Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7319/18.2T8VNG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Nº do Documento: RP202401167319/18.2T8VNG-D.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a sua culpa no surgimento ou agravamento da situação de insolvência.
II - A verificação de alguma das situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE faz presumir, de forma inilidível, quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
III - A teleologia da norma do art.º 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE prende-se com a defesa de interesses dos sócios, dos credores e do Estado, que têm direito a conhecer a situação económica e financeira das sociedades, protegendo, assim, interesses particulares e públicos.
IV - O incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando a realidade concreta impossibilitar a compreensão da situação da empresa, a apreciação da situação patrimonial e financeira da mesma durante um período de tempo relevante.
V - No âmbito deste incidente as medidas inibitórias e o montante da indemnização a pagar pelo afectado por essa qualificação devem ser fixados à luz das circunstâncias do caso concreto, sendo particularmente relevante a culpa e as consequências danosas da conduta daquele na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7319/18.2T8VNG-D.P1
Comarca: [Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (J1); Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Ana Lucinda Cabral
Adjunta: Alexandra Pelayo
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

Por impulso do Ministério Público, foi declarada a insolvência da sociedade “A..., LDA.”, com sede na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia.
Na sequência de Parecer da Administradora da Insolvência, instaurou-se o presente incidente de qualificação da insolvência como culposa contra a sociedade Insolvente e AA.
A Administradora Judicial defendeu que, atendendo às circunstâncias que conduziram à situação de insolvência da empresa, nomeadamente o desfalque financeiro levado a cabo por AA, filho do sócio, BB, que exercia o cargo de administração de facto, e ao incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada, a insolvência deve ser considerada culposa, afetando este, por aplicação do disposto nas alíneas a), d), f) e h) do n.º 2 e alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1].

O Ministério Público veio, da mesma forma, pugnar pela qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afetados por tal qualificação, por aplicação do disposto nas alíneas a), d), h) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, os gerentes CC, BB e AA.
Alega, para tanto e em síntese, que os gerentes, deram destino não apurado aos principais ativos da sociedade, não cumpriram o dever de manter a contabilidade da sociedade organizada e completa, não cumpriram as demais obrigações tributárias e não apresentaram a sociedade à insolvência, o que redundou num notório agravamento da sua situação patrimonial.
Os Requeridos AA e CC vieram deduzir oposição, impugnando a essencialidade dos factos alegados e pugnando pela improcedência dos pedidos.
Foi proferido despacho saneador, em que se identificou o objeto do litígio e se fixaram os temas da prova.
Comprovado nos autos o óbito de BB, declarou-se extinta a instância quanto a este, prosseguindo os autos quanto aos demais intervenientes processuais.
Realizou-se audiência de julgamento e proferiu-se sentença, com a seguinte parte decisória: “Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente, por não provada, a presente ação e considerar a insolvência de A..., Lda., como fortuita, sendo AA e CC absolvidos do pedido de afetação por uma qualificação culposa que lhes era assacado.”
Inconformado com esta decisão, o Ministério Público veio interpor recurso pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que fixe a matéria de facto do modo indicado e que qualifique a insolvência de “A..., Lda.” como culposa, julgando por ela afetado CC, com as consequências estabelecidas nas alíneas b), c), d) e e) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A sentença recorrida decidiu julgar improcedente, por não provada, a presente ação e considerar a insolvência de A..., Lda. como fortuita, absolvendo os requerido AA e CC dos pedidos de afetação por uma qualificação como culposa.
2. O Ministério Público considera que a prova produzida nas sessões da audiência de julgamento impunha outra fixação da matéria de facto dada como provada e não provada, e que da prova apenas se pode qualificar a insolvência de A..., como culposa e por ela ser afetado o gerente CC.
3. Considera o recorrente que o ponto 6 da matéria de facto dada como provada “a Senhora Administradora da insolvência reconheceu créditos no valor global de € 8.826.229,64€, dos quais € 4.507.880,24 à Administração Tributária, € 3.761.641,68 ao Instituto da Segurança Social e € 515.038,33 a trabalhadores, tudo conforme termos da relação de credores reconhecidos junta a 30/10/2020 ao apenso B.”, deverá ser complementada com “tendo a lista de créditos sido homologada por sentença proferida a 30 de novembro de 2021 e transitada em julgado a 11 de janeiro de 2022.”
4. Tal resulta do mesmo Apenso B, do qual apenas se pode concluir, com relevo para a decisão, que a lista de créditos reconhecidos pela Sra. Administradora da Insolvência não foi objeto de qualquer impugnação, e que a mesma lista foi homologada por sentença proferida a 30 de novembro de 2021 e transitada em julgado a 11 de janeiro de 2022.
5. O valor e proveniência dos créditos sobre a insolvência está assente por decisões judiciais transitadas em julgado proferidas no apenso de reclamação de créditos, e nos apensos E e G de verificação ulterior de créditos, num total de € 8.848.216,02 estando devidamente verificados e graduados, e não meramente reconhecidos pela Sra. Administradora da Insolvência, como decorre da sentença ora em crise.
6. Pelo que a tal facto deverá ser aditado “tendo a lista provisória de créditos sido homologada por sentença proferida a 30 de novembro de 2021 e transitada em julgado a 11 de janeiro de 2022.”.
7. Igualmente de relevo para a decisão, e porque provado pelas sentenças proferidas nos apensos E e G, que reconheceram créditos sobre a insolvência no valor de € 21.968,38, deverá ser aditado o facto: “O valor total dos créditos sobre a insolvência é de € 8.848.216,02.”
8. Quanto à inclusão do facto 22 na matéria de facto dada como não provada, o tribunal a quo afirma na sua motivação que, apesar de as dívidas fiscais serem referentes ao período de 2005 a 2018, não se conseguiu encontrar prova documental que permitisse afirmar que a insolvente não tivesse pago voluntariamente quaisquer dívidas tributárias desde 7 de agosto de 2017.
9. A indicação do ano de 2017 é um mero lapso de escrita pois se trata, antes do ano de 2007, como bem resulta do documento 15 junto à petição inicial da insolvência.
10. De tal documento, conjugado com a demais prova documental junta à petição inicial da insolvência, de destacar os documentos 2, 8, 12, 13, 14 e 15, e da certidão de dívidas junta ao apenso K, decorre que, desde o dia 7 de agosto de 2007 a insolvente não efetuou qualquer pagamento voluntário à administração tributária, não havendo por isso fundamento para que o facto 22 esteja incluído na matéria de facto não provada.
11. Estando provado documentalmente, o facto 22 deveria constar da matéria de facto dada como provada, do seguinte teor: “A insolvente não efetuava o pagamento voluntário de dívidas tributárias desde 7 de agosto de 2007.”
12. O Tribunal da Relação, como tribunal de 2ª instância, para sindicar de forma efetiva a formação a convicção do juiz da 1ª instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (607º, nº 5, do CPC), como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
13. A alteração à matéria de facto como acima indicado encontra-se devidamente provado pelas sentenças proferidas nos apensos B, E e G e nos documentos juntos com o requerimento inicial da insolvência e no apenso K – depósito documental – podendo o Tribunal da Relação apreciar a sua valia e fixar a matéria de facto em conformidade.
14. O tribunal a quo julgou não verificada a situação enunciada na alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, por considerar que da matéria de facto provada não se pode considerar que houve um incumprimento substancial de manter a contabilidade da insolvente organizada, mas apenas atrasos no cumprimento de obrigações declarativas, e não foi alegado e provado que dessa irregularidade resultou prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da empresa.
15. A jurisprudência – vd, Acórdão de 16/03/2023 – entende que a situação a que se refere as alíneas h) e i) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, são ficções jurídicas inilidíveis de insolvência culposa, cujo preenchimento leva a que, respetivamente, se presuma ou ficcione iniludivelmente que a insolvência do devedor é culposa nos precisos termos que constam da noção geral de insolvência culposa prevista no seu n.º 1.
16. Mais considera que a ficção de insolvência prevista na alínea h), do n.º 2, relaciona-se com a circunstância dos comerciantes (e as sociedades comerciais, nos termos do n.º 2, do art.º13º do Código Comercial, são ope legis comerciantes), atenta a especificidade do seu regime legal, encontram-se sujeitos a um conjunto de obrigações, onde se conta a obrigação especial de ter escrituração mercantil, dar balanço e prestar contas (art. 18º, n.ºs 2 e 4 e 29º do Cód. Com.), a dar balanço anual ao seu ativo e passivo nos três primeiros meses do ano imediato (art. 62º do Cód. Com.).
17. e são deveres da administração da sociedade a) elaborar o relatório anual de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previsto na lei, incluindo, quando aplicável, a demonstração não financeira (arts. 66º, n.ºs 2 a 5, 66º, 66º-A, 66º-B do CSC.); b) e submetê-los ao órgão competente para os apreciar, salvo os casos particulares previstos na lei, no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou no prazo de cinco meses a contar da mesma data quando se trate de sociedades que devam apresentar contas consolidadas, ou que apliquem o método de equivalência patrimonial (n.º 5, do art. 65º do CSC).
18. As normas que impõem, aos comerciantes em geral, e às sociedades comerciais em particular, a obrigação de manter escrituração comercial, dar balanço e prestar contas visam defender os interesses da própria sociedade, dos sócios, dos credores relacionados com a sociedade, especialmente dos trabalhadores e do Estado, permitindo aos sócios ter conhecimento da real situação patrimonial e financeira da sociedade, do desempenho da administração, a fim de aquilatar da qualidade desse desempenho, da regularidade, legalidade e/ou conveniência dos atos de gestão que têm sido praticados, dos resultados desses atos, nomeadamente, se estes são positivos ou antes estão a colocar os sócios em risco de perder o capital que investiram na sociedade e, quanto aos terceiros, a escrituração comercial dá a conhecer aos trabalhadores e aos fornecedores e financiadores ou potenciais fornecedores e financiadores do comerciante a saúde patrimonial, económica e financeira deste, a fim de se inteirarem dos riscos que correm caso com ele estabeleçam ou continuem a estabelecer relações contratuais de que resulte a aquisição da sua qualidade de credores em relação ao comerciante.
19. Quanto ao Estado, é com base na escrituração comercial que este liquida os impostos ao comerciante devidos em consequência dos eventuais lucros que essa atividade lhe proporciona, fiscaliza o cumprimento ou incumprimento por este das normas tributárias e, bem assim, colhe informação sobre o evoluir da economia em geral, a fim de adotar as políticas económicas que entenda pertinentes com vista a prosseguir determinadas finalidades. Posto isto,
20. A insolvente incumpriu as seguintes obrigações declarativas:
- Não apresentou a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC de 2014, tendo apresentado as de 2015 e 2016 apenas em abril de 2018;
- Apenas apresentou 6 declarações de IVA em 2017 quando deveria ter apresentado 12;
- Só em abril de 2018 apresentou o IES de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016;
- Embora tenha aderido ao regime excecional de regularização de dívidas tributárias (PERES), incumpriu o plano;
- Em 2018 foram registadas as contas da A..., Lda., relativa aos anos de 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017.
21. Tais factos, devidamente provados documentalmente, apenas permitem concluir que, no período relevante, os três anos anteriores ao início do processo de insolvência (nº 1 do art.º 186º do CIRE), ou seja, entre 19/09/2015 e 19/09/2018 o responsável da insolvente incumpriu de forma substancial a obrigação que sobre si impendia de manter a contabilidade organizada, dando sequência a idêntica conduta omissiva nos anos anteriores, de modo a que a situação patrimonial e financeira da insolvente não era passível se ser conhecida e avaliada por todos quantos nisso tivessem interesse, nem pelo Estado.
22. Como bem retrata o documento nº 11 junto à petição inicial da insolvência, devidamente contraditado, a Direção de Finanças do Porto, a 1 de junho de 2018, o comportamento omissivo (em termos contabilísticos) da insolvente era de tal modo grave que não permitia conhecer, na sua plenitude, a situação contabilística da empresa.
23. Note-se que, no caso de sociedades comerciais, o IES compreende:
- A entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 117.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas;
- O registo da prestação de contas, nos termos previstos na legislação do registo comercial;
- A prestação de informação de natureza estatística ao Instituto Nacional de Estatística (INE), nos termos previstos na Lei do Sistema Estatístico Nacional e em outras normas, designadamente emanadas de instituições da União Europeia;
- A prestação de informação relativa a dados contabilísticos anuais para fins estatísticos ao Banco de Portugal, de acordo com o estabelecido na respetiva lei orgânica, incluindo a que decorre da participação do Banco de Portugal no Sistema Europeu de Bancos Centrais.
- A confirmação da informação sobre o beneficiário efetivo, nos termos previstos em legislação especial (…)”, pelo que bem se compreende o desconhecimento da situação da insolvente pela própria Administração Tributária.
24. No período relevante, o responsável da insolvente, conhecendo a obrigação que sobre si impendia de manter a contabilidade de tal sociedade organizada, deliberadamente incumpriu essa obrigação.
25. As razões pelas quais o incumprimento substancial de tal obrigação – por ter atingido um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8 de fevereiro de 2011, se verificou, e se prolongou por anos, não foi apurado. A contabilidade da insolvente tinha como responsável DD, contudo era o contabilista EE quem assinava as declarações de IVA que acabaram por ser apresentadas (vd. doc. 11 junto à petição inicial da insolvência).
26. E este, em depoimento prestado na sessão de 17 de abril de 2023 da audiência de discussão e julgamento, não soube explicar o persistente incumprimento senão pelo atraso na contabilidade de anos anteriores, que se refletiu nos seguintes, o que é de todo inaceitável.
27. O tribunal recorrido também considera que não está alegado que as “irregularidades” da contabilidade tivessem resultado em prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da empresa, e que, ainda que não alegado, não se conseguiu atingir tal prejuízo relevante.
28. Nem tinha de estar. A jurisprudência vem entendendo que o “prejuízo relevante” constante da redação da alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, não se aplica ao incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada ou à manutenção de uma contabilidade fictícia, mas apenas, pela conjunção “ou”, que indica alternativa ou opcionalidade, à prática de irregularidade contabilística – vd, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de julho de 2020.
29. No caso, houve incumprimento substancial de manter a contabilidade organizada e não uma mera irregularidade contabilística – no período relevante (19/09/2015 e 19/09/2018) o responsável da insolvente não apresentou a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC de 2014, tendo apresentado as de 2015 e 2016 apenas em abril de 2018, apenas apresentou 6 declarações de IVA em 2017 quando deveria ter apresentado 12, só em abril de 2018 apresentou o IES de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016; não registou as contas da A..., Lda. dos anos de 2016 até 15/07/2017 e de 2017 até 15/07/2018, o que, tudo conjugado, impedia a conhecimento quase absoluto da situação financeira e patrimonial da empresa.
30. A jurisprudência vem entendendo – vd, entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de outubro de 2019 – que na alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE não está, em abstrato, pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência, mas antes um comportamento do visado que impediu e/ou impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência, ou seja, o que basicamente está em causa é o incumprimento/violação de deveres legais, sendo que só muito remotamente algum dos factos/atos aí descritos pode ser causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento, ou seja, o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário.
31. O Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 21/10/2019, considerou “…não se antolha em que medida é que a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos – enfim, irregularidades contabilísticas – possam gerar ou agravar, de forma direta, a insolvência; quando muito escondem-na e ocultam-na. Por isso os atos/factos constantes da mencionada al. h) são estranhos à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal com a criação ou o agravamento da situação de insolvência.” E no seu Acórdão de 29/9/2022 considera “A inobservância do dever de manter a contabilidade organizada e a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (al. h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE) não gera, nem, em princípio, agrava a insolvência, antes faz assentar o juízo de reprovabilidade de tal conduta na circunstância de permitir supor que o sujeito tem algo a esconder, que ele terá praticado atos que contribuíram para a insolvência, pretendendo ocultá-los”
32. Mas ainda que o tribunal a quo considere que o prejuízo relevante não está alegado, é jurisprudência pacífica, como decorre de recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de setembro de 2022 que por força do disposto no art.º 11º do CIRE o juiz usa de amplos poderes investigatórios em matéria de facto, designadamente quanto a factos essenciais à qualificação que não tenham sido alegados pelas partes.
33. E do que decorre do processo, designadamente do documento 11 junto ao requerimento inicial de insolvência, e dos factos dados como provados sob os números 12), 13) e 16), questiona-se como pode o tribunal inferir da verdadeira situação patrimonial e financeira da empresa, se nem a Autoridade Tributária a conseguiu apurar para efeitos tributários, e como pode considerar não ter havido prejuízo relevante, se entre 19/09/2015 e 19/09/2018 não foram registadas as contas de 2016 e 2017, não foram apresentados 6 declarações de IVA, não haviam sido apresentadas as IES de 2012 a 2016 nem foi apresentado o Modelo 22 de IRC de 2014 e só em abril de 2018 apresentou os de 2015 e 2016.
34. Realce-se – ainda apelando ao documento 11 junto ao requerimento inicial do processo de insolvência – que a Direção de Finanças do Porto, em abril de 2017, perante o vasto desconhecimento da verdadeira situação tributária da insolvente, solicitou ao contabilista (testemunha) EE um balancete o atualizado possível e este apresentou um balancete de março de 2016 que logo suscitou grandes duvidas quanto à sua credibilidade por, além de demostrar evidente atraso na contabilidade, não revelava rubricas de Ativos Não Correntes, o que não se afigurava plausível atendendo a que se trata de uma empresa industrial, dele não constava as rubricas de Capital Próprio nem tinha sido efetuado o saldo de anos anteriores. Também a própria testemunha EE, na sessão de 17 de abril de 2023 da audiência de discussão e julgamento se mostrou surpreendido quando, perante o IES de 2016 que lhe foi exibido, verificou que a conta do Caixa e dos depósitos bancários não terem valor absolutamente algum, já que são contas onde sempre existe algum valor.
35. As situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do art. 186º do CIRE configuram, só por si, verdadeiras presunções juris et jure de insolvência culposa, consagrando-se, assim, ali uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
36. O incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada preenche por si a primeira parte da previsão da al. h) do nº 2 do art. 186º do CIRE.
37. De tudo decorre que a contabilidade da insolvente, no período relevante, não cumpria os mínimos essenciais e dela não podia qualquer interessado, privado ou mesmo o Estado, extrair a sua situação económica e financeira, o que demonstra o comportamento incumpridor por omissivo do responsável da sociedade e a integração de tal conduta omissiva na línea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE.
38. O tribunal a quo deu como não provada a situação descrita na alínea a) do nº 3 do art.º 186º do CIRE, antes considerando que a A..., Lda. vivia numa espécie de “emergência financeira permanente” e que não há prova do nexo de causalidade entre a atuação com culpa grave e o agravamento da situação de insolvência, e se desconhecem s datas e valores dos créditos reconhecidos pelo Sra. Administradora, não se sabendo se, a haver novos créditos, estes criaram ou agravaram a situação da insolvência.
39. O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do art.º 3º, ou à data em que devesse conhecê-la (cfr. art. 18º, n.º 1, do CIRE), sendo que, quando o devedor seja titular de uma empresa, se presume de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do art. 20º (cfr. art. 18º, n.º 3, do CIRE).
40. Consagra-se um dever do devedor de, verificada e conhecida a situação de insolvência, se apresentar à insolvência, sob pena de gravosas consequências.
41. O pedido de insolvência foi apresentado a 19 de setembro de 2018 por iniciativa do Ministério Público em representação da Autoridade Tributária e a situação de insolvência foi declarada a 16 de julho de 2020.
42. Resulta dos factos provados que a Sra. Administradora da insolvência reconheceu créditos no valor global de € 8.826.229,64, dos quais € 4.507.880,24 à Administração Tributária, € 3.761.641,68 ao Instituto da Segurança Social e € 515.038,33 a trabalhadores, tudo conforme termos da relação de credores reconhecidos junta a 30/10/2020 ao apenso B, cujo teor aqui se dá por reproduzida. A este facto deverá ser aditado, com os fundamentos supra expostos, o seguinte: “tendo a lista provisória de créditos sido homologada por sentença proferida a 30 de novembro de 2021 e transitada em julgado a 11 de janeiro de 2022.” e ainda aditado o facto “O valor total dos créditos sobre a insolvência é de € 8.848.216,02.”
43. Mais resultou provado que o IES de 2016 que o resultado líquido do exercício foi no montante de - € 56.006,74 (negativo).
44. Do Apenso K – depósito documental – conjugado com os documentos 2 e 11 juntos ao requerimento inicial da insolvência (certidão de dívidas tributárias e informação da Direção de Finanças do Porto) e do documento resulta que no período relevante, entre 19/05/2015 e 19/05/2018, a insolvente não pagou:
- as quotizações e contribuições devidas à Segurança Social nesse período;
- todos os créditos tributárias constituídas nesse período, como seja o IVA vencido mensalmente entre 17/09/2015 e 31/08/2018, o IRS vencido mensalmente entre 04/04/2016 e 20/08/2018, IRC vencido entre 08/04/2016 e 07/03/2017, além de juros, coimas fiscais, custas de parte e custas de processos de execução fiscal, no valor de centenas de milhares de euros (a insolvente cessou qualquer pagamento voluntário de créditos fiscais desde o dia 07/08/2007, como mencionado supra), nos seguintes valores (quantia exequenda e juros):
a) IVA € 796.508,72
b) IRS € 114.016,46
c) IRC € 5.571,75
d) Juros € 1.027,01
e) Coimas € 246.436,16
f) custas de parte € 792,92,
o que soma o valor de € 1.164.290,02, a que acrescem ainda as custas dos processos executivos.
- os créditos laborais relativos a prestações como salários, subsídios de férias, subsídios de natural, formação profissional e outras prestações laborais já vencidas antes dessa data, bem como não curou de resolver e indemnizar pelo menos 26 trabalhadores que se encontravam com o contrato de trabalho suspenso com fundamento na existência de salários em atraso, que viram as suas indemnizações por cessação do contrato, vários cessados pela Sra. Administradora após a declaração de insolvência, substancialmente aumentadas;
- também não pagou salários que se mostram em atraso ao ex-trabalhador e requerido AA e à ex-trabalhadora e testemunha FF.
45. A “emergência financeira permanente” vivida pela insolvente e reconhecida na sentença recorrida traduziu-se, no período relevante, ao aumento significativo das dívidas contributivas, tributárias e salariais da mesma, agravando a situação de insolvência há muito vivida, sem que o seu responsável tenha cumprido o dever de apresentar a empresa à insolvência.
46. Acresce que o imóvel onde que havia sido propriedade da insolvente e onde esta exercia a sua atividade foi vendido em 2014 para pagamento de dívidas fiscais, assim como o seu ativo fixo, constituído por maquinaria adequada ao objeto social da empresa – confeção e comercialização de artigos de vestuário, exportações e importações – foi igualmente penhorado no âmbito de processos de execução fiscal.
47. O requerido CC, na oposição que apresentou a 29 de agosto de 2022, confessou no artigo 15. o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência prevista na al. a) do nº 3 do art.º 186º do CIRE.
48. Os bens apreendidos para a massa após a declaração de insolvência foram vendidos pelo valor de € 2.890.
49. Pelo exposto, apesar de ciente da incapacidade da insolvente de cumprir as obrigações vencidas, de não dispor de instalações próprias e de os seus bens terem sido penhorados, sem meios de poder gerar receitas para cumprir tais obrigações, o responsável da insolvente não cumpriu o dever de apresentação tempestiva à insolvência, nunca tendo tido tal iniciativa no período que mediou entre 19/09/2015 e 19/09/2018, facto que agravou a situação de insolvência, tendo nesse período, apenas em relação à Autoridade Tributária, sido agrava a dívida fiscal em valor não inferior a € 1.164.290,02.
50. Verificando-se o nexo causal entre a violação do dever de requerer a declaração de insolvência e o agravamento da situação da insolvência, com manifesto prejuízo para os credores – Estado, trabalhadores, fornecedores de bens e serviços – deverá a conduta omissiva do requerido ser integrado na previsão da alínea a) do nº 3 do art.º 186º do CIRE.
51.
52. O tribunal recorrido, relativamente à situação enunciada na alínea b) do nº 3 do art.º 186º do CIRE limita-se a afirmar que as contas da insolvente foram prestadas e registadas, sabendo-se que com atraso, mas desse atraso não foi alegado nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, que o tribunal também não conseguiu estabelecer.
53. Como acima já se mencionou relativamente à situação enunciada na alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, também no que se refere ao incumprimento do dever de elaborar as contas anuais, de as aprovar e depositar na conservatória do registo comercial, a jurisprudência vem entendendo que não está, em abstrato, pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado e a produção ou o agravamento da situação de insolvência, mas antes um comportamento do visado que impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção ou no agravamento da situação de insolvência, um comportamento que visa mascarar a realidade da empresa, pois a falta de depósito de contas não é, ela própria, geradora da criação ou do agravamento da situação de insolvência, mas porque a probabilidade de o responsável da empresa que assume esse comportamento omissivo sujeito ter praticado ato ilícito gravemente censurável justifica a qualificação como culposa – vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/05/2012.
54. Existindo um limite temporal a considerar – só são relevantes as condutas ocorridas dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e tendo-se o processo iniciado por requerimento de 19/09/2018, as contas anuais a considerar são as dos exercícios de 2015, 2016 e 2017.
55. As contas anuais referentes ao exercício de 2015 foi depositada na conservatória do registo comercial a 27/03/2018, as contas anuais referentes ao exercício de 2016 foi depositada a 28/03/2018 as contas anuais referentes ao exercício de 2017 foram depositadas a 27/07/2018.
56. O registo da prestação de contas é obrigatório – artº 3º, nº 1, al. n) do CRC, e deve ser pedido até ao 15º dia do 7.º mês posterior à data do termo do exercício económico.
57. A data do encerramento do exercício da insolvente era 31 de dezembro (certidão permanente da insolvente junta ao requerimento inicial), pelo que as contas anuais de 2015 deveriam ter sido depositadas até 15 de julho de 2016, as contas anuais de 2016 deveriam ter sido depositadas até ao dia 15 de julho de 2017 e as contas anuais de 2017 deveriam ter sido depositadas até ao dia 15 de julho de 2018.
58. Como ficou provado na sentença, a insolvente só em abril de 2018 apresentou a IES de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016. A falta de depósito das contas anuais dos exercícios de 2015 e 2016 não foi “compensada” nas suas consequências pela entrega do IES, declaração agregadora de informações declarativas, tanto a nível contabilístico, fiscal e estatístico, a que, pelo menos a Autoridade Tributária podia ter acesso para ter conhecimento da situação patrimonial e financeira da insolvente.
59. Os manifestos atrasos no depósito das contas anuais não foram relevados pelo tribunal recorrido, que considerou não ter sido alegado qualquer nexo de causalidade entre o atraso e a situação de insolvência e que o tribunal não conseguiu estabelecer esse nexo.
60. Na qualificação de insolvência, o tribunal não está limitado ao que é alegado pelas partes, antes usa de amplos poderes investigatórios em matéria de facto, designadamente quanto a factos essenciais à qualificação que não tenham sido alegados pelas partes.
61. As normas que impõem aos comerciantes a obrigação de manterem escrituração comercial, dar balanço e prestar contas, com a finalidade de espelhar a real situação patrimonial, prosseguem interesses particulares – do próprio comerciante, dos trabalhadores, dos potenciais clientes e fornecedores - mas também públicos – desde logo de cobrança pelo Estado de tributos, mas também interesses gerais da economia e da segurança no tráfico jurídico e económico em geral.
62. Do mesmo modo que na situação enunciada na alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, também na situação elencada na alínea b) do seu nº 3 o que releva é o comportamento do responsável da empresa que omite informações relevantes sobre a sua situação patrimonial e financeira, a sua ocultação, pois não se poderá dizer que qualquer insolvência se cria ou se agrava por atraso numa ou noutra obrigação declarativa ou depósito de contas, o que retiraria qualquer sentido às citadas normas.
63. No caso em análise, a omissão de depósito de contas prolonga-se por anos, o conhecimento da situação da empresa não é conhecida dos interessados – particulares e públicos – pelo via do acesso ao IES, pois as IES de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016 dó foram apresentadas em abril de 2018, e mesmo a Autoridade Tributária não teve acesso às declarações Modelo 22 de IRC de 2014, e as de 2015 e 2017 apenas foram apresentadas em abril de 2018, ou sequer de 6 declarações (mensais) de IVA de 2017.
64. No caso da Autoridade Tributária, impulsionadora do processo de insolvência da A..., Lda. em 19/09/2018, o conhecimento da real situação da empresa tê-la-ia levado a tomar a iniciativa com bastante antecedência, assim evitando o agravamento da situação de insolvência, quer pelas sucessivas e avultadas dívidas geradas mensalmente, como resulta da certidão de dívidas junta aos autos principais e ao Apenso K, como certamente os demais credores, designadamente os trabalhadores, pelo manifesto interesse em atempadamente acionarem o Fundo de Garantia Salarial.
65. O agravamento da situação de insolvência, no caso, resulta do desconhecimento pelos credores da situação da insolvente pela via da publicidade das contas anuais, de modo a tomarem as decisões que melhor salvaguardassem os seus interesses patrimoniais, do interesse legítimo do Estado em retirar da atividade económica empresas sem qualquer capacidade de criar riqueza, mas apenas de avolumar dívida, e da reiteração da conduta omissiva, que impediu sequer equacionar a possibilidade da sua recuperação.
66. Também pela integração da conduta do responsável da insolvente na alínea b) do nº 3 do art.º 186º do CIRE deverá a insolvência de A..., Lda. ser qualificada como culposa.
67. Devendo ser a sentença alterada e qualificada como culposa a insolvência de A..., Lda., impõe-se apreciar quem dele ser afetado pela qualificação.
68. Não ficou demonstrado que o requerido AA tenha, no período relevante, exercido a gerência de facto da insolvente.
69. O gerente BB faleceu a 20/10/201, ou seja, em data anterior à emissão pelo Ministério Público do seu parecer de qualificação, sem que tenha sido requerida a afetação dos seus sucessores.
70. O gerente CC exerceu as funções de gerente da A..., Lda. desde a sua constituição em 11 de maio de 1982 e até 27 de março de 2019, pelo que foi exerceu a gerência durante a totalidade do período relevante.
71. Além de ser gerente de direito, CC exerceu, de falto, a gerência, como revelaram os depoimentos das testemunhas EE na sessão de 17 de abril de 2023 da audiência de discussão e julgamento e GG na sessão de 26 de junho de 2023.
72. Deve, pois, ser afetado pela qualificação CC.
73. Por tudo o alegado, deverá a insolvência de A..., Lda. ser julgada como culposa e por ela afetado o requerido CC, relativamente ao qual o tribunal deverá decretar as inibições, perda de créditos e condenação a indemnizar os credores da insolvente tal como determina o disposto nas alíneas b) a e) do nº 3 do art.º 189.º do CIRE.
74. A sentença violou o disposto nos artºs 18.º, nºs 1 e 3, 20º, nº 1, alínea g), i), ii) e iii), 186.º, nºs 1, 2 alíneas h) e 3, alíneas a) e b), do CIRE, 18º, 29º, 30º, 62º, 66º, 66ºA, 66º-B, do CSC e o art.º 487.º, nº 2, do CC.
O Requerido CC veio apresentar contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, seja a nível da prova dada como assente, seja na motivação para essa fixação factual, seja na fundamentação de direito.
Para o caso de ser confirmada a decisão recorrida, requer que seja apreciada a questão omitida na sentença recorrida da anulação de todo o processado a partir da citação da Insolvente, por não lhe ter sido permitido exercer o contraditório quanto ao requerimento de insolvência.
Foi proferido despacho a admitir o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[2], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões dos recursos, são as seguintes:
● Reapreciação da matéria de facto com base nas provas produzidas nos autos;
● Apreciação da qualificação da insolvência dos autos como culposa, à luz do art.º 186.º, n.º 1 e 2, alíneas h) e n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE, ficando afectado por tal qualificação CC, com base nos argumentos apresentados pelo Recorrente;
● Na eventualidade da procedência do recurso principal, definição dos efeitos resultantes desta qualificação como culposa e
● Apreciação da requerida anulação de todo o processado a partir da citação da Insolvente.
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III – REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

O Ministério Público começa por pedir a reapreciação da matéria de facto, pedindo designadamente a alteração da redação do Item 6)[3], a transição do Item 22)[4] dos Factos não provados para os Factos provados e o aditamento de um novo facto aos autos com o seguinte teor: “O valor total dos créditos sobre a insolvência é de € 8.848.216,02.”
Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CP Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa."
Analisando este fundamento de recurso ponto a ponto, temos, desde logo, que o Recorrente invoca – quanto ao Item 6) – que do mesmo Apenso B se pode concluir, com relevo para a decisão, que a lista de créditos reconhecidos pela Sra. Administradora da Insolvência não foi objeto de qualquer impugnação e que a mesma lista foi homologada por sentença proferida a 30 de novembro de 2021 e transitada em julgado a 11 de janeiro de 2022.
Defende que o valor e proveniência dos créditos sobre a insolvência está assente por decisão judicial transitada em julgado proferida no apenso de reclamação de créditos, estando devidamente verificados e graduados.
Pede que a este Item 6) seja aditado “tendo a lista de créditos sido homologada por sentença proferida a 30 de novembro de 2021 e transitada em julgado a 11 de janeiro de 2022.”
Resulta efetivamente da sentença proferida no Apenso B, a 30/11/21, que a lista de créditos foi integralmente homologada, tendo tal decisão transitado em julgado.
Tratando-se de facto processualmente relevante, defere-se a pretendida alteração da redação do Item 6), nos seguintes termos: “A Senhora Administradora da Insolvência reconheceu créditos no valor global de 8.826.229,64€ dos quais 4.507.880,24€ à administração tributária, 3.761.641,68€ ao Instituto da Segurança Social e 515.038,33€ a trabalhadores, tudo conforme termos da relação de credores reconhecidos junta a 30/10/2020 ao apenso B, cujo teor aqui se dá por reproduzida, tendo a lista de créditos sido homologada por sentença proferida a 30/11/21, transitada em julgado.”
Mais pretende o Recorrente que se adite um novo facto aos Factos Provados com o seguinte teor: “O valor total dos créditos sobre a insolvência é de € 8.848.216,02.”
Invoca neste sentido o teor das sentenças proferidas nos apensos E e G, que reconheceram créditos sobre a insolvência no valor de € 21.968.38.
Assiste-lhe também aqui razão: da sentença proferida no Apenso E, a 04/10/21, resulta terem sido reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor de € 16.222,18 e da sentença proferida no Apenso G, a 04/10/21, resulta terem sido reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor de € 5.764,20. Da mesma forma, a sentença proferida no apenso B, acima referida, dá conta igualmente do reconhecimento destes créditos.
Tratando-se, da mesma forma, de facto processualmente relevante, defere-se o aditamento de um novo Item aos Factos Provados, com o seguinte teor: “O valor total dos créditos sobre a insolvência é de € 8.848.216.02.”
Finalmente o Recorrente pretende que a factualidade constante do Item 22) dos Factos não provados transite para os Factos Provados, com a retificação de um lapso na data constante do mesmo.
Alega que a indicação do ano de 2017 é um mero lapso de escrita, devendo constar a data de 2007, resultando tal lapso do teor do documento n.º 15 junto à petição inicial da insolvência.
Defende que, do teor deste documento, conjugado com o teor dos documentos n.º 2, 8, 12, 13, 14 e 15 juntos à petição inicial de insolvência e, e com o teor da certidão de dívidas junta ao Apenso K decorre que, desde 07 de agosto de 2007, a Insolvente não efetuou qualquer pagamento voluntário à administração tributária.
Analisados os vários apensos dos autos, constata-se, desde logo, que já existia um lapso de escrita no requerimento inicial apresentado pelo Ministério Público (e que transitou para os factos dos autos), que no art.º 15.º alegou que “A R. não efectuava um pagamento voluntário de dívidas tributárias desde 7 de Agosto de 2017 (Doc. n.ºs 13 a 15).”, lapso este que resulta patente do teor do documento n.º 15 que faz alusão a pagamentos até 2007.
Em termos de substância, temos que o Doc. n.º 15 junto com o requerimento inicial do processo de insolvência é um print retirado dos Serviços de Finanças de onde resulta pagamentos voluntários efetuados pela sociedade insolvente até 11/07/2007; o Doc. n.º 2 junto com o mesmo requerimento inicial é uma “Certidão de Dívidas”, emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em 15/06/18; o Doc. n.º 8 junto com o mesmo requerimento inicial é um print retirado dos Serviços de Finanças relativo aos pagamentos de IRC; o Doc. n.º 12 junto igualmente com o requerimento inicial é uma lista de processos de execução fiscal; os Doc. n.º 13 e 14 juntos com o mesmo requerimento inicial são prints retirados dos Serviços de Finanças com indicação dos planos prestacionais a que a Insolvente aderiu[5].
Ora, o único documento que faz alusão direta a pagamentos voluntários é o Doc. n.º 15 junto com o requerimento inicial do processo de insolvência. Contudo, para além de se tratar de um mero print, não se encontra datado. Ficámos, assim, com a dúvida se poderão ou não ter sido efetuados pagamentos voluntários após a data de 11/07/07 indicado no mesmo.
Assim sendo, concordamos com a tese exposta na fundamentação de facto da sentença recorrida, no sentido de que as dívidas fiscais são referentes ao período entre 2005 e 2018, mas que não existe prova documental nos autos que permita afirmar que a Insolvente não tenha pago voluntariamente quaisquer dívidas desde 07 de agosto de 2007.
Mantém-se, consequentemente, a factualidade não provada do Item 22).
Procede parcialmente este fundamento de recurso.
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Ainda em termos de matéria de facto cumpre retificar dois lapsos de escrita existentes na matéria de facto.
Desde logo, cumpre retificar o teor do Item 22) dos Factos não provados quanto à data dele constante de 2017, passando a constar do mesmo 2007, pelos fundamentos acima enunciados.
Por outro lado, consta erradamente do Item 4) dos Factos Provados que o Ministério Público requereu a insolvência a 19/09/2019 quanto da mera análise dos autos se constata que a data de interposição do requerimento de insolvência nos autos é 19/09/2018.
Por aplicação do art.º 249.º do Código Civil, e tratando-se de meros lapsos de escrita, patentes da mera análise dos elementos documentais dos autos, proceder-se-á à respetiva retificação.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

São os seguintes os factos provados nos presentes autos, com as alterações acima introduzidas:

1) A sociedade comercial A..., Lda., foi constituída em 11-05-1982 com o objeto social de confeção e comercialização de artigos de vestuário, exportações e importações.
2) O respetivo capital social é de 1.122.295,28, dele sendo titulares CC, BB e B..., Lda., sendo os dois primeiros gerentes, mas estando registada desde 27/03/2019 a renúncia do primeiro à gerência.
3) INEXISTENTE…
4) A 19/09/2018 o Ministério Público requereu a insolvência da A..., Lda., alegando a existência de um crédito de 4.309.417,15€, por dívidas de IRC, IVA, IMI, DMR, coimas, encargos de contra-ordenação e juros, tudo conforme termos a petição inicial junta ao processo principal, cujo teor aqui se dá por reproduzida.
5) Por decisão proferida a 16/07/2020, a A..., Lda., foi declarada insolvente, conforme termos da sentença proferida no processo principal, cujo teor aqui se dá por reproduzida.
6) A Senhora Administradora da insolvência reconheceu créditos no valor global de 8.826.229,64€, dos quais 4.507.880,24€ à administração tributária, 3.761.641,68€ ao Instituto da Segurança Social e 515.038,33€ a trabalhadores, tudo conforme termos da relação de credores reconhecidos junta a 30/10/2020 ao apenso B, cujo teor aqui se dá por reproduzida, tendo a lista de créditos sido homologada por sentença proferida a 30/11/21, transitada em julgado.
6-A) O valor total dos créditos sobre a insolvência é de 8.848.216,02.
7) A Senhora Administradora da insolvência apreendeu os bens que constam do auto de apreensão junto a 30/10/2020 ao apenso A, cujo teor aqui se dá por reproduzida.
8) Que foram vendidos por 2.890€, conforme termos da informação da Senhora AI de 13/02/2021, do apenso de liquidação.
9) O apenso de liquidação aguarda a decisão a proferir no processo n.º 979/08.4BECBR, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, onde a insolvente reclama um crédito de 4.993.245,92€ sobre a autoridade tributária, conforme termos da informação da Senhora AI de 13/05/2023 do apenso de liquidação.
10) Da IES/2016 apresentada junto da AT concluiu-se que, em 31 de dezembro de 2016:
a) O valor do ativo da empresa era de 8.222.143,51€
b) O valor do passivo era de 7.744 673,13€
c) O valor dos capitais próprios era de 477.470,38€
11) Os capitais próprios constantes de tal declaração são os seguintes:
a) Prejuízos transitados no montante de -6.083.060,89€;
b) Resultado líquido do exercício no montante de -56.006,74€;
c) Capital realizado no montante de 1.122.295,28€
d) Outros instrumentos de capitais próprios, reservas legais e outras reservas no montante de 384.745,21€
f) Excedentes de Revalorização no montante de 1.207.454,66€
g) Outras variações de capital próprio no montante de 3.902.042,86€.
12) A insolvente:
a) Não apresentou a declaração de rendimentos Mod. 22 de IRC de 2014, tendo apresentado as de 2015 e 2016 apenas em abril de 2018;
b) Apenas apresentou 6 declarações de IVA em 2017 quando deveria ter apresentado 12;
c) Só em abril de 2018 apresentou as IES de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016.
d) Embora tenha aderido a regime geral ou excecional de regularização de dívidas tributárias (PERES), incumpriu o plano.
13) A insolvente tem dívidas fiscais relativas aos períodos de, pelo menos, 2005 a 2018.
14) Por acórdão proferido e transitado em julgado em 5 de Abril de 2019 no Processo Comum Coletivo n.º 8153/08.3TAVNG, do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, por factos relativos a agosto de 2002 a maio de 2008, CC, BB e a A..., Lda., foram condenados pela prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.º, 1 e 105º, 1 e 5, ambos do RGIT, nas penas, respetivamente, de 18 meses de prisão, dois anos de prisão e 500 dias de multa à razão diária de 10€, tendo as penas de prisão ido suspensas na sua execução por iguais períodos de tempo.
15) Foram igualmente condenados a pagarem ao Instituto de Segurança Social a quantia de 450.414,03€ a título de capital, acrescida de juros de mora sobre o capital em dívida, a calcular nos termos do artigo 16º do Decreto-Lei n.º 411/91, de 17.10 e artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16.03, até efetivo e integral pagamento.
16) Em 2018 foram registadas as contas da A..., Lda., relativas aos anos de 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017.

São os seguintes os factos não provados nos presentes autos:

17) A administração da empresa era igualmente exercida de facto, por AA, que exercia o poder de decisão quanto às políticas da empresa, procedia às contratações de pessoal, as compras a fornecedores e respetivos pagamentos, fazia a gestão das contas bancárias e a fixação de preços de venda
18) AA apoderou-se de avultadas quantias da empresa, que se destinavam ao pagamento de impostos e demais compromissos para com os restantes credores, tendo fugido para o Canadá
19) A A..., Lda., encerrou o estabelecimento fabril após a venda em execução fiscal do imóvel da fábrica, no início de 2014, não dispondo desde então de instalações, equipamentos ou pessoal que lhe permitissem prosseguir com a atividade.
20) O crédito reconhecido aos trabalhadores resulta apenas de indemnização por antiguidade.
21) CC não requereu a declaração de insolvência da A..., Lda., por ter em vista a manutenção dos postos de trabalho e a defesa das economias domésticas da zona onde estava instalada a fábrica da insolvente.
22) A insolvente não efetuava o pagamento voluntário de dívidas tributárias desde 7 de agosto de 2007.
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V – APRECIAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA DOS AUTOS COMO CULPOSA, FICANDO AFETADO POR TAL QUALIFICAÇÃO CC

Decorre do disposto no art.º 185.º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
Esta dicotomia tem como pressuposto a consideração de que a situação de insolvência pode resultar de factores alheios à vontade do Insolvente, tais como contingências económico-financeiras inesperadas ou situações de desemprego, divórcio ou doença.
Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objecto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.
O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
A regra é, pois, a de que a actuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tem que ser apta à criação ou agravação do estado de insolvência, em termos de nexo de causalidade, e levada a cabo com dolo ou culpa grave.
Trata-se tipicamente de uma norma de proteção.
A sentença recorrida considerou a insolvência da “A..., Lda.” como fortuita.
O Ministério Público defende no recurso sob apreciação que esta insolvência deve ser considerada culposa, à luz do art.º 186.º, n.º 1 e 2, alíneas h) e n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE, ficando afectado por tal qualificação CC.
Entende que, perante os factos provados, se deve concluir que, no período relevante (entre 19/09/15 e 19/09/18) o responsável da insolvente incumpriu de forma substancial a obrigação que sobre si impendia de manter a contabilidade organizada, dando sequência a idêntica conduta omissiva nos anos anteriores, de modo a que a situação patrimonial e financeira da insolvente não era passível de ser conhecida e avaliada por todos quanto nisso tivessem interesse nem pelo Estado.
Entende complementarmente que não é pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência.
Defende dever integrar-se esta conduta do responsável da sociedade na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.
Neste particular, a sentença recorrida decidiu que da matéria de facto provada nada resulta que permita considerar que houve um incumprimento substancial de manter a contabilidade organizada da sociedade, que esta tivesse mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Bem como que não foi alegado que desta irregularidade tivesse resultado prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da empresa.
Cumpre apreciar e decidir.
O n.º 2 do art.º 186.º do CIRE elenca um conjunto de situações em que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular”, designadamente quando “os seus administradores, de direito ou de facto tenham: (…) h) Incumprido, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.”
Aqui chegados podemos, desde já, concluir que, ao contrário do que parece dever depreender-se da decisão recorrida, que a interpretação necessária deste n.º 2 é a de que a verificação de alguma das situações previstas faz presumir, de forma inilidível, quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Aliás, este é o entendimento que vem sendo defendido, de forma pacífica e reiterada, na doutrina e na jurisprudência.
Refere, a este propósito, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[6] que este n.º 2 contém presunções absolutas de insolvência culposa do devedor.
No mesmo sentido, diz Luís M. Martins[7] que “A mera prática destes atos constitui presunção inilidível da qualificação da insolvência como culposa. (…) não admitindo prova em contrário quando se verifiquem alguma ou algumas das circunstâncias nele enumeradas. (…) O n.º 2 do artigo não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.”
Ainda no mesmo sentido, explica Rui Estrela de Oliveira[8] que “Esta norma consagra um sistema de imputação semi-objetivo, definindo causas puramente objetivas e causas semi-objetivas da insolvência culposa, para os casos de insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular. Provados os factos pressupostos nas várias hipóteses normativas a insolvência tem-se, sempre, por culposa. Provados esses factos, não se admite prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil). Portanto, a discussão centrar-se-á, sempre, na redação dessas previsões e na factualidade reclamadas para o seu preenchimento.”
Por seu turno, entre muitos outros no mesmo sentido, decidiu-se neste sentido no Acórdão desta Relação de 18/06/2007, tendo como Relator Pinto de Almeida[9]: “O n.º 2 não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.”
Deixando esta questão definida, importa apreciar a factualidade apurada nos autos para aferir se a poderemos (ou não) enquadrar na noção legal indeterminada de incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter a contabilidade organizada, tendo por referência o período temporal de 19/09/15 e 19/09/18.
A teleologia desta norma prende-se com a defesa de interesses dos sócios, dos credores e do Estado, que têm direito a conhecer a situação económica e financeira das sociedades, protegendo, assim, interesses particulares e públicos.
Especificamente quanto ao Estado, e tal como realça o Recorrente, é com base na escrituração comercial que este liquida os impostos e fiscaliza o cumprimento ou incumprimento das normas tributárias.
Num passo seguinte, podemos concluir que o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando a realidade concreta impossibilitar a compreensão da situação da empresa, a apreciação da situação patrimonial e financeira da mesma durante um período de tempo relevante.
Fazendo uma pesquisa jurisprudencial quanto à verificação deste conceito indeterminado, encontramos os seguintes arestos relevantes do Supremo Tribunal de Justiça:
O Acórdão de 19/10/21, tendo como Relator Pinto de Almeida[10] refere: “A contabilidade de uma empresa assume relevo importante nesta questão da qualificação, uma vez que o conjunto dos elementos escriturados deve demonstrar fielmente e permitir avaliar a situação patrimonial e financeira dessa empresa. O aludido incumprimento - que, por substancial, pressupõe a omissão de elementos relevantes e essenciais em termos contabilísticos - há-de, pois, influir nessa perceção, impedindo-a, impossibilitando ou prejudicando o conhecimento das causas da insolvência ou do agravamento destas”.
O Acórdão de 05/07/22, tendo como Relator José Rainho[11], bastante próximo da situação aqui em análise, refere: “A lei prevê, o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada como circunstância qualificadora. Tal permite excluir pequenas falhas - um hiato de transição entre contabilistas, uma falha do sistema informático, períodos de férias dos funcionários encarregues do lançamento de documentos, só para dar alguns exemplos - e considerar como integrando esta alínea a omissão quando frustre os objetivos legais, ou seja, quando impossibilite o acesso a informação útil que permita a tomada conscienciosa de decisões. Quando esses trabalhos param e não são retomados num curto espaço de tempo, podemos considerar que há incumprimento substancial. (…).” Remetendo para o caso concreto conclui “incumpriu a obrigação de manter contabilidade organizada, incumprimento que foi substancial porquanto se tratou de um incumprimento geral, ou seja, a total omissão de elaboração das demonstrações financeiras e cumprimento das obrigações fiscais, designadamente todas as IES e todas as declarações de IRC e a grande maioria das declarações de IVA (…).”
No caso dos autos, tendo a sociedade apresentado as declarações de rendimentos Mod. 22 de IRC de 2015 e 2016 apenas em abril de 2018, tendo apenas apresentado 6 declarações de IVA em 2017 e só tendo apresentado as IES de 2015 e 2016 em abril de 2018, tornou-se impossível pelo menos aos credores e ao Estado, nos três anos anteriores à apresentação do pedido de insolvência, conhecer a avaliar a situação patrimonial e financeira da sociedade insolvente.
Conclui-se, portanto, que está verificada a situação consagrada na alínea h), do n.º 2, do art.º 186.º do CIRE, ao aludir ao incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, por aplicação das indicadas presunções quer de culpa, quer de nexo de causalidade.
O gerente CC exerceu as funções de gerente da “A..., Lda.” desde a sua constituição em 11 de maio de 1982 e até 27 de março de 2019. Exerceu, pois, a gerência durante a totalidade do período legalmente relevante.
Deve, por inerência, ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa.
Esta conclusão prejudica a apreciação dos demais fundamentos invocados pelo Recorrente para a qualificação da insolvência da sociedade como culposa.
Cumpre, neste momento, fixar os efeitos da afetação do sócio CC por esta qualificação como culposa.
O art.º 189.º do CIRE, obrigando a decretar uma inibição das pessoas afectadas pela declaração de insolvência culposa para administrarem patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio e a condenar as mesmas a indemnizarem os credores do Insolvente, deixa para o julgador a medida dessas condenações.
Em nosso entendimento, no âmbito deste incidente quer as medidas inibitórias, quer o montante da indemnização a pagar pelo afectado por essa qualificação devem ser fixados à luz das circunstâncias do caso concreto, designadamente da culpa e das consequências danosas da conduta daquele na criação ou agravamento da situação de insolvência.
A redacção das alíneas b) e c) do respectivo n.º 2 é clara ao fixar uma moldura “punitiva” entre 02 a 10 anos.
Tal como explica Jorge Pinheiro[12], trata-se “de uma restrição à capacidade, que é uma incompatibilidade e não uma incapacidade em sentido técnico. O fundamento da inibição é a defesa geral da credibilidade do comércio.”
A definição de uma moldura aplicativa com um mínimo e um máximo abstractamente definidos leva-nos quase intuitivamente a apelar às características do caso e a atender aos critérios consagrados pelo art.º 186.º do CIRE para qualificação da insolvência como culposa como guias orientadores.
A disposição legal da alínea e) do mesmo n.º 2 deste art.º 189.º do CIRE é já de mais dificil interpretação, ainda que tenha sido clarificada com a recente redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01.
Esta disposição legal, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, é do actualmente seguinte teor: “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: (…) e) Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios, sento tal responsabilidade solidária entre todos os afectados.”
É pacífico que, com o aditamento desta alínea se pretendeu responsabilizar pessoalmente os representantes da sociedade insolvente, sempre que estejam verificados os pressupostos da insolvência culposa.
Trata-se de uma responsabilidade subsidiária, uma vez que apenas é accionada quando a massa insolvente seja insuficiente para a satisfação de todos os credores.
A grande dúvida que a interpretação deste preceito levanta prende-se com a expressão “considerando as forças dos respectivos patrimónios”.
A Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril não contém qualquer exposição de motivos.
A redacção, à época, do art.º 172.º, n.º 3, da lei espanhola (Ley Concursal[13]), que serviu de modelo à alteração da nossa lei nacional, era a seguinte: “(…) la sentencia podrá, además, condenar a los administradores o liquidadores, de derecho o de hecho, de la persona jurídica cuyo concurso se califique como culpable, y a quienes hubieren tenido esta condicíon dentro de los años anteriores a la fecha de la declaración de concurso, a pagar a los acreedores concursales, total o parcialmente, el importe que de sus créditos no perciban en la liquidación de la masa activa.”
Como se vê, não contém qualquer alusão ao valor do património dos representantes legais.
A doutrina e a jurisprudência, de forma coincidente, desvalorizam esta expressão.
Assim, diz Rui Pinto Duarte[14]: “Não deve ser atribuído significado especial à expressão «até às forças dos respectivos patrimónios», entendendo que o legislador apenas quis enfatizar que todo o património de cada pessoa afectada responde pela indemnização em causa.”, acrescentando, todavia, que “(…) evitar uma interpretação de tal alínea como implicando a condenação de cada “pessoa afectada” a indemnizar a totalidade dos créditos não satisfeitos é algo que se consegue com recurso à parte da alínea a) que determina que o juiz deve fixar o “grau de culpa” das “pessoas afectadas”.”
Por seu turno, diz Maria do Rosário Epifânio[15] que “Esta responsabilidade vai até às forças dos patrimónios dos responsáveis”, parecendo com isso o legislador significar que todo o património penhorável do devedor responde pelo cumprimento da obrigação de indemnizar. Será uma mera repetição do regime geral do art.º 601.º do C Civil.”
Finalmente dizem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[16]: “Quando, realmente, o processo permite saber, com grau suficiente de segurança, quanto é que os credores não conseguirão receber à custa da massa, então o tribunal, de imediato, deve fixar nesse valor o montante indemnizatório pelo qual respondem os culpados.”[17]
Na jurisprudência, veja-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/06/21, tendo como Relator Barateiro Martins[18], onde se decidiu: “Assim, no caso de indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, será atendendo a apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afectado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afectadas.”
Concordamos com esta leitura: a expressão em causa não é juridicamente rigorosa, apenas devendo ser interpretada como pretendendo dizer que todo o património da pessoa afectada pela insolvência responde pelo pagamento do montante dos créditos não satisfeitos.
Por inerência, reitera-se que, para efeitos de fixação desta indemnização, releva, independentemente do valor real do seu património, a culpa do afectado e o grau da sua contribuição para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Feito este enquadramento geral, cumpre, em concreto, ter em conta que a Senhora Administradora da insolvência reconheceu créditos no valor global de 8.826.229,64€, dos quais 4.507.880,24€ à administração tributária, 3.761.641,68€ ao Instituto da Segurança Social e 515.038,33€ a trabalhadores, tendo a lista de créditos sido homologada por sentença proferida a 30/11/21, transitada em julgado.
Deve atender-se a que o valor total dos créditos sobre a insolvência é de 8.848.216,02.
Bem como que a insolvente tem dívidas fiscais relativas aos períodos de, pelo menos, 2005 a 2018.
Mais se deve ter em conta que a Senhora Administradora da insolvência apreendeu os bens que constam do auto de apreensão junto a 30/10/2020 ao apenso A, que foram vendidos por 2.890€.
Ou seja, estamos perante um elevadíssimo valor de débitos da sociedade insolvente, seguramente acumulados ao longo de vários anos.
Por contraponto, verifica-se que a sociedade não dispunha, ao tempo da declaração de insolvência, de bens materiais de relevo.
No mesmo sentido, deve ponderar-se que, em 31 de dezembro de 2016, o valor do ativo da empresa era de 8.222.143,51€; o valor do passivo era de 7.744 673,13€ e o valor dos capitais próprios era de 477.470,38€. Igualmente que os capitais próprios constantes eram os seguintes: prejuízos transitados no montante de -6.083.060,89€; resultado liquido do exercício no montante de -56.006,74€; capital realizado no montante de 1.122.295,28€; outros instrumentos de capitais próprios, reservas legais e outras reservas no montante de 384.745,21€; excedentes de Revalorização no montante de 1.207.454,66€ e outras variações de capital próprio no montante de 3 902 042, 86€.
Deve ter-se em conta que a sociedade insolvente apresentou as declarações de rendimentos Mod. 22 de IRC de 2015 e 2016 apenas em abril de 2018, apresentou 6 declarações de IVA em 2017 e só apresentou as IES de 2015 e 2016 em abril de 2018 – tendo esta factualidade já sido analisada acima.
Também que, embora tenha aderido a regime geral ou excecional de regularização de dívidas tributárias (PERES), incumpriu o plano.
Especificamente quanto à pessoa do gerente CC apenas sabemos que este exerceu as funções de gerente da “A..., Lda.” desde a sua constituição em 11 de maio de 1982 e até 27 de março de 2019.
Bem como que, por acórdão proferido e transitado em julgado em 5 de Abril de 2019 no Processo Comum Coletivo n.º 8153/08.3TAVNG, do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, por factos relativos a agosto de 2002 a maio de 2008, este foi condenados pela prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.º, 1 e 105º, 1 e 5, ambos do RGIT, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Finalmente, deve ainda atender-se que a sua condenação se encontra apenas sustentada numa presunção inilidível de insolvência culposa, nos termos acima previstos.
Neste contexto, entendemos adequado e criterioso, à luz dos elementos de facto apurados:
a) Decretar a inibição de CC para administrar patrimónios de terceiros pelo período de 3 (três) anos;
b) Declarar CC inibido para o exercício do comércio pelo período de 3 (três) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por CC e
d) Condena-se o mesmo CC no pagamento a favor dos credores da massa insolvente da sociedade “A..., Lda.” do montante de EUR 100 000,00 (cem mil euros).
A conclusão final é, portanto, a da procedência do presente recurso.
*
VI – ANULAÇÃO DO PROCESSADO A PARTIR DA CITAÇÃO DA INSOLVENTE

O Recorrido CC pede, para o caso de ser confirmada a decisão recorrida, que seja apreciada a questão omitida na sentença recorrida da anulação de todo o processado a partir da citação da Insolvente, por não lhe ter sido permitido exercer o contraditório quanto ao requerimento de insolvência.
Alega que não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar sobre o teor do requerimento da insolvência apresentado em 19/09/2018.
Advoga ter interesse direto em contradizer o teor deste requerimento, atendendo à afetação pela qualificação dessa insolvência e defende ter sido violado o princípio do contraditório, o que constitui nulidade insanável a determinar a anulação de todos os atos praticados no processo de insolvência após a citação dos demais intervenientes.
Mais alega que nos processos crime em que foi acusado pelos crimes de abuso de confiança contra a Administração Tributária e contra a Segurança Social teve-se em conta que a falta de entrega dos tributos fiscais e das contribuições à Segurança Social constituíam um só crime continuado, eliminando, com tal entendimento, qualquer hipótese de ocorrer a prescrição de qualquer um deles.
Defende que qualquer condenação emergente da qualificação da insolvência constitui um duplo julgamento expressamente proibido pelo n.º 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa.
A nulidade da citação é de conhecimento oficioso, nos termos previstos nos art.º 196.º e 200.º do Código de Processo Civil[19].
A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (Cf. art.º 219.º do CP Civil).
A regra é a de que incumbe à secretaria promover oficiosamente, sem necessidade de despacho prévio, as diligências que se mostrem adequadas à efetivação da regular citação do réu ou requerido (cf. art.º 226.º, n.º 1, e 562.º, ambos do CP Civil).
Afinando a nossa análise, temos que a citação do devedor em processo de insolvência, quando não seja ele o requerente, se processa nos termos prescritos no CP Civil (por remissão do art.º 29.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ).
A citação de pessoas coletivas efetua-se por meio de carta registada com aviso de receção, de modelo oficialmente aprovado, endereçada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas. Em caso de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do n.º 2 do art.º 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º (Cf. art.º 228.º e 246.º, ambos do CP Civil).
No caso em apreciação, com data de 17/12/18, ordenou-se a citação da sociedade “A..., Lda.” “por carta registada com A/R, o devedor para, no prazo de 10 dias, deduzir oposição e oferecer todos os meios de prova de que disponha, sob a cominação de se considerarem confessados os factos alegados na petição inicial e de a insolvência ser declarada caso tais factos preencham a hipótese de alguma das alíneas do n.º 1, do artº 20º - artºs. 29º, n.º 1 e 2, e 30º, n.ºs. 1 a 5, do CIRE.”
Tendo a respetiva carta sido devolvida, foram feitas pesquisas nas Bases de Dados, de onde resultou que a morada indicada pela sociedade era na Rua ..., fração autónoma AC, 2.º andar, Vila Nova de Gaia.
Tentou-se novamente a citação nesta morada, bem como em outras moradas relativamente às quais foram colhidas informações nos autos.
Sequencialmente o tribunal recorrido ordenou a citação da sociedade na pessoa do legal representante, e aqui Recorrido, CC, por mandado.
Com data de 12/06/19, consta Certidão de Citação deste Recorrido, na qualidade de representante da sociedade, constando igualmente de tal Certidão que o mesmo se recusou a assinar e a receber a nota de citação e as cópias da peças processuais, e que os documentos ficariam à sua disposição no tribunal.
Tendo este Recorrido vindo informar nos autos que havia renunciado à gerência da sociedade citanda em 19/10/18, determinou-se a citação na pessoa da sócia “C..., Lda.”.
Tendo esta citação vindo devolvida com indicação de endereço insuficiente, determinou-se a citação editar da sociedade “A..., Lda.”, na sequência da qual se nomeou defensor.
Procedeu-se à citação da sociedade na pessoa do defensor nomeado.
Esta sequência de atos processuais demonstra que foram praticados todos os atos consagrados nos art.º 219.º e ss. do CP Civil, tendo-se tentado a citação da sociedade por carta registada, depois a sua citação na pessoa dos seus legais representantes e, tornando-se impossível, à sua citação edital, com subsequente nomeação da defensor oficioso, tal como prescrevem os art.º 240.º e ss. do CP Civil.
A conclusão é, portanto, a de que a citação da devedora foi levada a cabo de acordo com a lei processual e substantiva.
O CIRE e o CP Civil não obrigam a que cumulativamente se citem para os termos do processo de insolvência os sócios da empresa, tal como defende o aqui Recorrido.
Aliás, esta citação não teria qualquer utilidade ou valia jurídica: tendo sido requerida a insolvência da sociedade, apenas esta sociedade tinha interesse e legitimidade para contestar.
Independentemente desta conclusão, a arguição desta suposta nulidade sempre estaria precludida nos presentes autos.
Decorre do disposto no art.º 189,º do CP Civil que “Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.”
A teleologia da norma é clara: tendo o réu conhecimento do processo judicial e vindo intervir voluntariamente no mesmo fica prejudicada a utilidade da citação e a eficácia da nulidade. A menos, claro, que o Réu venha aos autos precisamente para invocar a falta de citação, caso em que eventualmente terá que se anular o processado e ordenar a efetivação da citação.
Nos presentes autos, o aqui Recorrido foi citado em representação da sociedade insolvente e, nessa sequência, veio apresentar vários requerimentos nos autos principais, sem que tenha vindo invocar esta nulidade.
Somente veio suscitar a questão em requerimento de oposição apresentado em 29/08/22, no Apenso de qualificação da insolvência.
Assim sendo, ainda que tivesse ocorrido a suscitada nulidade, a mesma deveria considerar-se sanada nos termos do artigo 189.° do CP Civil, porquanto este representante legal da Ré não a arguiu na primeira intervenção processual que teve nos autos.
Ao suscitar tal nulidade em sede de contra-alegações de recurso fê-lo, pois, extemporaneamente.
Finalmente cumpre ainda referir que as visssicitudes dos processos crime em que o Recorrido foi constituído arguido teriam, como é óbvio, que ser impugnadas nesses mesmos processos.
Bem como que qualquer condenação crime é absolutamente autónoma e independente da apreciação da conduta deste Recorrido neste processo de insolvência.
Aliás, nem os períodos temporais sobre que versaram estas decisões são coincidentes: a decisão crime a que se faz referência nos autos reporta-se a factos cometidos entre 2002 e 2008 e os presentes Apenso versa sobre o período temporal decorrido entre 2015 e 2018.
Improcede, pois, a suscitada nulidade da citação do Recorrido.
*
VII - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso do Recorrente/Ministério Público, revogando-se a sentença recorrida e, em sua substituição, declara-se a insolvência de “A..., LDA.” culposa, julgando por ela afetado CC, com as seguintes consequências:
a) Decreta-se a inibição de CC para administrar patrimónios de terceiros pelo período de 3 (três) anos;
b) Declara-se CC inibido para o exercício do comércio pelo período de 3 (três) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por CC e
d) Condena-se o mesmo CC no pagamento a favor dos credores da massa insolvente da sociedade “A..., Lda.” do montante de EUR 100.000,00 (cem mil euros).
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Custas do presente recurso a cargo da massa insolvente - art.º 303.º e 304.º do CIRE.
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Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 16 de janeiro de 2024
Lina Baptista
Ana Lucinda Cabral
Alexandra Pelayo
______________
[1] Doravante designado apenas por CIRE, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] Do seguinte teor: “A Senhora Administradora da insolvência reconheceu créditos no valor global de 8.826.229,64€, dos quais 4.507.880,24€ à administração tributária, 3.761.641,68€ ao Instituto da Segurança Social e 515.038,33€ a trabalhadores, tudo conforme termos da relação de credores reconhecidos junta a 30/10/2020 ao apenso B, cujo teor aqui se dá por reproduzida.”
[4] Do seguinte teor: “A insolvente não efetuava o pagamento voluntário de dívidas tributárias desde 7 de agosto de 2017.”
[5] Consigna-se que, pelo menos no Citius, não existe qualquer certidão de dívidas no Apenso K, tal como alegado pelo Recorrente.
[6] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, pág. 509.
[7] In Processo de Insolvência, 2016, 4ª Edição, Almedina, pág. 449 e 450.
[8] In Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência in Revista Julgar n.º 11, 2010, pág. 237.
[9] Proferido no Processo n.º 0731779 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[10] Proferido no Processo n.º 421/19.5T8GMR-A.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[11] Proferido no Processo n.º 15973/18.9T8SNT-A.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[12] In “Efeitos pessoais da declaração de insolvência” in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, 2007, Almedina, pág. 207 e ss.
[13] Ley 38/2011, de 10 de octubre, de reforma da Ley 22/2003, de 09 de julio (mas, neste caso, na sua redacção inicial).
[14] In “Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE” in III Congress de Direito da Insolvência, 2015, Almedina, pág. 165.
[15] In Manual de Direito da Insolvência, 2016, 6.ª Edição, Almedina, pág. 140.
[16] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição 2015. Quid Juris, pág. 697.
[17] A única posição parcialmente divergente que encontramos é a de Menezes Leitão (in Direito da Insolvência, 8.ª Edição, 2018, Almedina, pág. 292), que entende o seguinte: “Parece, no entanto, que neste caso o que a lei pretende é excluir a possibilidade de os afectados pela qualificação serem declarados insolventes por não poderem cumprir esta obrigação de indemnização na sua integralidade, dado que a mesma se reduz ao montante correspondente aos seus patrimónios.”
[18] Proferido no Processo n.º 439/15.7T8OLH-J.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[19] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.