Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL PEIXOTO PEREIRA | ||
| Descritores: | REAPRECIAÇÃO DA PROVA PROVA DO PAGAMENTO | ||
| Nº do Documento: | RP20240606197/22.9T8PVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 06/06/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A reapreciação da prova implica a consideração dos meios de prova indicados pela partes e o confronto com outros meios de prova disponíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido. II - O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. III - Não há qualquer norma legal que imponha uma forma, mormente escrita ou documental, para a prova ou demonstração do pagamento, com o que admissível por qualquer meio de prova, inclusive testemunhal e por declarações. IV - A ausência de prova documental do pagamento não se constitui, pois, como impedimento à aquisição deste, conquanto outros meios de prova o tenham caracterizado com a certeza indiciária requerida, que vem a sê-lo de uma probabilidade muito qualificada. (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 197/22.9T8PVZ.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 3
Relatora: Isabel Peixoto Pereira 1º Adjunto: António Paulo Aguiar Vasconcelos 2º Adjunto: Isabel Silva
* Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I. A... SPRL – Sucursal em Portugal, veio propor acção declarativa, com processo comum, contra B... Unipessoal, Lda. e AA, pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento de €300.000,00, acrescidos de juros vencidos desde Janeiro de 2021, até à propositura da acção, no montante de €21.172,60, e juros vincendos, desde aí, até integral pagamento, ou, subsidiariamente a condenação dos réus a entregar à autora os veículos automóveis melhor identificados na petição inicial, no prazo de 30 dias após a citação, e em sanção pecuniária compulsória no valor de €200,00 por cada dia de atraso na entrega. Para tanto alegou em suma ter celebrado com os réus contratos de compra e venda tendo por objecto veículos automóveis que melhor identificou. Interpelados, os réus não procederam ao pagamento dos preços acordados. Os réus mantêm na sua posse diversos veículos cujo registo de propriedade é titulado pela autora. Contestou a ré impugnando diversa factualidade e conclusões de direito, e excepcionando ter pago o preço de todos os veículos que adquiriu à autora. Requereu a condenação da autora como litigante de má-fé, em multa processual e indemnização pelos honorários do seu ilustre advogado. A final foi proferida sentença, a qual julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido, mais tendo havido por improcedente a reclamada pretensão de condenação da A. como litigante de má fé. Da decisão final absolutória veio interpor recurso a Autora, mediante as seguintes conclusões: 1. O douto Tribunal “a quo” não fez uma análise criteriosa e rigorosa das provas documentais e testemunhais bem como dos normativos legais aplicáveis ao presente caso, na verdade, descurou-os por completo. 2. Como tal, existe erro de julgamento grave e grosseiro, por evidente erro na apreciação dos normativos legais a aplicar ao caso concreto. 3. Mormente, houve errada apreciação dos pressupostos que envolvem a figura jurídica do enriquecimento sem causa, que não foram devidamente aplicados/fundamentados. 4. E ainda do dispositivo legal previsto no art.º 1311.º do CPC, cujos requisitos essências se encontram verificados e demonstrados. 5. Por este motivo, a ação interposta contra a Recorrida não podia, sem mais, ser julgada improcedente, sob pena de provocar (como já provocou) enriquecimento sem causa na esfera jurídica da Ré em manifesto prejuízo da Autora. 6. Mais, cumpre reafirmar que a Recorrida sempre teve conhecimento que não efetuou o pagamento total dos veículos que (aparentemente) adquiriu à Autora, e que ainda tem na sua posse e não pagos. 7. Este suposto pagamento nunca foi provado pela Ré, pelo que o Tribunal “a quo” não considerou, como está obrigado, “in casu”, a inexistência de prova documental que suporte a “tese” da Ré em como efetuou o pagamento daquelas viaturas. 8. Em Direito, o pagamento não se presume. 9. O ónus da prova cabia, como cabe à Ré e esta não logrou provar os pagamentos. 10. Está provado que os veículos estão no stand da Ré, como provado está que a Ré os não pagou. 11. Finalmente, deve ainda ser alterada a resposta à matéria de facto, alínea e) dos factos provados para facto não provado e os factos não provados A) e B) para factos provados. 12. Com esta alteração/modificação da resposta à matéria de facto, a sentença deverá ser também alterada por forma a julgar a ação totalmente procedente por provada. Face ao supra exposto, deve a sentença ora em “crise” ser revogada, uma vez que violou os dispositivos legais previstos nos artº 615º nº 1 al. b), c) e d), artº 1311º ambos do CPC e arts. 341º, 342º, 373º, 376º e 473º e ss. todos do CC e substituída por uma nova decisão, que julgue inteiramente procedente por provada a demanda da Autora. Não foram apresentadas contra-alegações. II. Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), a primeira questão a afrontar vem a ser, em face das conclusões acime reproduzidas, a da suficiência do recurso em sede de impugnação da matéria de facto. Conforme resulta do disposto no artigo 639º, n.º 1 do CPC, o recurso de uma decisão jurisdicional passível de apelação, para integrar uma impugnação válida e regular, implica a observância de dois ónus: - o de alegação, no cumprimento do qual ao apelante cabe analisar e criticar a decisão recorrida, assacando as deficiências ou erros, sejam de facto e ou de direito, de que, na sua perspectiva, padece a decisão, arguindo e postulando as razões em que se baseia para divergir em relação à decisão proferida. O ónus de alegação satisfaz-se através da exposição circunstanciada das razões de facto [incluindo a eventual impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido] e de direito da divergência do apelante em face do julgado, colhendo, pois, nesse contexto, a invocação da doutrina e da jurisprudência que suporta a posição do apelante e que justifica, a seu ver, a alteração face ao decidido. Trata-se, pois, de o recorrente explicitar, de forma mais ou menos desenvolvida, os motivos da sua impugnação da decisão proferida, explicitando as razões por que entende que a decisão recorrida é errada ou injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e a aplicação do direito, para além de especificar o objetivo que visa alcançar com o recurso. - o de conclusão, que se traduz na necessidade de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões. Nestas, cabe ao apelante resumir ou condensar os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo. Como longinquamente já referia Alberto dos Reis[1], “ a palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: Que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta.” Todavia, como salienta ainda o mesmo Ilustre Professor, “ para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.” No mesmo sentido se pronunciam Amâncio Ferreira e Aveiro Pereira, salientando este último que as conclusões das alegações são as “ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida.”[2] No nosso sistema de recursos incide sobre o recorrente um específico ónus de impugnação da decisão recorrida, não lhe sendo lícito limitar-se a recolocar à apreciação do tribunal superior, em termos globais e sincréticos, a situação litigiosa, devendo, por isso, especificar nas conclusões da sua alegação quais as questões a decidir, especificando os pontos de facto de cujo julgamento discorda (se a impugnação se dirigir à matéria de facto) e as precisas questões de direito que, por terem sido, na sua óptica, incorrectamente decididas pelo tribunal a quo, pretende que sejam reapreciados pelo tribunal ad quem. É essa função essencial das conclusões, como enunciado sintético das questões que integram o objecto do recurso, definindo o preciso âmbito da impugnação deduzida, seja pela especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, seja pela especificação das normas ou interpretações normativas que tem por violadas, delimitando, assim, o objecto da actividade jurisdicional do tribunal hierarquicamente superior, ou seja o “thema decidendum”[3]. Resulta já do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que «[q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas». Estatui, por seu turno, do n.º 2 do mesmo artigo, que«[n]o caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.» Da conjugação dos citados preceitos legais, resulta que impende sobre o recorrente o ónus a que se reporta o art.º 639º do CPC, e que é o de, na interposição de qualquer recurso, apresentar a sua alegação, na qual deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, a que acresce o ónus previsto no art.º 640º, estabelecido especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão relativa à matéria de facto. Nestas circunstâncias, exige-se do recorrente que dê cumprimento ao ónus de alegação, devendo obrigatoriamente especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Sempre as conclusões de recurso não têm de transcrever ou copiar o que se escreveu no corpo da alegação, mas apenas sintetizar as razões que estão subjacentes à interposição do recurso, tanto mais porque são elas que definem o objeto do recurso, conforme resulta do disposto no art.º 635.º, n.º 4, do CPC. Temos entendido que o conjunto de exigências do citado artigo 640º do CPC, quanto ao recurso em matéria de facto, se reporta especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Deste modo, com excepção dos pontos de facto considerados incorretamente julgados que devem estar nas conclusões, o cumprimento dos demais ónus impostos pelo art.º 640.º do CPC, pode ser efetuado no corpo da alegação. Não significa isto, no entanto, que o recorrente esteja dispensado de fazer referência nas suas conclusões à indicação dos pontos de facto que pretende ver modificados. Na verdade, integrando o recurso a impugnação da matéria de facto, esta terá necessariamente de ter expressão nas conclusões das alegações, as quais devem, por tal motivo, conter os elementos suficientes para que a reapreciação da matéria de facto faça parte do objeto do recurso. O recorrente deve, pois, fazer alusão à questão que pretende ver apreciada, indicando resumidamente os pontos concretos que pretende ver reapreciados, sem necessidade de transcrever (ou copiar) o que a respeito se escreveu no corpo da alegação sobre a matéria, de modo a que da leitura das conclusões resulte inequívoco que o recorrente pretende impugnar o julgamento da matéria de facto. Tem sido este o sentido seguido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, conforme decorre de forma clara no acórdão de 01.10.2015[4] onde se pode ler o seguinte: «Sem dúvida que o Novo Código de Processo Civil – tal como o anterior já o fazia – trata com rigor o ónus de alegação a cargo do Recorrente e mais ainda quando se trata de impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos que constam do art. 640º. E a nova alínea c), introduzida no seu nº 1, não veio alterar, nesta parte, a jurisprudência citada. Mas o exercício desse ónus não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado na respectiva motivação. O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC. A saber: a concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, a especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa e a decisão alternativa que é pretendida. Na verdade, sendo as conclusões uma súmula e síntese da indicação dos fundamentos por que se deduz a impugnação relativa à matéria de facto, deixariam de ter esse cunho se o Recorrente tivesse que inserir e especificar detalhadamente, em sede conclusiva, todos os elementos que compõem a impugnação e que se mostram enunciados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 640º do NCPC, com a repetição exaustiva da fundamentação desenvolvida ao longo do conteúdo das alegações. Seguramente que nas conclusões o Recorrente deve indicar os pontos da matéria de facto que pretende ver modificados, ónus que verdadeiramente permite circunscrever o objecto do recurso no que concerne à matéria de facto. Mas já não se compreende que uma tal exigência vá ao ponto de demandar de novo, em sede de conclusões, a sustentação da pretensão modificativa e a indicação repetitiva dos meios de prova em que é sustentada a pretensão.» Em síntese, as conclusões devem informar o julgador das questões sobre que incide o recurso, pelo que, versando este sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, bastará fazer alusão nas conclusões aos pontos de facto impugnados e só a completa omissão destes elementos poderá precludir o conhecimento dessa questão. Daí que, conforme explica Abrantes Geraldes[5], a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto só se deva verificar em alguma das seguintes situações: «a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b) Falta de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação; f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos.» Em conclusão, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador. Assim, como salienta Abrantes Geraldes[6] o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”.[7] Neste sentido, mais recentemente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, de 14 de novembro, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65. Julga-se, pois, que as alegações da Recorrente consubstanciam a totalidade dos requisitos formais para a impugnação da matéria de facto. No caso em apreço, a recorrente, cumprindo os apontados requisitos formais, pretende a alteração da factualidade dada como assente e não assente, de modo a ser retirado/excluído do elenco da matéria de facto “Provada” elencada na alínea e) e passando a incluir-se no elenco da matéria “não provada” e, por outro lado, a consideração dos factos sob A) e B) do elenco dos indemonstrados como factos assentes ou demonstrados, como sustenta na conclusão das alegações respectivas. Outrossim no corpo daquelas alegações se reconduz aos meios de prova que, em seu entender, implicam a alteração que reclama. Possível, consequentemente, o conhecimento do recurso em matéria de facto. Donde, o objecto da apelação se reconduz: * a) Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pela recorrente, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise. Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[8], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia. «Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente. Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada. Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova[9], princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil.[10]» (Acórdão do STJ de 12.11.2020, Relator: Oliveira Abreu, na base de dados da dgsi.) De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil). Como refere Miguel Teixeira de Sousa[11], a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.” Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. «Todavia, face aos actuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha. Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição. Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.[12]» (sic. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.03.2021, Relator: Barroca Penha, acessível no mesmo sítio) Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.[13] Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pela recorrente. É a seguinte a matéria de facto provada e não provada: Factos Provados a) A ré B... dedica-se à comercialização, compra e venda de veículos usados, e o réu AA é o seu gerente; (art. 3.º da petição) e) A ré B... pagou à autora a totalidade do preço das vendas descritas em c). (arts. 31.º e 34.º da petição inicial) * FACTOS NÃO PROVADOS A) Que autora e ré tivessem acordado na compra e venda dos demais veículos elencados no documento n.º 4 junto com a petição (fls. 16, verso), pelos preços aí indicados (art. 33.º da petição inicial). B) Que os réus tenham na sua posse veículos automóveis com inscrição de propriedade titulada pela autora (art. 37.º da petição inicial). * Impõe-se, pois, a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto, na parte objecto de impugnação, procedendo-se, para tanto, à audição da gravação dos depoimentos prestados em audiência com relevância para esse reexame, tendo-o sido não apenas os invocados pelo recorrente, como, decisiva e imprescindivelmente, aqueles usados na fundamentação da decisão recorrida para justificar a aquisição probatória dos factos havidos como provados e que a recorrente entende não o poderem ser. Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 23-02-2023, proc. n.º 30/21.9T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt: «[…] Os artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil mandam que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova. Todavia, não existe entre nós norma ordinária ou constitucional que se pronuncie sobre o que deve ser entendido por dúvida, rectius, por dúvida relevante para fazer operar essa consequência. A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade. Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível. Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção. Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam. […] a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correcto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exactas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida. Quando os factos têm intervenção humana ou resultam de acções humanas é necessário atentar que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objectivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal. Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende. […] Nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita. À outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso. Isso mesmo resulta do artigo 346.º do Código Civil segundo o qual à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos e se o conseguir, rectius, se lograr criar dúvidas sobre a verificação dos factos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova. Por conseguinte, o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário. Desse modo, na nossa leitura, numa situação como a que nos ocupa, não existe meio de prova que seja, pela sua própria natureza, isto é, abstractamente, mais valioso que outro, e todos se encontram sujeitos não apenas à livre apreciação do tribunal, como, sobretudo, aos critérios racionais de avaliação epistemológica do seu valor probatório relativo.» Desde logo, não assiste razão à recorrente quanto à necessidade de prova apenas documental do pagamento havido por demonstrado. Reconheça-se ser o recibo de quitação a prova mais comum do pagamento no relacionamento comercial entre empresas, como é o caso… Ou, ao menos, a prova documental de transferências bancárias ou cheques (e respectiva boa cobrança). Contudo, não há qualquer norma legal que imponha uma forma, mormente escrita ou documental, para a prova ou demonstração de um pagamento, com o que admissível por qualquer meio de prova, inclusive testemunhal e por declarações. A prova por testemunhas (e por declarações) é admissível em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada – art. 392º, do CCivil. Apenas se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admissível prova testemunhal – nº 1, do art. 393º, do CCivil. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares enunciados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores – nº 1, do art. 394º, do CCivil. Há factos para cuja prova não se admite o depoimento de testemunhas, como é o caso dos factos para cuja prova só pode ser feita por documentos, ou de factos contrários a outros, constantes em documentos ou complementares destes[14]. O artigo aplica-se, apenas, às convenções contrárias aos documentos na parte em que estes não têm força probatória plena e às convenções adicionais ou acessórias, como lhes chama o art. 221º, do CCivil.[15] O objectivo será o de afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal seria susceptível de originar - quando uma das partes (ou ambas) quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio, poderia socorrer-se de testemunhas, destruindo mediante uma prova extremamente insegura a eficácia do documento[16]. Houve-se como provado que a Ré pagou o preço das viaturas facturadas/vendidas pela Autora, encontrando-se liquidada a totalidade dos valores relacionados ao preço dos veículos demonstradamente fornecidos. Para prova do pagamento, o tribunal “a quo” fundamentou a sua convicção no depoimento da testemunha que foi o procurador da Autora e nas declarações do gerente da Ré, com conhecimento directo por serem as pessoas que profissionalmente trataram deste assunto, conjugado com a prova documental junta, ainda quando tenha de concluir-se que os elementos feitos constar da contabilidade da Autora foram manipulados pelo mesmo procurador e não traduzem a totalidade dos factos que ele mesmo atestou... A força probatória dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal – arts. 396º, do CCivil e 655º, n.º 1, do CPCivil, que os valorará tendo em conta todos os factos que abonam ou, pelo contrário, abalam a credibilidade da testemunha ou da parte, quer por afectarem a razão de ciência invocada pela testemunha, quer por diminuírem a fé que ela possa merecer (art. 640º, do CPCivil), e no confronto com todas as outras provas produzidas (art. 655º/1; em especial, art. 642º, do CPCivil).[17] Ora, desde logo, inexiste documento que inviabilize a produção de prova testemunhal acerca de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento, razão pela qual, é inaplicável o disposto no nº 1, do art. 394º, do CCivil. Como tal não se prefiguram sequer as facturas emitidas pela Autora, que não se constituem como um documento de formalização do contrato de compra e venda, antes como um documento para efeitos fiscais e da responsabilidade/lavra do emitente. Assim, sendo admissível a produção de prova testemunhal para fazer prova do pagamento dos negócios de compra e venda[18], o tribunal valorou livremente os respectivos depoimentos, e considerou provada tal matéria. Obviamente que não se desconhece a norma legal quanto à proibição do pagamento em dinheiro ou numerário de quantias acima de um determinado montante e a infracção fiscal que lhe corresponde… Contudo, é uma realidade indesmentível e notória a manutenção da existência de pagamentos em dinheiro, apesar daquela proibição, à qual, legalmente, não corresponde outra sanção que não o ilícito tributário; mormente não se estabelecendo, compreensivelmente aliás, uma qualquer limitação ou exclusão probatória do pagamento. A ausência de prova documental do pagamento não se constitui, pois, como impedimento à aquisição deste, conquanto outros meios de prova o tenham caracterizado com a certeza indiciária requerida, que vem a sê-lo de uma probabilidade muito qualificada. Os depoimentos testemunhais convocados, do contabilista e do actual gerente da Autora, manifesta e evidentemente não atestam a falta de um tal pagamento. Limitam-se a constatar a inexistência de prova documental/contabilística do mesmo…ainda que por entregas em dinheiro… Como é bom de ver, tendo a acção tido origem na detecção de comportamento irregular, rectius, com relevância criminal pelo procurador da Autora, [o qual, de forma não escamoteável, acabou por corroborar a “versão” do legal representante da Ré quanto ao pagamento], manifestamente que a ausência de confirmação contabilística do pagamento mediante entregas em dinheiro não tem a significação imediata que a Autora reclama… Ainda menos a tem a atestação de uma situação patentemente distinta da convocada pela Ré por testemunha dona de outro Stand… Não é a admissão por esta de uma detenção de veículos vendidos pela A. a si sem o pagamento do preço respectivo que sequer indiciariamente corrobora a realidade de uma situação idêntica quanto à Ré. Na situação decidenda, atenda-se, desde logo, à motivação pertinente e cuidada primeira instância, que analisa o tipo de testemunhos alvitrados, a partir ainda dos pontos cristalizados do lastro de coincidência das várias versões e o maior grau indiciário de probabilidade (sobre estes conteúdos, vd. Karl Larenz, "Metodologia da Ciência do Direito", FCG, 2ª edição, 367 e ss.). Reconheça-se/reitere-se que os únicos depoimentos com conhecimento directo e fundado da realidade em apreço o são o do procurador da Autora, DD e do legal representante da Ré, já que, como salientado, a falta de suporte documental de uma realidade não demonstra que ela não tenha acontecido/que se não tenha verificado (sendo da realidade documental e só/apenas o conhecimento convocado pela Recorrente do seu contabilista e do actual gerente/responsável de negócios)… Nessa parte, estando desde logo em causa a assunção de comportamentos próprios, com relevância criminal, assim o recebimento de quantias em dinheiro sem a entrada na contabilidade e na caixa da Autora mesma, não se vê, de acordo com juízos de normalidade e regras da experiência, como pôr em causa a autenticidade ou relevância do depoimento do procurador da Autora… Curiosamente (ou talvez não), a Autora reconduz-se precisamente ao depoimento ou declarações daquele seu procurador, nessa parte sem que se lhe suscitem reservas, quanto ao facto de veículos cujo paradeiro desconhece [sem prejuízo ademais da falta de junção, como referido na sentença recorrida, de comprovação documental, essa sim imprescindível, porquanto em causa um facto registado, da titularidade registada do direito de propriedade sobre parte dos veículos] alegadamente terem sido entregues à Ré… E apenas essa a prova de uma tal realidade, a qual não foi confirmada, desde logo pelo legal representante da Ré ou sequer por outra prova isenta. Nessa parte, de resto, não foram sequer juntas as facturas respectivas… Se as vendas de veículos demonstradamente da autora pela Ré resultaram caracterizadas, não é menos verdade que, como bem se anota, extraindo-se a pertinente relevância em sede de falta de sustentação da alegação da Autora, também resultaram atestadas vendas directamente pelo procurador da mesma Autora de veículos “colocados” (mas não vendidos a esta, como é mister inferir-se) no stand da Ré (assim os depoimentos de EE e FF)… Por isso que absolutamente inviável concluir como o pretendia e volta a requerer a Autora pela venda de outros veículos à Ré, para além dos havidos como provados, nos termos proficientemente explicados na motivação sob recurso. Concorda-se totalmente, por fim, com o raciocínio probatório constante da sentença recorrida, em termos indiciários, no que tange ao modo dubitativo e tão só suspeitoso, sempre em “evolução” a partir da posição e dos meios de prova juntos pela Ré (não revelando uma coerência ou permanência da imputação/alegação ao longo da acção, com espelho quer nos articulados quer na direcção/condução da prova), como a Autora incrimina a Ré pela falta de pagamento de parte do preço de vendas demonstradas (pela admissão pela Ré, desde logo e pelo depoimento de GG, quanto a um único veículo) e a realização de outros negócios quanto aos quais não fez qualquer prova… Na verdade, são já o seu contabilista e o actual responsável quem reconhece que apenas e só as “evidências” (rectius, a falta destas) constantes da contabilidade e, assim, a não tradução dos pagamentos naquela… Ora, contra o seu próprio interesse, o procurador da Autora corroborou/atestou o recebimento da totalidade do preço dos veículos que confirmou terem sido vendidos, sendo que, quanto aos famigerados pagamentos em dinheiro, como também se anota na decisão recorrida, há correspondência electrónica junta aos autos (em data ou ocasião insuspeita) que se lhes refere/alude, com o que corroborada a prova destes. Se a prova reclamasse a certeza absoluta a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça (cf. Prof. Antunes Varela na RLJ 116/339). Importa considerar que a formação da convicção do juiz e a criação do espírito no julgador de que determinado facto ocorreu e de determinado modo, “se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida. Neste sentido Manuel Tomé Soares Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no processo Civil, Revista do CEJ, Dossier temático Prova, Ciência e Justiça - Estudos Apontamentos , Vida do CEJ, Número 3º , 2º Semestre, 2005, pp. 158 e 159. Ensina ainda o prof. Castro Mendes “a convicção humana é uma convicção de probabilidade”; de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente”. Ora, ao contrário do que pretende a Recorrente, os depoimentos testemunhais por si convocados em sede recursiva e a prova documental constante dos autos não infirmam o juízo de probabilidade qualificada da sentença quanto à realidade dos factos sob e). Muito menos conduzem à demonstração daqueles sob A) e B). Quanto ao último, sequer nas alegações de recurso a Autora consegue reconduzir-se a um único argumento probatório relevante, posto que ausente prova documental do registo a seu favor e absolutamente falha prova da posse ou detenção dos veículos pela Ré, já que, reconheça-se, não foi pela Autora feita qualquer diligência de comprovação de uma tal realidade. Tudo para reiterar a correcção do juízo probatório constante da sentença recorrida. b) Na medida da manutenção da matéria de facto, já resulta a improcedência da argumentação da Ré quanto ao aspecto jurídico da causa. De resto, reconheça-se, novamente, a correcção do enquadramento na sentença recorrida, ao invés da “confusão” em sede recursiva mediante o apelo ao instituto do enriquecimento sem causa, cuja aplicação à relação jurídica contratual convocada como causa de pedir não se cogita. Sempre ausente a demonstração da posse ou detenção pela Ré de veículos cujo direito de propriedade se tenha demonstrado sê-lo a favor da Autora, com o que não caracterizados os pressupostos da tutela real/reivindicatória pedida também. Por conseguinte, a sentença recorrida apreciou e aplicou devidamente o direito aos factos provados, pelo que só pode ser confirmada.
III. Pelo exposto, nega-se provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas do recurso pela recorrente. Notifique.
Porto, 06 de Junho de 2024 Isabel Peixoto Pereira António Paulo Vasconcelos Isabel Silva ________________________ [1] Código de Processo Civil Anotado, V volume, 1984, pág. 359. [2] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 167 e Aveiro Pereira, O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, pág. 31, acessível in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf. [3] V., por todos, AC STJ de 6.12.2012, relator LOPES do REGO, disponível in www.dgsi.pt. [4] Proferido no processo 824/11.3TTLRS (Relator: Cons. Ana Luísa Geraldes), disponível em www.dgsi.pt. [5] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2014, pág. 135. [6] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, pág.164. [7] Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165. [8] Ob. citada, págs. 274 e 277. [9] Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.” [10] O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil. [11] Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348. [12] Por todos, o Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, acessível em www.dgsi.pt. [13] Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609. [14] Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, pág. 384. [15]Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 343. [16]Pires de Lima e Antunes Varela, cit., pág. 344. [17] Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, pág. 254. [18] Sobre a liberdade de prova do facto do pagamento, por todos o Ac. do STJ de 12.10.2010, na base de dados da dgsi. |