Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14167/19.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ NUNO DUARTE
Descritores: MURO DIVISÓRIO
PRESUNÇÃO DE COMPROPRIEDADE
Nº do Documento: RP2025052614167/19.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A alegação das partes deve ser expurgada tanto de considerações de direito como de afirmações conclusivas, as quais, igualmente, devem ficar arredadas do acervo factual fundamentador da decisão sobre o mérito da causa.
II – O facto de um muro divisório de dois prédios situadas a cotas diferentes sustentar as terras daquele que se situa a uma cota mais elevada, mesmo conjugado com o facto de nesse prédio se encontrar erigida uma construção, não faz presumir, nos termos do n.º 5 do artigo 1371.º do Código Civil, que o muro em causa pertence exclusivamente ao dono da construção, pois isso só aconteceria se a edificação em causa se apoiasse em toda a largura do muro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 14167/19.0T8PRT.P1

Relator: José Nuno Duarte; 1.ª Adjunta: Teresa Fonseca; 2.ª Adjunta: Teresa Pinto da Silva.

Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

AA, residente na Viela ..., ..., Porto, instaurou a presente acção declarativa, com forma de processo comum, contra BB, residente na Viela ..., Porto, peticionando que se declare que:

- “[o] muro contíguo contíguo que separa o prédio propriedade do Autor do prédio propriedade do Réu é pertença do Autor” e que o Réu seja condenado:
a) a reconhecer e respeitar o direito de propriedade do Autor e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;
b) a cessar de imediato a prática de qualquer acto que viole o direito de propriedade do Autor sobre aquele prédio;
c) a desocupar o muro em toda a sua extensão retirando os dois anexos por si construídos;
d) a anuir que o Autor execute obras no muro a partir do prédio propriedade do Réu dado os prédios se situarem em todas diferentes um do outro;
e) a pagar ao Autor a indemnização pelos prejuízos causados na quantia que vier a liquidar-se.

O Réu contestou a acção, pugnando pela sua improcedência, e deduziu reconvenção, pedindo que o Autor/Reconvindo seja condenado a:

- “[r]econhecer e respeitar que o Reconvinte é titular de um direito de propriedade exclusivo sobre o muro e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito”, bem como:
a) a cessar de imediato a prática de qualquer ato que o viole o direito de propriedade exclusivo do Reconvinte sobre aquele muro e sobre a sua propriedade;
b) a desocupar o muro em toda a sua extensão demolindo a construção existente sobre o mesmo, a saber a sua moradia;
c) a demolir o muro novo construído porquanto constituído em abuso de direito;
d) a resolver o problema de acumulação de águas existente fruto da sua construção;
e) a pagar ao Reconvinte uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos no montante de 10.000,00 (dez mil euros) a que acrescerão juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
Se assim não se entender,
f) a reconhecer e respeitar o direito de compropriedade do Reconvinte sobre o muro e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;
g) a cessar de imediato a prática de qualquer acto que o viole o direito de propriedade do Reconvinte sobre aquele muro;
h) a desocupar o muro em toda a sua extensão demolindo a construção existente sobre o mesmo, a saber a sua moradia;
i) a demolir o muro novo construído porquanto constituído em abuso de direito;
j) a resolver o problema de acumulação de águas existente fruto da sua construção;
k) a pagar ao Reconvinte uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofrido 10.000,00 (dez mil euros) a que acrescerão juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.

Entretanto, por sentença proferida em processo apenso, foram julgados habilitados para prosseguirem como Réus nos autos os herdeiros do Réu BB, falecido em 15 de Fevereiro de 2020: CC, DD, EE, FF e GG.

O processo seguiu os seus regulares termos até à realização da audiência final.

Depois de encerrada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
a) Julga-se a ação improcedente, por não provada, e, em consequência absolve-se os Réus habilitados dos pedidos formulados pelo Autor.
b) Julga-se o pedido reconvencional parcialmente procedente, por parcialmente provado, e, em consequência, condena-se o Autor/Reconvindo a reconhecer o direito de compropriedade dos Réus Habilitados sobre o muro divisório, absolvendo-se o Autor/Reconvindo do demais peticionado pelos Réus/Reconvintes.
Custas da acção a cargo do Autor, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Custas da reconvenção a cargo de Autor e Réus Habilitados na proporção de 1/5 para o Autor e 4/5 para os Réus, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


-

O Autor, AA, veio recorrer desta decisão, apresentado alegações, motivadas nos termos legais, com as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo aplicou incorrectamente a presunção de compropriedade prevista no artigo 1371.º, n.º 2, do Código Civil, sem considerar adequadamente o facto de o muro divisório estar inteiramente dentro dos limites da propriedade do Recorrente, conforme demonstrado pela perícia e nos factos provados.
2. Nos termos do artigo 1371.º, n.º 5, do Código Civil, quando o muro sustenta as terras ou construções de apenas um dos lados, presume-se que ele pertence exclusivamente ao proprietário desse lado. Neste caso, o muro sustenta as terras do prédio do Recorrente, que se encontra numa cota superior, o que afasta a presunção de compropriedade.
3. O relatório pericial, no ponto 2, conclui que o muro está dentro dos limites da propriedade do Recorrente, corroborando a sua titularidade exclusiva sobre o muro, conclusão esta que não foi adequadamente reflectida no ponto 12 dos factos provados, e que deverá ser alterado nos termos propostos nas alegações.
4. O tribunal cometeu erro de julgamento de facto, nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, ao omitir na redacção dos factos provados que o muro pertence fisicamente à propriedade do Recorrente.
5. O alvará de licenciamento de obras emitido pela Câmara Municipal do Porto, que autorizava a reconstrução do muro, também foi desconsiderado pelo tribunal, embora indicasse implicitamente a delimitação do terreno e do muro como parte da propriedade do Recorrente.
6. A sentença recorrida padece de erro de direito ao aplicar a presunção de compropriedade sem ponderar os elementos probatórios que demonstram que o muro sustenta as terras e a construção do prédio do Recorrente, devendo, assim, ser reconhecida a titularidade exclusiva do muro ao Recorrente.
7. Se o muro suporta as terras de um prédio, e se essas terras têm construções edificadas sobre elas, então, o muro, ao sustentar as terras, também está a suportar indirectamente as construções. Isso é particularmente relevante quando as construções estão numa cota superior, pois a estabilidade das construções depende da sustentação do solo.
8. Com base nos factos apurados, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que reconheça a propriedade exclusiva do muro ao Recorrente e julgue a acção procedente.


Nestes termos e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra que reconheça a titularidade exclusiva do muro divisório ao Recorrente, com as devidas consequências legais.

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A Ré habilitada CC apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida.
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O recurso foi admitido por despacho, que, correctamente, o classificou como sendo de apelação e lhe atribuiu efeito meramente devolutivo, ordenando a sua subida imediata, nos próprios autos, a este Tribunal da Relação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), as questões a tratar são as seguintes:
a) se o ponto 12 dos Factos Provados deve ser alterado em conformidade com o peticionado pelo recorrente;
b) se a existe base factual e jurídica para que se reconheça que o recorrente é o titular exclusivo do direito de propriedade sobre o muro divisório existente entre os prédios das partes.


***


III – FUNDAMENTAÇÃO


A) Dos factos

Para resolver a primeira questão acima enunciada, cumpre atentar, antes de mais, na matéria de facto que foi fixada na sentença recorrida, a qual foi a seguinte:

Factos provados:
1) O Autor é dono e legítimo proprietário do prédio urbano, sito na Viela ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...92.
2) O citado prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...17 da freguesia ....
3) Tal prédio é composto por casa de rés-do-chão e quintal, com área total de terreno de 449,90 m2, área coberta de 225,16 m2 e área descoberta de 381,9 m2.
4) O Réu é dono do prédio urbano sito na Viela ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto.
5) O Autor obteve junto da Câmara Municipal do Porto o Alvará de Obras n.º ALV/...0/14/DMU, em 20 de Maio de 2014, o qual licenciou a construção de um fogo, de rés-do-chão, destinado a habitação, no prédio urbano acima referido.
6) O Autor iniciou as obras de construção de um fogo destinado a habitação em 18 de Outubro de 2014.
7) Entre outras obras estava programa a reconstrução de um muro que separa o prédio propriedade do Autor do prédio propriedade do Réu.
8) Tal reconstrução não foi possível.
9) Não foi possível cumprir o prazo de conclusão das obras.
10) As obras acharam-se concluídas em meados do ano de 2016.
11) O prédio urbano propriedade do Réu situa-se a uma cota mais baixa do que o prédio urbano propriedade do Autor.
12) São separados por um muro contiguo que divide os prédios e suporta o prédio do Autor, que está uma cota superior.
13) O referido muro é feito em pedra.
14) Tem edificados sobre si dois anexos construídos pelos anteproprietários do prédio do Réu.
15) Era intuito do Autor levantar um novo muro para separação das propriedades, muro esse em betão.
16) Em 04 de Junho de 2015 o Autor enviou ao Réu carta registada com aviso de recepção da qual consta “(…) estamos em fase de construção do muro separador dos dois talhões, muro esse, que necessito demolir e construir de novo, devido ao mau estado em que ele se encontra.” E continua “(…) Para que a realização do muro seja feita, agradecia que libertasse em toda a extensão do muro os anexos que se encontram assentes no mesmo, assim como vinha solicita-lo para que me desse autorização para do lado do seu talhão executar as obras necessárias de forma a cumprir o projeto aprovado pela Câmara Municipal do Porto.
17) Em 17 de Junho de 2015 promoveu o Autor junto da Câmara Municipal do Porto uma exposição.
18) O Autor recebeu uma carta do Réu, datada de 16 de Junho de 2015.
19) Da referida consta que o Autor deve “(…) se abster de praticar quaisquer actos que venham a afectar quer o muro e quer a habitação” e “(…) o muro em causa se encontra em bom estado de conservação e é feito de pedra”.
20) Em 17 de Julho de 2015 enviou o Autor nova carta registada com aviso de recepção ao Réu, pedindo a desocupação do muro e disponibilizou ao Réu o Alvará de Obras.
21) O Autor não obteve resposta à carta referida em 20.
22) O Autor construiu um muro paralelo ao já existente.
23) O muro paralelo ao já existente tem cerca de 70 centímetros de largura e 180 centímetros de altura.
24) O Autor é tetraplégico, com um grau de incapacidade de 95 %.
25) O Autor entrou na posse e propriedade do prédio identificado em 1. no ano de 2014, tendo outorgado a escritura de compra e venda em 10/01/2014.
26) O prédio do Réu tem cerca de 300 anos.
27) O Réu e a família residem no imóvel desde 1988.
28) No prédio do Autor existia uma casa cor-de-rosa.
29) O prédio do Réu está, igualmente, murado pelos outros lados.
30) Foram construídos dois anexos no prédio do Réu numa zona mais distante da zona da entrada do imóvel e que ocuparam a largura do muro.
31) Esses anexos foram construídos em data anterior a 1979.
32) As paredes posteriores dos anexos são o próprio muro.
33) Existem espigões no muro do lado do prédio do Réu.
34) Do lado do seu prédio, o Réu procedeu a manutenções no muro, retirando ervas e silvas.
35) Entre 1976 e 1979 HH executou obras de restauração e ampliação do imóvel sito na Viela ..., ....

Factos não provados:
a) O muro divisório encontra-se muito degradado.
b) Os anexos encontram-se em mau estado de conservação.
c) O Autor despendeu aproximadamente a quantia de € 5.350,00 (cinco mil trezentos e quinze euros) com a construção do muro paralelo.
d) Com a construção do muro paralelo o Autor perdeu cerca de 7 m2 de terreno.
e) O muro divisório não oferece condições mínimas de segurança.
f) A reconstrução do muro divisório implica a demolição do muro paralelo.
g) O dia-a-dia do Autor sofreu alterações.
h) O Réu e os seus familiares apresentaram diversas queixas sem fundamento.
i) Em virtude da situação provocada pelo Réu, o Autor não conseguia comer, dormir e esquecia-se, frequentemente, dos seus afazeres diários.
j) Em virtude da situação provocada pelo Réu, o Autor teve de tomar antidepressivos.
k) Toda a espessura do muro divisório está erigida no prédio do Autor.
l) A construção existente no prédio do Autor não era suportada pelo muro.
m) O muro divisório foi construído pelos anteriores proprietários do imóvel do Réu.
n) As construções que se situam imediatamente junto à rua da “Viela ...” dentro da propriedade do Réu, há aproximadamente 50 anos, encontram-se suportadas em toda a sua largura pelo muro.
o) Todos os suportes do muro divisório estão virados e localizados no interior do prédio do Réu.
p) Desde 1988 o Réu cuida do muro como seu único e exclusivo proprietário.
q) Ninguém manifestou oposição à construção dos anexos.
r) O novo muro construído pelo Autor tem uma altura superior à legalmente determinada, o que originou a perda de luminosidade e calor em parte do logradouro do prédio do Réu.
s) Gera correntes de ar.
t) E impede praticamente a passagem dos raios solares para a propriedade do Réu.
u) O muro construído vem criando acumulação de águas que estão a ser conduzidas, sem mais, para a propriedade do Réu.
v) A conduta do Autor provocou um agravamento do estado de saúde do Réu.

2. O recorrente, em cumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, impugnou especificadamente o ponto 12 dos Factos Provados, no qual se afirma que os prédios urbanos pertencentes ao A. e aos RR. “[s]ão separados por um muro contiguo que divide os prédios e suporta o prédio do Autor, que está uma cota superior.”.

Propugna o recorrente para que a redacção desse ponto de facto seja alterada e passe a ser a seguinte: “O muro em questão está dentro dos limites da propriedade do Recorrente e serve de suporte às terras do seu prédio, que se encontra numa cota superior à do prédio do Recorrido.”.

Conforme se afere pela simples comparação da actual redacção do ponto 12 e daquela que é proposta pelo recorrente, a alteração peticionada apenas tem o alcance de inserir na matéria de facto provada que o muro que existe entre o prédio do A./Recorrente e o prédio dos RR./Recorridos “está dentro dos dos limites da propriedade do Recorrente”, pois tanto o facto de esse muro suportar as terras do prédio do Recorrente, como o facto de este último prédio se situar numa cota superior à do prédio do Recorrido, já se encontram referidos no texto do ponto 12 que consta da sentença recorrida.

Sucede que, conforme vem sendo referido na nossa jurisprudência [1], as decisões judiciais não se podem fundamentar em afirmações conclusivas ou genéricas, pois o acolhimento, entre nós, do chamado princípio do dispositivo (cf. artigo 5.º do Código de Processo Civil), postula que as partes, para além da incumbência de pedir a resolução do conflito, delimitem os termos do litígio, alegando, para esse efeito, os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, sem que, para tal, utilizem fórmulas desprovidas do necessário substrato factual concreto [2]. Só dispondo de factos concretos é que o tribunal pode desenvolver a sua actividade, determinando qual a realidade ocorrida para, com base na mesma, aplicar o direito e decidir o litígio. Por isso, a alegação das partes deve ser expurgada tanto de considerações de direito como de frases conclusivas, as quais, igualmente, devem ficar arredadas do acervo factual fundamentador da decisão sobre o mérito da causa [3].

Ora, no caso dos autos, considerando-se que aquilo que, antes de tudo o mais, está em discussão nos autos é a questão de saber se o muro que separa o prédio urbano do A./Recorrente sito na Viela ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, do prédio dos RR./Recorridos, sito no n.º ...7 da mesma Viela ..., pertence a um ou ao outro prédio – sendo, por isso, completamente controvertida a definição, ao longo da confrontação onde se encontra o muro, dos exactos limites dos dois prédios –, é forçoso reconhecer que a afirmação de que o muro em causa “está dentro dos limites da propriedade do Recorrente” (como também seria o caso de se afirmar que o mesmo “está dentro dos limites da propriedade dos Recorridos) envolve um juízo de valor sobre o thema decidendum e, por isso, reveste-se de carácter inequivocamente conclusivo. Só mediante a alegação e a prova daqueles que sejam os exactos limites de um e do outro prédio (o que in casu não foi feito por qualquer das partes) é que poderia ser possível determinar – ou seja, concluir – se, afinal, o muro se situa dentro do prédio do A., dentro do prédio dos RR., ou, até, se o mesmo se encontra erigido em terreno parcialmente pertencente aos dois prédios.

Face ao que se acaba de explicar, afigura-se-nos claro que a afirmação que o Recorrente pretende incluir na matéria de facto provada (que o muro objecto do litígio “está dentro dos limites da propriedade do Recorrente”), devido à sua matriz conclusiva, não pode integrar o leque da matéria de facto que, uma vez julgada verificada, deva ser considerada para, aplicando-se-lhe o direito, fundamentar a decisão da causa. Consequentemente, ante a impossibilidade de atender a pretensão do Recorrente, desnecessário se torna proceder a qualquer análise adicional, designadamente à aferição da pertinência das considerações recursivas sobre a prova recolhida e produzida nos autos.

Pelo exposto, indefere-se a impugnação da matéria de facto efectuada pelo Recorrente, decidindo-se que o teor do ponto 12) dos Factos Provados se mantenha tal como fixado pelo tribunal a quo.


B) Do direito

Resta aferir agora se a decisão proferida pelo tribunal a quo deve ser mantida ou se deve ser dada razão ao Recorrente e reconhecer-se que ele é o pleno proprietário do muro divisório existente entre os prédios situados nos n.ºs ...7 e ...7 da Viela ..., ..., Porto.

A sentença recorrida, após considerar que a factualidade provada não permitia afirmar que a propriedade do muro existente entre os dois prédios acima referidos pertencia ao Autor (ora recorrente) ou aos Réus, julgou verificada a presunção de compropriedade do muro em causa resultante do disposto no artigo 1371.º, n.º 2, do Código Civil, norma legal cujo teor é o seguinte:

- “Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário”.

No caso sub judice, está em discussão a propriedade de um muro existente entre os quintais de dois prédios urbanos, pois, apesar de estarem erigidos edifícios nesses prédios, o mencionado muro não se situa entre dois edifícios, separando, sim, espaços exteriores desses dois imóveis. Por isso, andou bem o tribunal a quo ao situar a análise do caso em torno da referida norma. Consequentemente, a pretensão do recorrente, no sentido de obter decisão judicial que declare que o muro em apreço é da sua propriedade exclusiva, apenas poderá proceder mediante a demonstração de que o muro é parte integrante do seu prédio – o que pressupõe a prova da aquisição do respectivo direito de propriedade – ou, tal não acontecendo, mediante a demonstração de que existem sinais que excluem a presunção de compropriedade estabelecida no artigo 1371.º, n.º 2, do Código Civil e, substituindo-a, fazem presumir que o muro pertence ao prédio sito no n.º ...7 da Viela ....

Quanto à prova da aquisição originária do direito de propriedade sobre o muro, compulsada a factualidade apurada nos autos, é manifesto que a mesma não foi efectuada, pelo que, conforme conclusão correcta do tribunal a quo, não é possível afirmar, por esta via, que o ora recorrente é titular do direito real de que se arroga.

No que concerne à existência de sinais que excluam a presunção de compropriedade do muro e façam presumir, antes, que o muro pertence ao prédio do ora recorrente, de acordo com o disposto nos n.ºs 3, 4 e 5 do artigo 1371.º Código do Processo Civil, tal apenas ocorrerá se estiver demonstrado que:
a) existe no muro espigão em ladeira que se inclina para o lado do prédio do recorrente; ou
b) existem encravados em toda a largura do muro, mas apenas do lado do prédio do recorrente, cachorros de pedra salientes; ou
c) o prédio contíguo não está igualmente murado pelos outros lados; ou
d) o muro sustenta, em toda a sua largura, uma qualquer construção que esteja só do lado de um dos prédios confinantes.

Ora, vista novamente a factualidade que, após julgamento, se encontra provada, fácil é constatar que também não se encontra demonstrada a existência in casu de qualquer destas situações. Não apenas, tal como se afirma na sentença recorrida, inexiste prova de que se verifique uma qualquer situação enquadrável nas três primeiras alíneas acima referidas (e que correspondem aos sinais excludentes da compropriedade aludidos no n.º 3 do artigo 1371.º do Código Civil); como também não existe prova de que se verifique a situação excludente da compropriedade supra-referida na alínea d) (e que corresponde àquela que está prevista no n.º 5 do artigo 1371.º do Código Civil). Com efeito, segundo aquilo que se entende, o facto de, no caso dos autos, estar provado que o muro divisório sustenta as terras do prédio do Autor, situado a uma cota mais elevado que que a cota do prédios dos Réus, e também que no prédio do Autor está implantada uma construção, não é bastante para se excluir a presunção de compropriedade e se presumir que o muro pertence ao dono do prédio onde está a construção. Para que isso aconteça, segundo o disposto no artigo 1371.º, n.º 5, do Código Civil, é necessário algo ligeiramente diferente: é necessário que o muro sustente, em toda a sua largura, uma construção, ou seja, que exista uma construção que esteja apoiada no muro. No caso sub judice, não foi feita prova de que, no prédio do Autor, exista uma qualquer construção nesta situação. Como tal, não se pode presumir também que o muro pertença ao ora recorrente.

Face a tudo quanto se acaba de expor, é forçoso decidir no sentido da confirmação da sentença recorrida.

O recorrente, atento o seu decaimento, deve suportar as custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).


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III – DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
a) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida;
b) condenar o recorrente no pagamento das custas da apelação.

Notifique.


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SUMÁRIO

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(elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)

Porto, 2025/05/26

José Nuno Duarte

Teresa Fonseca

Teresa Pinto da Silva.

Acórdão datado e assinado electronicamente

(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)

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[1] Vide, entre outros: Ac. STJ 28-09-2017, proc. 659/12.6TVLSB.L1.S1, rel. Fernanda Isabel Pereira; Ac. STJ 6-04-2021, proc. 2541/19.7T8STB.E1.S1, rel. Fernando Samões; Ac. RG 30-06-2022, proc. 984/12.6TMBRG-B.G1, rel. Pedro Maurício; Ac. RP 27-09-2023, proc. 9028/21.6T8VNG.P1, rel. Jerónimo Silva. <URL: http://www.dgsi.pt/>.
[2] Como afirmava Alberto dos Reis, “[o] tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais, conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos, quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir” (Código de Processo Civil Anotado, II, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1980, p.125)
[3] Ainda que, actualmente, se assista a uma tendência para, com base na ideia de que não há uma exacta separação entre a matéria de facto e a matéria de direito, se superar algum formalismo e rigidez que, outrora, levava à exclusão de factualidade com substrato aproveitável, continua a aceitar-se que devem ser erradicadas da matéria de facto afirmações valorativas que estejam directamente relacionados com o thema decidendum, que impeçam a percepção da realidade concreta, ou que, por si mesmo, ditem a solução jurídica do caso.