitar os seus amigos, etc…

26.º para as deslocações de lazer.

27.º Na falta do veículo, o Autor teve que pedir veículos emprestados, não se deslocando à sua vontade, como normalmente fazia, por circular em veículos emprestados, e ficando a dever os inerentes favores.

28.ºUtilizando também os transportes públicos, perdendo, por via dos horários dos mesmos, imenso tempo.

29.º E, não raras vezes, ficava em casa, abstendo-se de se deslocar porque não tinha meio de transporte.

30.ºA vida diária do Autor sofreu transtornos, deixando de executar certas tarefas e atividades ligadas ao seu prazer pessoal.

31.º Sofreu angustia e ansiedade.

32.ºO veículo do Autor é do ano de fabrico de 2002.

33.ºContava já com cerca de 183.000 km percorridos à data do embate.

34.º Era de origem importado usado, o que por si só provoca desvalorização de 15/20% relativamente a viatura idêntica adquirida em novo no território nacional.

35.ºO valor fixado pelos serviços da seguradora do próprio veículo TC, foi de €. 4.000,00.

36.ºOs serviços técnicos da Ré consideraram um valor nunca superior a €. 4.500,00.

37.ºO valor estimado para reparação dos danos materiais sofridos pela viatura TC teve por base a utilização e aplicação de peças alternativas (concorrência) mediante aceitação do Autor, na tentativa de reduzir o correspondente valor para viabilizar a reparação.

38º.Em colaboração com a congénere seguradora do veículo do Autor, a D..., ao abrigo da Convenção IDS, a Ré conformou-se com os valores de dano avaliados e fixados pelos serviços técnicos desta seguradora.

39.ºAos salvados foi atribuído a valorização de €. 929,00, sendo que a congénere D... lhes havia fixado (€. 635,00).

40.ºA Ré prontificou-se a pagar a quantia de 4571,00€ (considerando a mesma que o valor venal era de €. 4.500 e os Salvados €. 929).

41.ºCom base na conclusão de que a viatura se encontra, face ao montante para a reparação, numa situação de perda total.

42.º O Autor não aceitou essa proposta.

43.ºPerante a recusa do Autor a Ré admitiu proceder a regularização pelo valor de €. 4.500 ficando os salvados (€. 929) em poder do Autor.

44.ºDesde pelo menos 05.08.2020 que o Autor tem conhecimento da proposta de regularização dos danos, quando a sua própria seguradora D... lhe comunicou.

45.º O condutor do HN conduzia o mesmo por conta, interesse e direção efetiva do seu proprietário, B..., S.A.

46.ºA proprietária do veículo ..-HN-.. tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidente de viação, relativamente a danos causados a terceiros, transferida para a Ré A..., mediante a apólice n.º ....”


*

Julgou o tribunal a quo não provados os seguintes factos:

“Não provados:

Não se provou que:

1- De pintura, o veículo do Autor estava em excelente estado.

2- O estado de conservação do veículo fosse meramente razoável.

3- O veículo TC apresentava, à data do sinistro, um valor nunca superior a €. 4.500,00.

4- O aluguer de uma viatura similar importaria num custo diário não inferior a € 45,00.”


*

***


Conhecendo.

Em função das questões enunciadas como objeto do recurso e colocadas à nossa apreciação, respeitando a ordem indicada no artigo 608º do CPC (ex vi artigo 663º nº 2 do CPC), será apreciado em primeiro lugar as questões da retificação e nulidade da sentença, bem como do erro na decisão de facto, invocados pela recorrente R..

Após e em função do que vier a ser decidido, sendo apreciada a questão do erro na subsunção jurídica dos factos ao direito, convocada por ambos os recorrentes.

Os quais comungam quanto ao alvo do desacordo – a quantificação do dano pela privação da viatura.


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1) Retificação da sentença.

O lapso – de referência de testemunha - é manifesto como a recorrente o anota, confirmando ainda que a explanação do depoimento imputado a pessoa diversa, corresponde efetivamente ao depoimento da testemunha DD.

A esta matéria nada tendo o recorrido contraposto.

Verificada a ata de audiência de julgamento, foi ouvido como testemunha da R. unicamente DD, perito de seguros.

Testemunha esta identificada no Relatório de peritagem da E... junto sob doc. 2 pela R. como perito (e igualmente junto pelo autor na p.i.).

CC está também identificado como supervisor em tal documento, mas efetivamente não foi ouvido como testemunha, como resulta do mero confronto com a ata de audiência de julgamento.

Assim é evidente o lapso cometido, pelo que impõe-se a retificação da sentença recorrida, por forma a, na página 7 da sentença - último parágrafo, onde consta “A testemunha CC, supervisor da Ré (...)” passar a constar “A testemunha DD, perito de seguros na “E...” (...)».

Retificação que aqui se tem por operada.

D. N..

2) Nulidade da sentença.

A arguida nulidade, foi sustentada pela recorrente  invocando contradição entre a matéria de facto julgada provada e não provada [em causa o facto não provado 3 (que a recorrente pugna seja julgado provado, em sede de impugnação da decisão de facto) versus os factos provados 35, 36, 38 e 40] e entre a primeira e a decisão de mérito proferida – nulidade nos termos do artigo 615º nº 1 al. c) do CPC [fundamento invocado pela recorrente “A...”].

Tem vindo a ser pacificamente aceite que as causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC[1], respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[2], pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[3].

Por outro lado, e no que em concreto respeita à nulidade por vício da contradição previsto na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC – sanciona esta a contradição entre a decisão e seus fundamentos ou a ininteligibilidade/obscuridade da decisão.

Em causa, a verificação de um vício expositivo da decisão alvo de censura.

Devendo a decisão ser, num procedimento silogístico, a conclusão lógica deduzida de premissas anteriores, verifica-se o vício da contradição quando os fundamentos antes expostos conduziriam a decisão oposta à seguida. Ou a mesma não for percetível.

Assim caraterizado este vício e analisados os argumentos apontados pela recorrente para fundamentar os mesmos, resulta claro não lhe assistir razão.

Alega a recorrente para fundamentar a contradição que invoca e que enquadra na nulidade da sentença – artigo 615º nº 1 al. c) do CPC - a necessidade de o facto não provado 3 dever ser julgado provado em função do que consta provado em 35º, 36º, 38º e 40º, por entre os mesmos existir contradição.

Só desta correção, resultando regularizadas “as anomalias de contradição entre a factualidade julgada provada e não provada e a necessária adequação material à própria motivação exarada na decisão”.

O mesmo é dizer que a recorrente imputa à decisão de facto erro de julgamento que sustenta entre o mais na contradição que na sua perspetiva os factos julgados provados e não provados evidenciam.

Tal é questão que contende, contudo, não com a nulidade da sentença arguida ao abrigo do disposto no artigo 615º, mas antes com erro de julgamento, nos termos que acima deixámos assinalados. A apreciar nos termos dos artigos 662º e 663º do CPC.

Improcede, em conclusão, a pela recorrente invocada nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615º nº 1 al. c) CPC.

3) Em terceiro lugar cumpre apreciar do imputado erro de julgamento em sede de decisão de facto – em causa o ponto 3 dos factos não provados, que a recorrente pugna seja julgado provado.

Para efeito de reapreciação da decisão de facto, será analisado se foram observados os ónus de impugnação e especificação que sobre a recorrente recaíam.

Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

A recorrente não deu observância ao disposto no nº 2 al. a) do artigo 640º do CPC, pelo que sem mais se impõe a rejeição da reapreciação da decisão de facto, no que dependente esteja da prova gravada produzida.

A alteração da redação dada ao ponto 3 dos factos não provados, apenas poderá ter procedência na medida em que da própria análise da decisão resulte, sem mais, evidente o erro de julgamento de tal facto, nomeadamente e considerando o alegado pela recorrente, por dos factos provados resultar realidade diversa, com este incompatível.

Na verdade, a argumentação da recorrente reconduz-se em grande medida – nos termos que já deixámos enunciados na apreciação da invocada nulidade da decisão por contradição - precisamente a uma apurada contradição entre o julgado não provado sobre o ponto 3 e os factos provados 35º, 36º, 38º e 40º, quando analisado de forma conjugada com a fundamentação da decisão de facto aduzida na decisão recorrida.

Para melhor clareza de exposição, deixam-se aqui reproduzidos os factos provados e o não provado convocados pela recorrente:

- factos provados

“35.º O valor fixado pelos serviços da seguradora do próprio veículo TC, foi de €. 4.000,00.

36.º Os serviços técnicos da Ré consideraram um valor nunca superior a €. 4.500,00.

(...)

38º. Em colaboração com a congénere seguradora do veículo do Autor, a D..., ao abrigo da Convenção IDS, a Ré conformou-se com os valores de dano avaliados e fixados pelos serviços técnicos desta seguradora.

40.º A Ré prontificou-se a pagar a quantia de 4571,00€ (considerando a mesma que o valor venal era de €. 4.500 e os Salvados €. 929).”

- facto não provado

“3- O veículo TC apresentava, à data do sinistro, um valor nunca superior a €. 4.500,00.”

Tendo o tribunal a quo fundamentado a formação da sua convicção nos seguintes termos:

“A convicção do tribunal assenta no conjunto da prova produzida, conjugada com as regras de experiência comum, concretamente, a nível documental, livrete, documento do reboque, relatório de peritagem, apólice do seguro, carta da Ré, recibo de indemnização, declarações do Autor e depoimentos testemunhais que se revelaram credíveis não tendo porém o Tribunal ficado do valor venal alegado pela Ré, face aos demais elementos provados atinentes às características do veículo que reputou como bom estado e não meramente razoável[4].

Os factos atinentes à dinâmica do acidente, à configuração do local, danos, sofridos, respetivo custo de reparação encontram-se admitidos por acordo.

A Autor, nas suas declarações foi convincente.

Confirmou os danos do veículo a impossibilidade de circular, que depois do acidente a assistência em viagem levou o veículo para o concessionário onde se encontra até à data.

Justificou que não procedeu à reparação por falta de autorização da seguradora sendo que a proposta de indemnização não era suficiente para tal 4500€ mais o salvado, pelo que não a aceitou.

Afirmou, perentoriamente, que não tinha a perspetiva comercial e que não venderia o seu veículo por menos de 10.000€, nem sequer pelo valor da reparação pretendendo sim repará-lo e continuar com o veículo.

Referiu que comprou por cerca de 7100€ em 2015 a um amigo que tinha o carro “encostado” e adquirido peças.

Declarou que recorreu a sites de venda de automóveis a procurar veículos com as mesmas condições e não encontrou nenhum pelo valor oferecido, sendo que o estado do veículo anterior ao acidente era bom, nunca teve problemas e tinha efetuado intervenção nos injetores um ano antes do acidente, sendo muito estimado.

Declarou que utilizava diariamente aquele veiculo em todas as duas deslocações, inclusive, a nível profissional, tendo percorrido cerca de 25 mil Km/ano, 2.000 km/mês e 50 km/dia e que quando adquiriu o veiculo já tinha perto de 90mil quilómetros e efetuou “outro tanto”.

A testemunha EE, engenheiro mecânico, filho do Autor de forma isenta confirmou a utilização, diária do veículo por parte do Autor sobretudo em deslocações pessoais

Referiu-se em conformidade aos cuidados e estima do Autor com o veículo que levou-o sempre às revisões, guardou sempre em garagem, classificando de exemplar o estado do veículo para a idade que tinha e aos efeitos da sua imobilização.

Confirmou que o Autor não comprou nenhum veículo, desloca-se pé ou com carros emprestados, o que lhe causa transtorno, tendo o Autor expresso o impacto negativo da privação do veículo e seu desagrado de ter de recorrer a terceiros e inerente favores e causar incómodos e transtornos a outras pessoas e que não pode realizar deslocações no tempo que pretendia efetuar que adiou.

A testemunha FF, mecânico de automóveis, reportou-se ao estado do veículo antes e depois do acidente.

Conhecia o veiculo visto que efetuava revisões e tinha todas inspeções, classificando-o como “impecável” pois o Autor teve sempre cuidado e havia colocado bomba e confirmou que foi aplicado um injetor que custou uma quantia superior a mil euros.

Identificou os danos, cuja reparação o Autor pretendia, não demostrando conhecimento dos preços de veículos similares no mercado.

A testemunha DD, perito de seguros na E..., S.A. descreveu as diligências encetadas referentes à avaliação do veículo.

Quanto ao valor da reparação baseou-se no orçamento, indicado pela oficina da C... concluindo que economicamente ultrapassava o valor da viatura.

A testemunha (...) descreveu o estado do veiculo como meramente razoável, não estava em condições ótimas, atestam no contacto visual estado em si, não sabendo as condições para além dos aspetos visuais mencionando um aspeto negativo relativamente à pintura estava queimada, com muito desgaste.

Confirmou o valor da reparação de 7258,00€ e que em regra, estes valores são indicados sem contar a desmontagem, sendo que em regra, ocorre um ligeiro aumento de 15% no orçamento final.

Justificou que atribuiu o valor de 4500,00€ como sendo o do valor de mercado conforme consulta e comparação de sites indicados, olx, custo justo, tirou print anexado no relatório, mas que não se mostra junto aos autos.

Explicou que procurou um valor médio, tendo em conta a marca, modelo, quilometragem, seu estado de conservação bem mantido acima da media de manutenção, contactou mais do que um comerciante automóvel para lhe dar preço e não no simulador disponível na net, por este se referir a veículo com menos de 10 anos e não ser o caso do veículo do Autor.

Acrescentou que tratando-se de veiculo importado tem uma desvalorização de 15 ou 20% protocolado, do que originariamente matriculado, mas que não aplicam essa desvalorização para não penalizar.

A convicção negativa resulta da prova de facto diverso quanto aos dois primeiros e terceiro e da insuficiência de prova quanto ao segundo.”

Do confronto entre os factos provados e não provados e a fundamentação de facto, não resulta qualquer contradição.

O que o tribunal a quo julgou como provado em 35º, 36º, 38º e 40º foi os valores que os serviços da seguradora do TC e os da R. atribuíram ao TC, bem como o valor dos salvados e ainda a quantia que a R. se prontificou a pagar ao A..

Já não tendo julgado provado – e como a fundamentação que acima deixámos reproduzida o evidencia – qual era o efetivo valor do TC à data do sinistro.

São realidades diferentes, o valor atribuído ao TC pelas seguradoras e o efetivo valor do mesmo/valor patrimonial à data do acidente.

E, como tal, os factos entre si não conflituam. Bem antes pelo contrário.

Em conformidade aliás com esta decisão da matéria de facto, veio o tribunal a quo em sede de subsunção jurídica dos factos ao direito a concluir que atenta a não prova do valor de mercado do TC antes do acidente, não se pode concluir por uma demonstrada situação de perda total.

Note-se que se o assim decidido merece censura, é questão diversa a apreciar oportunamente.

Concluindo, do confronto entre os factos provados e não provados versus fundamentação da decisão de facto, reforçado ainda pela subsunção jurídica operada, resulta clara a inexistência de uma qualquer contradição que imponha a alteração do sentido decisório do facto não provado 3.

Quanto ao mais, ou seja, se perante toda a prova produzida ocorre erro de julgamento quanto a este ponto factual, na medida em que tal implicaria também a reapreciação da prova gravada produzida é questão que está afastada do nosso conhecimento. Como já referido foi rejeitada a reapreciação da decisão facto, no que implicasse a reapreciação da prova gravada, por não observância dos ónus de impugnação e especificação sobre a recorrente incidentes.

Termos em que se decide pela improcedência da impugnação da decisão de facto, cujo teor se mantém.

4) Do direito.

Em função do acima decidido e mantida a decisão de facto que vem fixada pelo tribunal a quo, cumpre analisar se ocorre erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.

Erro que tanto A. como R. suscitaram.

Tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC], resulta das conclusões de recurso terem sido colocadas à nossa apreciação as seguintes questões:

Pela recorrente A... – demonstração da perda total do veículo, sustentada no previsto no artigo 41º do DL 291/2007. Artigo que na tese da recorrente “apresenta disposição específica e vinculativa que determina o que é considerado perda total da viatura sinistrada”; como consequência da procedência da primeira argumentação, fixação do dano de privação de uso entre a data do sinistro e a data em que a R. comunicou ao A. a consideração de perda total da viatura sinistrada, ou seja, 10 dias.

 Pelo recorrente A. – em causa apenas o montante fixado diariamente a título indemnizatório pela privação do uso do veículo. Defendendo o recorrente que tal valor deverá ser fixado em € 20,00 diários, ao invés dos € 10,00 fixados pelo tribunal a quo.


*

Analisemos em primeiro lugar as questões suscitadas pela R. recorrente.

Da perda total da viatura defendida pela recorrente, contra o que foi entendido pelo tribunal a quo.

" Para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém", [cfr. A. Varela in "Das Obrigações em Geral" vol. 1º, 5ª ed., p. 557].

Existindo o dano, aquele que estiver obrigado a repará-lo, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562º do C.C.). A lei manda "reconstituir, não a situação anterior à lesão, mas a situação (hipotética) que existiria, se não fora o facto determinante da responsabilidade." Ant. Varela in ob. cit. p. 862.

Nos termos do disposto no art.º 566º n.º 1 do C.C. " A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

2- Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos." (sublinhado nosso).

Do citado artigo 562º extrai-se a regra geral da reconstituição natural, a qual só é afastada, nos termos do artigo 566º n.º 1 quando esta se torna um meio impróprio ou inadequado, nomeadamente por excessiva onerosidade para o devedor, entendida esta como a “manifesta desproporção entre o interesse do lesado que importa recompor e o custo que a reparação natural envolve para o responsável” – in casu está em causa a reparação do TC por forma a colocar o lesado na situação que existiria se não fosse o evento danoso.

Nestes casos de insuficiência ou inadequação da reconstituição in natura, deve então a indemnização ser fixada em dinheiro, calculada em função da situação concreta do lesado, tendo como medida a diferença “entre a situação real atual e a situação hipotética correspondente ao mesmo momento” (vide mesmo autor in ob. cit. p. 877/878), em conformidade com o que dispõe o artigo 566º n.º 2 do CC que manda atender à diferença entre situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.

Assim e tendo como ponto de partida os danos provocados no TC, tem o lesado por regra direito à sua reparação – reconstituição in natura.

Assim só não acontecendo quando esta reparação for excessivamente onerosa ou o bem sofrer perda total. Caso em que terá o lesado direito a uma indemnização.

A impropriedade ou inadequação da reconstituição natural, nomeadamente por excessivamente onerosa, incumbe ao devedor provar, enquanto facto impeditivo do direito indemnizatório reclamado pelo autor à reconstituição natural[5].

Discutido na jurisprudência bem como na doutrina se para efeitos indemnizatórios e para aferição da excessiva onerosidade da reconstituição natural se deve atender ao valor venal (ou seja comercial) do bem danificado (in casu o TC) ou antes ao seu valor de substituição ou de uso, tem de forma reiterada vindo a ser entendido como critério orientador adotado o valor de substituição, igualmente identificado como valor patrimonial, porquanto só assim e numa interpretação mais conforme ao disposto no artigo 566º n.º 2 do CC os interesses do lesado são devidamente salvaguardados[6].

Em conformidade com este entendimento veio (aliás) no artigo 41º DL 291/2007 [o qual aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis] a ser consagrado que:

“2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.” – assimilando aqui o legislador o conceito de “valor venal” a “valor de substituição”.

Este artigo 41º [convocado pela recorrente nas suas alegações, em abono da sua posição] insere-se no capítulo relativo à “Regularização de Sinistros” o qual “fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.” (vide artigo 31º do citado DL).

Este procedimento regulado no citado DL visou em sede extrajudicial fornecer critérios objetivos orientadores da proposta a apresentar pela seguradora aos lesados em sede indemnizatória em termos razoáveis, com vista a um possível acordo extrajudicial.

Porém e não sendo possível às partes chegar a um entendimento sobre o quantum indemnizatório, não são, como é comummente aceite e ao contrário do defendido pela recorrente, tais regras vinculativas para o tribunal que passará a julgar de acordo com a lei e nomeadamente em respeito às disposições do CC e aos princípios atinentes à responsabilidade civil[7].

Assente que em sede indemnizatória a reconstituição natural quando excessivamente onerosa (ou impossível), deverá ser excluída, importa aferir os termos em que a “excessiva onerosidade” deverá ser balizada.

O já citado artigo 41º fornece como critério orientador, não vinculativo, do conceito de perda total – caso em que igualmente estabelece que a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo – entre outras situações, aquela em que:

“c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos. “.

Através de um critério objetivo matemático que como já vimos não vincula o tribunal, pretendeu o legislador definir os limites a partir dos quais é afastada a obrigação da reconstituição natural por excessiva onerosidade em sede de regularização de sinistros por via extrajudicial.

Embora se aceite que os limites previstos nesta al. c) poderão servir de ponto de partida e como limite mínimo para a análise desta questão, importa ter presente que a excessiva onerosidade e por referência ao previsto no artigo 566º do CC deverá ser aferida, conforme tem vindo a ser jurisprudencialmente defendido, entre o interesse do lesado à total reparação do veículo (quando possível) e o custo que tal representa para o responsável. Só perante uma manifesta desproporção entre estes dois interesses se devendo entender justificado o afastamento da obrigação da reconstituição natural / in casu a reparação total da viatura.

Assim e na ponderação do interesse do lesado à reconstituição natural deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo em questão; a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo[8].

Da parte do devedor sendo de ponderar nomeadamente a repercussão que a reparação natural representará para o seu património.

Tal como afirmado no supracitado Ac. de 09/03/2020:

“para se concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, além de não bastar um qualquer excesso do custo da reparação[...], face ao valor do veículo sinistrado, necessário se torna apurar que o valor apontado como venal ou comercial permite efetivamente a aquisição de um veículo idêntico ou similar ao acidentado e que de igual modo satisfaça as necessidades do lesado[...].

Na verdade, é da experiência comum, que uma coisa é o valor venal ou o valor de mercado e outra, bem distinta, o valor de uso que certa coisa representa para o seu titular, ou seja, o “mercado” pode atribuir um certo valor a um certo bem, sem que isso signifique que o seu titular que dele usufrui está disposto a desfazer-se dele por tal montante e muito menos que esse montante eventualmente obtido em tal transação lhe permitirá a aquisição de um bem que dê igual satisfação às suas necessidades como aquele que foi transacionado[...].

(...)”

Tendo presentes estes considerandos sobre a aferição da “excessiva onerosidade” que afasta a obrigação da reconstituição natural, dos mesmos resulta ser necessário à aplicação deste critério orientador, como ademais, à aferição por parte deste tribunal, de acordo com a lei e nomeadamente, no previsto no CC, tendo presentes os princípios atinentes à responsabilidade civil, a prova do valor de substituição / valor patrimonial do veículo sinistrado.

Prova que como já referido, à R. recorrente incumbia fazer.

Não tendo a R. recorrente logrado provar este valor, resulta deste logo improcedente a sua pretensão de aferição da excessiva onerosidade da reparação do veículo e consequente consideração da sua perda total, por falta de prova de elemento essencial a tal julgamento.

Implicando nenhuma censura merecer o decidido pelo tribunal a quo nesta sede.

Face ao assim decidido, resulta clara a improcedência da segunda questão suscitada pela recorrente – quanto aos dias a fixar pela privação de uso do TC.

Não tendo a recorrente disponibilizado ao recorrido o valor necessário à reparação do TC, é a mesma responsável pela indemnização do chamado dano de uso ou fruição, na medida em que se considera a privação da utilização da viatura de que efetivamente o lesado fruía, um efetivo dano indemnizável, cuja quantificação é feita com recurso à equidade.

Nesta dimensão, toma-se como correto o entendimento jurisprudencial, maioritariamente seguido pelo STJ que defende constituir o dano da privação do uso um dano autónomo suscetível de indemnização desde que o lesado alegue e prove não só que ficou impedido de utilizar o veículo em causa, como ainda que essa impossibilidade de utilização se traduziu numa efetiva impossibilidade de fruir das utilidades que esse mesmo bem lhe proporcionava, descartando assim a exigência de prova de danos concretos e específicos decorrentes de tal privação que a outra corrente jurisprudencial considera igualmente necessário.

Prova que em concreto o A. recorrido logrou fazer – vide factos provados 18º a 31º.

Tal como referido no Ac. STJ de 14/12/2016[9], Relatora Fernanda Isabel Pereira, in www.dgsi.pt [e reportando-se ainda a posição já antes defendida em Ac. de 09/07/2015 pela mesma Relatora no mesmo sítio]  este tribunal superior tem vindo maioritariamente a entender “no domínio da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava”.

Recorrendo à distinção que jurisprudencialmente tem sido realçada entre “privação do uso” e “privação da possibilidade do uso”, afere-se a exigida prova de que a privação gerou perda de utilidades que o bem proporcionava ao seu titular. Não bastando, no campo das possibilidades, a suscetibilidade de a coisa poder ser usada durante o período da privação.

E uma vez demonstrada a perda de utilidades (não a mera possibilidade) que decorrerá desde logo do demonstrado uso normal que o lesado fazia da coisa, reconhece-se demonstrado um efetivo prejuízo, porquanto só naquele caso fica demonstrada a privação como causa de prejuízo gerador de indemnização [cfr. nesse sentido Ac. TRP de 08/09/2014 Relator Alberto Ruço e Ac. TRP de 30/06/2014 Relator Manuel D. Fernandes; ainda Ac. TRP 30/01/2017, Relator O. Abreu e Ac. TRP de 18/05/2023, Relatora Judite Pires, todos publicados todos in www.dgsi.pt/jtrp ].

Ou seja, demonstrada não só a efetiva privação do uso como consequência do sinistro ocorrido, como demonstrada a perda das utilidades que o uso do veículo proporcionaria ao lesado, se não estivesse estado paralisado a aguardar reparação, reconhece-se àquele um direito indemnizatório, cujo valor será fixado com recurso a critérios de equidade.

Prova que o recorrido como já acima referido logrou fazer.

Pelo que tem o mesmo direito a ser indemnizado pela mencionada privação do uso desde a data do acidente, até à data em que a R. lhe disponibilizar o montante necessário à reparação e nos autos apurado – de € 7.258,42 (vide fp 16º).

Tal como decidido pelo tribunal a quo.

Pelo que improcede igualmente o segundo fundamento do recurso da R. recorrente.

Cumpre por último aferir do fundamento do recurso do autor, relativo ao valor diário fixado a título indemnizatório.

O autor peticionou o valor de € 20,00 diários.

O tribunal a quo fixou em € 10,00, para tanto recorrendo a critérios de equidade, nos termos do artigo 566º nº 2 do CC.

O autor fundamenta o seu desacordo, com base nos factos julgados provados relativos à utilização por si dada ao veículo.

A utilização apurada e descrita em concreto nos factos provados 23º a 30º, evidenciam uma utilização do veículo para as deslocações do dia a dia e de lazer, não tendo o autor outro veículo que satisfizesse as suas necessidades.

A inexistência de outro veículo que cumprisse os mesmos interesses do autor é pressuposto da indemnização a atribuir, como compensação pelos danos suportados. Não agrava o valor indemnizatório.

Porque não apurado o valor exato dos danos nesta situação, é a fixação dos mesmos efetuada com recurso a critérios de equidade, de acordo com o disposto no artigo 566º nº 3 do CC, para tanto ponderando as circunstâncias do caso concreto.

Tal como o tribunal a quo o fez e justificou.

Na fixação e reapreciação do valor indemnizatório em análise, releva ter presente o reiterado entendimento jurisprudencial de que a fixação de um quantum indemnizatório em que se recorre a juízos de equidade, porque assente na ponderação das circunstâncias apuradas e relevantes de cada caso concreto e não em razões estritamente normativas, apenas deverá ser alterado quando evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade, bem como e apenas alterado quando se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares.

Assim foi decidido no Ac. do STJ de 04/06/2015, nº de processo 1166/10.7TBVCD.P1.S1; e reafirmado no Ac. STJ de 22/02/2017, nº de processo 5808/12.1TBALM.L1.S1; ou mais recentemente no Ac. STJ de 17/12/2019, nº de processo 2224/17.2T8BRG.G1.S1, todos in www.dgsi.pt/jstj, onde (estando em causa a quantificação de um dano não patrimonial) se conclui (invocando ainda decisões anteriores do mesmo STJ) “E porque um tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», tem-se defendido, designadamente nos Acórdãos do STJ, de 05.11.2009 (proc. 381/2009.S1) de 20.05.2010 (proc. 103/2002.L1.S1), de 28.10.2010 (proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1), de 07.10.2010 (proc. 457.9TCGMR.G1.S1) e de 25.05.2017 (proc. 868/10.2TBALR.E1.S1)[21], que «tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade adoção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade.”

Concluindo (por referência ao que era o seu objeto de recurso):

“Deste modo, mais do que discutir e reconstruir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação pela Relação do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, plasmada nas particularidades singulares da matéria de facto fixada, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – em situação em que estamos confrontados com gravosas incapacidades que afetam, de forma sensível e irremediável, o padrão e a qualidade de vida de lesados».”

Tendo presentes estes considerandos e confrontando o decidido com casos análogos ou equiparáveis, concluímos não se afastar o decidido de forma flagrante, substancial ou injustificada dos padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares [veja-se o valor idêntico arbitrado no Ac. TRP de 16/01/2023, já supra citado; Ac. TRP de 13/10/2022, nº de processo 12374/20.2T8LSB.P1, no qual foi mantido o valor indemnizatório pela privação de veículo ligeiro em € 10,00 diários; Ac. TRP de 08.10.2018 nº de processo 4031/15.8T8MTS.P1 no qual a relatora interveio como 1ª adjunta, foi fixado o valor indemnizatório pela privação de veículo ligeiro em € 15,00 diários – em situação e que para além do mais ficou provado ser o veículo sinistrado utilizado para a atividade profissional do lesado; ainda Ac. TRP de 08/06/2022, nº de processo 2638/19.3T8OAZ.P1, no qual foi mantido o valor indemnizatório pela privação de veículo em € 20,00 diários – de igual modo em situação em que o veículo era utilizado nas deslocações para o trabalho (entre o mais) in www.dgsi.pt ].

Como se vê das decisões acima citadas, o valor indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, contem-se dentro dos padrões jurisprudenciais aplicados em casos similares, sem que se afaste - sem prejuízo de valores fixados em montante superior, noutros casos – de forma flagrante e injustificada dos mesmos, por forma a justificar a pugnada alteração.

Termos em que se julga totalmente improcedente o recurso do autor.


***

IV. Decisão.

Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto quer pela R. quer pelo A., consequentemente mantendo a decisão recorrida.

Custas dos recursos pelos recorrentes.


Porto, 2024-04-08.
Fátima Andrade
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha
_________________
[1] Preceitua o artigo 615º nº 1 do CPC
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
[2] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Manuel Tomé Gomes, in www.dgsi.pt
[3] Vide Ac. STJ de 30/05/2013, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento.
[4] Realce nosso. Neste parágrafo afirmando o tribunal a quo que não ficou convencido quanto ao valor venal alegado pela Ré – precisamente o que consta como não provado em 3 dos factos não provados.
[5] Cfr. neste sentido sobre o ónus probatório os infracitados Acs. STJ de 05/07/2007; Ac. TRP de 25/02/2013 e Ac. TRG de 21/05/2015; ainda Ac. TRP de 16/01/2024, nº de processo 5816/21.1T8MAI.P1 todos in www.dgsi.pt
[6] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 21/02/2006 in CJ – ACSTJ T I, p. 83/84, Relator Ferreira Girão; Ac. STJ 04/12/2007, Relator Pires da Rosa, Ac. TRG de 21/05/2015, Relatora Ana Cristina Duarte e Ac. TRP de 19/02/2015, Relator Pedro Martins - neste último se fazendo uma resenha jurisprudencial, onde entre outros é citado o Ac. do STJ de 2006 acima referido, e doutrinária sobre este assunto; mais recentemente Ac. TRP de 09/03/2020, Relator Carlos Gil, bem como o acima já citado Ac. TRP de 16/01/2024, Relatora Ana Cabral, todos in http://www.dgsi.pt .
[7] Vide neste sentido entre outros Ac. STJ de 09/09/2010, Relator João Bernardo e Ac. STJ 06/10/2016, Relator António Piçarra ambos in http:// www.dgsi.pt/jstj.
[8] Vide neste sentido Ac. TRP de 25/02/2013 Relator Carlos Querido, bem como o Ac. TRG de 21/05/2015 já supracitado in http://www.dgsi.pt e Ac. STJ de 05/07/2007, Relator Santos Bernardino in http://www.dgsi.pt/jstj, bem como o já citado Ac. TRP de 09/03/2020.
[9] Estando então em causa um acidente de viação, aplicam-se os argumentos invocados na integra ao caso sub judicie na medida em que são analisados os pressupostos da indemnização na responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito igualmente em análise nestes autos.