Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Relator: | MARIA DO ROSÁRIO MARTINS | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Descritores: | NOTIFICAÇÃO DA SOCIEDADE ARGUIDA | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Nº do Documento: | RP202412047589/23.4T9PRT.P1 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Data do Acordão: | 12/04/2024 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Texto Integral: | S | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Privacidade: | 1 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Área Temática: | . | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Sumário: | A notificação da sociedade arguida declarada insolvente para efeitos do artigo 105º, n.º 4, b) do RGIT tem que ser realizada nas pessoas dos seus legais representantes que à data eram os responsáveis pelo pagamento das remunerações aos trabalhadores e não na pessoa do administrador da insolvência. (Da responsabilidade da Relatora) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Reclamações: | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Decisão Texto Integral: | Processo 7589/23.4T9PRT.P1 Comarca do Porto Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 8 Acordam em conferência os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO I.1 Por sentença proferida em 26.06.2024 foi decidido: “I. Condeno o Arguido AA, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 107.° e 105.° n.° 1, do RGIT, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), no montante global de € 640,00 (seiscentos e quarenta euros); II. Condeno o Arguido BB, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 107.° e 105.° n.° 1, do RGIT, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no montante global de € 400,00 (quatrocentos euros); III. Condeno a Arguida A... Lda., pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 107.° e 105.° n.° 1, do RGIT, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no montante global de € 600,00 (seiscentos euros); IV. Condeno os Arguidos AA, BB e A... Lda., solidariamente, no pagamento ao Estado da importância de € 17.577,60, bem como a sociedade no A... Lda. no pagamento de € 11.844,79, nos termos do disposto no artigo 111.°, n.° 4, do Código Penal; V. Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, condenando os Arguidos AA, BB e A... Lda., solidariamente, no pagamento da importância de € 17.577,60 à Demandante, e a sociedade no A... Lda. no pagamento de € 11.844,79, tudo acrescido de juros vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento;” ** I.2. Recurso da decisão Os arguidos AA e BB interpuseram recurso da decisão, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição parcial): “(…) A) NULIDADE DA SENTENÇA POR CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO 2. Confrontado o elenco da factualidade considerada provada nos autos e a respetiva motivação da decisão de facto avançada pelo Tribunal a quo, entendem os arguidos que não deveriam ter sido dados como provados, pelo menos na forma e teor que lhes foi conferido, os factos 3, 7, 9, 10, 12, 13, 17 e 18. 3. O Tribunal a quo deu como provado nos factos 5 (acusação) e e no facto 21 (contestação) que a sociedade arguida, da qual os ora recorrentes foram gerentes, foi declarada insolvente, por sentença proferida no dia 1/9/2020, pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 5 (Processo ...), transitada em julgado em 23/09/2020, insolvência que havia sido requerida em 12/06/2020 e que o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia nomeou, para administradora de insolvência, a Sra. Dra CC: "Refira-se que a sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos de processo de Insolvência n.° ..., em 01.09.2020, transitada em julgado em 23.09.2020, pelo que a partir desta última data os Arguidos ficaram privados dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passaram a competir à Administradora da insolvência. Esta transferência imediata dos poderes de administração e disposição para a Administradora da insolvência não depende de um qualquer ato concreto e formal de apreensão de bens, bastando-se com o trânsito da sentença de declaração de insolvência." 4. Ainda que apenas tenha transitado em julgado no dia 23/09/2020, os recorrentes, ficaram de imediato privados do acesso às contas bancárias da sociedade, pois que a declaração de insolvência é, por norma, comunicada ao Banco de Portugal, que emite indicação de bloqueio de todas as contas bancárias associadas ao contribuinte (NIPC) da sociedade em questão. 5. Acresce que, à data da declaração de insolvência da sociedade, as contribuições e quotizações referentes ao mês de agosto de 2020 ainda não se encontravam vencidas, pelo que o Tribunal a quo teria necessariamente de diferenciar dos factos referentes aos meses de janeiro a julho de 2020 e os factos referentes aos meses de agosto a dezembro de 2020, o que não fez, embora na motivação tenha feito essa alusão, mas não concretizada nos factos provados, tal conforme já se disse acima. 6. o vício decisório da contradição entre os factos e a fundamentação da decisão de facto gera a nulidade da sentença, nulidade que é passível de ser arguida através do presente recurso, tal conforme decidiu o STJ no Acórdão de 2/06/2022, disponível em www.dgsi.pt, por conjugação do disposto nos artigos 379.°, n.° 2 e 414.°, n.° 4, do CPP, o que expressamente se argui, com as legais consequências. B) AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO NOS TERMOS DO ARTIGO 105.° N.° 4 B) E 6 DO RGIT À SOCIEDADE INSOLVENTE. NA PESSOA DA ADMINISTRADORA DE INSOLVÊNCIA NOMEADA 7. Menciona a sentença ora recorrida (pag. 12), que os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.°, n.° 4 alínea b) e 6 do RGIT, mas que, em sede de audiência de discussão e julgamento, foi levantada a questão de as notificação supra mencionada não ter sido efetuada à sociedade nem à administradora de insolvência nomeada, verificando-se que na pag. 57 e seguintes do ofício com a referência Citius 36521771, de 31/08/2023, que a carta remetida à antiga sede da sociedade (2 anos após a declaração de insolvência, na qual a Segurança Social consta como credora desde a primeira hora), foi obviamente devolvida com a menção "encerrado". 8. Não podemos secundar a posição do Tribunal a quo quando nos diz não era exigível efetuar aquela notificação à Senhora Administradora de Insolvência, porquanto considera que a sua representação (da massa insolvente) se circunscreve aos efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência. 9. Entendem os recorrentes que a omissão da notificação do administrador da insolvência constitui uma nulidade que afeta a validade do ato/notificação aos arguidos, nos termos previstos no art. 120°, n° 2, alínea d) e n° 3, al. c) do Código do Processo Penal, pois que, por aquela omissão de notificação não foi dada a possibilidade de se excluir a punibilidade dos factos, pagando a dívida, não se verificando, assim, a condição objetiva de punibilidade, porquanto, com a declaração de insolvência, passou a estar vedado aos arguidos a prática de atos de disposição do património da sociedade insolvente (artigo 81°, n.° 1, do CIRE), passando tal competência para a esfera da Senhora Administradora de Insolvência, sendo que apenas esta poderia responder afirmativamente à notificação do artigo 105°, n.° 4, alínea b) do RGIT. 10. Salvo o devido respeito e melhor opinião, a decisão plasmada na sentença a este respeito não permite aos arguidos beneficiar do afastamento da condição objetiva de punibilidade, pelo que viola os artigos 16°, 20°, 32°, n.°s 1 e 202°, n.° 2, todos da CRP e ainda, os artigos 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o princípio da defesa e da legalidade, e ainda, o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição e o princípio da culpa, em processo penal. C) DA CONDENAÇÃO NA PERDA DE VANTAGEM (ARTIGO 111.° N.° 4 DO CÓDIGO PENAL) CONCOMITANTEMENTE COM A CONDENAÇÃO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL FORMULADO PELO INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL E RESPETIVO MONTANTE 11. O Tribunal a quo condenou os arguidos, de forma solidária com a sociedade A... Lda., no pagamento ao Estado da importância de 17.577,60€, bem como no pedido de indemnização civil, nos mesmos moldes solidários, a pagar ao Instituto da Segurança Social, o mesmo montante de 17.577,60€. 12. Na verdade, a sentença do Tribunal a quo menciona, na página 18: "esta perda de vantagem não significa que o montante possa ser pago duas vezes, porquanto qualquer pagamento nesta sede, ou em sede de execução tributária (ou até pagamento prestacional) será tido em consideração", mas no dispositivo da sentença não é feita qualquer menção quanto à impossibilidade de os recorrentes serem cobrados duas vezes, porquanto o Tribunal a quo se limita a condenar os recorrentes, em montantes idênticos, primeiro ao abrigo do disposto no artigo 111. N.° 4 do Código Penal e, de seguida, no pedido de indemnização civil, sem que faça qualquer ressalva quanto à obrigação dos mesmos em fazer apenas um dos pagamentos da condenação. 13. Sabendo da existência de jurisprudência contrária é, no entanto, vasta a jurisprudência que considera que não há lugar ao decretamento da perda de vantagens se o lesado optar pela recuperação do seu crédito por outra via, o que o Instituto da Segurança Social fez, porquanto não se desinteressou do seu património e apresentou pedido de indemnização civil, até porque o objeto de ambas as condenações é coincidente, pelo que cremos que não se justifica a condenação dos recorrentes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 111.° n.° 4 do Código Penal. Questão não menos importante: 14. Encontra-se assente que a sociedade foi declarada insolvente em 1 de setembro de 2020, tendo a sentença de insolvência transitado em julgado em 23/09/2020. As quotizações correspondentes ao mês de agosto de 2020 teriam a sua data de pagamento definida entre 10 a 20 de setembro de 2020, mas os recorrentes ficaram impedidos de aceder às conta bancárias da sociedade logo nos primeiros dias de setembro de 2020, não podendo, por isso, efetuar os pagamentos referentes aos meses de agosto a dezembro de 2020. 15. Como tal, mesmo que se venha a considerar a imputação de responsabilidade civil aos recorrentes, o que apenas se admite por cautela de patrocínio, atendo toda a fundamentação do presente recurso, os montantes correspondentes aos meses de agosto de 2020 e setembro de 2020 não são imputáveis aos recorrentes, encontrando-se o montante de 17.577,60€ (corresponde ao valor em dívida correspondente aos meses de janeiro de 2020 a setembro de 2020) definido em excesso, pelo que teria necessariamente de ser reduzido em conformidade, o que desde já se invoca, com as legais consequências. DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS - Artigos 374.° n.° 2 e 379.°, n.° 2, e artigo 377.°, todos do CPP; - Artigos 16°, 20°, 32°, n.°s 1 e 202°, n.° 2, todos da CRP - Artigo 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem.” Pugnam pela substituição da sentença no sentido supra defendido. ** I.3. Resposta do Ministério Público O Ministério Público, na resposta ao recurso, sem formular conclusões, pronunciou-se pelo seu provimento parcial no sentido de ser deduzida a parcela relativa ao mês de Setembro de 2020 do montante global correspondente aos valores em dívida das prestações à Segurança Social. ** I.4. Parecer do Ministério Público Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso. ** I.5. Resposta ao parecer Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público. ** I.6. Foram colhidos os vistos e, de seguida, o processo foi à conferência. **** II- FUNDAMENTAÇÃO II.1. Objecto do Recurso Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do CPP (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95). Assim, da análise das conclusões dos recorrentes extraímos sequencialmente as seguintes questões que importam apreciar e decidir: 1ª Nulidade da sentença por existência do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP; 2ª Não verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infraccções Tributárias (doravante RGIT) por ausência de notificação à sociedade insolvente na pessoa da administradora de insolvência; 3ª Impossibilidade de condenação concomitante na perda de vantagens e no pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social; 4ª Se assim não se entender, indevida condenação no pagamento ao Estado e ao Instituto da Segurança Social das prestações correspondentes aos meses de Agosto e Setembro de 2020. * Conheceremos os fundamentos do recurso pela sua ordem lógica das consequências da sua eventual procedência e influência preclusiva.*** II.2. Sentença recorrida (que se transcreve na parte com relevo para apreciação do recurso) “II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: A) Factos Provados: Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a mesma: 1. A sociedade arguida A..., Lda. é uma sociedade por quotas, cujo objeto social é: "Ensino de condução automóvel e prestação de serviços inerentes"; 2. Encontrava-se inscrita como contribuinte da Segurança Social, com o n.° ...85, empregando trabalhadores por conta de outrem, obrigatoriamente inscritos na Segurança Social; 3. Os arguidos AA e BB figuraram como gerentes da sociedade arguida A..., Lda., pelo menos desde 30 de abril de 2014 até ao presente; 4. Sendo aqueles que dirigiam toda a atividade da sociedade arguida, competindo- lhes tomar, nomeadamente, as decisões relativas: à gestão comercial e financeira da sociedade, à afetação dos respetivos recursos financeiros ao cumprimento das obrigações correntes, ao pagamento dos salários aos trabalhadores, retenção e entrega das contribuições devidas e pertencentes à Segurança Social, bem como da tomada de opções e controlo do cumprimento das obrigações de pagamento; 5. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos de processo de Insolvência n.° ..., em 01.09.2020, transitada em julgado em 23.09.2020, não tendo até ao momento sido liquidada; 6. No período compreendido entre janeiro e dezembro de 2020, a sociedade arguida, na prossecução e exercício da sua atividade, possuía trabalhadores a seu cargo, a quem pagava os respetivos salários, ainda que parcialmente; 7. Em tais meses, no exercício das respetivas funções de gestão, eram os arguidos AA e BB quem procedia ao pagamento das remunerações aos trabalhadores, cabendo-lhe igualmente, de acordo com as regras vigentes em matéria de Segurança Social e de que estavam cientes, a tarefa de efetuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas e entregar o respetivo montante à Segurança Social; 8. Assim, a sociedade arguida A..., Lda. e os arguidos AA e BB, enquanto seus representantes, encontravam-se obrigados a remeter aos competentes serviços da Segurança Social, até ao dia 10 do mês seguinte àquele a que diziam respeito, as declarações das remunerações referentes aos salários e remunerações pagos no mês anterior aos trabalhadores inscritos no regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, bem como aos membros dos órgãos estatutários; 9. Mais se encontravam os arguidos obrigados a proceder à entrega, nos serviços da Segurança Social, das cotizações declaradas e descontadas, entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam as quantias descontadas a tal título; 10. Não obstante, no âmbito da sua atividade, os arguidos AA e BB, em representação e atuando em nome da sociedade arguida A..., Lda., a partir de janeiro de 2020, decidiram não entregar à Segurança Social tais quantias; 11. Assim, concretizando tal resolução, procederam os arguidos AA e BB, por si e em nome e representação da sociedade arguida A..., Lda., ao desconto, nos salários efetivamente pagos (ainda que parcialmente) aos seus trabalhadores, da percentagem de 11%, relativa a cotizações para a Segurança Social do regime geral - no período compreendido entre os meses de janeiro a setembro de 2020 (inclusive), perfazendo o valor total de € 17.577,60, repartidos da forma e nos montantes parcelares descritos no quadro abaixo; 12. Entre os meses de outubro a dezembro de 2020 (inclusive), a sociedade arguida procedeu ao desconto, nos salários efetivamente pagos (ainda que parcialmente) aos seus trabalhadores, da percentagem de 11%, relativa a cotizações para a Segurança Social do regime geral, perfazendo o valor total de € 11.844,79, conforme quadro abaixo:
13. Porém, os arguidos AA e BB, em representação e atuando em nome da sociedade arguida A..., Lda., não procederam à entrega, conforme estavam legalmente obrigados, na Segurança Social, das quantias supra indicadas e deduzidas dos salários efetivamente pagos aos seus trabalhadores - no valorglobal de € 17.577,60, nem a sociedade procedeu à entrega do montante de € 11.844,79; 14. Assim, não procederam à entrega de tais quantias à Segurança Social, no prazo legal, ou melhor, entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem no período dos 90 dias ulteriores, 15. não tendo igualmente procedido ao respetivo pagamento no prazo de 30 dias, após a notificação para o efeito, levada a cabo pelo Instituto da Segurança Social, IP, em 02.06.2023 e 05.06.2023, nos termos do disposto no art.° 105.°, n.° 4, alínea b) do R.G.I.T. ex vi art.° 107.°, n.° 2, do mesmo diploma legal; 16. Os arguidos AA e BB atuaram por si e em representação da sociedade arguida A..., Lda., atuando em nome e no interesse daquela, de acordo com a resolução que tomaram de não cumprir com as suas obrigações perante a Segurança Social, resolução essa que foi sendo renovada e propagou às sucessivas e contínuas omissões de pagamento/devolução à Segurança Social - atentas as dificuldades económicas por que passou a sociedade (e que culminariam na sua situação de insolvência) e face à inércia da Segurança Social em pôr fim à situação de incumprimento; 17. Os arguidos AA e BB bem sabiam que as quantias deduzidas acima mencionadas, não lhe pertenciam nem à sociedade arguida, e que estavam obrigados a entregá-las, nos competentes serviços da Segurança Social, entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam; 18. Não obstante, agindo com a intenção de reter tais quantias e de as integrar no acervo patrimonial da sociedade arguida, não procederam à entrega das quantias devidas na Segurança Social, ficando com as mesmas, bem sabendo que não lhe pertenciam e lesavam os interesses da Segurança Social; 19. Agiram os arguidos AA e BB com o propósito concretizado de obter, para si e para a sociedade arguida, um aumento das suas disponibilidades financeiras e uma vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, usando-as nomeadamente para suportar o "giro comercial" da sociedade arguida; 20. Os arguidos AA e BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida penalmente; Contestação: 21. A sociedade arguida foi declarada insolvente, por sentença proferida no dia 1/9/2020, pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 5 (Processo ...), insolvência essa que havia sido requerida em 12/06/2020; 22. O Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia nomeou, para administradora de Insolvência, a Sra. Dra. CC; 23. No âmbito do processo especial de revitalização (PER) com o número 4306/19.7T8VNG (Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 3), em 3/6/2019 foi proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório à sociedade A..., Lda., tendo sido nomeada a Sra. Dra. DD, como administradora Judicial; 24. No âmbito deste processo especial de revitalização, pretendia aquela sociedade encontrar uma saída para a situação económica difícil, que se agravou, em muito, com a obrigação de encerramento por força das imposições da legislação referente ao período de Pandemia COVID-19; 25. Em março de 2020 a sociedade viu-se obrigada a encerrar as suas escolas de condução, por imposição legislativa motivada pela Pandemia, sendo que, em 12/06/2020, ou seja, numa altura em que ainda nem sequer tinha sido levantada grande parte das restrições legais motivadas pela Pandemia COVID-19, foi requerida a insolvência da sociedade, insolvência essa que foi decretada em setembro de 2020; 26. Nesse hiato de tempo, não obstante terem sido requeridos os apoios criados pelo Governo de então para apoio à manutenção dos contratos de trabalho, a sociedade não logrou obter qualquer apoio do Estado, o que piorou a sua situação económico-financeira; Condições pessoais: 27. O Arguido AA é casado e tem dois filhos maiores; 28. É gerente de escola de condução e a sua esposa é administrativa; 29. O agregado familiar vive em casa de familiares; 30. O rendimento do agregado é de € 3.800,00; 31. Além das despesas de quotidiano, tem a despesa da faculdade da filha; 32. Tem o curso superior de contabilidade e gestão; 33. O Arguido BB é divorciado; 34. Tem um filho maior de idade; 35. Está desempregado e vive de poupanças; 36. Vive sozinho em casa arrendada e paga € 500,00 de renda; 37. Frequentou o curso de direito até ao quinto ano; 38. A sociedade tem a sua atividade encerrada e está em liquidação; Antecedentes criminais: 39. Os Arguidos não têm antecedentes criminais; 40. Por sentença transitada em julgado a 16-02-2022, a sociedade foi condenada pela prática, em 2012, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, em pena de multa; * Consigna-se que não foram considerados os factos negativos (dos factos provados), os factos meramente conclusivos e os factos desprovidos de interesse e/ou relevância para a decisão da causa.* B) Motivação da decisão de facto:Os factos dados como provados e não provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto. Desde logo merece especial relevância, atento a natureza dos factos em apreciação, a prova documental junta aos autos, designadamente, a certidão permanente do Registo Comercial de fls. 13 a 19 e 235 a 247, a participação de fls. 56, a listagem de conta corrente de fls. 57e 58, a certidão de processo executivo de fls. 59 a 72, o mapa de cotizações em falta de fls. 73/213 e mapa de dívida de fls. 84, os prints de fls. 74 a 75, 99 a 107, os extratos de remunerações de fls. 97, 98, 113 a 119, o contrato de trabalho de fls. 137 a 140, os recibos de vencimento de fls. 141 a 160, a notificação para pagamento de fls. 167/168, 173 e 182, a informação de fls. 209, o parecer de fls. 214 a 225, assim como os documentos (em formato digital), relativos à insolvência e PER, juntos com a contestação a 08-04-2024 e os documentos cuja junção foi ordenada pelo Tribunal e que constam a 07-06-2024. Estes elementos documentais foram contextualizados pelas declarações prestadas pelas testemunhas EE, (técnica a exercer funções no Núcleo de Gestão da Dívida do Centro Distrital do Porto da Segurança Social), FF (antiga trabalhadora da sociedade) e GG (antiga funcionária da sociedade e sua contabilista certificada). Refira-se, de forma geral, que todas estas testemunhas prestaram declarações de forma isenta e credível, apenas transparecendo das mesmas uma intenção em relatar a factualidade de que tinham conhecimento face às funções que exerceram. EE confirmou o montante em divida, as declarações efetuadas pela sociedade e as notificações para pagamento (sem sucesso). FF confirmou que trabalhou na sociedade até 12-2020, as dificuldades financeiras de tal sociedade, o pagamento parcial das suas retribuições (teve de recorrer ao fundo de garantia salarial para as receber na integra), e o exercício de funções de gerência pelos Arguidos. GG relatou o histórico de dificuldades da sociedade, que remonta ao inicio do século, as sucessivas tentativas de superar as dificuldades (inclusive recorrendo a PER), a apresentação de declarações à SS, a existência de salários em atraso (inclusive os seus que, na sua expressão, eram pagos a retalho) e o exercício de funções de gerência pelos Arguidos. Por último, afirma que com a declaração de insolvência passou a enviar todas as comunicações aos gerentes e à Administradora de Insolvência. Posto isto. O Tribunal entende que está demonstrado que, nos períodos compreendidos entre o mês de janeiro de 2020 a setembro de 2020, os Arguidos determinaram que deduzissem e retivessem a parte das contribuições que deviam ser entregues na Segurança Social devidas pelos trabalhadores, nos termos plasmados em 1. a 15.. Com efeito, a sociedade manteve-se em laboração, com todos os custos daí advenientes, seja a título de mão de obra, seja a título de materiais, combustível, e ainda todas as despesas inerentes à mencionada atividade, bem como inscrição de alunos e frequência de aulas, teóricas e práticas, conforme refere a trabalhadora inquirida e resulta do relatório da Administradora de Insolvência e da ata da Assembleia de Credores realizada em 17-12-2020. Na verdade, estamos a falar de um período de vários meses em que, naturalmente, a sociedade teve despesas e gerou receitas (ainda que estas não chegassem para aquelas), pelo que foram feitas opções de alocar as receitas às despesas que mantivessem a atividade da sociedade. E é do conhecimento geral que as dividas tributárias não impedem, pelo menos no curto prazo, que uma sociedade se mantenha a funcionar, ao contrário de dividas a trabalhadores ou a fornecedores de materiais energia elétrica ou combustível, entre outros. Refira-se que a sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos de processo de Insolvência n.° ..., em 01.09.2020, transitada em julgado em 23.09.2020, pelo que a partir desta última data os Arguidos ficaram privados dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passaram a competir à Administradora da insolvência. Esta transferência imediata dos poderes de administração e disposição para a Administradora da insolvência não depende de um qualquer ato concreto e formal de apreensão de bens, bastando-se com o trânsito da sentença de declaração de insolvência. É certo que resultou demonstrado que estes continuaram a praticar alguns atos de gestão (conforme o mencionou FF), mas não se apurou que os mesmos pudessem dispor de meios ou poderes para cumprir com as obrigações em causa nos presentes autos, ou que tais decisões não tivessem sido tomadas pela própria Administrador da insolvência. A factualidade subjetiva, mencionada em 16. a 20., resulta, ainda, do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não diretamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum. No caso concreto, é do conhecimento geral que os atos em causa não são permitidos e são punidos penalmente. A factualidade de 21. a 26. resulta da documentação atrás mencionada, em conjugação com as declarações de GG e FF, além de, especificamente quanto ao descrito em 24. a 26., ser de conhecimento geral. O descrito em 27. a 38. resulta das declarações dos Arguidos. Os antecedentes criminais constam do certificado de registo criminal. * III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: A) Enquadramento jurídico-penal: (…) No caso vertente resultou provado que nos períodos compreendidos entre os meses de janeiro a setembro de 2020, os Arguidos, enquanto gerentes da sociedade arguida procederam ao desconto das quotizações referentes às remunerações pagas aos seus trabalhadores e fizeram a entrega regular na Segurança Social das respectivas declarações de remunerações, mas não entregaram, no prazo legal, ou seja, entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele que as contribuições respeitavam, nem nos noventa dias posteriores sobre o termo do prazo legal, o valor total daquelas quotizações deduzidas ao valor das remunerações, que ascendem € 17.577,60. Por outro lado, apurou-se que foram os Arguidos notificados nos termos do artigo 105.°, n.° 4 alínea b) e 6 do RGIT e não efetuaram qualquer pagamento. Temos, pois, que a sociedade arguida procedeu à dedução, nas remunerações dos trabalhadores, das quantias devidas à Segurança Social, não entregou tais quantias a este organismo, nem nos 15 dias do mês seguinte àquele a que respeitaram as contribuições, nem nos 90 dias seguintes ao vencimento daquele prazo e apropriou-se das mesmas quantias, já que não só não as entregou como as utilizou para fins diferentes. Em sede de audiência foi levantada a questão de as notificações terem sido efetuadas aos Arguidos (após a declaração de insolvência) e não à Administradora da insolvência. Ora, conforme acima já se deixou antever, nos termos do disposto no artigo 81.°, n.° 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Nas demais vertentes, designadamente as que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta), a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes (n.° 2 do artigo 82.° do CIRE) - Acórdão do Tribunal da Relação de 26-10-2017, processo 1023/15.0T9VFR-B.P1, e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-10-2017, processo 2500/15.9T9CBR.C1, entre outros, todos disponíveis em www.dgsi.pt.. Estão, por conseguinte, preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social. (…) C) Da perda de vantagens: O Ministério Público requereu, ainda, que se declare a perda das vantagens obtidas pelos Arguidos com a prática dos referidos factos, promovendo que se declare perdido a favor do Estado o valor de €29.422,39, e se condene, consequentemente, os mesmos a pagar tal quantia ao Estado. Para tanto alegou que os Arguidos, com a sobredita conduta, lograram integrar no património da sociedade, o montante referido, com o qual aumentaram o património daquela. (…) Volvendo a nossa objetiva para o caso vertente, temos por provado que durante o mencionado período a sociedade não procedeu à entrega das cotizações de trabalhadores, a qual se cifrou no montante de €29.422,39. Todavia, resultou provado que os Arguidos apenas agiram em representação e atuando em nome da sociedade arguida A..., Lda., por referência ao período entre janeiro e setembro de 2020. Desse modo, apenas por tal período devem ser responsabilizados. O facto de a Segurança Social ter formulado pedido de indemnização nos presentes autos em nada obsta à pretensão do Ministério Público deduzida na acusação. Diga-se, que esta perda de vantagem não significa que o montante possa ser pago duas vezes, porquanto qualquer pagamento nesta sede, ou em sede de execução tributária (ou até pagamento prestacional) será tido em consideração. Os referidos € €17.577,60 (no caso dos Arguido) e €29.422,39 (no caso da sociedade) traduzem, assim, recompensa/vantagem do crime, pelo que devem ser declarados perdidos a favor do Estado, contudo, como não se mostra possível a apropriação em espécie da vantagem em causa, deve tal perda ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor. * D) Do Pedido de Indemnização Civil:O Instituto de Segurança Social deduziu contra os Arguidos pedido de indemnização civil, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de € 29.422,39, acrescida de juros vencidos e vincendos. (…) Provou-se que os arguidos AA e BB, por si e em nome e representação da sociedade arguida A..., Lda., procederam ao desconto, nos salários efetivamente pagos (ainda que parcialmente) aos seus trabalhadores, da percentagem de 11%, relativa a cotizações para a Segurança Social do regime geral - no período compreendido entre os meses de janeiro a setembro de 2020 (inclusive), perfazendo o valor total de € 17.577,60. Mais se provou que entre os meses de outubro a dezembro de 2020 (inclusive), a sociedade arguida procedeu ao desconto, nos salários efetivamente pagos (ainda que parcialmente) aos seus trabalhadores, da percentagem de 11%, relativa a cotizações para a Segurança Social do regime geral, perfazendo o valor total de € 11.844,79. Praticaram, por isso, um facto ilícito (violador das normas que obrigam as entidades patronais a proceder ao desconto, nas remunerações dos trabalhadores das contribuições do regime da segurança social e a entregar tais contribuições à Segurança Social, e culposo (reprovável ou censurável pelo direito, porquanto podiam e deviam ter agido de outro modo), tendo tal facto sido causa (adequada) dos danos sofridos pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Deste modo, verificam-se todos os pressupostos vertidos no artigo 483.°, n.° 1 do Código Civil. Assim sendo, e por todo o exposto, os Arguidos constituíram-se na obrigação de indemnizar o Instituto da Segurança Social pelos danos patrimoniais sofridos. Assim, porquanto o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social sofreu o prejuízo económico correspondente ao valor das contribuições deduzidas e não entregues, e o montante da indemnização por danos patrimoniais deve, nos termos atrás expostos, medir-se pela diferença entre a situação real em que o credor se encontra e a situação hipotética em que ele se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano, impendendo, assim, sobre o demandado a obrigação de repor a situação que existiria se não fosse o crime, pelo que serão os Arguidos condenados a pagar o montante peticionado, a titulo de contribuições devidas à Segurança Social.” *** II.3. Apreciação do recurso II.3.1. Dos vícios decisórios – artigo 410º do CPP §1. Os recorrentes invocam expressamente no seu requerimento de recurso que a sentença enferma de nulidade por existir vício de contradição entre os factos e a fundamentação da decisão de facto. Argumentam que a sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida em 01.09.2020 e transitada em julgado a 23.09.2020, tendo os arguidos ficado desde a data da declaração de insolvência privados do acesso às contas bancárias da sociedade e como tal impedidos de efetuar qualquer pagamento à Segurança Social (pagamentos a efetuar entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele em que salários foram pagos e retidos os descontos legais); à data da declaração de insolvência da sociedade as quotizações referentes ao mês de Agosto de 2020 ainda não se encontravam vencidas, pelo que, o tribunal a quo teria que nos factos provados distinguir os factos referentes aos meses de Janeiro a Julho de 2020 e os factos referentes aos meses de Agosto a Dezembro de 2020, o que não fez, embora na motivação tenha feito essa alusão. Adiantamos que não assiste razão aos recorrentes. * §2. Nos termos do artigo 410º, n.º 2 do CPP o recurso interposto sobre a matéria de facto de uma sentença proferida em processo crime pode ter um de três fundamentos: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.Relativamente aos referidos vícios os mesmos terão de resultar do texto da decisão recorrida (sem auxílio de elementos intraprocessuais narrativamente estranhos ou de elementos extraprocessuais), por si só (autónomos) ou conjugada com as regras da experiência. Sendo do conhecimento oficioso (cfr. acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), percorrida a sentença recorrida não encontramos qualquer insuficiência da matéria de facto provada para a concreta decisão de direito proferida pelo tribunal a quo (cfr. artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP) e também não é revelada da leitura da decisão que qualquer facto foi considerado provado de maneira contrária a todas as evidências, de forma clamorosamente errada, com base num erro de raciocínio do julgador, que consiste em ter retirado da prova uma ilação manifestamente errada, insusceptível de levar ao convencimento de qualquer pessoa (cfr. artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP). * §3. Passemos agora a analisar o invocado vício decisório previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do CPP.Conforme supra explanado a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão tem necessariamente que decorrer do texto da decisão recorrida e traduz-se numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entes este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão” (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 63), podendo configurar-se de três modos distintos: - “(…) contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; - “(…) contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; - “(…) contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 64). “Por contradição, entende-se o facto de se afirmar ou negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se por proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na qualidade ou na quantidade. Para os fins do preceito (…) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada como o recurso à decisão recorrida no seu todo, por si ou com o auxílio das regras da experiência. Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” (Leal Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, 2ª ed., pág. 739). Transpondo estas breves considerações para o caso vertente, analisada a decisão recorrida não vislumbramos a invocada contradição. Na verdade, por outro lado, os factos provados permitem concretizar quer o período temporal em que não foram entregues à Segurança Social as quantias deduzidas dos salários pagos aos trabalhadores, quer o valor mensal de cada uma dessas cotizações em falta. Acresce que a matéria de facto provada (designadamente os pontos 11, 12 e 13) distingue claramente os descontos efectuados pelos arguidos daqueles que foram perpetrados pela sociedade. Por outro lado, da fundamentação de facto e de direito resulta que os arguidos/recorrentes apenas foram responsabilizados pelo período temporal compreendido entre os meses de Janeiro a Setembro de 2020. Questão diversa é a de saber se os factos provados permitiam responsabilizar os recorrentes por todo o período temporal correspondente aos meses de Janeiro a Setembro de 2020, questão essa que será apreciada adiante. Assim, atendendo ao teor da sentença recorrida, teremos que concluir que a mesma não evidencia, por si e no seu texto, o vício previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP. Improcede neste segmento o recurso. *** II.3.2. Da verificação da condição objectiva de punibilidade – artigo 105º do RGIT §1. Os recorrentes alegam que estando a sociedade arguida insolvente a notificação para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b) e n.º 6 do RGIT deveria ter sido remetida à Sra. Administradora da Insolvência; a omissão dessa notificação constitui uma nulidade que afecta a validade do acto/notificação dos arguidos/recorrentes nos termos previstos no artigo 120º, n.º 2, al. d) e n.º 3, al. c) do CPP. * §2. No caso dos autos, a sociedade arguida foi notificada em Junho de 2023 na pessoa dos seus legais representantes – os aqui recorrentes – nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT (cfr. fls. 108 a 112 e 123 a 127 do oficio junto aos autos com a referência 36521771).A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos de processo de Insolvência n.º ..., em 01.09.2020, transitada em julgado em 23.09.2020, não tendo até ao momento sido liquidada, tendo sido nomeada a administradora de Insolvência. A declaração de insolvência da sociedade quando decidida a sua liquidação é um dos casos de dissolução da sociedade (artigo 141º do Código das Sociedades Comerciais, doravante CSC). A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mantendo a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedade não dissolvidas (artigo 146º, n.ºs 1 e 2 do CSC) e a sociedade só se extingue com o culminar da fase de liquidação e partilha, concretamente, com o registo do encerramento da liquidação (artigo 160º, n.º 2 do CSC). Por força do disposto no artigo 81º, n.º 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) “A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”, assumindo o administrador da insolvência “a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência” (n.º 4 do mesmo preceito legal), sendo que “a representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.” (n.º 5 do mesmo preceito legal). No que concerne ao âmbito das funções do administrador da insolvência, sufragamos a argumentação expendida no acórdão do TRL de 12.10.2011, relatado por Maria José Costa Pinto (acessível em www.dgsi.pt) quando afirma que “…por um lado, que as funções do administrador da insolvência se direccionam, essencialmente para a liquidação da massa insolvente e, por outro lado, que os seus poderes de representação se restringem aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.” Ora, como se escreveu no citado arresto quando a sociedade “assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência – relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência –, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos”. Acresce ainda que a representação da sociedade declarada insolvente mesmo num processo criminal terá que ser assegurada pelas pessoas responsáveis pela sua gestão ao tempo da prática dos factos ilícitos. Transpondo estas breves considerações para o caso concreto, a notificação da sociedade arguida para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT possui naturalmente natureza e relevância penal, estando configurada como condição objectiva de punibilidade pelo acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 6/2008, de 09.04.2008, relatado por José António Henriques Santos Cabral (publicado no DR Série I, n.º 94, de 15.05.2008), pelo que, a mesma teria de ser realizada na pessoa dos recorrentes enquanto seus legais representantes (que à data dos factos foram os responsáveis pelo pagamento das remunerações aos trabalhadores da sociedade arguida) e não na pessoa da administradora da insolvência (veja-se, entre outros, os acórdãos do TRL de 12.10.2011, relatado por Maria José Pinto e de 13.02.2020, relatado por Cristina Branco, do TRP de 26.10.2017, relatado por Neto Moura e de 07.06.2023, relatado por Maria Joana Grácio e do TRC de 25.06.2014, relatado por Elisa Sales, todos acessíveis em ww.dgsi.pt). Por conseguinte, a notificação da sociedade arguida encontra-se regularmente efectuada, verificando-se assim a condição de punibilidade a que alude o artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT. Improcede, nesta parte, o recurso. *** II.3.3. Da perda de vantagens e do pedido de indemnização civil II.3.3.1. Da condenação concomitante da perda de vantagens e do pedido de indemnização civil §1. Os recorrentes alegam que no dispositivo da sentença recorrida não é feita qualquer menção quanto à impossibilidade de os recorrentes serem cobrados duas vezes; a vasta jurisprudência considera que não há lugar ao decretamento da perda de vantagens se o lesado optar pela recuperação do seu crédito por outra via, o que no caso fez apresentando pedido de indemnização civil. A pretensão dos recorrentes está categoricamente votada ao insucesso. * §2. A questão suscitada no presente recurso sobre se há lugar a perda das vantagens obtidas através de facto ilícito típico, nos termos do disposto no art.º 111.º, do CP, nas situações em que o arguido foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil ao lesado, encontra-se actualmente dirimida com o acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2024, de 11.04.2024, relatado por Leonor Furtado (publicado no DR Série I, n.º 90, de 09.05.2024), que fixou a seguinte jurisprudência:“Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.”. Assim, sem necessidade de quaisquer considerações, a decisão recorrida não merece qualquer reparo ao condenar os recorrentes concomitantemente no pagamento ao Estado do montante respeitante às vantagens adquiridas pela prática dos factos e no pagamento do ao demandante civil Instituto da Segurança Social do pedido de indemnização civil. Quanto ao facto de o dispositivo da decisão recorrida não constar a impossibilidade de os recorrentes serem cobrados duas vezes, cremos que o tribunal recorrido não tinha que fazer qualquer menção nessa parte da decisão, porquanto, no segmento “C) Da perda de vantagens” essa impossibilidade está expressamente salvaguardada ao afirmar-se que “esta perda de vantagem não significa que o montante possa ser pago duas vezes, porquanto qualquer pagamento nesta sede, ou em sede de execução tributária (ou até pagamento prestacional) será tido em consideração.” Improcede igualmente, nesta parte, o recurso. ** II.3.3.2. Da condenação indevida no pagamento das prestações correspondentes aos meses de Agosto e Setembro de 2020 §1. Os recorrentes sustentam que por força da declaração de insolvência da sociedade arguida ocorrida em 01.09.2020 os mesmos ficaram impedidos de aceder às contas bancárias da sociedade, pelo que se viram impossibilitados de fazer os pagamentos das cotizações respeitantes aos meses de Agosto e Setembro de 2020, não podendo estes valores terem sido incluídos no valor da perda de vantagens, nem no valor do pedido de indemnização civil. * §2. Da factualidade apurada resulta que a sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos de processo de Insolvência n.º ..., em 01.09.2020, transitada em julgado em 23.09.2020.Após a data do trânsito em julgado da decisão da declaração de insolvência os recorrentes passaram de facto a ficar privados de dispor dos bens integrantes da massa falida (cfr. artigo 81º, n.º 1 do CIRE). No período compreendido entre os meses de Janeiro a Setembro de 2020 os recorrentes, enquanto gerentes da sociedade arguida, procederam ao desconto das cotizações referentes às remunerações pagas aos seus trabalhadores, sendo que esses montantes deduzidos teriam que ser entregues na Segurança Social entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele que as contribuições respeitam (cfr. artigo 43º do Código Contributivo da Segurança Social). Atenta a data do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da sociedade arguida e o prazo em que as cotizações deviam ser entregues junto da Segurança Social, temos que concluir que as cotizações relativas ao mês de Agosto de 2020 ainda podiam ter sido efectivamente entregues pelos recorrentes junto da Segurança Social no mês de Setembro de 2020. Donde, nesta parte a pretensão recursiva não merece qualquer acolhimento. Já quanto às cotizações referentes ao mês de Setembro de 2020, uma vez que as mesmas tinham que ser entregues entre os dias 10 e 20 do mês de Outubro, os recorrentes não podem ser responsabilizados por não terem sido entregues na Segurança Social já que nessa altura se encontravam privados de dispor dos bens integrantes da massa falida. Assim, importa alterar em conformidade o segmento da sentença relativa à declaração da perda de vantagens de modo a que os recorrentes sejam condenados a pagar aos Estado apenas o montante de 16.030,00 (correspondente à soma dos valores do período compreendido entre os meses de Janeiro a Agosto de 2020 descritos no ponto 12 dos factos provados). Consequentemente, os arguidos também só podem ser condenados a pagar ao demandante cível essa mesma quantia (com a ressalva que essa quantia não pode evidentemente ser paga duas vezes), pelo que, também se impõe alterar nesta parte a sentença recorrida por forma a que os recorrentes sejam condenados a pagar ao demandante civil apenas a quantia de € 16.030,00. Procede parcialmente, neste segmento, o recurso. **** III- DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, em consequência, decide-se: a) Alterar a sentença recorrida no que respeita ao montante da perda de vantagens em que os recorrentes/arguidos AA e BB foram condenados, que passa a ser de € 16.030,33 (dezasseis mil e trinta euros e trinta e três cêntimos). b) Alterar a sentença recorrida na parte relativa ao valor do pedido de indemnização civil em que os recorrentes/demandados AA e BB foram condenados, que passa a ser de 16.030,33 (dezasseis mil e trinta euros e trinta e três cêntimos); c) Confirmar, no demais, a decisão recorrida. * Sem custas criminais (artigo 513º, nº 1 do CPP).Custas do pedido de indemnização civil a cargo dos recorrentes/demandados na proporção do respectivo decaimento, sendo a taxa de justiça calculada nos termos da tabela I-B do RCP (artigo 523º do CPP e artigo 527º do CPC). * Porto, 04.12.2024 Maria do Rosário Martins (Relatora) Amélia Catarino (1ª Adjunta) Madalena Caldeira (2ª Adjunta) |