Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FÁTIMA ANDRADE | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO INDICAÇÃO DA DECISÃO ALTERNATIVA DIREITO À AÇÃO ABUSO DE DIREITO LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ | ||
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Nº do Documento: | RP202411257389/21.6T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/25/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A inexistência de indicação inequívoca da decisão alternativa pretendida aos pontos factuais impugnados pelo recorrente, quer nas conclusões quer no corpo alegatório, implica a rejeição da reapreciação da decisão de facto, tal como decidido no AUJ 12/2023 de 17/10. II - O direito à ação não se confunde com o direito/pretensão que através de tal ação se pretende salvaguardar. O direito substantivo que através do direito processual se pretende ver reconhecido é do mesmo autónomo. E do não reconhecimento da pretensão substantiva não deriva automaticamente a ilicitude do exercício do direito de ação. III - Tal ilicitude quando invocada como fundamento de pretensão indemnizatória, tem de encontrar o seu fundamento numa atuação processual cujos efeitos transcenderam os autos em que se colocou a questão, fundada numa “culpa in agendo” ou no instituto do abuso do direito. A este último se associando ainda o conceito da litigância de má-fé, o qual sanciona a atuação processual nas situações previstas no artigo 542º nº 2 do CPC. IV - Sendo fundamento da pretensão indemnizatória do autor a violação do seu direito subjetivo ao bom nome e reputação, incumbe ao mesmo fazer prova dos factos constitutivos da responsabilidade imputada à R.. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº. 7389/21.6T8VNG.P1
3ª Secção Cível Relatora – M. Fátima Andrade Adjunto – José Eusébio Almeida Adjunto – António Mendes Coelho Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca do Porto – Jz. Local Cível de Vila Nova de Gaia Apelante/ AA
Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC). ……………………………… ……………………………… ………………………………
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório AA, instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB. Pela procedência da ação peticionou o A. a condenação da R. ao pagamento: - da quantia de €3.470,00 (três mil quatrocentos e setenta euros) a título de danos patrimoniais sofridos por consequência dos pontos 38, 85, 92 e 93 da petição; - de quantia nunca inferior a €3.000,00 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor, conforme o ponto 66, 92 e 93 da p.i..
Para tanto alegou em suma e no que releva: - ter a R., que é sua vizinha, apresentado queixa-crime contra o autor em setembro de 2017, acusando-o de se ter intrometido na sua propriedade através de arrombamento, ter efetuado alterações nas fechaduras de sua casa e adulterado o contador de eletricidade e água do prédio da Ré. Bem como - queixa nos serviços da A... e ainda queixa por escrito às B..., visando em ambos, o aqui Autor como responsável pelos “danos”; Da referida queixa crime tendo sido aberto inquérito, no âmbito do qual a R. aditou ainda novas queixas contra o aqui A.; Tais autos de inquérito vieram a ser arquivados, sem que o A. sequer chegasse a ser constituído arguido ou interrogado como tal. Não obstante as diligências no mesmo praticadas. Tendo ainda sido pedida a abertura de instrução, cujo requerimento foi arquivado; - Posteriormente, em março de 2020, demandou a R. o aqui A. pelos mesmos factos, agora nos julgados de Paz de Vila Nova de Gaia. Ação em que viria o aqui A. a ser absolvido da instância, por incompetência em razão da matéria do tribunal; - Desde 2017 o autor não mais teve desapoquentação da perseverante perseguição perpetuada pela Ré. Da qual derivaram para si vários danos que descreveu e cuja indemnização peticionou. Com fundamento quer na responsabilidade civil, quer no instituto do abuso do direito. * Devidamente citada, contestou a R., em suma impugnando o alegado pelo autor e invocando integrar a queixa crime que contra o A. deduziu, bem como a ação no julgado de Paz, o exercício do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais. Para defesa e garantia dos seus direitos. Termos em que pugnou pela sua absolvição do pedido. * Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
Realizada audiência final, foi após proferida sentença decidindo julgar totalmente improcedente a ação, com a consequente absolvição da R. do pedido. * Do assim decidido apelou o A., oferecendo alegações e formulando as seguintes “Conclusões: (…) *** Não se mostram apresentadas contra-alegações. *** O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. Foram colhidos os vistos legais. *** II- Âmbito do recurso. Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante serem questões a apreciar: 1) erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto. Nesta sede sendo ainda apreciada e como questão prévia se foram observados os ónus de impugnação e especificação sobre o recorrente incidentes. 2) erro na aplicação do direito. *** III- Fundamentação O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: “1) Autor e ré são vizinhos, tendo residido na Rua ..., em ..., Vila Nova de Gaia. 2) No âmbito do inquérito n.º 261/17.6PIVNG, do DIAP, 3.ª Secção, de Vila Nova de Gaia, a 21 de janeiro de 2019 foi proferido despacho de arquivamento por queixas apresentadas pela ré que disse suspeitar que o autor teria acedido ao jardim da sua habitação e ter feito uns buracos na caixa onde se encontram os seus contadores de eletricidade e água, além de ter feito desparecer vários documentos e de se ter introduzido no interior da sua residência e ter remexido em diversos documentos, por inexistirem quaisquer indícios da prática dos apontados crimes, tudo conforme termos do documento 4 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 3) Sendo referido no dito despacho de arquivamento que foram juntos ofícios das B..., um relatório da A..., foram inquiridos técnicos da A... e efetuada uma diligência externa. 4) No processo de inquérito referido em 2), a ré constituiu-se como assistente e requereu abertura de instrução, tendo por despacho proferido a 28 de fevereiro de 2019 sido proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução por legalmente inadmissível, tudo conforme termos do documento 5 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 5) No âmbito do processo n.º 105/2020 do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia, intentado pela ré contra o autor, foi proferido despacho a declarar o Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia incompetente em razão da matéria, em função do qual o autor foi absolvido da instância, tudo conforme termos do documento 6 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 6) No âmbito do processo referido em 2), o autor não foi interrogado ou constituído como arguido. 7) Por mais de uma vez, a ré dirigiu-se ao filho do autor dizendo que o pai era um ladrão. 8) O autor é uma pessoa bem vista pelos seus colegas de trabalho, que o têm como respeitável e respeitador.”
O tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos: “3.2 Matéria de facto não provada 9) Para além da queixa crime referida em 2), efetuou ainda a ré queixa nos serviços da A... e ainda queixa por escrito às B..., visando em ambas o autor como responsável pelos danos. 10) O autor vê-se numa situação de extrema intranquilidade, preocupação e, acima de tudo, atentado contra o seu crédito, bom-nome e consideração. 11) Ainda antes de ser promovida a tentativa de conciliação entre as partes no processo n.º 105/2020 do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia, a ré encetou várias acusações verbais ao autor, acusando-o de “ladrão” por se ter intrometido na sua casa e de lhe ter “roubado água, luz e televisão” atentando mais uma vez contra a sua consideração e bom-nome, não se desapossando do elevado tom de voz. 11) No ano de 2018, a ré chamou a polícia tendo nesse seguimento acusado o filho do autor de a ter furtado na sua propriedade, tendo os agentes policiais que tomaram conta da ocorrência considerado que a ré tinha um discurso confuso, aconselhando-a a deslocar-se ao posto de polícia para formalizar a queixa, o que esta não fez. 12) Sente o autor, que desde o momento em que construiu a sua casa naquele local, tem vindo a viver num “inferno” à medida que o tempo foi passando, tudo devido ao comportamento da ré, vivendo num extremo estado de ansiedade, desgosto emocional, frustração e de constante preocupação. 13) A situação escalou de tal forma que o autor sentiu a necessidade de mudar de casa, passando a habitar em .... 14) Todas as vezes que o autor se desloca à sua moradia em ... aos fins-de-semana para estar e alimentar os seus cães, a ré não se inibe nunca de provocar o autor. 15) Por força dos comportamentos da ré, a situação económica do autor foi afetada, tendo o autor pago 3.470€ em taxas de justiça, custas judiciais, honorários e obtenção de documentação” *** Apreciando e conhecendo. Em função do acima enunciado cumpre em primeiro lugar aferir se a decisão de facto merece censura. Para o efeito, aferindo-se previamente se foram observados os ónus de impugnação e especificação de que depende a sua reapreciação. A regularidade da impugnação da decisão de facto, depende obrigatoriamente e sob pena de rejeição, da observância por parte do(s) recorrente(s) da especificação dos seguintes elementos (vide artigo 640º n.º 1 do CPC): “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que as conclusões têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC. Pelo que das conclusões é exigível que conste, no mínimo, de forma clara quais os pontos de facto que o(s) recorrente(s) considera(m) incorretamente julgados, sob pena de rejeição do objeto do recurso nessa parte. Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório. Assim tem vindo a ser decidido de forma reiterada pela jurisprudência, como o denota o decidido nos seguintes Acs.: - Ac. STJ de 17/11/2020, nº de processo 846/19.6T8PNF.P1.S1 onde se afirma, tal como consta do sumário “I - A especificação dos concretos pontos de facto [impugnados] deve constar das conclusões recursórias, posto que estas têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte.”; - Ac. STJ de 09/02/2021, nº de processo 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1 do qual se extrai idêntico entendimento. Vide ponto III do sumário “III - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões- Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil., pág. 165.” Da respetiva fundamentação se extraindo o reiterado entendimento do STJ – de acordo com as múltiplas decisões no mesmo convocadas – de que a completa omissão nas conclusões dos “concretos pontos de facto que no entender dos apelantes impõem decisão diversa da recorrida” implica o entendimento da não observância dos ónus de alegação impostos pelo artigo 640º nº 1 do CPC. Convocando ainda na doutrina Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 165, “em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” e acrescenta “são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões” e reafirma na nota 274, a págs. 168 que “ainda que não tenha utilizado no art. 640 uma enunciação paralela à que consta do nº 2 do art. 639 sobre o recurso da matéria de direito, a especificação nas conclusões dos pontos de facto a que respeita a impugnação serve para delimitar o objeto do recurso”; - Ac. STJ de 25/03/2021, nº de processo 756/14.3TBPTM.L1.S1, no qual (e citando diversa jurisprudência no seu sentido decisório) se realçou recair sobre o recorrente a observância do ónus primário de impugnação que corresponde às exigências do nº 1 do artigo 640º do CPC sob pena de imediata rejeição do recurso, sem lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, na medida em que delimitam o objeto do recurso e fundamentam a sua impugnação; exigências estas “decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso” e não “alheias também ao princípio do contraditório, pois destinam-se a possibilitar que a parte contrária possa identificar, de forma precisa, os fundamentos do recurso, podendo assim discretear sobre eles, rebatendo-os especificadamente”; reafirmando-se ser “entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme que, nas conclusões das alegações, que têm como finalidade delimitar o objeto do recurso (cfr. n.° 4, do art.° 635°, do CPC) e fixar as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso, como a lei adjetiva comina no n°1, do art.° 640°.”; Mais recentemente - Ac. STJ de 27/04/2023, nº de processo 4696/15.0T8BRG.G1.S1, onde e reiterando o mesmo entendimento se sumariou “A não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte.” [ todos in www.dgsi.pt ]. Tendo este entendimento sido confirmado pelo decidido no AUJ 12/2023 de 17/10, publicado in DRE 1ª S de 14/11/2023, onde e a propósito do ónus exigido na al. c) do nº 1 do artigo 640º do CPC, se uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.” Analisando as extensas conclusões de recurso do recorrente que na verdade são uma quase reprodução do corpo alegatório, não é possível das mesmas destrinçar o cumprimento do ónus exigido por esta al. c) do nº 1 do artigo 640º do CPC por parte do recorrente. Não indicou o recorrente e de forma inequívoca, como lhe incumbia, qual o sentido decisório pretendido. Nem nas alegações mencionadas, nem no corpo alegatório que as precedeu. Resulta clara a motivação da discordância quanto ao decidido. Contudo em momento algum indica o recorrente – apesar de estar obrigado a fazê-lo e de forma inequívoca – qual o sentido decisório que entende dever ser conferido aos pontos factuais que impugnou, concretamente os pontos factuais 9, 10, 12 e 13 indicados na conclusão LXII. Ainda o ponto factual 11 a que alude na conclusão XLIX e o ponto factual 15 que aludiu, ainda que de forma indireta por remissão para o corpo alegatório, na conclusão XXVII. A inexistência de indicação inequívoca da decisão alternativa pretendida aos pontos factuais impugnados pelo recorrente, quer nas conclusões quer no corpo alegatório, implica a rejeição da reapreciação da decisão de facto, tal como decidido no AUJ 12/2023 de 17/10. Tanto é quanto baste para que se julgue rejeitado o recurso da decisão de facto. O que assim de decide. * Do direito. Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito, tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC]. Ao pedido indemnizatório formulado pelo autor subjaz a invocada responsabilidade civil emergente da prática de facto ilícito que o mesmo imputou à recorrida. Ainda e como fundamento da mesma pretensão indemnizatória, atuação em abuso de direito imputada à R.. Da factualidade que vem provada e a esta nos temos de ater para apreciação da pretensão formulada pelo recorrente, temos como provado que a recorrida apresentou queixa contra o autor recorrente por “suspeitar” que o mesmo teria praticado os factos descritos em 2) dos factos provados. Tal queixa deu origem a um inquérito que viria a merecer despacho de arquivamento - vide facto provado 3). Do qual a aqui R. requereu ainda abertura de instrução, rejeitada por “legalmente inadmissível” – vide facto provado 4[1]. Não tendo o aqui recorrente/autor chegado a ser interrogado ou constituído como arguido no âmbito deste processo – vide facto provado 6. Vem ainda provado que a aqui R. intentou ação contra o aqui A. nos Julgados de Paz de VNG. Ação que veio a findar por aquele tribunal se ter considerado incompetente em razão da matéria[2]. No que às demandas processuais de que o autor foi alvo a impulso da R. respeita, nada mais vem provado. A R., por seu lado, defendeu-se invocando “integrar a apresentação de queixa-crime no decurso do processo assim desencadeado, ou mesmo a petição em sede de julgado de paz, o conteúdo do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, tais atos só podem ser considerados ilícitos, para o efeito de gerar responsabilidade civil extra obrigacional, se as circunstâncias do caso permitirem concluir que os mesmos consubstanciaram um exercício abusivo do referido direito”.
O acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos é um direito consagrado constitucionalmente, tal qual resulta do nº 1 do artigo 20º da CRP, convocado pela recorrida na sua defesa. O direito à ação não se confunde com o direito/pretensão que através de tal ação se pretende salvaguardar. O direito substantivo que através do direito processual se pretende ver reconhecido é do mesmo autónomo. E do não reconhecimento da pretensão substantiva não deriva automaticamente a ilicitude do exercício do direito de ação. Tal ilicitude quando invocada como fundamento de pretensão indemnizatória, tem de encontrar o seu fundamento numa atuação processual cujos efeitos transcenderam os autos em que se colocou a questão, fundada numa “culpa in agendo” ou no instituto do abuso do direito. A este último se associando ainda o conceito da litigância de má-fé, o qual sanciona a atuação processual nas situações previstas no artigo 542º nº 2 do CPC. Tal como afirmado no Ac. TRP de 24/11/2016, nº de processo 982/14.5T8PRT.P1, publicado in www.dgsi.pt: “Admitida a autonomia do direito da ação, que só por si não funciona como uma causa de exclusão da ilicitude, podendo ser exercido contra a lei, a doutrina e a jurisprudência mais recentes têm agrupado tais situações sob dois temas jurídicos essenciais: a) O exercício abusivo dentro dos contornos da cláusula geral do abuso de direito (art.º 334º do Código Civil) -- é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito --- de que a litigância de má fé é um afloramento; e b) Responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo, pressupondo que a atuação processual ilícita sancionada tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se coloque, destacando-se a culpa por danos patrimoniais prolongados (de que é exemplo o art.º 374º, nº 1), por danos morais e por atuações processuais complexas ou com intervenção de terceiros. Em qualquer caso, a ação em que foram praticados os atos danosos há de mostrar-se decidida com trânsito em julgado.” Acresce, por em causa estar uma atuação que o recorrente autor imputou à R. violadora do seu direito ao bom nome e reputação (vide artigo 484º do CC), recair sobre o mesmo a prova dos factos constitutivos da responsabilidade que alega, por inexistir presunção de culpa (vide artigo 487º do CC). Veja-se neste sentido o decidido no Ac. TRL de 13/07/2010 (também citado no acima mencionado Ac. TRP), nº de processo 1259/08.0TVLSB.L1-8 publicado in www.dgsi.pt., no qual se concluiu (convocando ainda na doutrina Menezes Cordeiro Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa in Agendo, p. 138): “A responsabilidade civil pode ocorrer no âmbito da litigância de má fé ou a responsabilização do agente pode ser o epílogo normal daquele que abuse do direito de ação. Porém, independentemente da verificação de qualquer uma daquelas figuras, o exercício do direito de ação pode envolver responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo. Qualquer direito subjetivo pode ser exercido de forma ilícita, por implicar a violação direta, necessária, eventual ou negligente de outras normas. Segundo Menezes Cordeiro[…], o exercício do direito de ação pode implicar: a) uma violação contratual; b) a violação de direitos subjetivos; c) a violação de normas de proteção. O primeiro caso sucede quando a violação do direito de ação traduza a inobservância de um pactum de non petendi ou de uma convenção arbitral. A culpa in agendo resultará, então, do incumprimento de um contrato, pelo que regerá aqui a responsabilidade contratual (artºs 798º e seguintes do Código Civil). A violação de direitos subjetivos cai sob o artº 483º nº 1 do Código Civil. Pode ocorrer, por exemplo, a violação: do direito ao bom-nome e reputação (uma ação caluniosa); do direito ao património e à iniciativa económica (um pedido de insolvência sem que se verifiquem os pressupostos legais, mas que conduza à total paragem da entidade requerida; do direito de propriedade (qualquer invocação que o contradiga, impedindo o seu pleno desfrute). Também a violação de normas de proteção cai na alçada do citado artº 483º nº 1. Nas duas últimas hipóteses acima referidas, enquadráveis na responsabilidade aquiliana, não há presunção de culpa, cabendo ao interessado alegar e provar todos os factos constitutivos da responsabilidade (cfr. artº 487º, nº 1 do CC).” Como já referido, sendo fundamento da pretensão indemnizatória do autor a violação do seu direito subjetivo ao bom nome e reputação, incumbia ao mesmo fazer prova dos factos constitutivos da responsabilidade imputada à R.. Desde logo uma atuação ilícita e culposa imputável à aqui R.. Ora da factualidade que vem provada, nada mais se retira que não seja a apresentação de uma queixa crime deduzida contra o aqui A. e uma posterior instauração de uma ação nos julgados de paz, na qual o aqui A. veio a ser absolvido da instância por incompetência daquele tribunal em razão da matéria. Quanto à queixa crime, tendo ainda merecido decisão de arquivamento e rejeição de abertura de instrução por inadmissibilidade legal. Queixa crime na qual o autor sequer foi ouvido, o que em sede danosa afasta, perante a ausência de outra factualidade, a própria transcendência dos danos. De qualquer modo e prévio à análise dos danos, não nos permitem os factos apurados concluir pela demonstração de uma atuação da R. que extravase o seu próprio direito à ação, no âmbito da qual não lhe foi reconhecido o seu próprio direito subjetivo. Para o que desenvolveu as instâncias tidas por pertinentes e de acordo com os meios processuais que entendeu ter ao seu dispor. Desta improcedência não decorre a demonstração de uma atuação por parte da R. que exceda o exercício normal do seu próprio direito subjetivo, manifestado nas instâncias acima assinaladas, para efeitos de integração da sua conduta numa atuação ilícita e culposa. Nada se extrai quer quanto a uma eventual atuação com conhecimento da sua falta de razão ou intenção de afetar o autor. Fazendo uso da própria citação do recorrente [vide conclusão LXXXV]: “A sujeição à ação é o preço a pagar pelo direito de ação (…). Todavia: terá de haver limites. Uma pessoa, guiada por simples malquerença, pode provocar danos incomensuráveis a outra, invocando o seu direito de ação. Repare-se: uma ação judicial pode ser intentada com fundamentos consabidamente falsos, que demorem anos a esclarecer; durante todo esse tempo, a pessoa demandada irá suportar despesas, incómodos e, eventualmente, danos morais da maior gravidade. A sentença a final, por justa e cortante que possa surgir, não altera o passado nem suprime o sofrimento que já tenha sido infligido. Haverá, certamente, um caminho de Direito positivo, para resolver tal problema, respondo a Justiça.” – MENEZES CORDEIRO, ANTÓNIO em “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO E CULPA “IN AGENDO””, 3ª edição aumentada e atualizada, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, pág. 38.” É a falta de razão consabidamente falsa imputável à aqui R. que ficou por demonstrar. E nesta perspetiva tem de improceder a pretensão indemnizatória do aqui recorrente de improceder, por referência à culpa in agendo ou ao abuso de direito.
A pretensão indemnizatória do aqui recorrente fundou-se ainda em danos não patrimoniais decorrentes das palavras que a R. dirigiu ao filho do aqui A. e que vêm provadas em 7 – “por mais de uma vez a ré dirigiu-se ao filho do autor dizendo que o pai era um ladrão”. Mais vindo provado que o autor “é uma pessoa bem vista pelos seus colegas de trabalho, que o têm como respeitável e respeitador” – fp 8. Acresce vir ainda não provado, que o A. se vê “numa situação de extrema intranquilidade, preocupação e acima de tudo, atentado contra o seu crédito, bom nome e consideração”, bem como que o autor, devido ao comportamento da Ré vive “num extremo estado de ansiedade, desgosto emocional, frustração e de constante preocupação”. Expressou o tribunal a quo o entendimento de que esta factualidade apurada não era merecedora de tutela jurídica por referência ao previsto no artigo 496º do CC, entre o mais porquanto não mereceu confirmação a alegada “angustia, desespero, perturbação e mudança de vida que alegava o autor, nem tampouco parecendo ser de aceitar por critérios de normalidade que assim pudesse suceder.” Decorre do artigo 70º do CC a consagração da proteção legal (em sede civil) dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, consonante com a consagração constitucional dos direitos pessoais elencados nos artigos 24º e segs. da CRP e no que ora releva com o direito ao bom nome e reputação elencados no seu artigo 26º. E em sede de responsabilidade civil a violação de tais direitos confere ao lesado (pessoa singular ou coletiva) o direito de demandar aquele que “afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome (…) pelos danos causados” (artigo 484º do CC). O direito à honra, enquanto direito subjetivo absoluto encontra assim a sua tutela nos citados preceitos legais. A imputação a um indivíduo de uma conduta desprimorosa, ou contrária aos princípios por que um cidadão se deve reger na sua relação quer com os outros quer com a sociedade em geral, apta a afetar o prestígio do mesmo perante terceiros ou o amor-próprio do visado pode ser atentatória da honra dessa pessoa[3]. Sendo a afirmação “falsa, tendenciosa ou incompleta (…) particularmente indicada para atingir a honra”[4]. E uma vez atingida a honra, pode a conduta geradora de tal violação determinar danos quer patrimoniais quer não patrimoniais que e quando – estes últimos – sejam suficientemente graves, justificam a tutela jurídica em sede indemnizatória, tal como o preceitua o artigo 496º do CC: (nº1) “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”. Embora a imputação ao autor da conduta que vem apurada seja, de acordo com as regras do normal comportamento e atuação entre cidadãos que se devem respeito e em especial entre vizinhos, potencialmente atentatória da sua honra e bom nome, facto é que e quanto à afetação do autor recorrente e respetiva gravidade que tal atuação assumiu, vem não provado que o A. tenha perante a atuação da R. se sentido afetado, desgostoso, sequer preocupado. O mesmo é dizer que no caso concreto não vem provado sequer o efetivo dano que pela sua gravidade pressupõe a indemnização peticionada. Dano que não pode posteriormente por via da presunção simples, natural ou judicial dar-se como verificado, quando em sede factual a matéria que visava demonstrar já mereceu resposta negativa[5]. Da não demonstração do dano e respetiva gravidade perante o autor, resulta não demonstrada a necessidade da compensação que a indemnização assumiria. Implicando também a improcedência da pretensão do recorrente neste campo. Do exposto, conclui-se pela total improcedência do recurso apresentado pelo recorrente autor. * *** III. Decisão. Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente a presente apelação consequentemente se mantendo a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. *** Fátima Andrade José Eusébio Almeida Mendes Coelho ________________ [1] Do despacho liminar de rejeição junto com a p.i. extrai-se que a rejeição do requerimento de abertura de instrução se fundou no não cumprimento das imposições legais mencionadas em tal decisão, “nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação”. [2] Tal como consta da decisão cuja cópia foi junta aos autos com a p.i., a decisão de incompetência fundou-se na prévia existência de participação criminal e subsequente decisão do seu arquivamento, atento o previsto no artigo 9º nº 2 da Lei 78/2001 de 13/07 na redação em vigor à data da decisão (Lei que regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência.). [3] A. Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil, Vol. I, Parte Geral – T III, 2004, p. 149 e tendo como pressuposto que o “Direito Civil procura a felicidade das pessoas” e nunca “poderá contemporizar com maldade gratuita” refere que mesmo a afirmação verdadeira pode atentar contra a honra das pessoas, porquanto nem tudo o que sucede existe ou se faz tem de ser revelado, havendo um juízo de oportunidade a fazer. Podendo a imputação de um facto a um cidadão no contexto ser “minimizante da sua consideração ou do amor-próprio do visado”. [4] O mesmo autor in ob. cit., p. 149. Também Maria Manuel Veloso in “Danos Não Patrimoniais” - Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III, 2007, págs. 501-508, afirma (p. 505) que “Danos consequentes a lesões de bens da personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves (…)”. [5] Cfr. o decidido no Ac. TRL de 03/11/2009, nº de processo 1448/05.0TCLRS.L1-1 in www.dgsi.pt e jurisprudência e doutrina no mesmo citada sobre este aspeto. |