Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOSÉ NUNO DUARTE | ||
Descritores: | MURO DIVISÓRIO PRESUNÇÃO DE COMPROPRIEDADE | ||
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Nº do Documento: | RP2025052614167/19.0T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/26/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – A alegação das partes deve ser expurgada tanto de considerações de direito como de afirmações conclusivas, as quais, igualmente, devem ficar arredadas do acervo factual fundamentador da decisão sobre o mérito da causa. II – O facto de um muro divisório de dois prédios situadas a cotas diferentes sustentar as terras daquele que se situa a uma cota mais elevada, mesmo conjugado com o facto de nesse prédio se encontrar erigida uma construção, não faz presumir, nos termos do n.º 5 do artigo 1371.º do Código Civil, que o muro em causa pertence exclusivamente ao dono da construção, pois isso só aconteceria se a edificação em causa se apoiasse em toda a largura do muro. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo: 14167/19.0T8PRT.P1
Relator: José Nuno Duarte; 1.ª Adjunta: Teresa Fonseca; 2.ª Adjunta: Teresa Pinto da Silva.
Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO AA, residente na Viela ..., ..., Porto, instaurou a presente acção declarativa, com forma de processo comum, contra BB, residente na Viela ..., Porto, peticionando que se declare que: - “[o] muro contíguo contíguo que separa o prédio propriedade do Autor do prédio propriedade do Réu é pertença do Autor” e que o Réu seja condenado: O Réu contestou a acção, pugnando pela sua improcedência, e deduziu reconvenção, pedindo que o Autor/Reconvindo seja condenado a: - “[r]econhecer e respeitar que o Reconvinte é titular de um direito de propriedade exclusivo sobre o muro e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito”, bem como: Entretanto, por sentença proferida em processo apenso, foram julgados habilitados para prosseguirem como Réus nos autos os herdeiros do Réu BB, falecido em 15 de Fevereiro de 2020: CC, DD, EE, FF e GG. O processo seguiu os seus regulares termos até à realização da audiência final. Depois de encerrada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte: - O Autor, AA, veio recorrer desta decisão, apresentado alegações, motivadas nos termos legais, com as seguintes conclusões: 1. O tribunal a quo aplicou incorrectamente a presunção de compropriedade prevista no artigo 1371.º, n.º 2, do Código Civil, sem considerar adequadamente o facto de o muro divisório estar inteiramente dentro dos limites da propriedade do Recorrente, conforme demonstrado pela perícia e nos factos provados. 2. Nos termos do artigo 1371.º, n.º 5, do Código Civil, quando o muro sustenta as terras ou construções de apenas um dos lados, presume-se que ele pertence exclusivamente ao proprietário desse lado. Neste caso, o muro sustenta as terras do prédio do Recorrente, que se encontra numa cota superior, o que afasta a presunção de compropriedade. 3. O relatório pericial, no ponto 2, conclui que o muro está dentro dos limites da propriedade do Recorrente, corroborando a sua titularidade exclusiva sobre o muro, conclusão esta que não foi adequadamente reflectida no ponto 12 dos factos provados, e que deverá ser alterado nos termos propostos nas alegações. 4. O tribunal cometeu erro de julgamento de facto, nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, ao omitir na redacção dos factos provados que o muro pertence fisicamente à propriedade do Recorrente. 5. O alvará de licenciamento de obras emitido pela Câmara Municipal do Porto, que autorizava a reconstrução do muro, também foi desconsiderado pelo tribunal, embora indicasse implicitamente a delimitação do terreno e do muro como parte da propriedade do Recorrente. 6. A sentença recorrida padece de erro de direito ao aplicar a presunção de compropriedade sem ponderar os elementos probatórios que demonstram que o muro sustenta as terras e a construção do prédio do Recorrente, devendo, assim, ser reconhecida a titularidade exclusiva do muro ao Recorrente. 7. Se o muro suporta as terras de um prédio, e se essas terras têm construções edificadas sobre elas, então, o muro, ao sustentar as terras, também está a suportar indirectamente as construções. Isso é particularmente relevante quando as construções estão numa cota superior, pois a estabilidade das construções depende da sustentação do solo. 8. Com base nos factos apurados, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que reconheça a propriedade exclusiva do muro ao Recorrente e julgue a acção procedente. - A Ré habilitada CC apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida. - O recurso foi admitido por despacho, que, correctamente, o classificou como sendo de apelação e lhe atribuiu efeito meramente devolutivo, ordenando a sua subida imediata, nos próprios autos, a este Tribunal da Relação. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), as questões a tratar são as seguintes:
*** III – FUNDAMENTAÇÃO Para resolver a primeira questão acima enunciada, cumpre atentar, antes de mais, na matéria de facto que foi fixada na sentença recorrida, a qual foi a seguinte: Factos provados:
Factos não provados:
2. O recorrente, em cumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, impugnou especificadamente o ponto 12 dos Factos Provados, no qual se afirma que os prédios urbanos pertencentes ao A. e aos RR. “[s]ão separados por um muro contiguo que divide os prédios e suporta o prédio do Autor, que está uma cota superior.”. Propugna o recorrente para que a redacção desse ponto de facto seja alterada e passe a ser a seguinte: “O muro em questão está dentro dos limites da propriedade do Recorrente e serve de suporte às terras do seu prédio, que se encontra numa cota superior à do prédio do Recorrido.”. Conforme se afere pela simples comparação da actual redacção do ponto 12 e daquela que é proposta pelo recorrente, a alteração peticionada apenas tem o alcance de inserir na matéria de facto provada que o muro que existe entre o prédio do A./Recorrente e o prédio dos RR./Recorridos “está dentro dos dos limites da propriedade do Recorrente”, pois tanto o facto de esse muro suportar as terras do prédio do Recorrente, como o facto de este último prédio se situar numa cota superior à do prédio do Recorrido, já se encontram referidos no texto do ponto 12 que consta da sentença recorrida. Sucede que, conforme vem sendo referido na nossa jurisprudência [1], as decisões judiciais não se podem fundamentar em afirmações conclusivas ou genéricas, pois o acolhimento, entre nós, do chamado princípio do dispositivo (cf. artigo 5.º do Código de Processo Civil), postula que as partes, para além da incumbência de pedir a resolução do conflito, delimitem os termos do litígio, alegando, para esse efeito, os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, sem que, para tal, utilizem fórmulas desprovidas do necessário substrato factual concreto [2]. Só dispondo de factos concretos é que o tribunal pode desenvolver a sua actividade, determinando qual a realidade ocorrida para, com base na mesma, aplicar o direito e decidir o litígio. Por isso, a alegação das partes deve ser expurgada tanto de considerações de direito como de frases conclusivas, as quais, igualmente, devem ficar arredadas do acervo factual fundamentador da decisão sobre o mérito da causa [3]. Ora, no caso dos autos, considerando-se que aquilo que, antes de tudo o mais, está em discussão nos autos é a questão de saber se o muro que separa o prédio urbano do A./Recorrente sito na Viela ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, do prédio dos RR./Recorridos, sito no n.º ...7 da mesma Viela ..., pertence a um ou ao outro prédio – sendo, por isso, completamente controvertida a definição, ao longo da confrontação onde se encontra o muro, dos exactos limites dos dois prédios –, é forçoso reconhecer que a afirmação de que o muro em causa “está dentro dos limites da propriedade do Recorrente” (como também seria o caso de se afirmar que o mesmo “está dentro dos limites da propriedade dos Recorridos) envolve um juízo de valor sobre o thema decidendum e, por isso, reveste-se de carácter inequivocamente conclusivo. Só mediante a alegação e a prova daqueles que sejam os exactos limites de um e do outro prédio (o que in casu não foi feito por qualquer das partes) é que poderia ser possível determinar – ou seja, concluir – se, afinal, o muro se situa dentro do prédio do A., dentro do prédio dos RR., ou, até, se o mesmo se encontra erigido em terreno parcialmente pertencente aos dois prédios. Face ao que se acaba de explicar, afigura-se-nos claro que a afirmação que o Recorrente pretende incluir na matéria de facto provada (que o muro objecto do litígio “está dentro dos limites da propriedade do Recorrente”), devido à sua matriz conclusiva, não pode integrar o leque da matéria de facto que, uma vez julgada verificada, deva ser considerada para, aplicando-se-lhe o direito, fundamentar a decisão da causa. Consequentemente, ante a impossibilidade de atender a pretensão do Recorrente, desnecessário se torna proceder a qualquer análise adicional, designadamente à aferição da pertinência das considerações recursivas sobre a prova recolhida e produzida nos autos. Pelo exposto, indefere-se a impugnação da matéria de facto efectuada pelo Recorrente, decidindo-se que o teor do ponto 12) dos Factos Provados se mantenha tal como fixado pelo tribunal a quo. Resta aferir agora se a decisão proferida pelo tribunal a quo deve ser mantida ou se deve ser dada razão ao Recorrente e reconhecer-se que ele é o pleno proprietário do muro divisório existente entre os prédios situados nos n.ºs ...7 e ...7 da Viela ..., ..., Porto. A sentença recorrida, após considerar que a factualidade provada não permitia afirmar que a propriedade do muro existente entre os dois prédios acima referidos pertencia ao Autor (ora recorrente) ou aos Réus, julgou verificada a presunção de compropriedade do muro em causa resultante do disposto no artigo 1371.º, n.º 2, do Código Civil, norma legal cujo teor é o seguinte: - “Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário”. No caso sub judice, está em discussão a propriedade de um muro existente entre os quintais de dois prédios urbanos, pois, apesar de estarem erigidos edifícios nesses prédios, o mencionado muro não se situa entre dois edifícios, separando, sim, espaços exteriores desses dois imóveis. Por isso, andou bem o tribunal a quo ao situar a análise do caso em torno da referida norma. Consequentemente, a pretensão do recorrente, no sentido de obter decisão judicial que declare que o muro em apreço é da sua propriedade exclusiva, apenas poderá proceder mediante a demonstração de que o muro é parte integrante do seu prédio – o que pressupõe a prova da aquisição do respectivo direito de propriedade – ou, tal não acontecendo, mediante a demonstração de que existem sinais que excluem a presunção de compropriedade estabelecida no artigo 1371.º, n.º 2, do Código Civil e, substituindo-a, fazem presumir que o muro pertence ao prédio sito no n.º ...7 da Viela .... Quanto à prova da aquisição originária do direito de propriedade sobre o muro, compulsada a factualidade apurada nos autos, é manifesto que a mesma não foi efectuada, pelo que, conforme conclusão correcta do tribunal a quo, não é possível afirmar, por esta via, que o ora recorrente é titular do direito real de que se arroga. No que concerne à existência de sinais que excluam a presunção de compropriedade do muro e façam presumir, antes, que o muro pertence ao prédio do ora recorrente, de acordo com o disposto nos n.ºs 3, 4 e 5 do artigo 1371.º Código do Processo Civil, tal apenas ocorrerá se estiver demonstrado que: Ora, vista novamente a factualidade que, após julgamento, se encontra provada, fácil é constatar que também não se encontra demonstrada a existência in casu de qualquer destas situações. Não apenas, tal como se afirma na sentença recorrida, inexiste prova de que se verifique uma qualquer situação enquadrável nas três primeiras alíneas acima referidas (e que correspondem aos sinais excludentes da compropriedade aludidos no n.º 3 do artigo 1371.º do Código Civil); como também não existe prova de que se verifique a situação excludente da compropriedade supra-referida na alínea d) (e que corresponde àquela que está prevista no n.º 5 do artigo 1371.º do Código Civil). Com efeito, segundo aquilo que se entende, o facto de, no caso dos autos, estar provado que o muro divisório sustenta as terras do prédio do Autor, situado a uma cota mais elevado que que a cota do prédios dos Réus, e também que no prédio do Autor está implantada uma construção, não é bastante para se excluir a presunção de compropriedade e se presumir que o muro pertence ao dono do prédio onde está a construção. Para que isso aconteça, segundo o disposto no artigo 1371.º, n.º 5, do Código Civil, é necessário algo ligeiramente diferente: é necessário que o muro sustente, em toda a sua largura, uma construção, ou seja, que exista uma construção que esteja apoiada no muro. No caso sub judice, não foi feita prova de que, no prédio do Autor, exista uma qualquer construção nesta situação. Como tal, não se pode presumir também que o muro pertença ao ora recorrente. Face a tudo quanto se acaba de expor, é forçoso decidir no sentido da confirmação da sentença recorrida. O recorrente, atento o seu decaimento, deve suportar as custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).
*** III – DECISÃO Pelos fundamentos expostos, acorda-se em: Notifique.
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SUMÁRIO ……………………………… ……………………………… ……………………………… (elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
Porto, 2025/05/26 José Nuno Duarte Teresa Fonseca Teresa Pinto da Silva.
Acórdão datado e assinado electronicamente (redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)
_________________ [1] Vide, entre outros: Ac. STJ 28-09-2017, proc. 659/12.6TVLSB.L1.S1, rel. Fernanda Isabel Pereira; Ac. STJ 6-04-2021, proc. 2541/19.7T8STB.E1.S1, rel. Fernando Samões; Ac. RG 30-06-2022, proc. 984/12.6TMBRG-B.G1, rel. Pedro Maurício; Ac. RP 27-09-2023, proc. 9028/21.6T8VNG.P1, rel. Jerónimo Silva. <URL: http://www.dgsi.pt/>. |