Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA | ||
| Descritores: | CRIME DE LENOCÍNIO BEM JURÍDICO TUTELADO | ||
| Nº do Documento: | RP2025012225/17.7ZRCBR.P1 | ||
| Data do Acordão: | 01/22/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
| Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A lesão de um bem jurídico é pressuposto da intervenção penal e da punibilidade. II - A tutela através da pena deve cingir-se à defesa de bens jurídicos [interesses vitais da comunidade], considerando, desde logo, o princípio constitucionalmente consagrado da necessidade da pena e da natureza subsidiaria do direito penal, que apenas deverá intervir como última ratio da política social. III - Com a revisão do Código Penal introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2/09, que eliminou do tipo de lenocínio simples do art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal a “exploração de situação de abandono ou de necessidade económica”, que constava da versão originária, foi perdida a conexão com um bem jurídico com dignidade penal e claramente definido. IV - Eliminado o referido elemento típico, deixou de estar em causa a proteção da liberdade sexual, ficando a norma carecida de qualquer bem jurídico digno de tutela penal, o que torna materialmente inconstitucional o tipo de crime do art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, por violação expressa dos art.ºs 18.º, n.º 2, e 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP. V - Mesmo que se entenda que o bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime de lenocínio simples é a «liberdade sexual», o que está longe de ser consensual, e que estaremos, consequentemente, perante um crime de perigo abstrato, tal não afasta a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal. VI - A incriminação do lenocínio simples, nos termos em que se encontra formulado, provoca a perda ou a redução do valor da integridade e essência pessoal de quem se prostitui livremente, o que se traduz na violação do princípio da dignidade da pessoa humana. VII - A opção livre de alguém se dedicar à prostituição, ou de recorrer à ajuda de outrem para o fazer, não põe em causa a sua dignidade enquanto pessoa. Pelo contrário, essa dignidade pode sim ser posta em causa pela incriminação do lenocínio nos termos em que atualmente se mostra formulada, na medida em que a clandestinidade a que fica obrigada provoca estigmatização e discriminação, para além de insegurança. VIII - A dignidade da pessoa exige condições económicas de vida capazes de assegurar liberdade e bem estar, o que implica o reconhecimento de direitos, designadamente a quem, livremente, por opção própria, decidiu dedicar-se à prostituição. Um deles, por muito que essa opção possa ser moral e eticamente questionável, é o direito de exercer uma atividade profissional renumerada, não proibida, que lhe permita assegurar a sua subsistência ou alcançar um nível de vida digno e confortável. IX – A incriminação do lenocínio simples, nos termos em que se encontra formulado, coarta, entre outros, a quem, livremente, por opção própria, decidiu dedicar-se à prostituição, o direito fundamental ao trabalho previsto no art.º 58.º, n.º 1, da Constituição, e direitos constitucionais com ele conexos, como o direito à segurança social, previsto no seu art.º 63.º, que se fundam, todos eles, na dignidade da pessoa humana. X - Mesmo que o tipo de crime de lenocínio simples não tivesse perdido a conexão com um bem jurídico com dignidade penal e claramente definido, o que sucedeu a partir das alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2/09, e ainda que o bem protegido fosse o mero perigo de exploração das pessoas com carência social, a incriminação sempre esbarraria com os princípios constitucionais da necessidade da pena e da subsidiariedade e da máxima restrição das penas, acolhidos no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição, tornando ilegítima e inadmissível a intervenção do direito penal. XI - Com efeito, para além de a conduta criminalizada atualmente carecer de dignidade punitiva, dado não estarmos perante um direito ou bem constitucional de primeira importância e nos encontrarmos, inclusivamente, no domínio dos criminologicamente “crimes sem vítima”, o bem jurídico em causa, caso fosse merecedor de tutela, sempre poderia ser eficazmente acautelado através de meios não penais de controlo social, designadamente o contra-ordenacional, existindo, pois, alternativas menos gravosas. XII - A incriminação lenocínio simples na sua atual formulação esbarra, também, com o princípio do Estado de Direito, onde, mais uma vez, prima a salvaguarda da dignidade da pessoa humana e a garantia da segurança, que se reconduz à proteção da confiança. XIII - O princípio do Estado de Direito, dados os efeitos profundos da intervenção do direito penal ao nível dos direitos individuais, exige não apenas que a lei penal e a sua aplicação sejam conformes com os princípios jurídicos formais, mas também impõe que, no âmbito do seu conteúdo, responda às exigências da justiça, que encarna. XIV - A criminalização do lenocínio simples, para além de afrontar o princípio da proporcionalidade, nos subprincípios da idoneidade ou adequação e da necessidade, também não satisfaz as exigências de certeza, de compreensibilidade, de razoabilidade e de determinabilidade. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Proc. 25/17.7ZRCBR.P1
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I - RELATÓRIO Por acórdão de 15.07.2024 proferido nos presentes autos de processo comum (Tribunal Coletivo), foi decidido: ** Inconformado, recorreu o arguido BB. Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]: I – Do erro na apreciação da matéria de facto “ Assim, diariamente e de forma ininterrupta, pelo menos a partir do dia 5 Setembro de 2017 e até ao dia 17 de Junho de 2021, no caso do arguido BB e até ao dia 31 de Outubro de 2019, no caso do arguido AA durante o mencionado horário de abertura do estabelecimento, inúmeras mulheres, entre as quais as seguir mencionadas, na sua maioria de nacionalidade brasileira, mantiveram relações sexuais de cópula e/ou outra nos aludidos “quartos” com os clientes do “A...”, numa média de, pelo menos, 2 (duas) relações por dia por cada mulher: CC; DD; EE; FF; GG; HH; II; JJ; KK.” (Sublinhado nosso) II- Da determinação da medida da pena aplicada. III – Da inconstitucionalidade da norma penal incriminatória ínsita no n.º 1 do art. 169.º do CP, por violação do disposto nos artigos 9º, alínea b), 13º, nºs 1 e 2, 16º, nº2, 18º, nºs 2 e 3, e 26º, nº1, art.º 45, art.º 47º, nº1, todos da Constituição da República Portuguesa e também do disposto no art.º 31º, nº1 e 2 al. b) do C. Penal. ** Na Primeira Instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. Termina com as seguintes conclusões [transcrição]: * O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento. * Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta. Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência. ** II - FUNDAMENTAÇÃO: A) OBJETO DOS RECURSOS Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que os recorrentes extraem da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso. No caso concreto, considerando as conclusões do recurso interposto, as questões a decidir são as seguintes: -> Impugnação da decisão de facto; -> Inconstitucionalidade do art.º 169.º do Código Penal [por violação do disposto nos artigos 9º, alínea b), 13º, nºs 1 e 2, 16º, nº2, 18º, nºs 2 e 3, e 26º, nº1, art.º 45, art.º 47º, nº1, todos da Constituição da República Portuguesa e também do disposto no art.º 31º, nº1 e 2 al. b) do C. Penal]; -> Determinação da medida da pena. ** Factos provados no acórdão recorrido [transcrição]: 1. Na Rua ..., em ..., existe um prédio onde funciona um estabelecimento comercial de café denominado “A...”. 2. Desde data concretamente não apurada, o citado estabelecimento “A...” passou a ser gerido e explorado pelo arguido AA, sendo que durante os dias da semana funcionava das 14h00 às 19h00 e das 20h30 às 23h00, ao passo que aos sábados funcionava entre as 14h00 às 23h00 e aos domingos entre as 10h00 às 22h00. 3. Porque à data era funcionário dum posto de abastecimento de combustíveis, o arguido AA contratou o co-arguido BB para trabalhar no estabelecimento “A...” e auxiliá-lo na gestão e exploração do mesmo, sobretudo durante a sua ausência. 4. Também a partir de data não apurada, mas pelo menos a partir de setembro de 2017, os arguidos decidiram explorar, de forma reiterada, contínua e com intuitos lucrativos o alterne e a prostituição femininos naquele estabelecimento. 5. A fim das mulheres poderem manter relações sexuais de cópula e/ou outras, mediante retribuição, com os clientes do estabelecimento, os arguidos criaram três compartimentos anexos ao mesmo, que funcionavam como pequenos “quartos”, os quais mobilaram com sofás, travesseiros e lençóis e onde eram colocados objetos normalmente associados a práticas sexuais, nomeadamente óleos lubrificantes, toalhetes e preservativos. 6. Na execução do plano elaborado por ambos e após montado o negócio, os arguidos AA e BB contrataram várias mulheres, portuguesas e sobretudo brasileiras, para aliciarem os clientes do “A...” a consumirem e a pagarem-lhes bebidas, em cujos preços ganhavam uma percentagem, e ainda, a manterem relações sexuais de cópula e/ou outras com elas naqueles compartimentos. 7. As mulheres contratadas pernoitavam num apartamento próximo do “A...”, cujas despesas, designadamente a renda, eram suportadas pelos arguidos, sendo também estes que asseguravam as deslocações das mulheres entre o apartamento e o estabelecimento, pessoalmente ou mediante a contratação dos serviços de um taxista. 8. No âmbito da referida atividade de alterne, por cada bebida que as mulheres convencessem os clientes a consumir as mesmas recebiam metade do seu custo, que normalmente lhes era entregue diariamente em mão pelos arguidos aquando do encerramento do estabelecimento. 9. Para controlarem o consumo das bebidas que as mulheres convenciam os clientes a consumir, com o preço mínimo de € 10,00, os arguidos ordenaram às mulheres que fizessem anotações manuscritas em papéis. 10. Relativamente à atividade de prostituição explorada pelos arguidos no “A...”, o preço de cada relação sexual era, por norma, de € 20,00 por cliente, com direito a cerca de quinze a vinte minutos de sexo vaginal e oral, sendo que caso a relação se estendesse no tempo, o valor final aumentaria. 11. Por cada relação de sexual de cópula e/ou outra que mantivesse com os clientes do estabelecimento, as mulheres tinham que entregar aos arguidos a quantia de € 10,00, ficando as mulheres com o restante valor para si. 12. Em obediência às normas definidas pelos arguidos e sempre sob a sua supervisão, após consumarem as relações sexuais com os clientes, as mulheres tinham que meter aquela quantia de € 10,00 na cozinha, contígua aos mencionados compartimentos, e que no final do dia os mesmos recolhiam. 13. Ainda de acordo com as regras estabelecidas pelos arguidos, prestaram serviços sexuais no “A...” duas mulheres de cada vez, mulheres essas que ali permaneciam durante um determinado período de tempo, em média de 15 dias e com grande rotatividade de mulheres diferentes, após o que dali se afastavam sendo substituídas por outras duas mulheres, que os arguidos acolhiam, mediante contactos prévios telefónicos, das próprias ou por intermédio de colegas, para igualmente prestarem serviços sexuais a troco de pagamento. 14. Assim, diariamente e de forma ininterrupta, pelo menos a partir do dia 5 de Setembro de 2017 e até ao dia 17 de Junho de 2021, no caso do arguido BB e até ao dia 31 de Outubro de 2019, no caso do arguido AA durante o mencionado horário de abertura do estabelecimento, inúmeras mulheres, entre as quais as seguir mencionadas, na sua maioria de nacionalidade brasileira, mantiveram relações sexuais de cópula e/ou outra nos aludidos “quartos” com os clientes do “A...”, numa média de, pelo menos, 2 (duas) relações por dia por cada mulher: CC; DD; EE; FF; GG; HH; II; JJ; KK. 15. No dia 5 de Setembro de 2017, cerca das 15:00 horas, encontrava-se no “A...” CC a manter relações sexuais (sexo oral) com um dos clientes, num dos aludidos quartos, mediante a retribuição de € 20,00, dos quais € 10,00 caberiam aos arguidos. 16. Nesse dia encontrava-se ainda no “A...” DD, com vista a manter relações sexuais de cópula e/ou outras com os clientes do estabelecimento, num dos aludidos quartos, mediante a retribuição e nas condições acimas referidas. 17. Ainda esse dia, em todos os aludidos “quartos” foram encontrados objetos normalmente associados a práticas sexuais, nomeadamente óleos lubrificantes, toalhetes e preservativos, novos e usados. 18. Na mesma data, encontravam-se também no “A...” os dois arguidos, a fazer a gestão do estabelecimento. 19. No dia 23 de Agosto de 2018, cerca das 19:15 horas, encontravam-se no “A...” EE e FF, com vista a manterem relações sexuais de cópula e/ou outras com os clientes do estabelecimento, num dos aludidos quartos, mediante a retribuição e nas condições acimas referidas. 20. Nesta mesma data, encontravam-se também no “A...” os dois arguidos, a fazer a gestão do estabelecimento. 21. No dia 14 de Novembro de 2018, cerca das 19:00 horas, encontravam-se no “A...” GG, com vista a manter relações sexuais de cópula e/ou outras com os clientes do estabelecimento, num dos aludidos quartos, mediante a retribuição e nas condições acimas referidas. 22. Ainda esse dia, foram encontrados no balcão do “A...” um telemóvel da marca Huawei, pertencente ao arguido AA, diversos documentos relacionados com a gestão do estabelecimento, designadamente faturas, e um pedaço de papel manuscrito, com as menções “20 bebidas 140 copos 70-5 diária 65 euros”. 23. Nesta mesma data, encontrava-se também no “A...” o arguido BB, a fazer a gestão do estabelecimento. 24. No dia 17 de Junho de 2021, cerca das 16:15 horas, encontrava-se no “A...” KK, com vista a manter relações sexuais de cópula e/ou outras com os clientes do estabelecimento, num dos aludidos quartos, mediante a retribuição e nas condições acimas referidas. 25. Nesta mesma data, encontrava-se também no “A...” o arguido BB, a fazer a gestão do estabelecimento. 26. As referidas mulheres, tal como sucedia com muitas outras que trabalharam para os arguidos e cujas identidades não foram apuradas nos autos, eram na sua maioria economicamente dependentes daquela atividade de prostituição que levavam a cabo, dessa forma ganhando o seu sustento para fazer face às despesas da sua vida e da família. 27. Sendo que parte delas eram naturais do Brasil, por vezes encontravam-se em situação precária no nosso país, o que levava que recorressem mais facilmente a este tipo de atividade para poder fazer dinheiro para o seu sustento. 28. Especificamente, sabiam ainda os arguidos que as referidas mulheres tentavam buscar nos ganhos decorrentes da sua própria prostituição a satisfação para as suas necessidades. 29. Os arguidos definiram as regras de funcionamento do estabelecimento, bem como as condições de trabalho, designadamente o horário e retribuição, fixando o preço a cobrar que as mulheres, depois de prestarem os serviços sexuais e receberem o preço do cliente, lhe entregavam parte deste, o que sucedia. 30. Ao levar a cabo as condutas descritas, agiram os arguidos com o propósito concretizado de fazer seus parte dos ganhos obtidos pelas mulheres que prestaram serviços sexuais nas circunstâncias e termos acima descritos, bem sabendo que, dessa forma, iriam fomentar a prática da prostituição a que as mesmas se propunham e que os arguidos facilitavam com a organização do citado estabelecimento, não ignorando que dessa forma auferiam proventos às custas de atos que atentavam contra a dignidade humana daquelas mulheres. 31. Pretendiam os arguidos explorar, de forma profissionalizada e bem organizada, visando o lucro, a atividade de prostituição, recorrendo a várias mulheres, providenciando alojamento para dessa forma criar condições apetecíveis e favoráveis a que essas mulheres quisessem vir para o “A...” prestar serviços sexuais com os clientes/frequentadores do estabelecimento. 32. Os arguidos AA e BB atuaram sempre de comum acordo e em conjugação de esforços, na execução de um plano previamente delineado por ambos e reiteradamente seguido. 33. Agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente. Mais se provou que: (…..) 34. Do certificado de registo criminal do arguido BB consta que por sentença transitada em julgado em 28.09.2023, proferida nos autos de Processo n.º 145/21.3GDVFR, o arguido foi condenado pela prática, em 06.03.2021. de um crime e condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perdoada ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023. 35. Do relatório social do arguido BB consta que: I – Dados relevantes do processo de socialização BB é natural de ..., no Brasil, tratando-se do único filho do casal de progenitores, agregado familiar disfuncional, marcado por problemática alcoólica do progenitor e violência doméstica perpetrada por este, sobre a companheira e descendente. O casal viria a separar-se, tendo a mãe do arguido emigrado para Espanha, em busca por melhores condições de vida, país onde se encontra desde 2008. BB viria a juntar-se à progenitora já perto dos dezoito anos, tendo, até então, permanecido no Brasil, integrado no agregado da sua avó materna, com pouco contacto com o progenitor. Conforme o próprio referiu, passou por uma adolescência difícil, marcada pelo falecimento do avô e pela exposição a fatores de risco, apresentando comportamento impulsivo, começando a consumir cocaína com catorze anos de idade, tendo sido sujeito a acompanhamento psicológico para minorar as suas problemáticas. Ao nível escolar não concluiu o 12º ano, empregando-se numa fábrica, ainda antes de se juntar à mãe. Em Espanha, instalou-se junto da sua progenitora, na zona de Orense, tendo trabalhado na construção civil e também num centro comercial, na restauração, como empregado de mesa e balcão. A sua integração neste novo agregado e país, não suscitou a interrupção dos hábitos aditivos que detinha, apesar de ter sido tentada intervenção terapêutica. Ao longo do tempo, a manutenção de tais consumos e rotinas associadas, suscitou alguns atritos familiares, levando a que o arguido se deslocasse para Portugal, para evitar tais conflitos e em busca de novas oportunidades de trabalho. Inicialmente na região do Porto, e depois em ..., empregou-se na restauração (cafés e similares), pernoitando nas próprias instalações em que trabalhava, ou, junto de companheiras, com quem estabelecia relacionamentos afetivos temporários. É neste contexto laboral e dos relacionamentos inerentes, que o arguido contextualiza o seu envolvimento no presente processo-crime. II - Condições sociais e pessoais BB encontra-se afeto ao Estabelecimento Prisional ... desde 14/07/2023, colocado em prisão preventiva à ordem do processo 8/22.5GAOVR. À data da sua detenção, dedicava-se a pequenos biscates e à pesca na ..., conforme o que nos referiu, já estando afastado da sua anterior ocupação na restauração desde 2021. Em ambiente prisional, tem apresentado conduta globalmente adequada, sem registo de incidências, estando inserido em contexto escolar, e em projetos diversos como o grupo de teatro e da rádio. Ao nível terapêutico, interrompeu os consumos aquando da sua detenção, estando a beneficiar de acompanhamento pela Equipa de Tratamento à Toxicodependência e realiza medicação de cariz ansiolítico. No imediato, conta com o apoio da sua progenitora e de alguns amigos da zona onde vinha permanecendo, que o visitam na cadeia. Para o seu futuro, conta com suporte da sua progenitora, que está disposta a lhe dar guarida e a procurar integrá-lo profissionalmente, na região de Orense. Também não excluiu regressar para a região de ... ou ..., onde tem contactos que o poderão ajudar. No restante, verbaliza estar consciente da necessidade de, aquando do seu regresso a meio livre, manter apoio especializado na área da toxicodependência. III - Impacto da situação jurídico-penal Em sede de entrevista orientada, quando confrontado com a tipologia criminal em causa, e em abstrato, BB expressou juízo de censura e perceção da sua ilicitude. O arguido mostra-se preocupado com a sua situação jurídico-penal global, receando vir a sofrer condenações que impliquem privação da sua liberdade. Estando sujeito a prisão preventiva, pretende tirar proveito do suporte que lhe for assegurado, perspetivando vida futura inserida em modelo pró social. IV – Conclusão Da informação recolhida, o arguido parece provir de família disfuncional e violenta, com percurso de vida marcado pela inconstância dos vínculos familiares, exposição precoce a fatores de risco e consumos aditivos. Apresenta fragilidades ao nível das suas características pessoais e sociais, hábitos aditivos, fatores a ponderar numa perspetiva de probabilidade de reincidência criminal. Em caso de condenação, eventual intervenção desta DGRSP deverá privilegiar a sensibilização do arguido para a necessidade do cumprimento das normas legais, promovendo-se a devida interiorização da ilicitude dos atos praticados e contemplar a adesão do mesmo a tratamento à toxicodependência. ** No acórdão recorrido consta a seguinte motivação da decisão de facto [transcrição]: Nos termos do disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas. A resposta dada à matéria de facto dos autos resultou do cotejo de todos os meios de prova produzidos e carreados em sede da audiência de julgamento e conjugados à luz das regras da experiência comum. Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente. Neste particular, tem sempre este Tribunal presente que a avaliação da credibilidade das declarações prestadas em audiência de julgamento não é um acto de natureza objectiva, com verificação e enumeração de relatos coincidentes e não coincidentes, com elenco de recordações espontâneas e menos espontâneas, tendo de ser realizado de forma complexa, atendendo igualmente às características psicológicas e da personalidade de quem as presta, à natureza do relato e influência da descrição no estado de espírito do(s) declarante(s). Analisou este Tribunal, de forma conjugada, as declarações das testemunhas, as declarações prestadas pelo arguido articuladas com o acervo de prova documental carreada para os autos, bem como com o teor das conversações e mensagens decorrentes das intercepções telefónicas efectuadas, sem perder de vista as regras da normalidade e da experiência comum. Ambos os arguidos, num exercício de um direito que lhes assiste, declararam não pretender prestar declarações sobre os factos imputados, tendo o arguido BB esclarecido factos referentes à sua actual integração em ambiente prisional, em sentido coincidente com o descrito no seu relatório social. Assim, a demonstração dos factos dados como provados ancora-se, em primeira linha, nas declarações prestadas pelas testemunhas, mulheres que admitiram dedicar-se à prática do alterne e da prostituição no estabelecimento em causa e as quais, de forma clara e fidedigna, expuseram os termos de funcionamento do bar e das divisões situadas nas traseiras contíguas ao mesmo, os termos acordados, os valores praticados e a necessidade de pagamento de valores de € 10 € à “casa” por cada relação sexual mantida, com acréscimo de valor em caso de exceder o tempo determinado, bem como o concreto conhecimento de tal actividade e facilitação da execução da mesma por parte dos arguidos, os quais lhes transmitiram as regras de funcionamento da casa. Assim, foram valorados, com especial relevo, os depoimentos das testemunhas HH, II, KK (estas prestaram declarações para memória futura, as quais se verificou terem cumprido todos os requisitos legais), DD e CC, as quais, de forma mais ou menos constrangida e/ou inibida (facto que surge justificável em face do melindre da exposição que as questões discutidas impunha, sem demonstração de qualquer afastamento da verdade ou intenção de oferecer uma descrição não verosímil dos factos), referiram a vivência de cada uma delas, concretamente ambos os arguidos que conheceram e com quem se relacionaram no estabelecimento A..., bem como as circunstâncias em que tal ocorreu, aludindo ao exercício da actividade da prostituição por si próprias e/ou outras, aos períodos e locais em que ela foi praticada, além de mencionarem a forma como de tal estabelecimento tiveram conhecimento (normalmente através de “amigas”, que já aí trabalhavam ou tinham trabalhado e lhes deram o contacto do arguido BB) e o modo como isso se processava, quer em termos de espaço a tal destinado e suas condições, quer em termos de preços cobrados aos clientes e parte destinada à “casa”, aludindo ainda à actividade de alterne (“copos”) e quem eram as pessoas que se encontravam em cada um dos locais, ao balcão, a “gerir”, com quem faziam as contas e que identificaram como ambos os arguidos (com excepção da testemunha KK como infra se exporá). Mais indicaram o número de mulheres que habitualmente aí trabalhavam (normalmente em número de duas), e também as suas nacionalidades (maioritariamente portuguesas e brasileiras e os nomes por que eram conhecidas (normalmente diferentes dos verdadeiros), bem como o local onde pernoitavam, em habitação próxima partilhada com o arguido BB. Quanto ao facto de os arguidos conhecerem perfeitamente o que se passava na parte interior do Bar todas foram peremptórias a expor tal conhecimento. Algumas das referidas testemunhas esclareceram não deter qualquer outra ocupação profissional à data, situação a que acrescia o facto de, parte das mesmas, deterem nacionalidade estrangeira, elementos estes que conjugados demonstram, de forma assaz contundente, e com base nas regras das normalidade e da experiência comum, tanto a precariedade da sua situação económica, como ser com base no produto de tal actividade que provinham ao seu sustento, nos termos dados como provados em 26. e 27. facto que não podiam os arguidos desconhecer, em face do supra exposto, nos termos consignados em 28.. Os factos dados como não provados decorrem do facto de as mesmas não terem conformado, de forma segura, o ai vertido. Mais se atendeu às declarações prestadas pelos Srs. Inspectores do (à data) Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, LL, NN, OO, MM, PP, os quais, de forma mais ou menos vívida, mas coerente e segura, relembraram as fiscalizações ao estabelecimento A... nas quais intervieram e, bem assim, os relatórios operacionais efectuados em tal decorrência, referindo, de forma relevante, que o local tinha um responsável pela exploração que não era a mesma pessoa que o geria diariamente, sendo o primeiro, o arguido AA e a segunda pessoa, o arguido BB, facto do qual se aperceberam quando ao mesmo se deslocavam, dado que quando o arguido AA não se encontrava no local, era ao mesmo aí chamado e se apresentava, assumindo papel de responsabilidade na gestão do mesmo, coadjuvado diariamente pelo arguido BB. Mais efetuaram uma descrição física do estabelecimento, bem como os objectos apreendidos relacionados com a prática da prostituição. Acresce que a forma de gestão do estabelecimento e repartição da mesma entre os dois arguidos, nos termos descrito pelos srs. Inspetores do SEF foi secundada pela descrito pelas demais testemunhas, mulheres que aí se encontravam a trabalhar, nos termos dados como provado em 1. a 4., 6. e 14., 29. a 33. . Referiram as mesmas ter mais proximidade com o arguido BB, que permanecia mais tempo no local durante o funcionamento do mesmo, mas que era substituído ao final da noite pelo arguido AA, que exercia as mesmas funções deste de gestão, realizando este também pagamento dos valores devidos às mulheres (“ as referidas contas”) e também explicando as regras de funcionamento, como referiu de forma explícita a testemunha CC. Tal repartição de funções e domínio sobre a exploração do estabelecimento estriba-se também na análise do teor da transcrição de mensagem áudio encontrada no telemóvel nos autos apreendido ao arguido AA, constante de fls. 265/267 dos autos, em que uma das mulheres que trabalhou no estabelecimento “discute” os termos da cessação da prestação de trabalho com o referido arguido. Veja-se que referiu a testemunha MM, instrutor do processo, que na fiscalização efectuada no ano de 2021, o arguido AA já não surgia relacionado com a exploração e gestão do estabelecimento, por não se ter que teria deixado de o fazer no ano de 2019, sendo a gestão assumido apenas pelo arguido BB a partir de tal data, facto que surge ancorado nas declarações da testemunha KK, que tendo trabalhado no local no ano de 2021 não reconheceu o arguido AA como responsável pelo espaço e tem respaldo na declaração de cessação de actividade do mesmo referente a objecto parcialmente relacionado com o objecto social do estabelecimento A..., e que ocorreu em Outubro de 2019. Assim, em face do exposto, formou este Tribunal segura convicção, nos concretos termos dados como provados em 14., que nos anos de 2017 a 2019 a gestão do estabelecimento era dividida entre os dois arguidos, ainda que actividade mais preponderante por parte do arguido BB por força das demais obrigações profissionais do arguido AA (confirmada pelas testemunhas mulheres e pelo teor do seu relatório social), passando a gestão a ser apenas assegurada pelo arguido BB a partir de 2019 e nesse sentido o dados como não provado quanto ao lapso de tempo de exercício da actividade de exploração de tal actividade por banda do arguido AA. Concatenada toda a prova produzida, temos por seguro afirmar, em face do exposto, estar sobejamente demonstrado que ambos os arguidos, em repartição de funções, facilitavam e beneficiavam com o exercício da actividade de prostituição que sabiam ser desenvolvida no estabelecimento A... atento o concreto e específico modo de pagamento das bebidas e de práticas sexuais mantidas. Assim, a forma de exercício da actividade descrita e a forma de pagamento/repartição de pagamento surge verdadeiramente elucidativa dos termos em que a actividade se desenvolvia, do acordo existente entre os arguidos, na qualidade de exploradores e gestores do espaço, e as mulheres, do valor com o qual estes beneficiavam da actividade de prostituição aí exercida, em espaço por estes disponibilizado e onde facilitavam - por permitir e oferecer as condições necessárias - tal actividade. Por tal, entendemos por demonstrada, de forma indubitável, o conhecimento, consciência e vontade de favorecer e facilitar a prática da prostituição e assim “lucrar” com o valor gerado pelas mulheres com a prática da mesma, dado que entregavam aos arguidos, na qualidade de exploradores do espaço, parte do valor arrecadado com tal actividade. Mais atendeu este Tribunal ao acervo documental junto aos autos, os quais concatenou com a prova testemunhal produzida e as declarações do arguido, mormente: - Informação de serviço do SEF de fls. 5/10; referente a fiscalização realizada no dia 5.9.2017, e em sede da qual foram identificados CC, DD, QQ e os ora arguidos, com croquis do estabelecimento a fls. 6 e elementos fotográficos referentes a preservativos e lubrificantes existentes no local. - Relatório operacional do SEF de fls. 102/112; referente a fiscalização efectuada em 23.8.2018, com identificação no local de AA como gerente do estabelecimento, - Auto de notícia de contra-ordenação a AA de fls. 125; - Processo de contra-ordenação de fls. 145/148; - Auto de busca/revista apreensão de fls. 153/154; em sede do qual foram apreendidas facturas, um envelope com relatório de auditoria de segurança, dois orçamentos e uma factura-recibo, em nome do arguido BB, um pedaço de papel manuscrito com anotações de bebidas e um telemóvel Huawei modelo ..., de AA - Relatório operacional de fls. 181/218; referente a fiscalização efectuada em 14.11.2018 - Relatório de busca de fls. 194/195; - Fotografias de fls. 196/208; - Croquis do estabelecimento de fls. 192 e 209; - Documentos de fls. 215/218; referente a contrato de trabalho celebrado entre AA, na qualidade de empregador e BB, na qualidade de empregado de balcão, com início em 01.06.2018. - Relatório de fls. 231/234; - Relatório operacional de fls. 309/311; referente a fiscalização efectuada em 17.06.2021 - Relatório final de fls. 330/354; - Preservativos apreendidos; - Apenso A com os elementos apreendidos no auto de busca supra referido. - elementos documentais referentes a audiência de antecedentes criminais do arguido BB no Brasil e Espanha. - documento comprovativo de cessação de atividade de gerente de cafés e outros prestadores de serviços - CAE … por parte do arguido AA, datado de 31.10.2019, com referência a início de actividade em 06.03.2018. Mais se atendeu à prova pericial correspondente a relatório técnico complementar a telemóvel, de fls. 265/267, do qual decorre a transcrição de mensagem áudio encontrada em tal aparelho. ** Quanto à fundamentação de direito [enquadramento jurídico dos factos], no acórdão recorrido consta o seguinte [transcrição]: Fixados os factos provados, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal e verificar se estão preenchidos os elementos constitutivos do tipo penal do crime de lenocínio. Estabelece o artigo 169.º do Código Penal (na redacção da Lei n.º 59/2007, de 04-09), no que agora releva, o seguinte: “1 - Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.” (…) Este tipo legal de crime está inserido na secção intitulada “crimes contra a liberdade sexual”, em que o bem jurídico protegido é a liberdade de determinação sexual de todas as pessoas, independentemente da idade. Isto porque a idade é já um elemento determinante da protecção penal conferida pela criminalização das condutas previstas na secção seguinte, com a epígrafe “crimes contra a autodeterminação sexual”, onde o bem jurídico protegido engloba também o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual. Porém, considerando as condutas actualmente abrangidas pelo tipo legal previsto no n.º 1 do artigo 169.º, pode sustentar-se que aqui, ao invés da protecção da liberdade de expressão sexual da pessoa, “persiste uma certa ideia de defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade, que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao enquadramento dos crimes contra a liberdade sexual no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade”. Neste sentido se pronuncia Anabela Miranda Rodrigues (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pág. 519), defendendo estarmos aqui perante um crime cuja incriminação é desprovida de sentido, uma vez que através dela se protegem bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que se tem hoje por ilegítimo, aproximando-nos perigosamente de um direito penal de “fachada”. O pressuposto de que se deve partir – de só se considerar legítima a incriminação de condutas do foro sexual se e na medida em que atentem contra um específico bem jurídico eminentemente pessoal, leva a que o direito penal, neste âmbito, só deva intervir em dois grupos de casos: quando está em causa a punição do lenocínio de menor (art. 175.º) ou quando, em relação a adultos, se utilize a violência, ameaça grave, se provoque o erro ou se aproveite o estado de pessoa indefesa (lenocínio qualificado, previsto no n.º 2 do artigo 169.º). De acordo com este entendimento, estando em causa, para fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição a utilização de meios não violentos ou enganosos, seria preciso haver “pressão” sobre a pessoa, porque só assim se torna claro que esta agiu sob coacção e, assim, se justifica a incriminação. Contudo, não foi essa a opção legislativa, correspondendo antes a incriminação das condutas previstas no n.º 1 do artigo 169.º a uma opção de política criminal fundada essencialmente na associação feita entre os comportamentos designados como lenocínio e o aproveitamento e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição fazendo desta modo de subsistência. Configurado o lenocínio como uma violação da dignidade humana, da integridade física e moral do ser humano, é aqui que radica a sua tipificação, enquanto comportamento violador dos direitos consagrados nos artigos 25.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa. Assim, e apesar de algumas posições discordantes da doutrina (cfr. também Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, pág.s 118 e ss.), o Tribunal Constitucional tem entendido a conformidade deste tipo legal com a Lei Fundamental (cfr. acórdãos n.ºs 144/2004, de 19 de Março de 2004, e 196/2004, de 23 de Março de 2004 e mais recentemente os acórdãos n.º 197/2021 de 8 de Abril e n.º 62/2023 de 27 de Fevereiro) A estrutura da disposição legal incriminadora do lenocínio tem sido objecto de alterações, vindo a alargar-se o seu âmbito, designadamente porque deixou de exigir-se, como antes acontecia, que o agente estivesse a explorar uma “situação de abandono ou de extrema necessidade económica.” Tal elemento do tipo constava do artigo 215.º do Código Penal de 1982 e manteve-se na reforma de 1995. Nesse contexto, o bem jurídico protegido encerrava ainda a ideia de “defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade” ou da “preservação da moralidade sexual”, tendose colocado, na doutrina, a questão da constitucionalidade dessa norma (o n.º 1 do então artigo 170.º do Código Penal), conforme ressalva Anabela Miranda Rodrigues, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, págs. 518 e 519. Mas actualmente, considera-se que a tutela normativa visa a “liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição” e a “protecção da dignidade da pessoa.” Assim, apesar das divergências existentes na doutrina e na jurisprudência, afigura-se-nos que o bem jurídico protegido no artigo 169.º, n.º 1, não é a liberdade de determinação sexual. Na verdade, tal crime existe, ainda que aquele que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos. E o favorecimento que outro fizer dessa actividade, com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual. Ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da acção de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, desligando-o (a não ser para efeitos de agravação) de qualquer aproveitamento de situações de dependência ou carência económica, ou de qualquer outra espécie, não se está a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui, mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente lícita. O legislador, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre. Contudo, a norma actual impõe, para a criminalização, que o agente leve a cabo a sua conduta “profissionalmente ou com intenção lucrativa”, sendo, por isso, um “intermediário” ou “medianeiro” que fomenta, favorece ou facilita o exercício da prostituição. No que respeita ao elemento subjectivo deste tipo legal, impõe-se que o agente tenha actuado com dolo, sem que se exija o dolo específico (arts. 13.º e 14.º do C. Penal). Mas deixou de ser criminalizado o designado rufianismo (antes abrangido pelo n.º 2 do artigo 215.º do Código Penal de 1982), ou seja, a conduta daquele que se aproveita da actuação sexual alheia, sendo a situação mais frequente a de quem vive “à sombra” da prostituta, a qual aufere os proventos para “o governar”. Já o proxenetismo continua a ser criminalizado, pois trata-se daquele que fomenta, favorece ou facilita o exercício da prostituição por outra pessoa, fazendo profissionalmente ou obtendo lucros. A diferença específica entre o lenocínio simples (previsto no n.º 1 do art. 169.º) e o lenocínio agravado (previsto no n.º 2 do mesmo artigo) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado. Existe, assim, uma diferença de fundo entre as duas normas: por um lado, enquanto a primeira tipifica o crime de lenocínio, identificando-o com uma determinada actividade do agente, mas prescinde do conceito de vítima, a segunda agrava a moldura penal em função da existência de uma vítima e das consequências para ela resultantes da conduta do agente; por outro lado, enquanto a primeira se limita a tutelar “o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto”, a segunda traduz um crime complexo, tutelando, cumulativamente com aquele interesse, valores eminentemente pessoais, a saber, a liberdade de autodeterminação sexual. Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.04.2012, disponível para consulta em www.dgsi.pt, a diferença específica entre o lenocínio simples, previsto no n.º1, e o lenocínio agravado, plasmado no n.º2, radica na diferença do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, i.e., radica na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual; havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado. E o douto aresto acrescenta que “não podemos deixar de reconhecer que existe uma diferença de fundo entre as normas do n.º1 e do n.º2 – referindo-se ao artigo 170.º, que constituía a sua numeração anterior, mas cujo sentido se mantém atual. A primeira tipifica o crime de lenocínio, identificando-o com uma determinada atividade do agente, mas prescinde do conceito de vítima; A segunda, agrava a moldura penal em função da existência de uma vítima e das consequências para ela resultantes da conduta do agente. A primeira limita-se a tutelar o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto”, ao passo que “a segunda traduz um crime complexo, tutelando, cumulativamente com aquele interesse, valores eminentemente pessoais, a saber, a liberdade de autodeterminação sexual.” Por outro lado, tem-se feito doutrinalmente a distinção entre lenocínio principal, quanto está em causa “fomentar” o exercício da prática da prostituição, e lenocínio acessório, quando se trata de “favorecer” ou “facilitar” essa actividade. Como referem Leal-Henriques e Simas Santos, em Código Penal Anotado 1996, 2.º Volume, Editora Rei dos Livros, págs. 278 e 279, “fomentar significa promover, tomar a iniciativa da prática dos actos referidos”. O próprio agente “chama a si a responsabilidade da conduta que leva ao exercício da prostituição (…).” Trata-se de “incentivar a prostituição ou, melhor dizendo, determiná-la (quando ainda não exista), agravá-la (se já existe) ou evitar que enfraqueça ou termine (quando já está em curso).” Nas palavras dos mesmos autores, “favorecer quer dizer auxiliar, proteger, apoiar. Por fim, “facilitar é por à disposição meios, é coadjuvar, proporcionar instrumentos de propagação.” Efectivamente, “fomentar” implica uma colaboração no processo de decisão de ir exercer a prostituição, já “favorecer” ou “facilitar” tem subjacente uma colaboração no processo de execução dessa actividade. Para o preenchimento do crime de lenocínio previsto no n.º 1 do artigo 169.º é indispensável que se verifiquem os seguintes elementos constitutivos do tipo: - O agente fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição; - O agente pratique tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa; - O dolo genérico, ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto, abarcando, naturalmente, todos os elementos do tipo objectivo O agente pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, e é um terceiro relativamente aos intervenientes no ato sexual, sendo, pois, um intermediário ou medianeiro, que atua com vista a satisfazer interesses de terceiros (conforme se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 522 e ss.). Por seu turno, a vítima pode ser qualquer pessoa adulta que tenha mais de 16 anos de idade (cfr. art. 176.º do Código Penal), homem ou mulher. No que concerne às possíveis manifestações da conduta típica, fomentar significa incentivar a corrupção, ou, melhor dizendo, determiná-la (quando ainda não exista), agravá-la (se já existe) ou evitar que enfraqueça ou termine (quando já está em curso). Favorecer ou facilitar significam auxiliar ou apoiar, no segundo caso, diferentemente do primeiro, com contribuição directa dos meios ou instrumentos que levam à exclusão ou manutenção do status delituoso. Ao fomentar, o agente colabora no processo de decisão, contribuindo directamente para a formação da vontade criminosa, enquanto ao favorecer ou facilitar colabora no processo de execução. Daí a distinção entre “lenocínio principal”, correspondente à primeira situação, e lenocínio acessório, correspondente às duas restantes situações. Porém, em qualquer dos casos, o agente apenas colabora no encaminhamento da vítima para a prostituição, mas não determina a sua vontade, isto é, não a leva à prática desses actos, não havendo, pois, qualquer coacção Actuar o agente profissionalmente tem um significado ligado a uma característica de habitualidade, embora não de exclusividade, enquanto a intenção lucrativa pode realizar-se através de uma actividade meramente pontual ou esporádica. A existência deste elemento típico circunscreve a incriminação a actividades que trazem para o agente ganhos efectivos (actividades profissionais) e ganhos possíveis (actividade realizada com intenção lucrativa). Estamos, pois, perante um crime de resultado, em que apenas se preenche o tipo legal em causa e se consuma o crime de lenocínio quando a vítima efectivamente chega a praticar a prostituição, ou seja, praticando actos sexuais de relevo a troco de uma contrapartida, normalmente traduzida em dinheiro. Vertendo ao caso concreto. Do confronto da factualidade provada com as considerações precedentes afiguram-se-nos preenchidos os apontados elementos objectivos e subjectivos constitutivos do crime de lenocínio. No caso presente resulta da factualidade provada que os arguidos, em face das suas atribuições e responsabilidades na exploração e funcionamento do estabelecimento “A...”, levou a cabo, de forma regular, no período de tempo compreendido entre 2017 e 2021, no caso do arguido BB e netre 2017 e 2019, no caso do arguido AA a actividade de exploração da prática da prostituição por parte de mulheres que tinham relações sexuais com os homens, a troco de dinheiro, os quais, para esse fim, as procuravam em tal estabelecimento e ali, em espaços reservados para o efeito, levavam a cabo tais actos sexuais. Os arguidos exploravam o referido estabelecimento, sabendo que os clientes usavam espaços contíguos para manterem relações sexuais, com as mulheres que contratavam para o efeito, as quais eram registadas, bem como os consumos de bebidas, assim controlando o rendimento que cada uma delas proporcionava à “casa, designadamente o devido por cada acto sexual ((€10,00 com acrescido se o tempo acordado fosse excedido). Essa actividade foi facilitada pelos arguidos que do resultado da mesma obtinham rendimentos, sabendo que estava a proporcionar e a favorecer, no referido estabelecimento, o relacionamento sexual remunerado de mulheres com os clientes, como pretendiam e conseguiram. Efectivamente, os arguidos forneciam às mulheres os espaços para estas exercerem tal actividade, estabeleciam as regras de funcionamento e de trabalho no estabelecimento e recebiam parte dos rendimentos que aquelas ali obtinham, sempre de forma consciente, livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Não nos restam dúvidas em como os actos supra decritos, dolosamente praticados, preenchem os elementos típicos do crime de lenocínio. Com efeito, ainda que as mulheres não fossem obrigadas a exercerem a prostituição, naquele estabelecimento, a verdade é que os arguidos, ao actuarem desse modo, favoreceram e facilitaram o exercício da prostituição por tais mulheres, com intenção lucrativa, na medida em que lhes proporcionavam as condições, designadamente de espaço e recato, para “trabalharem”. Tais condutas integram, pois, os elementos típicos do crime de lenocínio. Da co-autoria Por fim, refira-se que, de acordo com os factos provados, os arguidos atuaram efetivamente em coautoria, ou seja, de comum acordo e em conjugação de esforços e de intentos. Com efeito, nos termos do artigo 26.º do Código Penal, a noção de autoria, para além das modalidades de imediata e mediata, abrange também os casos de comparticipação com pluralidade de agentes (coautoria), na qual são essenciais dois requisitos: a) - uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado (acordo prévio); b) – e uma execução igualmente conjunta (participação direta, mediata ou imediata na execução do facto). O acordo não tem de ser expresso, podendo ser tácito, desde que seja concludente no sentido da vontade de executar o facto e de traduzir uma contribuição objetiva conjunta para a realização da ação típica, bastando uma simples consciência bilateral referida ao facto. Por seu lado, a participação direta na execução, juntamente com outro ou outros, supõe um exercício conjunto e com intervenção ordenada no domínio do facto, que constitua uma contribuição objetiva para a realização da ação típica. A execução conjunta, não exige, porém, que todos os agentes intervenham em todos os atos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a atuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da ação, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina. A co-autoria fundamenta-se também no domínio do facto, mas num domínio funcional, em que cada coautor assume uma função parcial de caráter essencial que o faz aparecer como co portador da responsabilidade da execução em conjunto do facto. A contribuição de cada coautor deve revelar uma determinada medida e significado funcional, de modo que a realização por cada um do papel que lhe corresponde se apresente como uma peça essencial da realização do facto. O coautor tem que deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo e cuja execução se dispôs a levar a cabo. O domínio funcional do facto, próprio da autoria, significa que a atividade, mesmo parcelar, do coautor na realização do objetivo acordado se tem de revelar indispensável à realização da finalidade pretendida. Daí que só possa ser coautor quem, segundo a importância da sua contribuição objetiva, comparta o domínio do curso do facto. Cada comparticipante deverá adicionar objetivamente uma contribuição para o facto que, pela sua importância, é mais do que uma mera ação preparatória, embora não tenha necessariamente de entrar no arco da ação típica, bastando que se trate de uma parte necessária da execução do plano global. Em síntese, podemos dizer que a coautoria requer, no aspeto subjetivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto (expresso ou tácito e prévio ou não à execução do facto), uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como cotitular da responsabilidade pela execução de todo o processo. Por seu lado, no plano objetivo, a contribuição de cada coautor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional). No caso vertente, ficou provado que existiu um acordo prévio e uma execução comum da actividade ilícita, nos termos consignados, de forma evidente, nos factos dados como provados em 3. a 4, 6., 12. a 14. * Por força de alteração da qualificação jurídica proferida após a dedução da acusação, vem imputada aos arguidos a prática de nove crimes de lenocício, um por cada uma das mulheres em causa. Trata-se de questão que se tem colocado ao nível da doutrina e da jurisprudência quanto à unidade ou pluralidade de crimes quando se trata de várias mulheres (ou homens) a exercer a prostituição nessas condições. Efectivamente, diferentes têm sido as orientações seguidas pelos Tribunais, concretamente ao nível dos tribunais Superiores (como dão eco os respectivos acórdãos). A orientação que segue a unidade de infracções coloca o assento tónico na “actividade” do agente, em que haverá uma decisão de exploração da prostituição, ainda que com várias mulheres e em momentos diferentes. Seguiram esta orientação, entre outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 05-05-2005, CJ III, pág. 38; da Relação do Porto de 13-02- 2008, CJ I, pág. 215, e da Relação de Guimarães de 14-10-2002, CJ IV, pág. 286. Por sua vez, quem sustenta a pluralidade argumenta com a natureza eminentemente pessoal do bem jurídico protegido, sustentado na letra da lei, que inclui uma menção expressa e individualizada a “outra pessoa”, sendo, na doutrina, esta posição defendida, designadamente, por Paulo Pinto de Albuquerque. Veja-se o este título o referido Comentário do Código Penal, pág. 529. Na jurisprudência evidenciam-se os Acórdãos da Relação de Coimbra de 23-10-1985, BMJ 350, pág. 396; do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-1986, BMJ 354, pág. 350; e do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2009, este disponível para consulta em www.dgsi.pt. Nesta situação a acusação imputa nove crimes de lenocínio, tantos quantos as mulheres exploradas. No entanto pugnamos o primeiro entendimento supra vertido: cada um dos arguidos formulou um propósito único de exploração da prostituição, ainda que com recurso a várias mulheres e em momentos diferentes. * Assim, concluindo-se pela verificação dos seus elementos objectivos e subjectivos, considera-se que os arguidos incorreram na prática, em co-autoria material, de UM crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, soçobrando no demais a imputação formulada. ** No acórdão recorrido as penas aplicadas aos arguidos mostram-se fundamentadas nos seguintes termos [transcrição]: Cabe agora proceder à determinação da pena a aplicar. O crime de lenocínio (simples) é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos (artigo 169.º, n.º 1, do C. Penal). Estatui o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança tem como finalidade “a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. As finalidades da aplicação de uma pena residem, assim, primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A protecção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu regresso à comunidade lesada pela sua actuação, se reporta à denominada prevenção especial. Conforme ensina Figueiredo Dias, in “Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra”, 1998, págs. 279 e ss., “… a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena”. A pena não pode, porém, em caso algum ultrapassar a medida da culpa, conforme resulta do disposto no n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal. A este propósito, salienta Figueiredo Dias, in “Direito Penal II”, pág. 229, que dentro do binómio culpa/prevenção há que ter em conta que a medida da pena não poderá ultrapassar a medida da culpa; a verdadeira função desta na teoria da medida da pena reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso, pois a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer questões preventivas, sejam de prevenção a nível geral positiva ou negativa, de integração ou intimidação, sejam de prevenção, neutralização ou pura defesa social. Anabela Miranda Rodrigues – in “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n° 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss. –, defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Adiantando que é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada – que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada uma medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena, que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa, mas abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral. Acolhendo tais princípios, estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Em suma, as exigências de prevenção geral definirão o limite mínimo da pena e a culpa o limite máximo criando, assim, a moldura dentro da qual se hãode fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização. Em termos conceptuais, a culpa traduz-se essencialmente na consciência por parte do agente do carácter proibido da sua conduta. O grau de consciência que o agente tem da positividade ou negatividade da sua actuação determina o grau de culpa que lhe é imputável, na medida da sua capacidade e vontade de atingir aquele fim proibido. A prevenção geral positiva ou de integração é dirigida à satisfação da consciência colectiva, com o objectivo de repor a conformidade para com o Direito. Atende, fundamentalmente, ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, designadamente a frequência com que o crime ocorre, o espaço onde ocorre e o alarme que esteja a provocar na comunidade. Neste âmbito, importa determinar o mínimo da pena, aquele limite absoluto e intransponível que satisfará a consciência colectiva. A prevenção especial ou de ressocialização, por seu lado, serve, essencialmente, o escopo de reintegração do agente na comunidade, tentando evitar a quebra da sua inserção nessa mesma comunidade, o que se traduz, em última análise, na ideia base da ressocialização. Na tarefa de determinação das exigências de prevenção especial, atende-se a diversas variáveis atinentes à conduta do agente, idade, vida familiar e profissional, entre outras. Em consonância com o preceituado no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena deverão considerar-se, ainda, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as ali elencadas de forma exemplificativa: a) - O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) - A intensidade do dolo ou da negligência; c) - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) - As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) - A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) - A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Apreciando o caso concreto à luz dos enunciados princípios e critérios temos que atender quanto a ambos os arguidos: - às necessidades de prevenção geral que se entendem ser elevadas, exigindo a nossa sociedade penas cada vez mais ditas “exemplares” para arguidos que, por qualquer forma, lucram com a actividade da prostituição a que se dedicam mulheres com manifestas carências sociais e económicas. Este tipo de crime suscita forte sentimento de repúdio por parte da comunidade em geral uma vez que traduz a negação de valores fundamentais, com forte enraizamento moral e cultural; - ao dolo directo dos arguidos, estando plenamente conscientes da ilicitude da sua conduta e da sua proibição face às normas legais vigentes; - ao número relativamente baixo de mulheres que exerciam a prostituição e que viam a sua prática facilitada pela conduta dos arguidos; - ao facto de todas as mulheres que exerciam a prostituição nos moldes supra fixados manterem um aparente bom relacionamento com os arguidos; - ao período em que ocorreu a prática dos factos em causa, sendo mais determinante no caso do arguido BB, o que naturalmente tem reflexo ao nível da ilicitude mais elevada deste; - à ausência de antecedentes criminais dos arguidos quanto a crime de ofensa a bem jurídico igual, semelhante ou correlacionado; - à regular inserção social, familiar e profissional dos arguidos, sobretudo no que concerne ao arguido AA. Assim, segundo o método exposto, consideramos como proporcional, adequada e necessária a aplicação - ao arguido AA de uma pena fixada em 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão. - ao arguido BB de uma pena fixada em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. * Da substituição da pena de prisão por meio de suspensão da execução da pena Uma vez determinada a pena concreta a aplicar aos arguidos, impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva prevista na lei. Com efeito as penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) são penas que são aplicadas e executadas em vez da pena principal” (Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, “As consequências jurídicas do crime, página 91). Não se pode olvidar o tipo legal de crime aqui em questão e a categoria da pena (principal ou de substituição) que melhor se adequa ao caso concreto, sabido que as penas de substituição radicam “tanto histórica como teleologicamente, no (…) movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas da liberdade, nomeadamente de penas curtas de prisão” contínuas. No entanto, em termos abstractos, uma pena de prisão superior a dois anos apenas pode ser, em termos de substituição, ser suspensa na sua execução (artigo 50.º do Código Penal), v.g sujeita ao cumprimento de obrigações e/ou regras de conduta ou até complementada com regime de prova (artigos 50.º a 54.º do Código Penal). Assim, no que diz respeito à pena de prisão aplicada cabe averiguar, em primeira linha, da possibilidade de recurso ao instituto da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto no artigo 50.º, nº 1 do Código Penal. Assim, de acordo com o artigo 50.º, nº 1 do Código Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão (…) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” Tal como escreve Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, parte geral, Vol. II, Lisboa, 1993, pág. 342) «pressuposto material da aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (…)», sendo que, «(…) na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto (…)». No caso sub judice, considerando que os arguidos não detêm antecedentes criminais e se encontram inserido socialmente, entendemos que a necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes se encontra esbatida e que a simples censura e a ameaça de prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Acresce que, e não obstante a ilicitude da actuação dos arguidos, uma vez que os arguidos não detêm antecedentes criminais, o cumprimento de uma pena de prisão poderia, ao invés do pretendido, frustrar a reinserção social dos mesmos. Tais circunstâncias permitem concluir que para assegurar a tutela dos bens jurídicos em causa, a estabilização das expectativas da comunidade na validade e vigência da norma violada e as exigências de socialização, ainda bastará a ameaça da prisão para cumprir os desideratos da pena, dissuadindo-o da prática de crimes semelhantes, sendo certo que a suspensão será efectivamente interiorizada pelo arguido com o seu carácter de pena, não lhe criando qualquer sentimento de impunidade. O mesmo será dizer que consideramos que a censura que a presente condenação penal envolve, e, bem assim, a ameaça do cumprimento de um período de prisão, são suficientes para, em concreto, realizar as finalidades da punição, pelo que cremos justificado suspender a execução da pena de prisão aqui aplicada, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e 5 do Código Penal Efectivamente, dispõe o nº 5 do artigo citado que “o período de suspensão tem duração fixada entre 1 e 5 anos”, pelo que subsumindo ao caso concreto, se suspende a execução da pena de prisão pelo período de 3 (três) anos, de molde a promover o efectivo acompanhamento dos arguidos. Acresce que, nos termos do artigo 53.º do Código Penal, “o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade”. Face aos factos provados, entende o Tribunal ser necessário tal acompanhamento, pelo que a suspensão da execução da pena de prisão, fica condicionada a regime de prova, com formulação de Plano de Reinserção social a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, tendo em consideração as necessidades específicas dos arguidos mormente no que concerne à necessidade de assimilar a natureza ilícita dos factos praticados e de conformar a sua vivência social e profissional sem promoção de um qualquer padrão de exploração de terceiros. ** Decidindo as questões objeto do recurso Impugnação de decisão de facto. A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias. Através da chamada revista alargada, de âmbito mais restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e erro notório na apreciação da prova]. Ou através da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP. No caso concreto, o recorrente impugna a matéria de facto apenas através desta segunda via, considerando incorretamente julgados os pontos 5. e 14. dos factos provados. Embora o recorrente não convoque nenhum dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP[1], sendo os mesmos de conhecimento oficioso[2], importa referir que nenhum deles se verifica. Com efeito, nenhum deles resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Na impugnação ampla da matéria de facto, contrariamente ao que acontece na impugnação restrita, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal. Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada[3]. A impugnação ampla da matéria de facto visa, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[4]. Porque não se trata de um novo julgamento, não cabe à Relação reapreciar toda a matéria factual dada como provada ou não provada na primeira instância, nem analisar toda a prova ali produzida e documentada nos autos. A reapreciação é segmentada e parcelar[5]. Circunscreve-se, apenas e tão só, aos pontos de facto que o recorrente individualiza obrigatoriamente no recurso como estando, em seu entender, incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Daí que não lhe baste formular genericamente a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e apontar o sentido que deve ser dado à prova[6]. Como estabelece o art.º 412.º, n.º 2, als. a), b) e c), do CPP, sobre ele recai o ónus de especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. Realça o Ac. TRL de 21.05.2015[7] que a especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados. Que a especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. E que a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP). Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 6 do artº 412º, do CPP). Também porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um “remédio para os vícios do julgamento em primeira instância”, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, a reapreciação deve ser particularmente cuidadosa, não pode o Tribunal da Relação fazer “tábua rasa da livre apreciação da prova” em que assentou o juízo do tribunal recorrido[8]. Com efeito, como é sublinhado no Ac. STJ de 12.06.2008[9], a natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações, constitui uma importante limitação a considerar na sindicância da matéria de facto no âmbito da impugnação ampla. Face a essa limitação, o tribunal de recurso, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, só pode alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem[10]. Por exemplo, imporão decisão diversa, com a consequente alteração do decidido, sempre que a convicção do julgador da primeira instância mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e aos conhecimentos científicos[11]. Em suma, quando tiver na sua base erros de tal modo evidentes e óbvios que tornem a decisão inaceitável. No caso concreto, o recorrente considera incorretamente julgados aqueles pontos da matéria de facto provada. No que diz respeito ao ponto 14. convoca um breve excerto do depoimento da Testemunha LL, à data dos factos, inspetor-chefe do SEF, um breve excerto do depoimento da testemunha MM, o auto de fls. 125/132, o auto de busca e apreensão de fls. 153 e 154, o documento comprovativo de início de atividade na exploração do estabelecimento A... e o documento comprovativo da cessação de atividade exploração do mesmo. Porém, considerando o factualismo que consta daquele ponto, resulta de elementar evidência que os referidos meios de prova não o infirmam minimamente, pelo que não impõem decisão diferente. Aliás, e pelo contrário, os depoimentos até o confirmam. Basta ler. No que diz respeito ao ponto 5. dos factos provados, em síntese, o recorrente limita-se a alegar que inexiste nos autos qualquer base probatória idónea a atestar a factualidade ali vertida e que resulta das declarações para memória futura prestadas pelas testemunhas que seriam as mesmas a levar lençóis e demais parafernália associada à prática em questão. É, pois, manifesto que não deu integral cumprimento ao ónus de especificação que lhe é legalmente imposto pelo art.º 412.º, n.º 3, do CPP. Com efeito, desde logo, embora especifique o ponto de facto que considera incorretamente julgado, não especifica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, incumprindo o disposto na al. b) daquele n.º 3 do art.º 412.º. Ao proceder do modo descrito, e não sendo admissível o convite para correção[12], o recorrente inviabilizou a reapreciação da prova e o conhecimento da impugnação de facto quanto a esse ponto, posto que a este tribunal ad quem não é lícito superar as omissões imputáveis ao recorrente. Assim sendo, mostra-se inviabilizada a alteração da matéria de facto, improcedendo o recurso quanto à primeira questão. * Inconstitucionalidade do tipo penal contido no art.º 169.º do Código Penal. O arguido recorrente alega que o crime de lenocínio p. e p. no art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, é inconstitucional por violação dos art.ºs 9.º, al. b), 13.º, n.ºs 1 e 2, 16.º, n.º 2, 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, 45.º e 47.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, e também do art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b) do Código Penal. Em síntese, refere que a incriminação do art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, é inconstitucional na medida em que não se justifica, colidindo com os princípios da autonomia da vontade da pessoa humana, da necessidade e adequação e com a liberdade pessoal de cada um, o que viola, necessariamente, a reserva da intimidade privada de cada indivíduo. Em suma, defende ser ilegítima a ingerência do direito penal neste âmbito, dado que não houve qualquer coação sobre as mulheres que se terão prostituído, pois fizeram-no de livre vontade, inexistindo vítima, ofendido ou violação de qualquer bem jurídico. Antes de apreciar e decidir a questão, pegando no que consta no voto de vencido do Conselheiro Maia Costa aposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.09.2007, a que faremos referência mais à frente, importa referir que não resulta da factualidade provada qualquer facto que revele ou sequer indicie vagamente alguma situação de exploração», que houvesse um aproveitamento de situações de carência económica ou de abandono em que as prostitutas se encontrassem (…), e que a única conclusão que se pode retirar da matéria de facto é que a prática da prostituição era inteiramente livre da sua parte, que era o seu modo de vida, o seu “trabalho”, por elas livremente escolhido. Feita esta nota, passemos a apreciar e decidir a questão. O lenocínio já era criminalizado no Código Penal de 1852 (art.ºs 405.º e 406.º)[13] e no Código Penal de 1886 (art.ºs 405.º e 406.º) [14]. O Decreto-Lei nº 44579, de 19 de Setembro de 1962[15], a par da proibição da prostituição, também punia quem favorecesse conscientemente ou de algum modo facilitasse o seu exercício ou nela interviessem com fins lucrativos (art. 2.º - 1)[16]. O Código Penal de 1982, embora tenha despenalizado a prostituição, manteve, no entanto, a criminalização do lenocínio, que integrou no Título III Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade, Capítulo I Dos crimes contra os fundamentos ético sociais da vida social e Secção II Dos crimes sexuais[17]. Todavia, contrariamente à norma incriminadora contida o art.º 2.º-1 do DL 44 579, de 19 de Setembro de 1962, para a qual bastava que o agente “favorecesse” ou “de algum modo facilitasse” o exercício da prostituição para poder ser punido pela prática do crime de lenocínio, o Código Penal de 1982, no art.º 215.º, n.º 1, al. b), passou a exigir que o agente, ao “fomentar, favorecer ou facilitar”, na linguagem do legislador de então, “a prática de actos contrários ao pudor ou `moralidade sexual” (…) por qualquer pessoa, estivesse a explorar uma “situação de abandono ou extrema necessidade económica” em que tais pessoas se encontrassem[18]. Com a reforma de 1995, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15/03, o lenocínio foi deslocalizado para o Título I Dos crimes contra as pessoas, Capítulo V Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, Secção I Crimes contra a liberdade sexual, passando o lenocínio simples a estar previsto no art.º 170.º do Código Penal[19]. Deixou de ser exigível a “extrema” necessidade económica da vítima, passando o tipo a exigir o profissionalismo ou a intenção lucrativa da atividade criminosa. Com a revisão de 1998, introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2/09, foi eliminado o segmento “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”, alargando-se, consequentemente, o campo de incriminação do tipo[20]. Foi, pois, configurada uma solução de neo criminalização de condutas que até então não eram punidas criminalmente[21]. A Lei n.º 99/2001, de 25/08, apenas alterou a redação do n.º 2 do art.º 170.º do Código Penal. Com a revisão de 2007, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/09, o crime de lenocínio passou a constar no art.º 169.º do Código Penal, alargando-se mais uma vez o campo de incriminação do tipo com a retirada do segmento “prática de atos sexuais de relevo”. Eliminada tal referência, é apenas a facilitação à prostituição como atividade que é objeto de censura penal[22]. A inconstitucionalidade do crime de lenocínio simples começou a ser suscitada a partir da alteração do tipo operada pela Lei n.º 65/98, de 02/09. A doutrina é largamente maioritária no sentido de que a norma de incriminação e punição do lenocínio simples, constante, atualmente, do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal é contrária à Constituição[23]. Para Figueiredo Dias[24], eliminada a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à “exploração de situações de abandono ou de necessidade económica”, a incriminação do lenocínio passou a tutelar puras situações tidas pelo legislador como imorais, o que a tornou materialmente inconstitucional. Assinala-se que na Comissão Revisora do Código Penal em 1989 já defendeu a tese da descriminalização do lenocínio, considerando que apenas deveria ter resposta administrativa e de polícia[25]. Para Anabela Miranda Rodrigues[26], a incriminação do lenocínio visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal - o que se tem hoje por ilegítimo. José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro[27], assinalando que a reforma de 1998 determinou um retrocesso enorme em termos de política criminal e que a reforma de 2007 parece ter reforçado a opinião de que a prostituição é o alvo único do tipo de crime, não sendo por isso muito nítida a natureza do bem jurídico que se pretende proteger no n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal, não estando em causa qualquer bem jurídico que tutele a liberdade e autodeterminação sexual, concluem que, tendo presente o disposto no artigo 18.º da CRP, parecem sustentadas as dúvidas sobre a compatibilização constitucional do tipo de crime em causa. Pedro Soares de Albergaria e Pedro Mendes Lima[28] entendem que não há qualquer bem jurídico atingido pela actividade incriminada no artigo 169.º/1, de modo que o assinalar-lhe de uma pena redunda em desproporcionalidade (art.º 18.º/2, da CRP). João Pedro Pereira Cardoso[29] advoga que no atual contexto normativo esvaziou-se da incriminação prevista no nº1, do cit. art. 169º, qualquer âmbito de proteção jurídico-penal mormente a ligação axiológica à liberdade e autodeterminação sexual, sendo a norma materialmente inconstitucional, por violação do art. 18º, nº2, da CRP, com a consequente nulidade e inaplicabilidade da mesma. Mesmo Paulo Pinto de Albuquerque[30], que não advoga a tese da inconstitucionalidade, acaba por admitir que deve proceder-se a uma interpretação constitucional restritiva do tipo penal no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, interpretação que, segundo ele, se mostra mais consentânea com o parâmetro dos bens jurídico-constitucionais no âmbito da criminalidade sexual (…). Entendendo, pois, como entende, que o tipo legal de crime de lenocínio simples apenas seria aplicável a situações em que exista exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui, elemento típico que o legislador retirou do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal e deslocou para al. d) do seu n.º 2, tal entendimento, como assinala o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 218/2023[31], acaba por conduzir à mesma conclusão de fundo: interpretado de outra maneira, i.e. sem aquela restrição, o tipo legal de crime seria inconstitucional. Também Inês Ferreira Leite[32], que igualmente defende a constitucionalidade da norma incriminadora do lenocínio simples, sustenta que será reconstruir o tipo penal em função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como farol a verificação da lesão ou da colocação em perigo da liberdade sexual. Contrariamente ao que acontece ao nível da doutrina, a jurisprudência tem entendido, de forma praticamente unânime, que a criminação do lenocínio simples, nos moldes em que é feita no art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, não é inconstitucional. O Tribunal Constitucional, embora com um numero cada vez mais significativo de votos de vencido, tem rejeitado a tese da inconstitucionalidade desde que se pronunciou pela primeira vez sobre a questão no Acórdão n.º 144/2004, entendimento que reiterou em todos os arestos posteriores[33], com exceção de dois[34]. Naquele primeiro aresto, refere que o tipo legal de crime de lenocínio simples, na altura previsto no art.º 170.º, n.º 1, do Código Penal, corresponde a uma opção de política criminal, justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social. Remata que o entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Através do acórdão n.º 72/2021, numa maioria de 8 votos contra 5, o Plenário do Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal e revogou o Acórdão n.º 134/2021. Idêntica decisão proferiu no recente acórdão n.º 881/2024, agora já com 6 votos de vencido, em que revogou o acórdão n.º 218/2023, reafirmando a linha motivadora e o juízo firmado desde aquele primeiro aresto de 2004. Em síntese, refere que com a criminalização do lenocínio simples, se visa combater um fenómeno que frequentemente se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade. Acrescenta que não se vê como negar que, mesmo quando não alcança a intensidade da exploração de um estado de necessidade ou abandono antes caracterizadora da conduta proibida, a mediação de um terceiro sempre comportará um condicionamento da autonomia do agente que se prostitui, pelo que decidir se tal deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui representa uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador. Conclui que na incriminação objeto de discussão está em causa não a criminalização da atividade de prostituição em si mesma desenvolvida ou sequer a responsabilidade das pessoas que à mesma se dediquem, mas antes e apenas a exploração de uma pessoa por outra (…), realizada no quadro de uma atividade profissionalizada ou de uma atividade ocasional desenvolvida com intenção lucrativa que se traduza no fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por outra pessoa, abrangendo-se, assim, tudo o que sejam atos ou condutas de colaboração no processo de decisão ou processo de execução realizados ou desenvolvidos em termos profissionais ou com intenção lucrativa. A Conselheira Maria João Antunes votou vencida nos Acórdãos n.ºs 396/2007 e 522/2007, entendendo que o art.º 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 65/98, de 2/09, é inconstitucional, por violação do artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Em síntese, sustenta que a Lei nº 65/98 alterou a estrutura típica do crime de Lenocínio, previsto no artigo 170º do Código Penal, eliminando a exigência típica da “exploração duma situação de abandono ou necessidade”, ao arrepio de uma evolução legislativa, em matéria de crimes sexuais, que se inscreve num paradigma de intervenção mínima do direito penal, o ramo do direito que afeta, mais diretamente, o direito à liberdade (artigo 27º, nºs 1 e 2, da CRP). Num paradigma em que a intervenção é apenas a necessária para a tutela de bens jurídicos (não da moral), que não obtêm proteção suficiente e adequada através de outros meios de política social. Com eliminação daquela exigência típica, o legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual, relativamente aos quais não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direito à liberdade, enquanto direito necessariamente implicado na punição (artigos 18º, nº 2, e 27º, nºs 1 e 2, da CRP). O Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro votou vencido no Acórdão n.º 654/2011, sustentando que não se afigura que a intervenção do direito penal, neste domínio, vise “salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, como exige o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Ela decorre, antes, da tutela dos “bons costumes”, conceito que, embora radique noutros complexos normativos e não se mostre concretizável por inferências retiradas da Constituição portuguesa – que, aliás, ao invés de outras leis fundamentais, não lhe faz qualquer referência −, é elevado a padrão constitucional, como fator de legitimação de uma incriminação e, logo, de restrições a direitos fundamentais do agente do crime. (…) Está fora de qualquer dúvida de que a proteção da liberdade sexual das pessoas está entre os fundamentos, não só “ético-sociais”, como também jurídico-constitucionais, da “vida em sociedade” (para utilizarmos a epígrafe da versão inicial do Código Penal de 1982). O que se contesta é que uma certa conceção de ordem moral (ainda que generalizadamente aceite no meio social) constitua, em si mesma, uma dimensão da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, justificando a sua aplicação autónoma no âmbito criminal, sem conexão com a tutela de um bem constitucionalmente definido e protegido. Há que concluir que a caracterização legal do crime de lenocínio, ao dispensar, após a revisão de 1998, como elemento estrutural do tipo, o aproveitamento pelo agente de uma situação de abandono social ou de carência económica da vítima, ultrapassa, com ofensa ao princípio da proporcionalidade, o que seria justificado pela função tutelar de um específico bem jurídico-penal. O Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro votou vencido nos Acórdãos n.ºs 641/2016 e 694/2017, por entender que a norma do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 65/98, de 2 de setembro, é inconstitucional, por violação do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. Sustenta que a reforma de 1998 – Lei n.º 65/98 -, ao suprimir do elemento do tipo legal de lenocínio a «exploração de situações de abandono ou de necessidade económica» tornou indefinido o bem jurídico por ele tutelado: a liberdade sexual da pessoa que se prostitui?; a moral sexual?; uma determinada conceção de vida?; a paz social?. (...) E não é no valor da dignidade da pessoa humana que se pode encontrar o bem jurídico-constitucional digno de proteção penal. Como refere Figueiredo Dias, não é «essa a natureza do princípio, como não é essa a função de que surge investido em matéria penal; antes sim a de se erguer como veto inultrapassável a qualquer atividade do Estado que não respeite aquela dignidade essencial e, deste modo, antes que como fundamento, como limite de toda a intervenção estadual» (O “direito penal do bem jurídico como princípio jurídico-constitucional implícito”, in, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 145, pág. 260). Portanto, admitindo que a conduta de quem, profissionalmente, ou com intenção lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício de prostituição por pessoa que se encontra numa situação de necessidade económica e social necessita de tutela penal, como entendo, então só a introdução desse último elemento no tipo legal colocará o preceito em conformidade com a Constituição. O Conselheiro Manuel da Costa Andrade votou vencido nos Acórdãos n.ºs 641/2016, 421/2017, 694/2017 e 90/2018, pronunciando-se nos seguintes termos: Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição do Lenocínio constante do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. E é assim porquanto a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto necessária – de quaisquer “direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados “crimes sem vítima”, no sentido criminológico do termo, na linha da E. SHUR (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. EDWIN SCHUR, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc.1965). É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso -“exploração de situação de abandono ou de necessidade económica” - constante da versão originária (de 1982/1995). E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar” uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal – a prostituição. Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do pecado, um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver. A Conselheira Joana Fernandes Costa e os Conselheiros Afonso Patrão, António José da Ascensão Ramos, José Eduardo Figueiredo Dias, Rui Guerra da Fonseca e Gonçalo Almeida Ribeiro votaram vencido no recente acórdão n.º 881/2024. Salientamos as considerações feitas pelo Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias[35] e a declaração de voto do Conselheiro Rui Guerra da Fonseca, onde sublinha que, sob pena de arbitrariedade, a tipificação criminal por parte do legislador penal terá sempre de ser justificável no âmbito da proteção dos direitos fundamentais, imediatamente referidos a bens individuais e/ou mediatamente a bens coletivos, convocando o princípio do direito penal do bem jurídico. Sustenta também que ao eliminar do tipo incriminador a exploração de situação de abandono ou de necessidade económica, é evidente que o leque de condutas puníveis é alargado (como é evidente também que o legislador deixou de considerar que tal expressão qualificativa deixou de descrever normativamente, ainda que apenas em parte, o bem jurídico a proteger). Tal alargamento faz com que preencham o tipo condutas muito distintas do que tradicionalmente se designa por proxenetismo; por outras palavras, já não é isso que o tipo descreve (muito embora seja isso que o acórdão fundamento tem em mente, como se alcança da fundamentação), mas antes um potencial muito mais amplo de condutas. Entre essas condutas passa a estar qualquer uma, a que possa querer recorrer quem se prostitui, com vista a, por certa contrapartida económica, aumentar as suas condições de segurança (por exemplo, contratar com seguranças, motoristas, telefonemas de segurança ou outros expedientes similares, etc.). (….) se é a segurança de quem se prostitui que está em causa como bem jurídico a proteger, então a tipificação do crime de lenocínio simples, com exclusão do inciso «exploração de situação de abandono ou de necessidade económica», nos termos em apreciação no acórdão, produz resultados contrários aos que justificam a própria norma: é, pois, uma norma que não passa desde logo o teste da aptidão que a proporcionalidade exige nas restrições a direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2 da CRP). Consequentemente, também da perspetiva do agente do crime cujas condutas resultam de opções livres de procura de segurança por parte de quem se prostitui, e que passam a ser abrangidas pelo tipo em razão da exclusão daquele inciso, tal juízo de inconstitucionalidade se verifica, tanto à luz do princípio da tipicidade, como porque (….) «a manifesta desproporcionalidade das penas ante o comportamento proibido torna ilegítima a incriminação». (…) Por outro lado, é ao legislador que cabe o aperfeiçoamento do tipo legal de crime de modo a não incorrer nos vícios antecedentes. Mas ainda que se entendesse existir outro bem jurídico protegido no fim da norma objeto, a afetação negativa do direito fundamental à segurança sempre seria desrazoável: porque não se vê a que direito fundamental poderia esta afetação negativa estar ligada em termos mais próximos do que aqueles em que o direito fundamental à segurança se apresenta ao legislador neste contexto. Conscientes de que a posição no sentido da constitucionalidade da norma contida no art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal tem sido praticamente unânime no seio da jurisprudência, todavia, não a acompanhamos. Desde logo, porque entendemos, seguindo a corrente jurisprudencial até agora minoritária e a doutrina largamente maioritária, que a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2/09, foi perdida a conexão com um bem jurídico com dignidade penal e claramente definido[42]. Sendo indiscutível que compete ao legislador ordinário definir as condutas passiveis de criminalização, esse direito não é, porém, absoluto. Como refere Jorge de Figueiredo Dias[43] e é sublinhado no Acórdão n.º 134/2020 do Tribunal Constitucional[44], encontra-se sujeito a certas limitações constitucionais, constituindo o princípio do direito penal do bem jurídico (…) um primeiro e fundamental constrangimento. Manifestação específica do imperativo de proporcionalidade a que transversalmente se subordina a restrição de direitos fundamentais, este princípio perfila-se como uma barreira ao excesso - seja ele arbitrário ou apenas inadvertido - na restrição do direito à liberdade pela via penal, proibindo toda a criminalização que não possa ser justificada em nome de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados[45]. Desde Von Liszt que o bem jurídico passou a ser visto como um elemento central da estrutura do delito, sendo, como escreve Hans-Heinrich Jescheck[46], o ponto de partida da formação do tipo. Para Claus Roxin[47], o legislador constitucional pressupõe a existência do direito de punir por parte do Estado, mas a legitimidade para o poder fazer tem como limite o próprio conceito material do delito. Em suma, a lesão de um bem jurídico é pressuposto da intervenção penal e da punibilidade[48]. Constituindo os bens jurídicos interesses vitais da comunidade, como sejam, entre outros, a vida humana, a integridade física, a liberdade, a propriedade, cabe ao direito penal a sua proteção[49]. A tutela através da pena deve, porém, cingir-se à defesa desses interesses, considerando, desde logo, o princípio constitucionalmente consagrado da necessidade da pena e da natureza subsidiaria do direito penal[50], que apenas deverá intervir como última ratio da política social[51]. O direito penal não pode, assim, intervir sempre que ocorra uma qualquer perturbação da vida comunitária, apenas devendo fazê-lo quando estejam em causa valores fundamentais da ordem social[52]. Isto é, nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias[53], quando se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem. Ou seja, quando determinada conduta se revele suficientemente ofensiva para algum bem jurídico com dignidade constitucional[54]. Essa substancial restrição, como refere Claus Roxin[55], determina a exclusão da intervenção penal no campo das meras imoralidades, onde enquadra o direito penal sexual e das condutas contraordenacionais. Com a reforma de 1998, que eliminou do tipo de lenocínio simples a “exploração de situação de abandono ou de necessidade económica”, que constava da versão originária do Código Penal, como refere Manuel da Costa Andrade, abriu-se deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à “liberdade sexual” e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar”. Restou, pois, uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal - a prostituição. Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do pecado, um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver. Eliminado o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, podemos até dizer que deixou de estar em causa a proteção da liberdade sexual, sucessivamente reafirmada nos diversos acórdãos do Tribunal Constitucional que decidiram no sentido da conformidade da norma com a Constituição[56]. Como salientam Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes, expurgado aquele elemento do tipo, a norma ficou despida de qualquer conduta com aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos dignos de pena, não tendo sequer a conduta típica descrita aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos identificados pela jurisprudência constitucional[57]. O legislador passou, pois, a incriminar comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual, relativamente aos quais não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direito à liberdade, enquanto direito necessariamente implicado na punição, o que torna materialmente inconstitucional a norma incriminatória do art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, por violação expressa dos art.ºs 18.º, n.º 2, e 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP[58]. Quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana em que o Tribunal Constitucional, desde o acórdão 144/2004, e a jurisprudência dominante fazem assentar a conformidade da incriminação do lenocínio simples com a Constituição, oferece fundadas reservas[59]. Em primeiro lugar, porque, contrariamente ao que acontece noutras Constituições, se mostra consagrado entre nós como princípio fundamental e não como direito fundamental[60]. Como assinala Jorge Miranda[61], enquanto referência axial de todo o sistema dos direitos fundamentais, não é um específico direito, mas essencialmente um “princípio englobante” onde se fundamentam todos os direitos fundamentais. Em segundo lugar, pelo seu elevado grau de abstração[62]. Efetivamente, não permite divisar um bem jurídico claramente definido[63]. Ou seja, nas palavras de Maria do Carmo Silva Dias[64], não permite individualizar nem definir de forma clara o específico bem jurídico a proteger, o que é necessário ocorrer nos crimes sexuais. Temos, pois, como assinala o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/2020[65], que tal princípio não pode geralmente fundamentar direitos subjetivos de modo direto e autónomo, e mais dificilmente ainda poderá fundamentar, desse modo direto e autónomo, restrições a esses mesmos direitos. O seu elevado grau de abstração prejudica a sua utilização tanto para um efeito como para o outro (…), impedindo, em via de regra, de ser visto como fonte de prescrições precisas - de «soluções jurídicas concretas» (…). Em suma, acompanhando a argumentação desenvolvida pelo Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro na declaração de voto que apôs no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/2011, não parece sustentável que a ideia geral e abstrata de dignidade da pessoa, desvinculada de qualquer dimensão garantistica da autodeterminação de quem se prostitui, conserve ainda um conteúdo constitucionalmente determinada capaz de validar a restrição a direitos fundamentais que a criminalização representa. Aliás, interpretação em sentido contrário esbarra com o que vem sendo o entendimento seguido pelo próprio Tribunal Constitucional, que tem sustentado em diversos arestos ser crucial que o bem jurídico tutelado possa ser claramente identificado e que a conduta típica seja descrita de forma especialmente precisa[66]. A ser invocado, o princípio da dignidade da pessoa humana apenas poderia ser em abono da tese da inconstitucionalidade. Como refere Jorge de Figueiredo Dias, não devendo constituir fundamento de validade/constitucionalidade da incriminação constante no atual art.º 169.º do Código Penal, pode, pelo contrário, ao menos em certas circunstâncias, ser legitimamente invocado como fundamento da sua inconstitucionalidade[67]. Aliás, nas palavras de Manuel da Costa Andrade[68], a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Desde logo, não se compreende em que termos a opção livre de alguém se dedicar à prostituição, ou de recorrer à ajuda de outrem para o fazer, põe em causa a sua dignidade enquanto pessoa. Pelo contrário, essa dignidade pode sim ser posta em causa pela incriminação do lenocínio nos termos em que atualmente se mostra formulada, na medida em que a clandestinidade a que fica obrigada provoca estigmatização e discriminação[69], para além de insegurança. A dignidade da pessoa exige condições económicas de vida capazes de assegurar liberdade e bem estar[70], o que implica o reconhecimento de direitos, designadamente a quem, livremente, por opção própria, decidiu dedicar-se à prostituição. Um deles, por muito que essa opção possa ser moral e eticamente questionável, é o direito de exercer uma atividade profissional renumerada, não proibida, importa sublinhar, que lhe permita assegurar a sua subsistência ou alcançar um nível de vida digno e confortável. Essa atividade, sublinha-se também, é “empresarializável” em vários países da União Europeia[71] e tem hoje uma proteção e um enquadramento legal no quadro da União Europeia[72]. O princípio da dignidade humana, num Estado de direito social, obriga, aliás, o Estado a prosseguir positivamente uma atividade de promoção das condições de um desenvolvimento efetivo de uma vida digna[73]. Assinala-se que o trabalho sexual de interior, onde é mais visível a presença do empresário do sexo, resulta mais lucrativo inclusivamente para a prostituta, beneficiando de estratégias comerciais de angariação de clientes com reflexo no sucesso negocial e que não raramente a opção pelo trabalho sexual é explicada pelo recebimento de mais dinheiro e, portanto, como uma atividade economicamente mais rentável, na busca rápida de níveis mais elevados de consumo, quando comparada com outra forma de trabalho disponível e/ou já exercida[74]. Paradoxalmente, não pode deixar de assinalar-se que é precisamente o Estado, constitucionalmente obrigado a promover as condições de um desenvolvimento efetivo de uma vida digna, que veda essa possibilidade a quem decidiu dedicar-se livremente à prostituição. Fá-lo através da incriminação do lenocínio simples, coartando, entre outros, o seu direito fundamental ao trabalho previsto no art.º 58.º, n.º 1, da Constituição, e direitos constitucionais com ele conexos, como o direito à segurança social, previsto no seu art.º 63.º, que se fundam, todos eles, na dignidade da pessoa humana. Temos, assim, que o tipo do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal provoca a perda ou a redução do valor da integridade e essência pessoal de quem se prostitui livremente[75], o que se traduz na violação do princípio da dignidade da pessoa humana, precisamente o bem jurídico, que segundo o Tribunal Constitucional, pretende acautelar. Finalmente, a convocação do princípio da dignidade da pessoa humana em abono do juízo de constitucionalidade do lenocínio simples conflitua com o princípio da necessidade das penas, que constitui uma das suas projeções. Como assinala Maria João Antunes no voto de vencido aposto nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 396/2007 e 522/2007, as exigências da dignidade punitiva prévia das condutas, enquanto expressão da uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1º da Constituição, da qual decorre a proteção da essencial dignidade da pessoa humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que pressupõe apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio jurídico. Mesmo que se entenda que o bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime de lenocínio simples é a «liberdade sexual»[76], o que está longe de ser consensual[77], e que estaremos, consequentemente, perante um crime de perigo abstrato, como foi assumido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 144/2004, tal não afasta em nossa opinião, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal. Com efeito, como sintetiza o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/2020[78], a criação de crimes de perigo abstrato em nome da tutela da liberdade sexual, ou de outro bem jurídico suscetível de acordo, não está terminantemente excluída em termos constitucionais. Contudo, quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, como se concluiu ser aqui o caso (supra, ponto 13), então, a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta ainda força suplementar à conclusão - já decorrente, sem mais, daquela debilidade - de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa. Desenvolvendo-se aquela conduta dentro de um espaço em que, perante o recorte típico da norma incriminatória, a livre disposição do bem jurídico por parte de quem se prostitui se mostra plausível, a sua criminalização não pode deixar de considerar-se desproporcional. Pode conceder-se que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no sentido de que esta constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita é objetivamente apta a abranger situações em que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de lesão. No entanto, a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida do facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito. Mesmo persistindo na via da criminalização, o legislador poderia empreender essa tutela com significativamente menor restrição do direito à liberdade, através de um recorte típico que, podendo porventura ainda configurar-se como crime de perigo abstrato, apresente um autêntico nexo de perigosidade típica entre conduta e bem jurídico. Poderia então ainda discutir-se a proporcionalidade em sentido estrito da norma, mas pelo menos estar-se-ia já num contexto de verdadeiro conflito de direitos e interesses constitucionais. Pelo contrário, a vigente norma incriminatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivelmente não ter sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não há, portanto, carência de tutela penal. Em suma, o tipo legal de crime de lenocínio simples, com a eliminação do elemento normativo “exploração de situação de abandono ou de necessidade económica”, criminaliza condutas em que não ocorre nenhuma violação da vontade de quem se prostitui, pelo que o bem jurídico “liberdade sexual” nunca poderia fundamentar a punição. Aliás, em bom rigor, face à retirada daquele elemento do tipo, não parece sequer sustentável que o bem jurídico protegido seja efetivamente a liberdade e autodeterminação sexual. Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8.02.2017[79], com a atual redação do n.º 1 do art.º 169.º do Código Penal não se exige uma lesão efectiva do bem jurídico (aparentemente a liberdade/autonomia sexual da(o) prostituta(o)) mas tão só a colocação em perigo desse bem jurídico, nem sequer sendo necessário que esse bem tenha sido efectivamente posto em perigo uma vez que este não faz parte do tipo mas, tão só, da motivação da proibição. Acresce a dificuldade, que vemos como inultrapassável, de, sem mais, associar o aproveitamento económico de quem se dedica à prostituição ao risco de exploração de uma situação de desproteção social[80] e, consequentemente, à colocação em perigo do bem jurídico “liberdade sexual”. Trata-se de uma presunção carecida de demonstração, desde logo porque assenta em estudos de natureza não científica. Acompanhando o citado aresto desta Relação do Porto, não se pode presumir, de forma categórica e inilidível, que quem fomente, favoreça ou facilite a prostituição, ao fazê-lo, pura e simplesmente, põe em risco a liberdade sexual de quem se prostitui. Como assinala o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 218/2023, a única forma possível de ainda relacionar minimamente a conduta típica aqui em causa com o bem jurídico que poderia justificar a sua punição é a de estabelecer uma sequência de presunções em que se começa por presumir que fomentar, favorecer ou facilitar a prostituição de modo profissional ou com intuito lucrativo tem um potencial intrínseco de exploração de quem se prostitui. No entanto, é inegável que a natureza profissional ou o intuito lucrativo da atuação nada tem de intrínseco que obste ao estabelecimento de relações sinalagmáticas com quem se prostitui, como inegável é que a decisão de uma pessoa de se prostituir pode constituir uma expressão ainda plena da sua liberdade sexual (…). Aquela conduta não está apenas distante, mas deslocada da ofensa ao bem jurídico que legitimaria a sua punição, dificultando ainda, em certos casos, o exercício do correspondente direito por parte de quem se prostitui. Mesmo que o tipo de crime de lenocínio simples não tivesse perdido a conexão com um bem jurídico com dignidade penal e claramente definido, o que, na nossa opinião, sucedeu a partir das alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2/09, e ainda que o bem protegido fosse, como defende Fernanda Palma[81], o mero perigo de exploração das pessoas com carência social, a incriminação sempre esbarraria com os princípios constitucionais da necessidade da pena e da subsidiariedade e da máxima restrição das penas, acolhidos no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição[82], tornando ilegítima e inadmissível a intervenção do direito penal. Com efeito, para além de a conduta criminalizada atualmente carecer de dignidade punitiva, dado não estarmos perante um direito ou bem constitucional de primeira importância[83] e nos encontrarmos, inclusivamente, no domínio dos criminologicamente “crimes sem vítima”[84], o bem jurídico em causa, caso fosse merecedor de tutela, sempre poderia ser eficazmente acautelado através de meios não penais de controlo social, designadamente o contra-ordenacional, existindo, pois, alternativas menos gravosas. A incriminação lenocínio simples na sua atual formulação esbarra, também, com o princípio do Estado de Direito, onde, mais uma vez, prima a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, já abordada, e a garantia da segurança, que se reconduz à proteção da confiança[85]. O princípio do Estado de Direito, dados os efeitos profundos da intervenção do direito penal ao nível dos direitos individuais, exige não apenas que a lei penal e a sua aplicação sejam conformes com os princípios jurídicos formais, mas também impõe que, no âmbito do seu conteúdo, responda às exigências da justiça[86], que encarna, de modo a que o que seja materialmente injusto não possa converter-se em justo pelo simples facto de assumir a forma de lei[87]. Trata-se, pois, no tocante à função legislativa, como refere Jorge Miranda[88], de satisfazer exigências de certeza; compreensibilidade; razoabilidade; determinabilidade; estabilidade e previsibilidade. Ora, a criminalização do lenocínio simples, na nossa opinião, para além de afrontar o princípio da proporcionalidade, nos subprincípios da idoneidade ou adequação e da necessidade, atento tudo o que referimos supra, também não satisfaz as exigências de certeza, de compreensibilidade, de razoabilidade e de determinabilidade. Com efeito, como vimos, o tipo de crime em causa não é idóneo a proteger nenhum bem jurídico com dignidade penal, desde logo porque não existe. Também não se afigura necessário, visto que meios menos gravosos para os direitos fundamentais poderiam ser escolhidos para atingir o mesmo fim, designadamente, meios não penais de controlo social. Por outro lado, não é compreensível, como resulta, desde logo, da necessidade de alguma doutrina se ver obrigada a defender a reconstrução do tipo ou a sua interpretação constitucional restritiva, por forma a permitir o respetivo preenchimento, promovendo a elemento típico algo que não consta da norma, o que também põe em causa a certeza quanto às suas condições de aplicação. Não é razoável, por falta de coerência, mais uma vez por inexistir a necessária conexão com um bem jurídico com dignidade penal e claramente definido, o que igualmente não permite determinar com precisão a conduta típica. Podemos dizer, como João Pedro Pereira Cardoso[89], que a proteção forçada imposta pela incriminação do lenocínio simples é feita de forma vaga e indeterminada. Essa falta de clareza e imprecisão poderão explicar a hipocrisia e as incoerências da incriminação do panorama do comércio do sexo, com a insuficiência de reação penal, a que se refere o mesmo autor[90]. Na verdade, não podemos deixar de admitir que o lenocínio simples, nos termos em que se encontra formulado, caso fosse conforme à Constituição, face à respetiva descrição típica, abrangeria condutas de grupos empresariais da comunicação social que o Ministério Publico e o poder judicial têm ignorado por completo. O citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8.02.2017 assinala a natureza acrítica do poder legislativo, executivo e, sobretudo, judicial, em relação ao que diz ser a mais visível forma continuada e maciça de lenocínio simples praticado neste país há cerca de 20 anos: o fomento ou facilitação do exercício da prostituição através de anúncios (oferecendo serviços sexuais, genéricos ou até específicos, remunerados) publicados na imprensa escrita que os grupos empresariais detentores de jornais e revistas profissionalmente exploram. Não há notícia da existência, sequer, de qualquer perseguição penal aos agentes de tal comportamento, provavelmente por se entender que a(o) prostituta(o) que recorre ao pagamento de um meio de tornar pública a oferta dos seus serviços está a exercer um direito no âmbito da sua liberdade sexual, não merecendo censura o comportamento daquele que exerce profissionalmente a actividade de publicitar o exercício por outra pessoa da prostituição, assim a fomentando e facilitando. Atento todo o exposto, procede, pois, o recurso quanto à questão da inconstitucionalidade, o que determina a não aplicação da norma incriminatória do art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, e a consequente absolvição dos arguidos. ** * III - DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência: Sem custas. * José António Rodrigues da Cunha Raul Cordeiro Isabel Matos Namora _____________ [1] a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. [2] Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10, publicado no Diário da República n.º 298/1995, Série I-A de 28.12.1995. [3] Cf. Acs. TRL de 29.03.2011 e de 22.09.2020, relatados pelo Desembargador Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt. [4] Cf. Ac. STJ de 31.05.2007, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt. [5] Cf. Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência de 08.03.2012, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in DR. I Série, n.º 77, de 18.04.2012: Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª primeira instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo. [6] Cf. Ac. TRC de 08.02.2017, relatado pelo Desembargador Inácio Monteiro, in www.dgsi.pt. [7] Relatado pelo Desembargador Francisco Caramelo, in www.dgsi.pt. [8] Cf. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, maio de 1999, e Damião Cunha, «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37. [9] Relatado pelo Conselheiro Raul Borges, in www.dgsi.pt. A essa limitação, o referido aresto acrescenta ainda mais três: i) a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e ás concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; ii) a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita á indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo á sua correcção se for caso disso; iii) a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º). [10] Ac. TRL de 29.03.2011, relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves e Ac. TRG de 23.03.2015, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, ambos in www.dgsi.pt. Como é referido no último dos referidos acórdãos, tem-se entendido que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está. [11] Ac. TRP de 04.02.2004, relatado pelo Desembargador Ângelo Morais, in www.dgsi.pt. Idem, Prof. Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, 1º volume, pág. 211. Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, mas essa apreciação é vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza cientifica que se devem incluir no âmbito do direito probatório. [12] Conforme estabelece o n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, o convite ao aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação. O texto da motivação é o limite do aperfeiçoamento – o que dele não consta não pode ser levado às conclusões (Ac. TRE de 30.10.2012, relatado pela Desembargadora Ana Bacelar Cruz, in www.dgsi.pt ). [13] ARTIGO 405.º Se, para satisfazer os desejos deshonestos de outrem, o ascendente excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição, ou corrupção de qualquer pessoa sua descendente, será condenado a prisão de um a tres annos, e multa correspondente, ficando suspenso dos direitos politicos por doze annos. § 1.º O marido, que commetter o mesmo crime a respeito de sua mulher, será condenado no maximo do desterro, e multa de tres mezes a tres annos do seu rendimento, ficando suspenso dos direitos politicos por doze annos. § 2.º O tutor, ou qualquer outra pessoa encarregada da educação, ou direcção, ou guarda de qualquer menor de vinte e cinco annos, que commetter o mesmo crime a respeito desse menor, será punido com prisão de seis mezes a dois annos, e multa correspondente, e suspensão por doze annos do direito de ser tutor, ou membro de algum conselho de familia, e do de ensinar, ou dirigir, ou concorrer na direcção de qualquer estabelecimento de instrucção. ARTIGO 406.º Toda a pessoa, que habitualmente excitar, favorecer, ou facilitar a devassidão, ou corrupção de qualquer menor de vinte e cinco annos, para satisfazer os desejos deshonestos de outrem, será punida com prisão de tres mezes a um anno, e multa correspondente, e suspensão dos direitos politicos por cinco annos. [14] ARTIGO 405.º Se, para satisfazer os desejos desonestos de outrem, o ascendente excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição, ou corrupção de qualquer pessoa sua descendente, será condenado a prisão de um a dois anos, e multa correspondente, ficando suspenso dos direitos politicos por doze anos. § 1.º O marido, que cometer o mesmo crime a respeito de sua mulher, será condenado no máximo do desterro, e multa de três meses a três anos do seu rendimento, ficando suspenso dos direitos politicos por doze anos. § 2.º O tutor, ou qualquer outra pessoa encarregada da educação, ou direcção ou guarda de qualquer menor de vinte e um anos, que cometer o mesmo crime a respeito desse menor, será punido com prisão de seis meses a dois anos, e multa correspondente, e suspensão por doze anos do direito de ser tutor ou membro de algum conselho de familia, e do de ensinar ou dirigir ou concorrer na direcção de qualquer estabelecimento de instrução. ARTIGO 406.º Toda a pessoa, que habitualmente excitar, favorecer ou facilitar a devassidão ou corrupção de qualquer menor de vinte e um anos, para satisfazer os desejos desonestos de outrem, será punido com prisão de três meses a um ano e multa correspondente, e suspensão dos direitos politicos por cinco anos. [15] Diário do Governo n.º 216/1962, Série I de 1962-09-19, págs 1245 – 1246. [16] Art.º 2.º - 1. São punidos com pena de prisão até um ano e multa correspondente todos os indivíduos que conscientemente fomentem, favoreçam ou de algum modo facilitem o exercício da prostituição ou nela intervenham com fins lucrativos. [17] Art.º 215.º (Lenocínio) 1 - Quem fomentar, favorecer ou facilitar a prática de actos contrários ao pudor ou à moralidade sexual, ou de prostituição relativamente: a) A pessoa menor ou portadora de anomalia psíquica; b) A qualquer pessoa, explorando situação de abandono ou de extrema necessidade económica; será punido com prisão até 2 anos e multa até 100 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem explorar o ganho imoral de prostituta, vivendo, total ou parcialmente, a expensas suas. Art.º 216.º (Lenocínio agravado) Relativamente aos comportamentos descritos no artigo anterior, a pena será: a) A de prisão de 2 a 4 anos e multa até 150 dias se o agente os realizar com intenção lucrativa; b) A de prisão de 2 a 6 anos e multa até 180 dias se os realizar profissionalmente; c) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se usar fraude, violência ou ameaça grave; d) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se a vítima for cônjuge, ascendente, descendente, filho adoptivo, enteado ou tutelado do agente, ou lhe foi entregue em vista da sua educação, direcção, assistência, guarda ou cuidado. [18] Anabela Miranda Rodrigues, Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 518; Ac. STJ de 5.09.2007, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, in www.dgsi.pt. [19]Art.º 170.º Lenocínio 1- Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de necessidade económica, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. 2- Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. [20] Art.º 170.º (…) 1- Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. [21] Mouraz Lopes / Tiago Caiado Milheiro, Crimes Sexuais: Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, 2015, pág. 105. [22] Mouraz Lopes / Tiago Caiado Milheiro, loc. cit, pág. 107. [23] V.g. resenha da doutrina feita no acórdão n.º 218/2023, ponto 11., pág. 17: Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 39 ss., Anabela Miranda Rodrigues / Sónia Fidalgo, op. cit., p. 798 ss., Maria João Antunes, “A problemática penal e o Tribunal Constitucional”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor J. J. Gomes Canotilho, I, Boletim da FDUC, n.º 102 (2013), p. 107 ss., Augusto Silva Dias, “Reconhecimento e Coisificação nas Sociedades Contemporâneas - Uma Reflexão sobre os Limites da Intervenção Penal do Estado ”, in Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, Almedina, 2009, p. 123 ss., José Mouraz Lopes / Tiago Caiado Milheiro, Crimes Sexuais: Análise Substantiva e Processual, Almedina, 2019, p. 131 ss., Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, “O Crime de Lenocínio entre o Moralismo e o Paternalismo Jurídicos”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 22, n.º 2, 2012, p. 201 ss., Carlota Pizarro de Almeida, op. cit., p. 21 ss., Vera Lúcia Raposo, “Da moralidade à liberdade: o bem jurídico tutelado na criminalidade sexual” in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias Coimbra Editora, 2003, p. 949 ss. Vide, ainda Jorge de Figueiredo Dias / Maria João Antunes, “Da inconstitucionalidade da tipificação do lenocínio como crime de perigo abstrato”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Sousa Ribeiro, Tribunal Constitucional, I, Almedina, 2019, pp. 121 ss.. [24] Direito Penal. Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007. pág. 124. [25] Actas e Projecto, Rei dos Livros, 1993, pág. 258. [26] Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial, I, Coimbra, 1999, pág. 519. [27] Loc. cit, pág. 107. [28] “O Crime de Lenocínio entre o Moralismo e o Paternalismo Jurídicos”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 22, n.º 2, abril-junho 2012, pág. 255. [29] O dever de dignidade da pessoa humana. A inconstitucionalidade do crime de lenocínio, Data Venia, Revista Jurídica Digital, Ano 8 , n.º 11, dezembro 2020, pág. 372. [30] Comentário do Código Penal, 3.ª edição atualizada, anotação ao art.º 169.º do CPP, pág. 673. [31] Pág. 37. [32] A Tutela Penal da Liberdade Sexual, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 21, n.º 1 (2011), pág. 82. [33] Acórdão n.ºs 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018, 178/2018, 160/2020, 589/2020, 72/2021, 382/2021, 314/2021, 312/2021, 311/2021, 197/2021, 144/2021 e 881/2024, acessíveis in wwwtribunalconstitucional.pt. [34] Acórdãos n.ºs 134/2020 e 218/2023. [35] As razões deste meu entendimento, inerentes ao meu voto de vencido são, no essencial, as que constam da fundamentação do Acórdão recorrido, o Acórdão n.º 218/2023, por sua vez suportado, em boa medida, no Acórdão n.º 134/2020. Permitindo-me destacar, em particular, as considerações relativas: i) ao bem jurídico, em particular quando se salienta que o «princípio do direito penal do bem jurídico» se perfila como uma barreira ao excesso, «proibindo toda a criminalização que não possa ser justificada em nome de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados», não se mostrando a conduta criminalizada no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, «suficientemente ofensiva para algum bem jurídico com dignidade constitucional» (ponto 4. do Acórdão n.º 218/2023, remetendo para o ponto 6. do Acórdão n.º 134/2020); ii) à rejeição da dignidade da pessoa humana como bem jurídico que pode basear a incriminação, nomeadamente pela sua consagração na Constituição da República como princípio geral e não como direito fundamental e em face do seu elevado grau de abstração, carecendo de um conteúdo suficientemente determinado para suportar a criminalização do lenocínio simples (cfr. ponto 8. do Acórdão n.º 134/2020); iii) à natureza do direito penal como direito de intervenção mínima, devendo a sua intervenção ser apenas aquela necessária à tutela de bens jurídicos (e não da moral) que não obtêm proteção suficiente e adequada através de outros meios de política social (cfr. os votos de vencida da Conselheira Maria João Antunes aos Acórdãos n.ºs 396/2007 e 522/2007, citados no ponto 11. do Acórdão n.º 134/2020); iv) ao facto de, na decisão legislativa de criminalização do lenocínio simples, não poder estar em causa a tutela de qualquer moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade; v) à circunstância de terem de ser ligadas consequências jurídicas à supressão, operada com a Reforma de 1988, do tipo legal de lenocínio simples, da referência à “exploração de situações de abandono ou necessidade económica”: esta supressão do tipo legal tornou indefinido o bem jurídico por ele tutelado, podendo questionar-se se será a liberdade sexual da pessoa que se prostitui, a moral sexual, uma determinada conceção de vida ou, até, a paz social (cfr. os votos de vencido do Conselheiro Lino Ribeiro aos Acórdãos n.ºs 641/2016 e 694/2017, transcritos no ponto 11., c), do Acórdão); vi) à desproporcionalidade da criminalização do lenocínio simples (cfr. artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República), porque a conduta típica não está preordenada à tutela ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não sendo necessária à proteção de qualquer bem jurídico (cfr. os votos de vencido do Conselheiro Manuel da Costa Andrade juntos aos acórdãos n.ºs 641/2016, 421/2017, 694/2017 e 90/2018, transcritas no ponto 11., d) do Acórdão); vii) ao facto de o tipo legal incriminar situações que não têm a dignidade de tutela penal: como se explica no Acórdão (7.), a liberdade sexual (o bem jurídico para cuja tutela o crime de lenocínio se orienta) tem a «estrutura própria de uma manifestação de vontade», verificando-se que, na formulação atual do tipo legal de crime de lenocínio simples, se está a atribuir conteúdo ilícito a condutas que se sabe não envolverem necessariamente qualquer violação da vontade do portador do bem jurídico ‘liberdade sexual’ e, como tal, sem «qualquer substrato de ilicitude». Foram estes os principais argumentos do Acórdão recorrido que me permitiram fundar a minha convicção de que a norma do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na sua redação atual, não passa o crivo da constitucionalidade – e que me levaram a votar vencido a presente decisão. [36] Acs. STJ de 5.09.2007 e de 01.02.2023, relatados, respetivamente, pelo Conselheiro Pires da Graça e pela Conselheira Teresa de Almeida, in www.dgsi.pt. [37] Relatado pelo Desembargador Pedro Mourão. [38] Relatados, respetivamente, pelos Desembargadores Pedro Vaz Pato e Paulo Costa. [39] Relatado, respetivamente, pelos Desembargadores Gabriel Catarino e Mouraz Lopes e pelas Desembargadoras Maria José Nogueira e Isabel Valongo. [40] Relatados, respetivamente, pelos Desembargadores João Gomes de Sousa e Edgar Valente. [41] Relatado pelo Desembargador João Pedro Nunes Maldonado. [42] Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais, pág. 66. [43] O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio constitucional…”, XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa, Coimbra, 2009, 31 s., e 39. [44] Ponto 6.. [45] Maria Fernanda Palma, «O mito da liberdade das pessoas exploradas sexualmente na Jurisprudência do Tribunal Constitucional e a utilização concetualista e retórica do critério do bem jurídico», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano 1.XII, 2021, número 1, Tomo 2, pág. 998, questiona a fundamentação do Acórdão do TC n.º 134/2020, sustentando que o apelo que faz ao conceito de bem jurídico é problemática, pois um conceito de cobertura de conteúdos tão diversos não empresta, usado sem explicitação de uma função e de um conteúdo compreensivo, qualquer capacidade de servir de crivo no exame da constitucionalidade das normas incriminadoras. [46] Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª Ed., Editorial Comares, 1993, pág. 231. [47] Derecho Penal, parte general, Tomo I, Civitas, 2006, pág. 52. [48] Karl Prelhaz Natscheradetz, O Direito Penal Sexual: Conteúdo e Limites, Almedina, 1985, págs. 98, 99 e 118, assinalando que a noção de bem jurídico desempenha uma função limitadora do poder punitivo do Estado, no sentido de que apenas as ações dirigidas contra bens jurídicos são danosas e podem ser criminalizadas, evidencia os quatro limites sintetizados por Rudolphi que o direito penal, enquanto meio de proteção de bens jurídicos, deve respeitar: - o princípio da adequação dos meios do direito penal para uma proteção efetiva dos bens jurídicos, o princípio da utilização do meio relativamente mais suave, o princípio da subsidiariedade e o princípio do interesse preponderante. [49] Como escreve Claus Roxin, loc. cit, pág. 52, a exigência de que o direito penal apenas pode proteger bens jurídicos desempenhou um importante papel na discussão da reforma das últimas décadas, partindo do princípio de que o direito penal apenas deve assegurar a proteção de determinados bens jurídicos, como a vida, a integridade física, a honra, a administração da justiça, etc.. [50] Como escreve Karl Prelhaz Natscheradetz, loc. cit., págs. 89 e 90, este princípio da necessidade da pena – ou natureza subsidiária do direito penal, que merece amplo consenso da doutrina e se encontra constitucionalmente consagrado, deriva da própria natureza do direito penal e da concepção do Estado de direito em sentido material. [51] Jorge de Figueiredo Dias, «O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social» Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, pág. 323. [52] Hans-Heinrich Jescheck, loc. cit., pág. 6. [53] «O sistema sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política criminal», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, págs. 806 e 807/ «Os novos rumos da política criminal e o direito penal do futuro», Revista da Ordem dos Advogados, 1983, pág. 11. [54] Acórdão n.º 134/2020 do Tribunal Constitucional. Maria João Antunes, «A problemática penal e o Tribunal Constitucional», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Gomes Canotilho, vol. 1, 2012, Coimbra Editora, págs. 101 e 102, fala em direito ou bem constitucional de primeira importância. [55] loc. cit, pág. 52. [56] José Mouraz Lopes/Tiago Caiado Milheiro, loc. cit, pág. 106.; Sénio Alves, Crimes Sexuais. Notas e Comentários aos Artigos 163.º a 179.º do Código Penal, Almedina, págs. 67 e 68; Anabela Miranda Rodrigues, loc. cit., pág. 520. [57] Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes, “Da inconstitucionalidade da tipificação do lenocínio como crime de perigo abstrato”, in Estudos em Homenagem ao Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro – Vol. I, Almedina, 2019, pág. 157. [58] Voto de vencido da Conselheira Maria João Antunes proferido no Acórdão n.º 396/2007. [59] Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, loc. cit., págs. 240 a 246 [60] Acórdão n.º 134/2020 do Tribunal Constitucional, ponto 8.. [61] Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2ª Ed., anotação ao art.º 1.º, págs. 65 e 67. [62] Essa abstração poderá explicar a necessidade a alguns autores terem que recorrer à indignidade moral da exploração da prostituição de outrem, associada tipicamente a uma diminuição do âmbito de autonomia da vontade da mesma, para chegarem ao bem dignidade da pessoa humana, como faz Inês Ferreira Leite, A Tutela Penal da Liberdade Sexual, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, págs. 12 a 15. . [63] Como escrevem Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, loc. cit., resulta da função do direito penal como pura tutela de bens jurídicos com fundamento constitucional, que uma norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico claramente definido é nula, por dever ser considerada materialmente inconstitucional e como tal declarada pelo tribunal constitucional. [64] Crimes sexuais com Adolescentes, Almedina, 2006, pág. 206. [65] Ponto 8.. [66] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 218/2023, ponto 13., pág. 27. [67] Loc. cit., pág. 41. [68] Votos de vencido nos Acórdãos n.os 641/2016, 421/2017, 694/2017 e 90/2018, onde sustenta que não pode pertinentemente invocar-se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas – homens ou mulheres – envolvidas na prostituição: Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres – no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação – devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da “virtude” como do “pecado”. Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal. De outro modo e acolhendo-nos à síntese de FIGUEIREDO DIAS, “teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade. Pois é claro que pertence à liberdade da vontade da pessoa dedicar-se ou não ao exercício da prostituição. O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!” (FIGUEIREDO DIAS, “O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio jurídico-constitucional implícito”, RLJ, ano 145.º, maio-junho de 2016, p. 261). Nesta linha não podemos acompanhar o entendimento que a este propósito vem sendo sistematicamente sufragado pelo TC. Que tem procurado apoiar a legitimação material da incriminação na sua relação “com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem”, como se sustenta, entre outros, no Acórdão n.º 144/2004 (no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 170/2006, 396/2007, 141/2010, 559/2011, 203/2012, 149/2014). [69] Ana Rita Silva Castro, A Inconstitucionalidade do crime de lenocínio simples, o tráfico de pessoas para exploração sexual e a prostituição: interligação de temáticas, pág. 30, https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/98832/1/Tese_Final_RitaCastro.pdf [70] Jorge Miranda, loc. cit., pág. 69. [71] Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, loc. cit., pág. 249. [72] Lembram José Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, loc. cit., pág. 109, que o próprio TJC já decidiu em vários arestos, nomeadamente no Processo C-268/99, de 20.11.2001, que se trata de uma atividade de prestação de serviços remunerada e abrangida pelo conceito de actividade económica não assalariada e actividade não assalariada. [73] João Pedro Pereira Cardoso, loc. cit., págs. 238 e 239; Jorge Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, vol. II, Dignidade e Inconstitucionalidade, pág. 34. [74] João Pedro Pereira Cardoso, loc. cit., págs. 238 e 239. [75] Augusto Silva Dias, Reconhecimento e coisificação…, págs. 123 e 124. [76] “liberdade sexual”, cujo respeito José Cerezo Mir coloca como primeira exigência da ética social vigente na sociedade espanhola, Prologo, El Derecho Penal ante el sexo (limites, critérios de concreción y contenido del Derecho Penal sexual, Jose Luiz Diez Ripolles, Editorial Bosch, 1981. [77] Vide João Pedro Pereira Cardoso, loc. cit., págs. 219 a 221. [78] Ponto 14.. [79] Relatado pelo Desembargador João Pedro Nunes Maldonado, in www.dgsi.pt. [80] Fernanda Palma, Julgar, n.º 29, 2016, pág. 113, com base no argumento empírico, seguindo a linha argumentativa do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/2004, que relatou, faz claramente essa associação para justificar a necessidade da pena no crime de lenocínio, embora conclua que, em última análise, é a proteção de direitos sociais e da dignidade da pessoa humana que está em causa. [81] Loc. cit.. [82] O Tribunal Constitucional sempre reconheceu esse princípio, designadamente, e entre muitos outros, no Acórdão n.º 59/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 96-97), onde enuncia que por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não seja certa a sua necessidade. [83] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/02. [84] Jorge de Figueiredo Dias e Costa Andrade, Direito Penal - Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, 1996, que enquadram nesse domínio o consumo de drogas ou de álcool, a prostituição, a pornografia, etc. [85] Jorge Miranda, loc. cit., pág. 79. [86] Como assinala Jorge Miranda, loc. cit., pág. 81, um Estado de direito material, um Estado de Direitos fundamentais não pode de ser também um Estado de Justiça. [87] Hans-Heinrich Jescheck, loc. cit, pág. 112. [88] Loc. cit., pág. 79. [89] Loc. cit., pág. 335. [90] loc. cit., pág. 206. Vejam-se os grupos empresariais detentores dos classificados de jornais que publicitam profissionalmente, com intenção lucrativa, a atividade de prostituição do(a)s anunciantes, assim a fomentando e facilitando. De resto, a Resolução do Parlamento Europeu, de 26. 02. 2014, sobre a exploração sexual e a prostituição e o seu impacto na igualdade dos géneros, in JO C 285/78 de 29. 8. 2017, chama precisamente a atenção para o facto de os anúncios de serviços sexuais nos jornais e meios de comunicação social poderem constituir uma forma de apoio ao tráfico de pessoas e à prática de prostituição. Questão fortemente debatida entre 2010 e 2011, na Espanha, sem, todavia, chegar a ser aprovada a proibição da publicidade de prostituição pelos jornais e outros médias. Ilustrando o paradoxo da comercialização da atividade sexual com os anúncios da prostituição classificados nos mesmos jornais onde altos responsáveis reclamam mais investigação e penalização do comércio sexual – cfr. Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, Crimes Sexuais, Coimbra Editora, 2015, pg. 111. |