Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4661/16.0T8MTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
CONFIANÇA A INSTITUIÇÃO COM VISTA A ADOÇÃO
Nº do Documento: RP202401084661/16.0T8MTS-A.P1
Data do Acordão: 01/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estando a criança institucionalizada desde o nascimento, volvidos três anos sem que a família biológica reúna as condições sociais e afetivas que lhe permita levar a criança para casa, urge encontrar um projeto de vida para esta.
II - A criança institucionalizada tem direito à desinstitucionalização tão pronta quanto possível e a uma família que dela cuide, colocando-a como prioridade afetiva e gerindo, em função dela, as obrigações do dia-a-dia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 4661/16.0T8MTS – A.P1




Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório
Foi movido processo de promoção e proteção referente a AA, nascida a .../.../2020, filha de BB, que vem beneficiando da aplicação de uma medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, em execução na Associação "...".
Em sede de revisão da medida, foi equacionada a alteração da medida de acolhimento residencial para a medida de confiança com vista a futura adoção.
Face à discordância manifestada pela mãe e pela avó materna, nos termos do disposto no art.º 114.º/5/a da LPCJP foi determinada a realização de debate judicial.
Foram apresentadas alegações escritas pelo Ministério Público, no sentido do encaminhamento para adoção.
Foi proferido acórdão que procedeu à revisão da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, substituindo-a pela medida de confiança a instituição com vista a adoção, devendo a menor permanecer na residência de acolhimento onde se encontra até que seja entregue a família adotiva selecionada pelos serviços competentes.
Inconformada, a mãe da menor interpôs o presente recurso, que finalizou com as conclusões que se seguem.
1 - O douto Acórdão recorrido decidiu a entrega da menor AA a instituição com vista a futura adoção.
2 – Salvo o devido respeito, a Recorrente não se conforma com o conteúdo do sobredito Acórdão, particularmente no que respeita à escolha da medida de promoção e proteção, que neste caso aponta para a irreversibilidade da situação de separação da criança dos seus pais biológicos.
3 – A matéria de facto apurada, sendo considerada e levada aos factos provados, impõe solução diferente quanto à medida de proteção a decidir.
4 – A Recorrente nunca beneficiou de qualquer tratamento psicológico nem tal lhe foi proposto.
5 – Devia ter-lhe sido proporcionado acompanhamento psicológico e apoio com terapia familiar, trabalhando com a mãe e menor as relações afetivas e reforçando os vínculos entre ambas.
6 – Por outro lado, a Recorrente nunca maltratou a menor, física ou psicologicamente, e relativamente à alegada falta de estímulos, se aconteceu foi por ignorância da Recorrente, que poderia ser ultrapassada com acompanhamento psicológico.
7 – É desejo da Recorrente tudo fazer para continuar a poder ter junto de si a menor.
8 – A tutela constitucional conferida nos art.61º e 68º da CRP ao relacionamento entre pais e seus filhos e ao papel decisor que aqueles devem ter no desenvolvimento e educação destes impõe o reconhecimento de direitos e interesses juridicamente tutelados dos próprios pais no âmbito deste relacionamento familiar. Uma decisão que interfira nesse relacionamento, retirando os filhos à guarda dos pais, excluindo ou limitando a supervisão destes a educação e o desenvolvimento dos filhos, constitui afetação daqueles direitos constitucionalmente tutelados, elo que só se poderá revelar como legítimo em circunstâncias excecionais.
9 – No presente processo impunha-se intensificar previamente, as medidas de apoio junto da mãe, executadas no meio natural de vida,
10 – A menor tinha o direito que essa tentativa fosse realizada, no entanto, sente a Recorrente que existiu desinvestimento nessa solução.
11 – Reconhecendo o relatório do IML que a Recorrente necessita de acompanhamento psicológico, a medida de institucionalizar a menor com vista à adoção é violenta.
12 – A mãe ama a sua filha e quer tê-la com ela, apenas necessita de ajuda para desempenhar essa tarefa.
13- A decisão tomada de confiar a criança à instituição com vista à adoção não garante a adoção futura e a privação do contacto da criança com a mãe deixará marcas indeléveis na sua personalidade tornando-a "apátrida" em termos de inserção étnico -cultural.
14 - A falta de cumprimento das notificações e das averiguações supra referidas determina a nulidade do processado a partir do momento em que deveriam ter sido realizadas.
15 – O facto de o processo ter corrido à total revelia do pai da menor, de quem não se sabe a identidade nem o paradeiro, nem muito menos e principalmente, qual a sua posição em relação à menor, torna inadmissível que se decrete, sem qualquer aviso ou possibilidade de contraditório, a inibição do poder paternal e a proibição de visitas, no fundo que se decrete o corte efetivo da relação com a filha.
16 – Deve, por todo o exposto, o Tribunal, considerando as nulidades apontadas, anular todo o processado, determinando-se que o Tribunal Recorrido faça todas as diligências necessárias e razoáveis para apurar a identidade e o paradeiro do pai da menor, para que este possa alegar o que tiver por conveniente.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso merecer provimento e em consequência ser revogada o douto Acórdão recorrido, substituindo a medida aplicada por uma outra que mantenha a medida de acolhimento institucional pelo tempo que se mostre necessário, com o que se fará a costumada JUSTIÇA.
Também a avó da menor interpôs recurso, rematando da forma que se segue.
1ª – A douta Sentença recorrida decidiu a entrega da menor AA a instituição com vista a futura adoção.
2ª – Salvo o devido respeito, a recorrente não se conforma com o conteúdo do sobredito Acórdão, particularmente no que respeita à escolha da medida de promoção e proteção, que neste caso aponta para a irreversibilidade da situação de separação da criança dos seus pais biológicos.
3ª – A matéria de facto apurada, sendo considerada e levada aos factos provados, impõem solução diferente quanto à medida de proteção a decidir.
4ª – A Recorrente nunca beneficiou de qualquer tratamento psicológico nem tal lhe foi proposto.
5ª – Devia ter-lhe sido proporcionado acompanhamento psicológico e a apoio com terapia familiar, trabalhando com a avó as relações afetivas e reforçando os vínculos entre todos.
6ª – Por outro lado, a recorrente nunca maltratou a menor, física ou psicologicamente, e relativamente à alegada falta de estímulos, se aconteceu foi por ignorância da recorrente, que poderia ser ultrapassada com acompanhamento psicológico.
7ª – A avó, sempre visitou a sua neta e interagiu com aquela, tendo sempre existido correspondência emocional e afetiva.
8ª – Apesar das fragilidades da avó, esta consegue demonstrar os seus sentimentos pela sua neta, bem como, dos sacrifícios que faz para que esta venha para o seu seio familiar.
9ª – É desejo da recorrente tudo fazer para continuar a poder ter junto de si a menor.
10ª – Tanto assim é que, a recorrente com alguns sacrifícios económicos está a dotar a casa de morada de família de condições mínimas de habitabilidade, de forma a receber a menor em sua casa.
11ª – Mais, está a recorrente através do Instituto de Emprego e Formação Profissional a frequentar o curso de Operadora de Jardinagem, para obter a equivalência do 4º ano.
12ª – A tutela constitucional conferida nos artigos 61º e 68º da CRP ao relacionamento entre pais e seus filhos e ao papel decisor que aqueles devem ter no desenvolvimento e educação destes impõe o reconhecimento de direitos e interesses juridicamente tutelados dos próprios pais no âmbito deste relacionamento familiar. Uma decisão que interfira nesse relacionamento, retirando os filhos à guarda dos pais, excluindo ou limitando a supervisão destes a educação e o desenvolvimento dos filhos, constitui afetação daqueles direitos constitucionalmente tutelados, elo que só se poderá revelar como legítima em circunstâncias excecionais.
13ª – No presente processo impunha-se intensificar previamente, as medidas de apoio junto da avó, executadas no meio natural de vida.
14ª – A menor tinha o direito que essa tentativa fosse realizada, no entanto, sente a recorrente que existiu desinvestimento nessa solução.
15ª – Reconhecendo o relatório do IML, no qual menciona que a recorrente necessita de acompanhamento psicológico a medida de institucionalizar a menor com vista à adoção é violenta.
16ª – A avó ama a sua neta e quer tê-la com ela, apenas necessita de ajuda para desempenhar essa tarefa.
17ª – Parece-nos que, salvo o devido respeito, o acompanhamento junto da família da menor não foi eficaz nem competente.
18ª – Não nos podemos esquecer que, a recorrente é de etnia cigana, vivendo e obedecendo as regras, tradições e princípios culturais dessa comunidade.
19ª - A decisão tomada de confiar a criança à instituição com vista à adoção não garante uma adoção futura e a privação do contacto da criança com a sua família deixará marcas indeléveis na sua personalidade tornando-a "apátrida" em termos de inserção étnico - cultural.
20ª – O Douto Tribunal ao tomar esta decisão, não respeitou o interesse superior da criança, porquanto nunca se demonstrou que não existia afeto e interesse no bem-estar da menor, fazendo tábua rasa do seu direito à prevalência da família e ao seu direito à identidade e etnia cigana.
21ª – Com a aplicação da medida de promoção e de proteção da adoção, à menor, estaremos a promover a sua insurreição, angústia e opressão, por não lhe ser reconhecido o direito à sua identidade étnica.
22ª – Bem como, ao não lhe ser concedido o direito de viver uma infância inserida na sua família e na sua comunidade, discriminando a sua família em virtude de não lhe ter sido reconhecido ou valorado a sua intenção de melhorar.
23ª – Para além de se estar a cooperar com o desenraizamento da menor, nada garante que o processo de adoção será concretizado ou bem-sucedido, podendo ao contrário acontecer, que a menor permaneça institucionalizada, por não surgir nenhum casal ou pessoa adotante interessada, atendendo à sua etnia cigana, ficando para sempre privada de uma identidade própria e da sua família biológica que está disponível para a acolher e amar.
24ª – Consideramos que a falta de cumprimento das notificações e das averiguações de paternidade, determina a nulidade do processado a partir do momento em que deveriam ter sido realizadas.
25ª - O facto de o processo ter corrido à total revelia do progenitor da menor, de quem não se sabe a identidade nem o paradeiro, nem muito menos e principalmente, qual a sua posição em relação à menor, torna inadmissível que se decrete, sem qualquer aviso ou possibilidade de contraditório, a inibição do poder paternal.
26ª – Deve, por todo o exposto, o Tribunal, considerando as nulidades apontadas, anular todo o processado, determinando-se que o Tribunal Recorrido faça todas as diligências necessárias e razoáveis para apurar a identidade e o paradeiro do pai da menor, para que este possa alegar o que tiver por conveniente.
Nestes termos e nos melhores de Direito se requer a V. Exªs. que dando provimento ao presente recurso, se dignem revogar o douto acórdão recorrido e substituída por uma outra que mantenha a medida de acolhimento institucional pelo tempo que se mostre necessário, dotando a avó de competências parentais e sociais.
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O Digno Magistrado do Ministério Público contra-alegou, concluindo como se segue.
I - Ao contrário do sustentado pelas recorrentes, as mesmas beneficiaram efetivamente de apoio direcionado à aquisição de conhecimentos e competências que lhes permitissem ultrapassar as suas próprias limitações de forma a poder assumir os cuidados da criança AA.
II – Apesar do apoio de que beneficiaram, quer a progenitora, quer a avó materna, aqui recorrentes, continuam a evidenciar "alterações cognitivas e comportamentais compatíveis com um diagnóstico de Atraso Mental Ligeiro a Moderado, não reunindo capacidades psíquicas para, de forma autónoma, cuidar da sua descendente, nem possuem, na atualidade, capacidades e competências parentais para proteger e assegurar o necessário bem-estar da AA, sem o auxílio permanente de terceiros.
III - Protelar por mais tempo, nestas circunstâncias, a decisão sobre um projeto de vida alternativo para a criança AA seria negar-lhe o direito que a Constituição assegura às crianças , à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral (art. 69.º, n.º 2 da CRP), não sendo legítimo que a progenitora, aqui recorrente, pretenda perpetuar a situação de institucionalização da criança AA, que dura há já cerca de três anos, prolongando-a até ao momento futuro, incerto e hipotético, em que, porventura, consiga adquirir as capacidades, disponibilidades e competências que, até ao momento não logrou obter, para cuidar diariamente da criança.
IV – A restrição aos direitos fundamentais dos pais à companhia e educação dos seus filhos (artº. 36.º n.ºs 5 e 6 da CRP), está legitimada pela necessidade de proteção dos direitos e interesses da criança, valores constitucionalmente protegidos (art.º 18.º n. º2, 36.º n. º6, e 69.º da CRP).
V - A medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção, está prevista no art.º 38.º A, da Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que por sua vez remete para as situações previstas no artº 1978º do Cód. Civil.
VI - Na situação em apreço, mostra-se verificada a previsão das alíneas d) e e) do nº 1 daquele artº 1978º do Cód. Civil, uma vez que, como se refere na douta decisão recorrida, enquanto a recorrente progenitora teve a menor aos seus cuidados, não manifestou capacidade para dar resposta às suas necessidades, e não revela efetivo ou real interesse por cuidar da criança, nem dá mostras de estar predisposta a alterar suficientemente a sua vida, em ordem a reunir condições para ter com ela a filha. Por sua vez, a entrega da menor à avó materna colocá-la-ia novamente em situação de grave perigo, uma vez que nada mudou nas competências e nas circunstâncias de vida da avó que permita concluir que a AA teria, aos seus cuidados, um presente e futuro diferentes daqueles que tiveram a sua progenitora e os seus tios.
VII - Finalmente, releva a circunstância, de que, conforme decorre dos factos apurados nos autos, se deverem ter como seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação - nº 1 do atrtº1978º do Cód. Civil.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exªs como sempre suprirão, negando provimento ao recurso, e confirmando a decisão recorrida farão JUSTIÇA.
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II - Questões a dirimir:
a - se a decisão sobre se é de confiar a menor para adoção deve aguardar que seja determinada a identidade do pai daquela;
b - se a menor deve ser confiada para adoção.
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III - Fundamentação de facto
(…)
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IV - Fundamentação jurídica
a - Se a decisão sobre se é de confiar a menor para adoção deve aguardar que seja determinada a identidade do pai daquela
As recorrentes alegam que o processo correu à revelia do pai da menor, de quem não se sabe a identidade nem o paradeiro, nem muito menos e principalmente, qual a sua posição em relação à menor. Tal tornaria inadmissível que se decrete, sem qualquer aviso ou possibilidade de contraditório, a inibição do poder paternal e a proibição de visitas, no fundo que se decrete o corte efetivo da relação com a filha. Considerando as nulidades apontadas, o tribunal deveria anular todo o processado, determinando-se que o Tribunal Recorrido faça todas as diligências necessárias e razoáveis para apurar a identidade e o paradeiro do pai da menor, para que este possa alegar o que tiver por conveniente.
Está em causa uma medida de promoção dos direitos e de proteção da menor AA. A identidade do pai desta consta como sendo desconhecida.
As decisões podem estar viciadas em termos que obstem à sua eficácia ou validade.
As nulidades de decisão são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando).
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer despacho (art.º 613.º/3 do C.P.C.) ou de acórdão (arts. 666.º/1 e 685.º do C.P.C.) são as que vêm taxativamente enumeradas no n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
O art.º 615.º/1 do C.P.C., no que poderia eventualmente relevar para o caso dos autos, consigna, na alínea d), que a sentença é nula quando:
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Na sentença sub judice estaria em causa excesso de pronúncia ou pronúncia indevida, já que o tribunal não se poderia ter pronunciado sobre a matéria em questão porquanto a identidade do pai menor seria desconhecida. O pai não teria tido oportunidade de se pronunciar e de revelar o seu eventual interesse pela filha.
A averiguação da filiação paterna da menor só no âmbito de processo próprio é passível de ter lugar, não cabendo sequer nesta sede, por extravasar o âmbito da decisão recorrida, que nos pronunciemos a tal respeito.
Não estando a paternidade determinada, como é bom de ver, não existe excesso, nem violação de contraditório relativamente a desconhecido, nem excesso de pronúncia por a decisão acerca da melhor solução para a vida de AA ter que ficar a aguardar a determinação futura e incerta acerca da sua verdade biológica. Trata-se de questão que não tem cabimento no âmbito deste processo.
Desatende-se, assim, a nulidade suscitada.
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b - Se a menor deve ser confiada para adoção.
Emerge do art.º 34.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo que as medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo, adiante designadas por medidas de promoção e proteção, visam:
a) Afastar o perigo em que estes se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
As recorrentes discordam da conclusão a que o tribunal recorrido chegou, no sentido de se mostrarem verificados os pressupostos necessários à aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção. Entendem que a filha de uma e neta de outra se deverá manter na situação de institucionalização em que se encontra até que reúnam as condições adequadas a ter aquela consigo. Assinaladamente, sustentam que devem ser previamente intensificadas as medidas de apoio e de capacitação da mãe e da avó.
Mais argumentam que a adoção desenraizará a menor da sua etnia, que identificam como sendo cigana e que não há garantias de que AA venha a ser adotada e que a adoção constitua a melhor solução.
Vejamos com maior pormenor a que conclusão deve conduzir a subsunção dos factos reportados à legislação vigente.
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A Convenção das Nações Unidas referente aos Direitos da Criança de 1989, ratificada por Portugal através da resolução da Assembleia da República n.º 20/90, reconhece à criança e ao jovem a titularidade dos direitos respeitantes à satisfação das suas necessidades básicas e ao acesso a uma vida ativa, digna e participante na sociedade em que se insere.
Dispõe o art.º 69.º/1 da Constituição da República Portuguesa que as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
Nos termos do n.º 2, o Estado assegura especial proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.
O art.º 36.º/5 da Lei Fundamental consigna que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos. E o n.º 6 do mesmo art.º que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
Decorre do art.º 3.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo/LPPCJP que a intervenção para promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo tem lugar, desde logo, quando os pais, representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto, ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento.
A intervenção judicial, determinada pelo princípio da subsidiariedade, exige que a criança ou jovem se encontre numa situação de perigo, tal como configurada no n.º 2 do citado artigo 3.º da LPCJP.
O perigo pressupõe a verificação de uma situação de facto que ameace a segurança, formação, saúde, educação ou desenvolvimento da criança ou jovem, podendo ter origem em culpa (atuação dolosa ou negligente) dos pais, representante legal ou daquele que tiver a sua guarda de facto, ou através de omissão, manifestada na simples impotência ou incapacidade de fazer cessar a situação.
Nos termos do disposto no art.º 3.º/2/a) a f), da LPCJP, uma criança ou um jovem encontra-se em perigo, nomeadamente quando:
- Está abandonada ou entregue a si própria;
- Sofre maus tratos físicos ou psíquicos;
- É vítima de abusos sexuais;
- Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação;
- É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
- Está sujeita a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
- Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento, sem que os pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
A questão que, assim, se coloca reside em efetuar um juízo de prognose relativamente à capacidade da família biológica - conhecida, concretamente a mãe e a avó - de educar e manter AA junto de si. Este juízo, como não poderá deixar de ser, assenta na análise retrospetiva do comportamento passado dos familiares, tal como foi sendo percecionado pelos parceiros institucionais envolvidos, com primazia para a instituição de acolhimento e, derradeiramente, pelo tribunal, bem como na sua situação atual e propósitos manifestados, no caso, repete-se, pela mãe e pela avó materna.
Assuma-se enquanto pressuposto da decisão a tomar que AA tem direito à desinstitucionalização e à integração numa família, que dela cuide e que a respeite. Atentas as necessidades e dependência inerentes à sua idade, esse direito implica que a família gira o seu dia-a-dia assumindo AA um papel central nos condicionalismos dessa gestão.
Tomar-se-ão em linha de conta, assinaladamente, nos termos do art.º 4.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo/LPPCJP, que a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios:
a - Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
b - Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
c - Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;
d - Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo
e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem;
g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável.
O art.º 1978.º do C.C. - (Confiança com vista a futura adoção) preceitua o seguinte:
1. O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adoção;
c) Se os pais tiverem abandonado a criança;
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
2. Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.
3. Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.
Não sendo as instituições de acolhimento o local mais adequado para as crianças crescerem, resta aferir se AA deverá crescer junto da mãe ou/e da avó ou junto de uma família de adoção.
Tendo em consideração a matéria de facto provada, evidencia-se que a filha e neta das recorrentes viveu desde o nascimento numa instituição, sendo que a mãe foi viver para uma casa de apoio à vida em plena gravidez.
Em nenhum momento a mãe ou a avó evidenciaram condições para tomar conta da bebé, tendo-se procurado precaver a situação de perigo em que esta se encontrava precisamente através da institucionalização.
Remeter para daqui a alguns anos uma solução de vida para AA, como é evidente, não consubstancia qualquer proposta que seja do interesse desta.
Não está em causa um juízo de censura pela censura, mas sim o procurar aquilatar da real possibilidade, e probabilidade, de a família biológica acompanhar efetivamente a criança, já que, até ao momento, não se pode considerar que o tenha feito de forma bastante para as necessidades da menor.
É do melhor interesse da criança continuar a viver institucionalizada, aguardando, porventura indefinidamente, que a mãe e/ou a avó reúnam a consistência e a disposição de daquela cuidar, colocando-a como prioridade, conformando a vida pessoal, afetiva, laboral, residencial às necessidades daquela?
Será razoável sujeitar a menor a essa espera e a essa indefinição?
A resposta afigura-se-nos que terá que ser negativa.
A verdade é que AA não conhece outra realidade desde o seu nascimento que não a vivência institucional.
Nem sequer as apelantes entendem que reúnem condições para acolher a filha e neta sem pôr em perigo a sua segurança e desenvolvimento, remetendo para um futuro, a perder de vista, a carecer de intervenções e capacitações do Estado, que foram já ensaiadas, sempre sem sucesso.
Como consta no acórdão recorrido: não foram identificadas alternativas consistentes ao acolhimento residencial, na família alargada.
A verdade é que a AA se encontra numa fase importante do seu desenvolvimento, privada da vivência num meio familiar saudável, necessitando urgentemente de construir um sentimento de pertença a uma família, para assim desenvolver a sua autonomia e socialização, de uma forma tranquila e equilibrada.
Há que reconhecer que, pese embora a progenitora e a avó materna mostrem interesse em visitar a AA, manifestando-se, em particular a avó, disponíveis para a acolher - a progenitora não mostra disponibilidade para integrar o projeto de vida da AA - o certo é que as condições que à menor podem ser propiciadas tendo em vista o seu desenvolvimento saudável não são diferentes, para melhor, daquelas que existem há anos e acabaram por determinar o acolhimento residencial da progenitora e dos seus irmãos.
Por isso, neste momento, a alternativa será a de manter a AA em acolhimento residencial à espera que ocorram alterações na família biológica, que apresenta um potencial de mudança muito reduzido, ou procurar uma solução que permita ter a esperança de lhe proporcionar um futuro em família, envolvida num projeto de vida claro, consistente e permanente.
E ainda:
Nada mudou nas competências e nas circunstâncias de vida da avó materna que permita concluir que a AA teria, aos seus cuidados, um presente e futuro diferentes daqueles que tiveram a sua progenitora e os seus tios.
No caso dos autos temos ainda como relevante que em contexto de acolhimento residencial, a menor não reage à ausência da mãe ou da avó materna.
Por outro lado, manter e prolongar no tempo situações de acolhimento leva, a maioria das vezes, a um duplo resultado negativo - a impossibilidade de inserir a menor na sua família biológica, nunca reatando os laços afetivos próprios da mesma, dificultando e impossibilitando, por força da idade, de encaminhar a criança para outro projeto de vida, nomeadamente a adoção.
Neste momento temos como certo que a situação dos seus familiares biológicos não lhes permite garantir tais direitos à AA.
Lê-se no voto de vencido do Conselheiro Oliveira Vasconcelos (in ac. do S.T.J. de 5-4-2018, proc. 17/14.8T8FAR.E1.S2, Rosa Ribeiro Coelho, consultável in http://www.dgsi.pt/): (…) o internamento no Centro de Acolhimento não pode ser uma solução definitiva.
Não se pode esperar indefinidamente que as famílias biológicas se reestruturem.
Tem que ser em tempo útil para a criança.
Sendo que a personalidade da criança se constrói nos primeiros tempos de vida.
Na verdade, o prolongar da ausência de uma relação familiar cria uma situação de risco grave para o menor.
As instituições não substituem uma família.
Uma instituição não é uma família.
Por outro lado, o tempo de um menor não é o tempo de um adulto. (…)
(…) precisa imediatamente de alguém que exerça convenientemente as funções parentais e lhe preste os adequados cuidados e afeto.
(…) precisa já de uma família estruturada.
Por isso, não se pode adiar a decisão sobre se deve retornar ao ambiente familiar dos pais ou de outrem ou deve ser entregue para adoção em ordem à sua integração numa família a ela candidata, com a precocidade e segurança possíveis, para que o investimento afetivo educacional se faça nas melhores condições.
Ora infelizmente - e infelizmente tendo em conta todos os interesses em jogo - não é possível concluirmos que a situação se alterou desde que o AA deixou de conviver com a sua família biológica.
Antes, tudo aponta para que a melhor solução para o AA é o corte definitivo das suas relações com essa família e o começar uma vida nova, com a oportunidade de ser criada no seio de uma outra família.
Os factos acima enunciados indicam que o retorno do AA a “casa” faria com que ele voltasse à situação de carência passada que se pretende não seja obrigada novamente a sofrer.
Não se trata aqui de avaliar a afetividade dos seus pais ou de outros parentes.
Nem de questionar a primazia da filiação biológica, uma vez que é inquestionável que a solução ideal para o menor seria viver com os pais biológicos.
Trata-se de averiguar se estes conseguiram, durante o tempo em que o seu filho esteve na instituição de acolhimento, reestruturar, modificar, a sua vida em termos de em tempo útil para o menor, o puderem acolher sem pôr em perigo a sua segurança, a sua saúde, a sua formação, a sua educação ou a sua formação.
Infelizmente, como acima já se disse, os pais do AA não conseguiram organizar a sua vida em termos de a centrarem no acolhimento do menor, fazendo um esforço acrescido para criarem condições para tal.
Mutatis mutandis, estas palavras podem ser aplicadas à situação de AA e dos seus familiares.
A adoção, uma vez verificados os respetivos pressupostos, é uma forma constitucionalmente adequada de proteção dos interesses das crianças privadas de um ambiente familiar normal (art.º 69.º/2 da Constituição), sendo um instituto que a nossa Lei fundamental protege - art.º 36.º/7.
A medida defendida pelas recorrentes equivaleria a protelar a situação, podendo comprometer a possibilidade de adoção. A origem familiar das crianças é irrelevante para a decisão de adoção. É certo que não é seguro que AA venha a ser adotada e que a adoção se processe em termos satisfatórios. Seguir tal nível de argumentação corresponderia, porém, a sobrestar em qualquer decisão. O que é certo é que AA tem neste momento três anos e que mantê-la institucionalizada por mais tempo é desnecessariamente estéril sob o ponto de vista afetivo e contrário às disposições legais enunciadas.
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Por tudo o exposto, afigura-se-nos que o acórdão proferido não merece censura, devendo ser confirmado na íntegra.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, julga-se a apelação improcedente, mantendo-se a medida decretada.
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Sem custas, por delas o processo estar isento (art.º 4.º/2/f do Regulamento das Custas Processuais).
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Porto, 8-1-2024
Teresa Fonseca
Jorge Martins Ribeiro
Miguel Baldaia de Morais