Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2409/24.5T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS PRIMÁRIO
PROCESSO DE DIVÓRCIO
RUTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO
SEPARAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP202510282409/24.5T8MAI.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para que se possa ter por preenchida a previsão da alínea d) do art. 1781º do Cód. Civil deverá mostrar-se provada uma situação objetiva em que os factos, pela sua gravidade e reiteração, evidenciem a rutura definitiva do casamento.
II – Um divórcio sem consentimento do outro cônjuge pedido ao abrigo da al. d) do art. 1781º do Cód. Civil, fundando-se em factos donde decorra a rutura definitiva do casamento, não pode ser considerado procedente se se provam factos que apenas permitem concluir pela verificação de uma separação de facto por cerca de sete meses.
III – Aceitar que uma situação de separação de facto por cerca de sete meses integre o conceito de “rutura definitiva do casamento”, preenchendo a previsão da alínea d), significa que se estaria a aplicar a alínea a) do art. 1781º de forma menos exigente quanto à duração da separação de facto, introduzindo uma contradição sistemática entre estas duas alíneas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2409/24.5T8MAI.P1

Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores da Maia – Juiz 2

Apelação

Recorrente: AA

Recorrida: BB

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Raquel Lima e João Proença

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

O autor AA intentou a presente ação, sob a forma de processo especial prevista no art. 931º do Cód. Proc. Civil, contra a ré BB, pedindo a dissolução, por divórcio, do casamento entre ambos celebrado.

Alegou, em síntese, que autor e ré casaram um com o outro, no dia 5.4.2017. Há mais de um ano (tomando por referência 27.4.2024), na sequência de desentendimentos constantes e dos gastos excessivos da ré, separaram-se. Deixaram de viver na mesma casa, de tomar refeições em conjunto e de partilhar a mesma cama, situação que se mantém. Não há, da parte do autor, o propósito de retomar a vida em comum.

Concluiu assim haver fundamento para o divórcio.

Frustrada a tentativa de conciliação, a ré contestou dizendo que a separação do casal ocorreu apenas em outubro de 2023 e que não ocorreram os factos relatados pelo autor, pelo que não estão verificados os pressupostos de que depende o divórcio por este pretendido.

Acrescentou que está impossibilitada de trabalhar, por razões de saúde, pelo que, na hipótese de procedência da ação, o autor deve ser condenado a prestar-lhe alimentos, em montante mensal não inferior a 900,00€, o que pediu, em sede de reconvenção.

O autor replicou, dizendo que não há fundamento para a fixação de alimentos, uma vez que a ré aufere rendimentos provenientes do Brasil, que lhe permitem prover ao seu sustento.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual foi admitido o pedido reconvencional formulado pela ré.

Identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.

Por fim, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação, absolvendo a ré do pedido contra ela formulado pelo autor e que não conheceu do pedido reconvencional deduzido a título subsidiário.

Inconformado com o decidido, interpôs recurso o autor que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da Douta Sentença proferida nos presentes autos, que o Tribunal A Quo julgou, salvo o devido respeito, erradamente, pelo que se impõe a modificação da douta decisão.

II. Tem, pois, como objecto essencial permitir a V. Ex.as, Senhores Desembargadores, determinem se a decisão tomada pelo Tribunal A Quo cumpre a lei, e, saber se a decisão foi justa e bem aplicada.

III. O caso que aqui se trata tem a ver com uma acção de divórcio que o A. Intentou contra a Ré nos termos da alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil, no âmbito do qual o A. alegou que cessou qualquer comunhão de vida entre ambos, a partir do momento que o A. foi trabalhar para Angola.

IV. As discussões foram aumentando e a convivência entre o A. e a Ré tornou-se insustentável, passando a ser insuportável viverem juntos.

V. Razão pela qual o A. foi viver para casa dos seus pais, de cada vez que vinha a Portugal.

VI. Não tendo o Autor intenção de manter o vínculo matrimonial ou de restabelecer a vida em comum, tendo originado a rutura definitiva do casamento pelos motivos expostos na petição inicial o A. pediu que fosse decretado o divórcio com fundamento na alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil.

VII. Consta da Sentença, e das próprias palavras do A. e da Ré, tal como se pode verificar na transcrição que: “… o Autor afirmou, de forma perentória, que não quer retomar a vida em comum com a Ré; esta, apesar de não expressar o consentimento à dissolução do casamento, estar ciente que, nas circunstâncias atuais não há condições para que seja retomada a vida em comum, por o A. não o pretender.”

VIII. Impunha-se que o Tribunal A Quo desse como provado os pontos referidos, em i), ii), vii), viii), ix) e x) dos factos não provados, que tais situações geravam discussões intermináveis, e, geraram no A. um mal estar, angústia, provocando um desgaste irremediável na relação conjugal.

IX. E, por isso, deveria o Tribunal A Quo, decretar o divórcio entre o A. e a Ré, até como da forma segura como o A. prestou declarações, tal como consta da sentença “…o Autor afirmou de forma peremptória que não quer retomar a vida em comum com a Ré…”

X. Nos termos da al. d) do artº. 1781º do CC constitui fundamento de divórcio sem consentimento do outro cônjuge “quaisquer outros factos que, independente da culpa dos conjugues, mostrem a rutura definitiva do casamento”.

Segundo Amadeu Colaço, in “Novo Regime do Divórcio”, Almedina, p. 71 – 72 a citada al. d) tem os seguintes elementos:

h) Tem que ser revelada por um ou mais factos;

i) Estes factos terão que ser outros, que não os constantes das demais alíneas do referido artigo;

j) Tais factos terão que ser reveladores da rutura do casamento;

k) Esta rutura terá de mostrar-se definitiva (e não mera rutura esporádica ou temporária);

l) Esta situação terá de consistir numa situação objetiva, passível de ser constatada, não resultando de um simples e mero ato de vontade de um dos cônjuges;

m) Não depende de eventual culpa de qualquer dos cônjuges;

n) Não depende da verificação de qualquer prazo.

XI. Da matéria dada como provada, mormente,

do ponto 8) “Em setembro de 2023 A. e R. trocaram mensagens em que se desentendiam.”;

do ponto 9) “Em Outubro de 2023 o A. enviou uma mensagem à Ré, onde lhe comunicou que queria divorciar-se.”;

do ponto 10) “Quando voltou a Portugal, em Dezembro de 2023, o A. ficou alojado em casa dos seus pais.”;

do ponto 11) “A partir de Setembro de 2023 A. e R. deixaram de tomar as refeições em conjunto.”;

do ponto 12 “Não mantêm relações sexuais entre si pelo menos desde a referida data.”;

do ponto 13) “O A. não quer retomar a vida em comum com a Ré.”,

entende o A. aqui recorrente que só a demonstração de desentendimento entre ambos era motivo mais do que suficiente, para a rutura definitiva do casamento a que alude a al. d) do artigo 1781º do Código Civil, que veio deixar claro que pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as als. a) a c) do mesmo preceito legal, sem o período temporal nelas exigido, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objetiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

XII. Na verdade, o simples facto de o A. passar a ficar alojado em casa dos pais, de deixarem de tomar as refeições em conjunto, de não manterem relações sexuais desde a referida data e de o A. não pretender retomar avida em comum com a Ré é prova mais do que evidente e demonstrativa da sua gravidade e falta e propósito claro de que não existia vida em comum entre o casal, que deveria ter sido apreciado pelo Tribunal.

XIII. Assim, tendo sido feita prova de um dos quatro fundamentos acima mencionados, estavam reunidos os pressupostos para o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.

XIV. Nesta parte os fundamentos do Tribunal A QUO estão em oposição com a sua decisão, e nessa medida, o Tribunal A QUO andou muito mal quando absolveu a Ré, e deveria decretar a dissolução do casamento por divórcio.

XV. A sentença recorrida violou assim por erro de interpretação e não aplicação aos factos dados como provados, as normas constantes dos artigos 1781º, al. d) do Código Civil.

XVI. Ao não dar procedência à ação nos termos expostos, violou o Tribunal “A QUO” o disposto no artigo 1781º, al. d) do CC e o disposto nos artigos e 615º nº1, alínea c) do CPC.

XVII. Acresce ainda que, humildemente, está convicto o recorrente que ocorreu um erro de julgamento passível de ser superado nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.”

XVIII. Com a entrada desta acção de divórcio o A. não pretendia restabelecer a convivência conjugal, resultado de uma situação de falência/fracasso definitivo do casamento devido ao desgaste irremediável da relação conjugal, conforme o mesmo referiu na petição inicial, que, conjugado com o depoimento das testemunhas é demonstrativo que as alíneas i) e ii) deveriam ter sido dadas como provadas.

XIX. Note-se que contrariamente ao que acontece em relação aos fundamentos de divórcio previstos nas als. a) a c) do art. 1781º, em que se exige que o fundamento de divórcio enunciado em cada um dessas alíneas persista, de forma ininterrupta no tempo, durante um período mínimo de mais de um ano, para que o legislador presuma iuris et de iure e, portanto, inilidivelmente que se está perante uma situação de rutura definitiva do casamento, a qual confere a qualquer dos cônjuges o direito potestativo a requerer o divórcio com um dos fundamentos previstos numa dessas alíneas, quanto ao fundamento de divórcio da al. d), não se exige que os factos que servem de fundamento ao pedido de divórcio perdurem durante um período mínimo de tempo, mas apenas que se trate de factos que, independentemente de culpa dos cônjuges, mostrem a “rutura definitiva do casamento”, ou seja, que se trate de quaisquer factos que pela sua gravidade e reiteração sejam demonstrativos que, objetivamente e com caráter definitivo, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

XX. Essa rutura definitiva do casamento, resulta “normalmente de um acumular de factos, nos quais, pelas mais variadas razões, os cônjuges, progressivamente vão-se afastando um do outro” até que entre eles deixa de existir comunhão de vida, própria do casamento.

XXI. Esses factos podem verificar-se logo após a celebração do casamento, ou pouco tempo depois deste, essencial é que, quando objetivamente considerados, sejam reveladores da existência da rutura definitiva do casamento. (Cfr. Amadeu Colaço, ob. Cit. Págs 68 e 69).

XXII. Daí que se pode concluir que a al. d) do artigo 1781 do CC contém uma cláusula geral em que o legislador permite ao cônjuge requerente do divórcio a alegação de quaisquer factos que, pela sua gravidade e reiteração, sejam objetivamente demonstrativos da rutura definitiva, isto é, irreversível do vínculo matrimonial.

XXIII. Ora, se é certo que a separação de facto, ou a ausência, sem que se mostre decorrido o prazo mínimo fixado nas als. a) a c) do art. 1781º do CC para conferir aos cônjuges o direito potestativo a requerer o divórcio, não podem servir, em termos objetivos, de fundamento apto a que se conclua pela existência de uma situação definitiva, por irreversível, de rutura do casamento, essas situações, quando conectadas com outros factos, que não uma qualquer situação subjetiva do requerente do divórcio, nomeadamente, um mero capricho ou vontade momentânea em se divorciar do outro, podem levar a que se conclua que essa rutura irreversível do casamento se verifica efetivamente, não obstante ainda não se mostrar decorrido, à data da propositura da ação, o prazo mínimo fixado nas alíneas a) a c) para que fique conferido ao requerente do divórcio o direito potestativo a requerer o divórcio.

XXIV. Assim é que, é mais que plausível que, uma prolongada separação do casal, ainda que inferior ao período mínimo fixado na al. a), pode preencher a previsão da al. d), quando, nomeadamente se apure outros factos que sejam demonstrativos, em termos objetivos, da irreversibilidade da rutura da vida em comum do casal.

Pois, como refere na própria sentença “…o Autor afirmou, de forma peremptória, que não quer retomar a vida em comum com a Ré; esta, apesar de não expressar o consentimento à dissolução do casamento, revelar estar ciente que nas circunstâncias atuais, não há condições para que seja retomada a vida em comum, por o Autor o pretender.”

XXV. Na verdade, a irreversibilidade da rutura do casamento há-de ter em conta predominantemente as circunstâncias concretas dos cônjuges, sem se descurar naturalmente as demais exigências decorrentes, por exemplo da dignidade humana e da igualdade entre os cônjuges.

XXVI. No apuramento da irreversibilidade da rutura do casamento, no contexto da causa de pedir enunciada na al. d) do art. 1781º do CC, não se pode deixar de ter em conta o comportamento dos cônjuges, antes e no decurso da ação de divórcio, não como factos constitutivos da causa de pedir em que o cônjuge requerente do divórcio ancorou o seu direito a ver dissolvido o casamento, por divórcio, mas como elemento de prova da cessação da duradoura e irreversível comunhão conjugal. Cfr. Ac. STJ de 03-10-2013, Proc. 2610/10.9TMPRT.P1, in base de dados da DGSI.

XXVII. Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, revertendo ao caso dos autos, o Autor instaurou a presente ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges contra a Ré, com fundamento na al. d) do art. 1780º do CC, alegando factos que, na sua perspetiva, eram objetivamente demonstrativos da rutura definitiva do casamento celebrado entre ambos, em 27-04-2024.

XXVIII. Apesar de não ter decorrido um ano, apurou-se que tanto o Autor como a Ré não pretendem retomar a vida em comum, tal como consta da Sentença no ponto C).

XXIX. A presente ação de divórcio foi instaurada em 27-04-2024, quando se encontravam decorridos pelo menos sete meses sobre o início da separação do casal constituído pelo Autor e a Ré, e em que, consequentemente, não se mostrava decorrido o prazo legal mínimo fixado na al. a) do art. 1781º do CC para que ficasse conferido ao Autor o direito potestativo de se divorciar da Ré, beneficiando da presunção inilidível de rutura do casamento de ambos fixada nesse preceito legal.

No entanto, a causa de pedir em que o Autor fundou o seu pedido de divórcio da Ré não é a separação de facto, mas antes a rutura definitiva do seu casamento, isto é, na al. d) do art. 1781º do CC.

XXX. Na presente data, volvidos um ano e nove meses, o A. a e Ré estão separados de facto sem pretenderem retomar a vida em comum, o que na verdadeira e plena dimensão, apenas pode significar uma rutura definitiva e irreversível da relação matrimonial entre os cônjuges.

XXXI. À data da propositura da presente ação, perduravam, como dito, há pelo menos sete meses, quando objetivamente considerados, não podem ter outra significância que não seja que, à data em que instaurou, em 27-04-2024, a presente ação de divórcio, já não existia entre o A. e a Ré, em termos definitivos e objetivos, qualquer réstia de comunhão de vida, que é própria da instituição matrimonial, inexistindo entre eles, de modo irreversível, casamento.

XXXII. Nesta conformidade, pelas razões acima descritas, forçoso será concluir que a Sentença do Tribunal A QUO deverá ser revogada e substituída por outra que declare dissolvido, por divórcio, o casamento celebrado no dia 05 de Abril de 2017, entre o A. e a Ré.

A ré apresentou contra-alegações nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.

O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I – Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

II - Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1 do Cód. Proc. Civil);

IIIVerificação dos pressupostos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge (art. 1781º, al. d) do Cód. Civil).


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Os factos dados como provados na sentença recorrida são os seguintes:

1) O Autor e a Ré contraíram, um com o outro, casamento civil, sem convenção antenupcial, no dia 5 de abril de 2017.

2) Nessa data o A. tinha 30 anos e a Ré 51 anos.

3) O Autor tem nacionalidade portuguesa e a Ré tem nacionalidade brasileira

4) O A. foi trabalhar para Angola há 4 anos, para dirigir uma A... e a Ré manteve-se a viver em Portugal.

5) Desde essa data o Autor vem a Portugal em períodos espaçados, em gozo de férias.[1]

6) Nessas alturas e até inícios de setembro de 2023, quando vinha a Portugal, o A. ficava na casa que partilhava com a Ré e relacionavam-se como marido e mulher.

7) Em finais de agosto, inícios de setembro de 2023 o A. veio passar férias a Portugal, tendo ficado na casa que partilhava com a Ré e relacionando-se com esta como marido e mulher.

8) Em setembro de 2023 A. e R. trocaram mensagens em que se desentendiam.

9) Em outubro de 2023 o Autor enviou uma mensagem à Ré, onde lhe comunicou que queria divorciar-se.

10) Quando voltou a Portugal, em dezembro do ano de 2023, o Autor ficou alojado em casa dos seus pais.

11) A partir de setembro de 2023 A. e R. deixaram de tomar as refeições em conjunto.

12) Não mantêm relações sexuais entre si pelo menos desde a referida data.

13) O Autor não quer retomar a vida em comum com a Ré.

14) A Ré recebe mensalmente uma pensão de reforma, paga pela Prefeitura do Rio de Janeiro, no valor de 4.294,76 reais = € 671,09.

15) A Ré recebe ainda uma pensão de sobrevivência em virtude do falecimento de um anterior marido, paga pela Marinha do Brasil, no valor mensal de 12.944,65 reais = €2.022,69.

16) A Ré contraiu vários créditos.

17) Estão a ser efetuados descontos mensais nas referidas pensões que a Ré aufere, para pagamento de empréstimos pela mesma contraídos, recebendo a Ré os montantes líquidos de €606,93 d pensão de sobrevivência e €318,16 da pensão de reforma, após os descontos.

18) A Ré realiza venda de vestuário e acessórios na plataforma de venda online B....

19) A Ré paga atualmente €435,00 de renda de casa.

20) A Ré recebe cabaz alimentar da Cruz Vermelha.

21) A Ré inscreveu-se no Centro de Emprego.

22) O A. aufere um rendimento mensal de quatro mil e tal euros, após descontos.

23) O A. recebe cerca de €3.500,00 por ano para deslocações.

24) Em Angola o A. não paga renda de casa nem despesas com a casa.

25) O A. efetuava transferências de dinheiro para a Ré.


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Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão, nomeadamente que:

i) Os problemas conjugais surgiram a partir do momento em que o Autor foi trabalhar para Angola.

ii) Há mais de um ano, decorrido antes da propositura da ação, que o Autor e a Ré deixaram de viver em comunhão de leito, mesa e habitação.

iii) A Ré está impossibilitada de trabalhar.

iv) A Ré limita-se a vender a roupa que não usa na B....

v) Quando o Autor foi trabalhar para Angola, a Ré, em Portugal, criou o seu próprio negócio de compra de roupa online para revenda.

vi) A Ré utilizando para custear o seu negócio, o salário que o Autor, lhe enviava mensalmente e frequentemente, na íntegra, para a conta pessoal do Banco 1..., sem o consentimento do Autor, deixando a conta sem dinheiro nenhum.

vii) Quando o Autor vinha a Portugal, nos períodos de férias, encontrava a casa completamente cheia de fardos de roupa, que iam aumentando a cada período de vinda a casa, deparando-se com o facto de a Ré até ter encaixotado a própria roupa e pertences pessoais do Autor, sem que para tal este tenha autorizado.

viii) A Ré gastava todos os salários que o Autor ganhava, deixando a conta bancária completamente descapitalizada, para desconforto do Autor.

ix) Tais situações geravam discussões intermináveis.

x)Todas estas situações geraram no A. um constante mal-estar, angústia, provocando um desgaste irremediável na relação conjugal.

xi) Antes, a Ré sempre manteve a casa limpa e arrumada, arejada e com perfeitas condições de habitabilidade e não fez da sua casa um armazém.

xii) A Ré despende cerca de €600,00 em saúde e alimentação.

xiii) A Ré apenas receber €400,00 por mês.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I – Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

1. O autor/recorrente insurge-se, em primeiro lugar, contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, pretendendo que os factos não provados correspondentes aos pontos i), ii), vii), viii), ix) e x) transitem para o elenco dos provados.

Têm estes a seguinte redação:

- i) Os problemas conjugais surgiram a partir do momento em que o Autor foi trabalhar para Angola.

- ii) Há mais de um ano, decorrido antes da propositura da ação, que o Autor e a Ré deixaram de viver em comunhão de leito, mesa e habitação.

- vii) Quando o Autor vinha a Portugal, nos períodos de férias, encontrava a casa completamente cheia de fardos de roupa, que iam aumentando a cada período de vinda a casa, deparando-se com o facto de a Ré até ter encaixotado a própria roupa e pertences pessoais do Autor, sem que para tal este tenha autorizado.

- viii) A Ré gastava todos os salários que o Autor ganhava, deixando a conta bancária completamente descapitalizada, para desconforto do Autor.

- ix) Tais situações geravam discussões intermináveis.

- x) Todas estas situações geraram no A. um constante mal-estar, angústia, provocando um desgaste irremediável na relação conjugal.

A ré/recorrida, nas suas contra-alegações, vem sustentar que das conclusões formuladas pelo recorrente não se retira quais sejam os concretos meios de prova em que o autor assenta o pedido de alteração da matéria de facto.

Vejamos.

2. O art. 640º do Cód. Proc. Civil dispõe o seguinte no seu nº 1:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»

Depois, na alínea a) do nº 2 desta mesma norma, estatui-se ainda o seguinte:

«Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

(…)»

Neste regime é possível distinguir-se dois tipos de ónus, tal como se entende no Acórdão do STJ de 29.10.2015 (proc. 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.):

- “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes” e consta do transcrito n.º 1 do art.º 640.º; e
– “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”, previsto no n.º 2 do mesmo preceito.
O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.
O ónus secundário consiste na exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Conforme se afirma no Acórdão do STJ de 2.2.2022 (proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, relator Fernando Samões, disponível in www.dgsi.pt.), “os requisitos formais, impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso.”[2]
“Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objecto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.”
“Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos.”
Por seu turno, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES (in “Recursos em Processo Civil”, 7ª ed., págs. 199/201) afirma que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, sem que haja lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, deve verificar-se em alguma destas circunstâncias:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;

b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

Sucede que estas exigências “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que (…) devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento de realização de justiça.”[3]

3. Retornando ao caso dos autos, constata-se que o recorrente nas conclusões da sua alegação recursiva especificou quais os concretos pontos de facto que considerou incorretamente julgados – os factos não provados i), ii), vii), viii), ix) e x) – e o resultado pretendido com a sua impugnação – que todos eles transitem para os factos provados.

A questão da eventual rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, uma vez que nada se escreveu a esse propósito nas conclusões, coloca-se quanto à especificação na motivação dos concretos meios probatórios em que o recorrente funda essa impugnação.

Vejamos então o que o autor/recorrente, no tocante à impugnação fáctica, escreveu na motivação do recurso:

“Entende o A./Recorrente que, o Tribunal A Quo andou muito mal, uma vez que se apressou a dar como não provados os factos constantes dos pontos i), ii), vii), viii), ix), x).

Após uma análise rigorosa da prova produzida, por ser inequivocamente relevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa o Tribunal A Quo deveria, em homenagem a uma lógica da mais ampla e possível indagação da matéria de facto relevante para uma decisão justa e conscienciosa ter diligenciado, até oficiosamente em ordem a indagar de forma exaustiva sobre a realidade, que o Tribunal A Quo se apressou, precipitadamente, a dar como não provado estes factos.

Ao proceder assim, o Tribunal A Quo incorreu num vício da insuficiência para a matéria de facto não provada.

Pelo que, daí se retira que a única convicção que se pode retirar dos meios de prova em causa, constata-se que a do Tribunal A Quo é assaz, incompleta, até lacunosa, não tendo este procurado minimamente identificar as aludidas a graves incongruências, e encontrar a resposta à matéria de facto que as poderia lógica e racionalmente harmonizar.

Impunha-se que o Tribunal A Quo desse como provado os pontos referidos, e, que tais situações geravam discussões intermináveis, e, geraram no A. um mal estar, angústia, provocando um desgaste irremediável na relação conjugal.”

Desta transcrição resulta que o autor/recorrente, na impugnação factual que efetuou, não especificou, nem nas conclusões, nem na motivação, os meios probatórios constantes do processo ou nele registados em que apoiava a sua impugnação.

Faz apenas referências vagas à prova produzida, acrescentando que o tribunal “a quo” se apressou a dar como não provada a factualidade impugnada, sem indagar de forma exaustiva sobre a realidade desses factos.

Acontece que a tolerância que se poderá ter na verificação do cumprimento dos ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil não pode ir ao ponto de se exigir ao Tribunal da Relação que ande a descortinar ou a intuir na motivação quais os concretos meios probatórios que o recorrente pretende que sejam tidos em atenção com vista à alteração da matéria de facto.

A especificação desses meios probatórios deve constar de forma clara e inequívoca na motivação e preferentemente também nas conclusões.

Por conseguinte, não pode considerar-se como cumprido o ónus primário a que se refere o art. 640º, nº 1, al. b) do Cód. de Proc. Civil e a sua inobservância implica, nos termos deste preceito legal, a rejeição do recurso, quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, sem que possa haver lugar a despacho de aperfeiçoamento.[4]


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II - Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1 do Cód. Proc. Civil)

1. Nas suas alegações de recurso o autor/recorrente veio sustentar que, tendo-se provado que passou a ficar alojado em casa dos pais, deixaram de tomar as refeições em conjunto, não mantêm relações sexuais e ainda que o autor não pretende retomar a vida em comum com a ré, daí resulta estarem reunidos os pressupostos para o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.

Tal significa, na sua perspetiva, que ao não decretar esse divórcio, os fundamentos estão em oposição com a decisão, donde decorre a verificação da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil.

Nulidade que, porém, não ocorre.

Senão vejamos.

2. A nulidade arguida ocorre quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível

Sobre esta nulidade escreve o seguinte LEBRE DE FREITAS (in “A Ação Declarativa Comum”, 4ª ed., pág. 381/2): “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.”

Por seu turno, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, 1984, reimpressão, pág. 141) em relação a esta nulidade diz-nos que “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao resultado oposto.”

Como exemplos desta nulidade LEBRE DE FREITAS (ob. cit., pág. 382) apresenta os seguintes: “o juiz justifica, na fundamentação, a condenação do réu no pagamento da dívida por ele contraída, mas, sem qualquer outra explicação, absolve-o; o juiz acolhe um fundamento de nulidade do contrato, mas acaba condenando o réu no seu cumprimento.”

Diferenciando a contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Civil, do erro de julgamento escreve-se no Acórdão do STJ de 4.2.2021 (proc. 22/17.2 T8CLB.C1.S1, relator NUNO PINTO OLIVEIRA, disponível in www.dgsi.pt.) que “a contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal.

3. Acontece que da leitura da sentença recorrida logo se verifica que esta não padece da nulidade invocada, porquanto nela não é discernível qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão.

O percurso argumentativo seguido pela Mmª Juíza “a quo” é coerente com o decidido, embora possa não ser o mais acertado, o que adiante se indagará. Por isso, o que se mostra invocado pelo autor/recorrente neste segmento do seu recurso não se subsume a qualquer nulidade, mas sim a um eventual erro jurídico, quanto à verificação – ou não – dos pressupostos do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges e, nessa ótica, terá que ser apreciado.

Como tal, não ocorre a nulidade de sentença suscitada pelo autor/recorrente ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil.


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IIIVerificação dos pressupostos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge (art. 1781º, al. d) do Cód. Civil)

1. Por último, o autor/recorrente nas suas alegações vem sustentar, em divergência com o entendido na sentença recorrida, que, face à factualidade dada como assente, deverá ser decretado o divórcio entre os cônjuges com fundamento na alínea d) do art. 1781º do Cód. Civil.

Dispõe este preceito que constituem fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges quaisquer factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.

Esta norma, introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31.10., veio consagrar, na nossa ordem jurídica, o designado modelo de “divórcio-constatação da rutura conjugal”, inspirado na “conceção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio” – cfr. acórdãos do STJ de 9.2.2012, p. 819/09.7TMPRT.P1.S1 (Hélder Roque) e da Rel. Lisboa de 22.10.2013, p. 16/11.1TBHRT.L1-7 (Tomé Gomes), disponíveis in www.dgsi.pt.[5]

2. Sobre este conceito, de rutura definitiva do casamento, escreve GUILHERME DE OLIVEIRA (in “Manual de Direito da Família”, Almedina, 2020, pág. 279) que “não deve permitir-se a relevância de factos banais e esporádicos”.

E continua:

“A experiência estrangeira dá relevo, designadamente, a doença infeciosa, a violência doméstica física ou verbal, a bigamia, ao adultério, ao cumprimento de pena de prisão, a tentativa de homicídio de um familiar próximo, ao abuso de álcool, a negligência grosseira relativamente ao cônjuge. Podem acrescentar-se os factos que mostrem o desinteresse repetido e total de cooperação e de comprometimento na “vida da família que fundaram” (art. 1674º), a negligência grosseira a que se vota um cônjuge ou os filhos comuns.

Os factos a que se dá relevo devem ser factos objetivos capazes de convencer o tribunal de que os laços matrimoniais se romperam, e se romperam definitivamente.”

Por seu turno, MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA (in “Direito da Família”, 3ª ed., 2019, AAFDL, págs. 591/592) afirma que os factos suscetíveis de mostrar a rutura do casamento terão de evidenciar a sua incompatibilidade com a continuação da vida conjugal para a generalidade das pessoas.

“O critério de aferição é assim um critério social e, neste sentido, um critério objectivo. Deste modo, não bastará que um cônjuge valore dado comportamento ou atitude reiterada do seu cônjuge como incompatível com a continuação da vida em comum. É necessário que essa conduta seja socialmente entendida como tal.

Sabe-se que na realidade da vida a cisão entre “critério objectivo de ruptura” e “critério subjectivo” se mostra de muito difícil aplicação. Pois, como afirmar que duas pessoas podem viver conjugalmente, se uma argumenta que o comportamento da outra é incontornavelmente negativo para si, demolidor da sua personalidade, por mais trivial que se afigure à comunidade?

Ao critério do juiz ficará a decisão da oportunidade de dissolver ou não o casamento, dando por verificada a ruptura da vida em comum.

Ganha, pois, o juiz uma margem de liberdade de apreciação da falência do casamento antes desconhecida, ficando com a titularidade da determinação do bem fundado de constituírem certos factos prova de que o casamento perdeu o sentido. Tais factos podem muito bem não estar previstos na lei, mas revestir uma importância determinante que atesta a falência da vida conjugal.”

Já AMADEU COLAÇO (in “Novo Regime do Divórcio”, págs. 70/72) refere que o cônjuge que pretenda intentar uma ação com fundamento na al. d) do art. 1781º do Cód. Civil “terá de alegar e provar a existência de uma situação objectiva e passível de constatação, que revele uma situação de ruptura definitiva do casamento (a sua falência ou fracasso).”

E enuncia como elementos caracterizadores da rutura definitiva do casamento os seguintes:

1 – tem de ser revelada por um ou mais factos; 2 – esses factos terão de ser outros que não os constantes das demais alíneas do referido artigo; 3 – tais factos terão de ser reveladores da rutura do casamento; 4 – essa rutura terá de mostrar-se definitiva (e não uma rutura esporádica ou temporária); 5 – esta situação terá de consistir numa situação objetiva, passível de ser constatada, não resultando de um mero ato de vontade de um dos cônjuges; 6 – não depende da eventual culpa de qualquer dos cônjuges; 7 - não depende da verificação de qualquer prazo.

No plano jurisprudencial, no já atrás referido Ac. Rel. Lisboa de 22.10.2013 escreve-se que “tem-se vindo a entender que a rutura definitiva do vínculo matrimonial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes. Tem-se mesmo acentuado a necessidade de um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as respectivas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo.”

É, assim, pacífico que a previsão da al. d) do art. 1781º do Cód. Civil não comporta, manifestamente, o pedido de divórcio apenas por vontade unilateral e infundamentada de um dos cônjuges, tendo de estar demonstrados factos que consubstanciem, à luz da normalidade das relações entre duas pessoas, que se verifica uma rutura na comunhão de vida entre elas.

Por conseguinte, o preenchimento do conceito indeterminado de «rutura definitiva do casamento» impõe que não se esteja perante factos banais e esporádicos, mas para tal sempre será suficiente que se esteja perante factos que demonstrem o comprometimento consolidado da vida em comum, permitindo a lei que o causador dessa rutura possa pedir, com base nesses factos, o divórcio.

3. Prosseguindo, verifica-se que da matéria fáctica dada como assente resulta o seguinte:

- Em finais de agosto, inícios de setembro de 2023 o autor veio passar férias a Portugal, tendo ficado na casa que partilhava com a ré e relacionando-se com esta como marido e mulher [nº 7];

- Em setembro de 2023 o autor e a ré trocaram mensagens em que se desentendiam [nº 8];

- Em outubro de 2023 o autor enviou uma mensagem à ré, onde lhe comunicou que queria divorciar-se [nº 9];

- Quando voltou a Portugal, em dezembro do ano de 2023, o autor ficou alojado em casa dos seus pais [nº 10];

- A partir de setembro de 2023 o autor e a ré deixaram de tomar as refeições em conjunto [nº 11];

- Não mantêm relações sexuais entre si pelo menos desde a referida data [nº 12];

- O autor não quer retomar a vida em comum com a ré [nº 13].

A questão reside então em saber se esta factualidade, que se reconduz tão-somente a uma situação de separação de facto que à data da propositura da ação se verificava há apenas sete meses, é suscetível de integrar, como fundamento de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a previsão do art. 1781º, al. d) do Cód. Civil.

Ora, a aplicação desta alínea deve ser feita no seu contexto, ou seja, em harmonia com as três alíneas anteriores.

Assim, considerando as exigências previstas nas als. a), b) e c), que se reportam às hipóteses de separação de facto, alteração de faculdades mentais e ausência, não se afigura ser sustentável o entendimento, segundo o qual, para a invocação com sucesso da alínea d), diversamente do que acontece nas alíneas anteriores, bastará a formulação séria da vontade de não pretender continuar casado, “rectius” de querer o decretamento do divórcio. “A expressão de tal vontade corresponderá, em última análise, à formulação do pedido de divórcio que terá que ocorrer, também, nos casos das alíneas anteriores que, assim, ficariam esvaziadas de conteúdo útil. Por outro lado, a inclusão das várias alíneas no mesmo artigo, importará que, também na alínea d), se exija a demonstração da rutura do casamento através de factos externamente apreensíveis e que os mesmos apresentem uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas als, anteriores.”
Deverá tratar-se de factos diferentes dos que são enunciados nas als, anteriores deste preceito. A factualidade nelas prevista só relevará “qua tale” no particular quadro aí legalmente tipificado. Assim, a separação de facto, a alteração das faculdades mentais e a ausência não poderão, por si, constituir fundamento bastante do divórcio, se não se verificarem os requisitos previstos, respetivamente, nas als. a), b) e c). Nesse caso, poderão, ainda assim, ser carreados para o processo para, conjuntamente com outros factos que lhes acrescentem significado, fundar um pedido à luz da al. d).”[6] – cfr. RUTE TEIXEIRA PEDRO, “Código Civil Anotado, Vol II, Ana Prata, coordenação, págs. 683/684.
Nesta linha, “não terá sentido que o tribunal aplique a alínea d) de um modo mais condescendente do que quando aplica a alínea a). Isto é: o caminho previsto na alínea d) não autoriza uma dissolução mais facilitada, baseada numa prova menos consistente da rutura do casamento ou num juízo sobre uma rutura verosímil, em vez de “definitiva”.
“Também será descontextualizado dar um valor decisivo ao “facto” de um dos cônjuges estar firmemente determinado a não restabelecer a vida em comum ao fim de um mês [neste caso, sete meses] de separação. Esta disposição firme tem muito valor mas no quadro da al. a) (elemento subjetivo) ao lado de uma separação de um ano consecutivo (elemento objetivo). Considerar que, naquela hipótese, a disposição do cônjuge mostra uma rutura definitiva do casamento, preenchendo a alínea d), significaria aplicar a alínea a) com uma redação menos exigente quanto à duração da separação ou, dito de outro modo, significaria “revogar” a al. a).” – cfr. GUILHERME DE OLIVEIRA, ob. cit., pág. 280.

Com efeito, tal como se escreve no Ac. Rel. Porto de 9.4.2024 (p. 1236/23.1T8VCD.P1, relator Alberto Taveira, disponível in www.dgsi.pt.)[7], “… a hipótese legal da alínea d), é um mais relativamente às demais previsões legais das alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do Código Civil. Mal se compreenderia, por exemplo, uma separação de facto por período inferior a um ano seja causa de divórcio independentemente de culpa e sem o consentimento de um dos cônjuges, sem que venha acompanhado por outra factualidade que permita concluir por ter ocorrido ruptura de vida em comum. Não bastando para o legislador que seja motivo de divórcio a separação de facto por período inferior a um ano, não podemos interpretar de modo enviesado que aquilo que não cabe na alínea a) possa caber na alínea d).”

No mesmo sentido veja-se o Ac. Rel. Lisboa de 13.9.2018 (p. 73/16.4T8CSC.L1-2, relator Pedro Martins, disponível in www.dgsi.pt.), onde se consignou o seguinte no respetivo sumário:

“Um divórcio sem consentimento pedido com base em factos que mostrem a ruptura definitiva do casamento (art. 1781/-d do CC), não poderia ser considerado procedente pela prova de factos que apenas permitem concluir por uma separação de facto (art. 1781/-a) e 1782, CC) por pouco mais de 3 meses.”

4. No caso dos autos, o único fundamento em que o pedido de divórcio sem consentimento do outro cônjuge assenta é o da separação de facto que à data da propositura da ação se verificava há apenas cerca de sete meses, sendo certo que o pedido formulado pelo autor foi feito, em termos de causa de pedir, com referência à alínea d) do art. 1781º e não à alínea a) da mesma norma.

Acontece que o propósito do autor em obter o divórcio e não retomar a vida em comum com a ré, sem o acréscimo de outra factualidade objetivamente grave que demonstrasse o irreversível rompimento da vida conjugal, não é suficiente para que se possa ter como preenchida a previsão da alínea d) do art. 1781º.

Com efeito, o autor, aqui recorrente, não logrou provar, sendo que o ónus respetivo lhe cabia – art. 342º, nº 1 do Cód. Civil -, além de separação de facto, quaisquer outros factos objetivos, caracterizados pela gravidade ou pela reiteração, que conduzam à rutura definitiva do casamento.

E aceitar que, neste caso, com base na singela matéria de facto provada, ocorre tal rutura definitiva, tal significaria aceitar que uma separação de facto com apenas sete meses, contornando-se a al. a) do art. 1781º, poderia afinal servir de fundamento a um divórcio com base na subsequente al. d), o que introduziria no sistema uma contradição que cremos ser manifesta.[8]

Como tal, entendemos que a sentença recorrida deverá ser mantida, o que implica a improcedência do recurso interposto.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo autor AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo do autor/recorrente.


Porto, 28.10.2025
Rodrigues Pires
Raquel Correia de Lima
João Proença
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[1] Neste ponto corrigiu-se manifesto lapso de redação cometido na sentença recorrida.
[2] Cfr. Acórdãos do STJ, de 22/3/2018, proc. n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1 (Tomé Gomes) e de 18/1/2022, processo n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1 (Maria Clara Sottomayor), disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, ob. cit., págs. 201/202.
[4] Uma nota para referir que a circunstância de na motivação do recurso se fazer referência a concretas passagens das declarações de parte do autor e do depoimento da testemunha CC não é relevante para o cumprimento do art. 640º, nº 1, b), atendendo a que essas referências não se mostram conexionadas com a impugnação fáctica feita pelo recorrente, estando dela desligadas.
[5] Referidos na sentença recorrida.
[6] Sublinhado nosso.
[7] Em que o ora relator foi segundo adjunto.
[8] Cfr. também o já referido Ac. Rel. Lisboa de 13.9.2018 e o Ac. Rel. Lisboa de 23.11.2011, p. 88/10.6TMFUN.L1-2 (Maria José Mouro), disponível in www.dgsi.pt.