Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | LINA BPATISTA | ||
Descritores: | FALTA DE CITAÇÃO E NULIDADE DE CITAÇÃO ACORDO DE SAÍDA DO REINO UNIDO DA UNIÃO EUROPEIA | ||
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Nº do Documento: | RP20220222925/20.7T8PVZ-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/22/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O princípio da contradição ou do contraditório é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes e com uma matriz constitucional, assente no princípio de acesso ao direito e aos tribunais e no princípio da igualdade. II - A partir do dia 31/01/20, o Reino Unido deixou de ser um Estado-Membro da União Europeia. Nesse momento, entrou em vigor o “Acordo de Saída” e iniciou-se um período transitório, que terminou no dia 31/12/20, de forma definitiva. III - Consequentemente, deve entender-se que o Regulamento (CE) n.º 1393/2007 apenas poderia ser aplicável, após 01/01/21, caso o acto judicial para citação dos autos tivesse sido recebido nas autoridades inglesas competentes até ao dia 31/12/20. IV - Sendo o recebimento posterior, passa a aplicar-se, para efeito de citação, a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, convenção da qual Portugal é Estado contratante, promulgada pelo Decreto-Lei n.º 210/71, de 18 de Maio. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 925/20.7T8PVZ-B.P1 Comarca: [Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (J4); Tribunal Judicial do Porto] Relatora: Lina Castro Baptista Adjunta: Alexandra Pelayo Adjunto: Fernando Vilares Ferreira SUMÁRIO ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Acordam no Tribunal da Relação do PortoI - RELATÓRIO “F..., S.A.”, sociedade com sede na Rua ..., ..., Barcelos, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “S..., S.A.”, sociedade com sede na Rua ..., ..., Matosinhos, pedindo que seja julgada procedente por provada a responsabilidade contratual da Ré e, por via dela, a condenação da Ré a indemniza-la do montante global de € 50 293,04, acrescida dos competentes juros de mora a contabilizar até efectivo e integral pagamento. A Ré veio contestar e deduzir incidente de intervenção principal de “A..., LDA.”, com sede na Rua ..., ..., o qual foi admitido. Em 31/03/21, esta Interveniente veio apresentar articulado de contestação onde – entre o mais – veio requerer a apensação a estes autos do Processo n.º 1130/20.8T8PVZ e deduzir incidente de intervenção acessória provocada da sociedade comercial de direito inglês “C... Limited”, com sede em ..., Inglaterra. Por despacho proferido em 12/05/21[1], deferiu-se este incidente de intervenção acessória provocada, determinando-se: “Proceda-se à sua citação, nos termos do art.º 323.º, n.º 1, do CPC, observando para o efeito o disposto no Regulamento CE 1393/2007.” No dia 18/05/21[2], a Secção notificou o Ilustre mandatário da Interveniente “A..., Lda.” para, no prazo de 10 dias, proceder à tradução e junção aos autos do formulário para citação da Interveniente “C... Limited”. Bem como para proceder à tradução e junção nos autos dos articulados oferecidos e do despacho proferido quanto ao incidente, observando o disposto no art.º 8.º do Regulamento CE 1393/2007. Com data de 28/05/21[3], a Interveniente “A..., Lda.” veio requerer a prorrogação do prazo para tradução dos articulados por um período nunca inferior a 30 dias, o que lhe foi concedido. No dia 07/06/21, a Autora veio apresentar requerimento nos autos requerendo o prosseguimento dos autos, independentemente da citação da requerida interveniente, nos termos previstos no art.º 324.º do CP Civil. Em 22/06/21 foi inserida Cota no processo, com informação de que havia sido expedida, por carta registada, a carta rogatória para “Justices of the United Kingdom - Royal Courts Of Justice”, Foreign Process Section Room e 16,Strand London WC2 A 2 Ll - UK. Com data de 23/06/21[4], foi proferido despacho com a seguinte fundamentação resumida: “Requereu a autora, ao abrigo do disposto no art.º 324 do CPC, o prosseguimento da causa principal, alegando para o efeito que decorreram 68 dias sobre a data em que foi deduzido o incidente de intervenção acessória de “C... Limited” sem que a mesma se mostre citada. Ora, verificando-se que, efectivamente, já decorreram mais de 60 dias sobre a data em que foi deduzido o incidente de intervenção acessória de “C... Limited” (31.03.2021) sem que a mesma se encontre citada – mesmo considerando que a suspensão dos prazos prevista no art.º 6º-B, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03, aditado pela Lei n.º 4-B/2021 de 01.02, apenas cessou em 06.04.2021 – determino o prosseguimento dos autos, ficando sem efeito a referida intervenção, assim se atendendo ao requerido na alínea b) do requerimento em análise. Em face do exposto, solicite a devolução, sem cumprimento, da carta rogatória e, após, abra novamente conclusão.” Em 05/07/21, foi proferido novo despacho a deferir a requerida apensação de processos, solicitando, para apensação, o Processo n.º 1130/20.8T8PVZ. Apensados os autos, verifica-se que neste Apenso todo o processamento respeitante à admissão e citação da Interveniente sociedade de direito inglês foi idêntico ao destes autos principais. Com data de 07/07/21, foi junto aos autos ofício de “HM Courts & Tribunals Service”com o seguinte teor: “Your documents are being returned to you. As from the 31st December 2020 the UK are no longer party to service regulation EC 1393/2007. Please provide your documents to us under the correct convention (…).” Com data de 12/07/21, a Interveniente “A..., Lda.” veio apresentar requerimento nos autos alegando, em resumo, que, no momento da dedução do incidente de intervenção e da citação, não se aplicava ao caso concreto o Regulamento CE 1393/2007, já que o Reino Unido da Grã-Bretanha já tinha deixado de ser Estado-Membro da União Europeia. Afirma que, a partir do dia 01/01/2021, em vez do Regulamento 1393/2007, passou a aplicar-se a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, convenção da qual Portugal é Estado contratante, promulgada pelo Decreto-Lei n.º 210/71, de 18 de Maio. Diz que, de acordo com essa Convenção, não é obrigatória a tradução dos articulados e dos documentos a remeter com a citação, mas tão-só os formulários do pedido de citação que devem ser redigidos em francês ou inglês (Cf. artigo 7º da Convenção) e que a mesma permite que a Chamada seja citada directamente por via postal (Cf. art.º 10.º, alínea a) da Convenção). Acrescenta que tanto no Regulamento (Cf. artigo 14.º) como na Convenção (Cf. artigo 10.º, alínea a)) era permitida a citação da Chamada directamente, por via postal. Defende não poder ver a sua posição prejudicada pelo facto de os trâmites seguidos pelo Tribunal não serem os que se encontram regulados, por Lei e/ou Convenção, e que se devidamente cumpridos teriam permitido proceder à citação da Chamada nos 60 dias. Mais defende que a omissão desta formalidade (falta de citação postal) constitui nulidade que influi no exame da causa e pode influir de forma determinante na decisão da mesma, pois vê-se impedida de ter como auxiliar da sua defesa a chamada, com claros prejuízos numa eventual acção de regresso a intentar contra aquele. Pede que seja declarado nulo o despacho que ordenou a tradução dos articulados e documentos e a citação ao abrigo do Regulamento CE 1393/2007, o procedimento adoptado pelo Tribunal quanto à forma da citação da Chamada, mas também o despacho que ordenou o prosseguimento dos autos sem citação da Chamada, tudo nos termos do artigo 195.º do CPC devendo, em consequência, ser ordenada a citação da chamada por via postal. A Autora veio responder, pedindo que sejam declaradas como inatendíveis as nulidades invocadas, por intempestividade da sua arguição e, ainda, por manifesta falta de fundamento, prosseguindo o processo os seus termos até final. Com data de 14/09/21, foi proferido despacho com a seguinte fundamentação resumida: “(…) Por despachos proferidos nestes autos e nos autos apensos, respectivamente, em 12/05/21 e 11/05/21, dos quais foram expedidas notificações para interveniente em 14/05/21, foi determinada a citação da chamada com observância do disposto no Regulamento CE 1393/2007. Na sequência, em ambos os processos, a secção, em 18/05/2021, procedeu à notificação da interveniente para juntar aos autos as respectivas traduções. E, notificada, mais uma vez em ambos os processos, a ora interveniente, por requerimentos de 28/05/2021, requereu prazo para a junção dessas traduções. As formalidades observadas na citação da chamada obedecem ao determinado nesses actos. A nulidade que a interveniente argui, de acordo com a sua exposição, radica assim no facto de o tribunal ter procedido, indevidamente, à aplicação, no que se refere à citação da chamada, do Regulamento CE 1393/2007 e de, na sequência, também indevidamente, ter sido notificada pela secção para proceder às referidas traduções de formulários e documentos. Ou seja, a nulidade invocada reporta-se aos despachos proferidos, nestes autos e nos autos apensos, respectivamente, em 12/05/2021 e 11/05/2021, dos quais foi expedida notificação para a interveniente em 14/05/2021 (considerando-se a mesma notificada em 17/05/21) e à notificação para junção das respectivas traduções, expedidas pela secção em 18/05/2021 (considerando-se a notificação efectuada em 21/05/2021). Quanto aos despachos proferidos nestes autos e nos autos apensos, respectivamente, em 23/06/2021 e 01/07/2021, os quais declararam sem efeito o incidente de intervenção da “Calibre”, os mesmos apenas poderiam ser anulados em consequência da nulidade daqueles despachos e notificações que acima, neste mesmo parágrafo, se fez referência. Ora, temos por seguro que entre a data em que interveniente se considera notificada dos despachos proferidos, nestes autos e nos autos apensos, respectivamente, em 12/05/2021 e 11/05/2021, bem como das notificações para junção das respectivas traduções, e entre as datas que argui a nulidade em apreço, 12/07/2021 e 15/07/2021, decorreram muito mais do que os 10 dias de que a interveniente dispunha para o fazer, motivo pelo qual a arguida em análise e extemporânea. Assim sendo, indefere-se o requerido.” Inconformado com este despacho de 14/09/2021, que indeferiu a nulidade invocada nos requerimentos de 12/07/2021 e 15/07/2021 (nestes autos e nos autos apensos), a Interveniente “A..., Lda..” interpôs recurso pedindo que seja revogado o despacho recorrido e, consequentemente, se ordene que o tribunal de 1.ª Instância se pronuncie sobre a nulidade arguida, por ter sido tempestivamente invocada ou que seja conhecida a nulidade invocada, declarando nulos os despachos de 12/05/2021 e de 23/06/2021 dos autos principais e dos despachos de 11/05/2021 e de 01/07/2021 dos autos apensos, ordenando-se a citação da chamada “Calibre”, por via postal, terminando com as seguintes CONCLUSÕES: A. Por despachos de 12.05.2021 e 11.05.2021, cujas notificações para a aqui Recorrente ocorreu em 14.05.2021, determinou-se a citação da chamada C..., Limited, com observância do disposto no Regulamento CE 1393/2007. B. Apesar de notificada a Recorrente para juntar aos autos as traduções das peças processuais e documentos, viria o Tribunal a quo, posteriormente, em despachos de 23/06/2021 e 01/07/2021, declarar sem efeito o incidente de intervenção da Calibre, ordenando que as citações fossem devolvidas sem cumprimento. C. Consultado o processo principal na plataforma Citius, deparou-se a Recorrente com o ofício de 07/07/2021, junto pela “HM Courts & Tribunals Service”, onde é referido, em suma, que já não se aplicava ao caso concreto o Regulamento CE1393/2007. D. Só a partir do dia 07/07/2021, pelo menos, é que se pode considerar iniciado o prazo de 10 dias para arguir qualquer nulidade, nos termos do artigo 199.º, n.º 1, do CPC. E. Só em 07/07/2021 é que a Recorrente teve conhecimento da nulidade existente. F. O prazo de arguição da nulidade mencionada apenas terminaria em 02/09/2021, contudo a mesma foi arguida em 12/07/2021 e 15/07/2021. G. A nulidade invocada foi arguida tempestivamente, nos termos do art.º 199.º, n.º 1, do CPC, motivo pelo qual deve ser revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que ordene o Tribunal a quo a pronunciar-se sobre a mesma. H. Sem prejuízo, este douto Tribunal de recurso está em condições, face aos elementos constantes dos autos, de se pronunciar sobre a nulidade arguida. I. O Tribunal a quo aplicou indevidamente o Regulamento CE 1393/2007 para citar a chamada Calibre, apesar daquele já não se aplicar desde 31/12/2020 em virtude da saída do Reino Unido da União Europeia. J. Aplicava-se portanto, à data da citação da Calibre, a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, convenção da qual Portugal é Estado contratante, promulgada pelo Decreto-Lei n-º 210/71, de 18 de Maio. K. De acordo com a convenção não era obrigatória a tradução dos articulados, nem dos documentos, mas tão-só os formulários de pedido da citação. L. Podia ainda a Chamada ter sido citada por via postal, conforme artigo 10.º, alínea a) da Convenção, sem necessidade de qualquer tradução ou formulários, cumprindo-se de igual modo todos os formalismos legais (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 18/06/2015, processo n.º 1821-14.2T8CSC-B.L1-6, disponível para consulta em www.disg.pt). M. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15/10/2013, processo n.º 3450/12.6TBGMR-B.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, onde ficou sumariado que: “1º - A República Portuguesa está vinculada ao primado do Direito da União, nos termos do disposto no art. 8.º, n.º 4 da Constituição da República. 2.º - A prevalência do Direito da União, designadamente, no que respeita aos regulamentos, resulta do disposto no art. 249.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), sendo o qual, os regulamentos são obrigatórios em todos os seus elementos e directamente aplicáveis em todos os Estados-Membros. 3º - O Regulamento (CE) n.º 1393/2007, de 13 de Novembro de 2007 é directamente aplicável em Portugal, em matéria civil ou comercial, quando um acto judicial ou extrajudicial deva ser transmitido de um Estado-Membro para outro Estado-Membro para aí ser objecto de citação ou notificação. 4.º - Da conjugação dos artigos 8.º e 14.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007, de 13 de Novembro de 2007, interpretados à luz do seu considerando preambular n.º 12, impõe-se concluir, por um lado, que o Regulamento (CE) n.º 1393/2007 não exclui, antes admite, a citação ou notificação pelos serviços postais, relativamente a actos judiciais, como decorre do disposto no seu art.º 14.º E, por outro lado, que, utilizando a citação directa pelos serviços postais, fora, portanto, do âmbito de transmissão de acto a realizar entre entidades de origem e entidades requeridas, não se impõe que o acto judicial seja traduzido para a língua oficial do Estado requerido ou para uma língua que o destinatário compreenda. Essencial é que, de acordo com o disposto no art. 8.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1393/2007, seja comunicado ao destinatário da citação através do modelo uniforme constante do anexo II, e na língua oficial do Estado-Membro do destino, a possibilidade de recusa do acto por não se encontrar acompanhado de uma tradução.” N. A citação, por via postal, da chamada Calibre teria permitido que se tivesse cumprido o prazo de 60 dias previsto na lei, pelo que a sua não realização constitui nulidade que devia ter sido conhecida pelo Tribunal a quo. O. A omissão cometida influi no exame da causa e pode influir de forma determinante na decisão da mesma, pois a chamante vê-se impedida de ter como auxiliar da sua defesa a chamada, com claros prejuízos numa eventual acção de regresso a intentar contra aquele. P. Deve ser declarada a nulidade invocada, quer nos autos principais, quer nos autos apensos, ordenando-se a citação da chamada Calibre por via postal. Q. A decisão da qual se recorre deve pois ser revogada por violação dos artigos 195.º, 199.º, n.º 1 do C.P.C. e ainda o artigo 10.º, alínea a) da Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965. Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSOResulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[5], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso. A Recorrente deduziu o presente recurso de apelação pedindo que seja revogado o despacho recorrido e, consequentemente, se ordene que o tribunal de 1.ª Instância se pronuncie sobre a nulidade arguida, por ter sido tempestivamente invocada. Ou que seja conhecida a nulidade invocada, declarando nulos os despachos de 12/05/2021 e de 23/06/2021 dos autos principais e dos despachos de 11/05/2021 e de 01/07/2021 dos autos apensos, ordenando-se a citação da chamada “Calibre”. Atendendo a que a nulidade da citação invocada no recurso, sob a modalidade de falta de citação, nos termos consagrados nos art.º 187.º e 188.º do CP Civil, é de conhecimento oficioso (cf. art.º 196.º do CP Civil), decide-se não conhecer do primeiro pedido formulado em sede de recurso, por absoluta inutilidade. A questão a apreciar no presente recurso, delimitada pelas conclusões do recurso, é, pois, a da apurar se há falta da citação da Interveniente “C... Limited”. * III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTOA factualidade relevante resume-se aos trâmites processuais atrás consignados no Relatório e ao teor da decisão recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. * IV – FALTA OU NULIDADE DA CITAÇÃO DA INTERVENIENTEA Recorrente sustenta, em síntese, que o Tribunal a quo aplicou indevidamente o Regulamento CE 1393/2007 para citar a chamada Calibre, por aquele já não se aplicar desde 31/12/2020 em virtude da saída do Reino Unido da União Europeia. Afirma que se aplicava, à data da citação da Calibre, a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, convenção da qual Portugal é Estado contratante, promulgada pelo Decreto-Lei n-º 210/71, de 18 de Maio. Alega que, de acordo com esta convenção, a Chamada podia ter sido citada por via postal, conforme artigo 10.º, alínea a) da Convenção, sem necessidade de qualquer tradução ou formulários, cumprindo-se de igual modo todos os formalismos legais. Defende que a citação, por via postal, da chamada Calibre teria permitido que se tivesse cumprido o prazo de 60 dias previsto na lei, pelo que a sua não realização constitui nulidade que devia ter sido conhecida pelo Tribunal a quo. Também que a omissão cometida influi no exame da causa e pode influir de forma determinante na decisão da mesma, pois a chamante vê-se impedida de ter como auxiliar da sua defesa a chamada, com claros prejuízos numa eventual acção de regresso a intentar contra aquele. Pretende que seja declarada a nulidade invocada, quer nos autos principais, quer nos autos apensos, ordenando-se a citação da chamada Calibre por via postal. O princípio da contradição ou do contraditório é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes e com uma matriz constitucional, assente no princípio de acesso ao direito e aos tribunais e no princípio da igualdade. Tem como corolário principal a obrigatoriedade de citação do Réu para contestar, consagrada no art.º 569.º, n.º 1, do CP Civil, A citação constitui o acto pelo qual se dá conhecimento do réu de que foi proposta contra si uma acção e se chama ao processo para se defender (cf. art.º 219.º, n.º 1, do CP Civil). Tem associados importantíssimos efeitos, designadamente a interrupção da prescrição, a cessação da situação de boa-fé, a constituição em mora e, claro, a aplicação de um conjunto de cominações, em especial a de se considerarem confessados os factos articulados pelo autor (cf. art.º 567.º, n.º 1, do CP Civil). Estas disposições legais aplicam-se – com as necessárias adaptações – às situações de citação de Intervenientes admitidos a intervir nos autos. A falta de citação, consagrada nos art.º 187.º e 188.º do CP Civil, constitui uma nulidade principal enquanto a nulidade da citação, prevista no art.º 191.º do CP Civil, equivale “apenas” à preterição de formalidades prescritas na lei, sendo uma nulidade secundária, dependendo de reclamação pelo próprio interessado. A nulidade por falta de citação ocorre nas situações tipificadas nas alíneas do n.º 1 do art.º 188.º do CP Civil, por remissão do artigo antecedente. A Alínea a) do n.º 1 deste art.º 188.º determina que há falta de citação “Quanto o acto tenha sido completamente omitido.” Esta “falta de citação” traduz-se na inexistência pura e simples do acto de citação ou sempre que se verifiquem determinadas situações que devam ser legalmente equiparadas a essa falta de citação. Tal como se refere no “Código de Processo Civil Anotado” de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[6]. “O conceito de falta de citação integra diversas situações, tendo uma amplitude que vai para além da omissão completa do acto.”. No mesmo Código Anotado apresentam-se diversas situações exemplificativas de equiparação a falta de citação, designadamente sempre que a carta de citação seja remetida para pessoa diversa do réu ou sempre que a carta para citação seja entregue a pessoa diversa do réu (fora do circunstancialismo marcado no art.º 228.º, n.º 2, do CP Civil). Na jurisprudência têm vindo igualmente a ser identificadas algumas situações como equiparadas a falta de citação. Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/97, tendo como Relator Costa Soares[7] decidiu-se que “A citação ordenada por carta registada com aviso de recepção, mas que não foi enviada para a sede da sociedade ré em contravenção do artigo 238-A do CPC67, embora assinada por funcionário da ré não é feita na conformidade do artigo 234 n 3 n 4 do mesmo Código, havendo, pois, em tal caso, falta absoluta de citação.” No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/80[8], tendo como Relator Ferreira da Costa decidiu-se que “Se a sociedade ré não foi citada na pessoa de nenhum dos seus representantes; se nenhum deles foi procurado na respectiva sede social e numa pessoa que não era sua empregada, nem “pessoa da casa”, verifica-se a falta de citação, fundamento do recurso de revisão (artigos 233 n. 2, 234, n. 3, 240 n. 1, 195 n. 1 alínea d) e n. 2 alínea c) e 771 alínea f), todos do Código de Processo Civil.” No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/09/2004, tendo como Relator Azevedo Ramos[9] decidiu-se que “A validade da citação com hora certa pressupõe que o citando tenha residência no local onde aquela foi realizada e que a falta de conhecimento da citação não lhe seja imputável.” Paralelamente no Acórdão deste Tribunal da Relação de 24/05/99, tendo como Relator Marques de Castilho[10] decidiu-se que “Há falta de citação quando, para citação de sociedade, a carta registada com aviso de recepção é enviada para local diferente da respectiva sede ou daquele onde funciona a respectiva administração e o aviso de recepção é assinado por pessoa desconhecida e não identificada.” Por seu turno, no Acórdão desta Relação de 13/01/20, tendo como Relator Mendes Coelho[11] decidiu-se que “Verificando-se que a carta registada com aviso de recepção para citação para citação do Réu foi enviada para local que não corresponde à sua residência, sem que ocorra qualquer comportamento ao mesmo imputável para impedir que chegue ao seu conhecimento tal acto de citação, é de concluir, face ao disposto nos arts. 187º a) e 188º nº 1 e) do CPC, pela nulidade da falta de citação em relação a tal Réu.” Em todas estas situações, estamos perante a existência de diligências com vista à citação, mas praticadas de forma ilegal e redundando na impossibilidade da efectiva citação do citando. Em nosso entendimento, a situação dos autos trata-se precisamente de um caso com estes contornos. Como resulta do Relatório supra, foi deferido nos autos o incidente de intervenção acessória provocada da sociedade comercial de direito inglês “C... Limited”, com sede em ..., Inglaterra. O tribunal recorrido determinou que a citação da Interveniente se fizesse observando para o efeito o disposto no Regulamento (CE) 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007. Em 22/06/21 foi inserida Cota no processo, com informação de que havia sido expedida, por carta registada, a carta rogatória para “Justices of the United Kingdom - Royal Courts Of Justice”, Foreign Process Section Room e 16,Strand London WC2 A 2 Ll - UK. O Regulamento (CE) 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007 tem por objecto a citação e notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros. Consta do respectivo art.º 1.º, n.º 1, que “O presente regulamento é aplicável, em matéria civil ou comercial, quanto um acto judicial ou extrajudicial deva ser transmitido de um Estado-Membro para outro Estado-Membro para aí ser objecto de citação ou notificação.” O seu campo de aplicação circunscreve-se às citações e notificações de actos judiciais e extrajudiciais no espaço da União Europeia. Em face deste campo de aplicação, é evidente que, no momento em que o tribunal recorrido ordenou a citação da Interveniente, esta citanda não podia ser citada ao abrigo deste Regulamento (CE) 1393/2007. Como é do conhecimento geral, a partir do dia 31/01/20, o Reino Unido deixou de ser um Estado-Membro da União Europeia. Nesse momento, entrou em vigor o “Acordo de Saída” e iniciou-se um período transitório, que terminou no dia 31/12/20, de forma definitiva. Além disso, o “Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica 2019/C 384 I/01” limitou-se a prever que a legislação da União Europeia em matéria de competência internacional em litígios cíveis transfronteiriços continua a ser aplicável aos processos judiciais instaurados antes do termo do período da transição e que a legislação da EU pertinente em matéria de reconhecimento e execução de sentenças continua a ser aplicável às sentenças proferidas nestes processos. Consequentemente, deve entender-se que o Regulamento (CE) n.º 1393/2007 apenas poderia ser aplicável, após 01/01/21, caso o acto judicial para citação dos autos tivesse sido recebido nas autoridades inglesas competentes até ao dia 31/12/20 – o que não ocorreu. Assiste, portanto, inteira razão à Recorrente ao defender que passou a aplicar-se para efeitos de citação desta a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, convenção da qual Portugal é Estado contratante, promulgada pelo Decreto-Lei n.º 210/71, de 18 de Maio. Em face desta inaplicabilidade do Regulamento (CE) n.º 1393/2007, as autoridades do Reino Unido devolveram aos autos a documentação sem cumprimento, com o seguinte esclarecimento: “Your documents are being returned to you. As from the 31st December 2020 the UK are no longer party to service regulation EC 1393/2007. Please provide your documents to us under the correct convention (…).” Impõe-se, em face do exposto, concluir que a citação endereçada para a Interveniente enferma da nulidade arguida, por a mesma não ter sido feita pela forma procedimental adequada e, por esse motivo, ter sido devolvida sem cumprimento. Trata-se de uma situação equiparada a “falta de citação” e, nessa medida, de conhecimento oficioso e determinando a repetição do acto de citação, com anulação dos actos processuais subsequentes à fase dos articulados, caso a Interveniente venha intervir nos autos com articulado autónomo. Finalmente, e atendendo que a Recorrente pede que se ordene a citação da chamada “Calibre” por via postal, deixa-se consignado que a Convenção Relativa à Citação e Notificação no Estrangeiro nos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, admite, no respectivo art.º 10.º, alínea a), a citação directa, por via postal, quando o país destinatário não tiver feito declaração em contrário[12]. Mais se deixa consignado que, para os efeitos do art.º 5.º da Convenção, o Reino Unido emitiu declaração no sentido de que a documentação necessita de estar traduzida para a língua inglesa. A conclusão final é, portanto, a da procedência do presente recurso. * V - DECISÃOPelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso da Interveniente “A..., Lda..”, revogando-se o despacho recorrido e julgando-se verificada a por si suscitada nulidade por falta de citação da igualmente Interveniente “C... Limited” e, por inerência, determina-se a repetição do acto de citação desta ao abrigo da Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, celebrada em Haia, em 15 de Novembro de 1965, com anulação dos actos processuais subsequentes à fase dos articulados, caso a Interveniente venha intervir nos autos com articulado autónomo. * Sem custas – art.º 527.º do CP Civil.* Notifique e registe.(Processado e revisto com recurso a meios informáticos) Porto, 22 de Fevereiro de 2022 Lina Baptista Alexandra Pelayo Fernando Vilares Ferreira _______________ [1] Proferiu-se despacho paralelo no processo apenso em 11/05/2021. [2] Sendo que no mesmo dia a Secção procedeu da mesma forma no processo apenso. [3] A Recorrente apresentou idêntico requerimento no processo apenso no mesmo dia. [4] Proferiu-se idêntico despacho no processo apenso em 01/07/2021. [5] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e de celeridade. [6] Vol. I, 2018, Almedina, pág. 224. [7] Proferido no Processo n.º 97B714 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [8] Proferido no Processo n.º 068365 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [9] Proferido no Processo n.º 04ª2277 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [10] Proferido no Processo n.º 9921436 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [11] Proferido no Processo n.º 399/19.5T8VLG.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. [12] Veja-se neste sentido, e a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/11/02, tendo como Relator Caimoto Jácome, proferido no Processo n.º 0251081 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. |